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A virtude não se ensina, se evoca: uma reflexão sobre arete e paideia em Martin Heidegger
Virtue not teached, but it is evocated: a reflection on arete and paideia in Martin Heidegger
A virtude não se ensina, se evoca: uma reflexão sobre arete e paideia em Martin Heidegger
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 1, pp. 252-263, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 19 Agosto 2019
Aprovação: 15 Outubro 2019
Resumo:
: Atendendo ao chamado de Heidegger por “outro início”, desde o pensamento originário grego, são reconsideradas as noções de paideia e de arete. À paideia exaustivamente investigada por Werner Jaeger é imposta a interpretação do próprio Heidegger e de Danielle Montet. Enquanto a arete é reexaminada através de uma nova luz lançada pela obra de António Caeiro. Enfim, devidamente preparado pelo pensamento inusual destes pensadores sobre paideia e arete, se reabre o debate sobre a possibilidade ou não da virtude ser ensinada. Concluímos com Sócrates que definitivamente ela não pode ser ensinada, não ao modo pretendido dos sofistas e dos “modernos” pensadores e educadores, mas que sim há certamente possibilidade de uma “paideia da arete”.
Palavras-chave: Paideia, Arete, Excelência, Heidegger.
Abstract:
: Accepting Heidegger’s call for “another beginning”, from greek original thought, this essay rethinks the notions of paideia and arete. We impose over the paideia over investigated by Werner Jaeger, Heidegger’s own interpretation, as well as Danielle Montet. Arete is reexamined through a new light brought by Antonio Caeiro’s new work on the subject. Well prepared by unusual thoughts of these thinkers on paideia and arete, we venture to reopen the debate on the possibility or not that virtue could be taught. Our conclusion is along with Socrates that definitely virtue cannot be taught, at least not at all as the sophists and “modern” thinkers and educators pretend, but yes, of course, there can be a paideia of arete.
Keywords: Paideia, Arete, Excellence, Heidegger.
Introdução
Tudo parece já ter sido dito tanto sobre paideia quanto sobre arete. Se tomarmos o clássico estudo de Werner Jaeger (1986), Paidéia, em seu volumoso discurso sobre a paideia e a arete na Grécia Antiga, a impressão que se tem é que ambos temas estão magistralmente, não só discorridos em toda sua amplitude, como também articulados em todas as suas conexões.
No entanto, temos a pretensão de aportar outras considerações tendo como eixo principal o pensamento de Martin Heidegger. Em algumas poucas passagens de sua imensa obra encontramos reflexões relevantes sobre Paideia, dignas do pensar aqui proposto. Consideramos ainda, que ao investigar à questão do ser e em particular o ser-aí, que entendemos como o “ser” humano, teremos um ponto de partida crucial para uma reflexão sobre a Paideia e a arete. Um eixo ao redor do qual é possível uma justa aproximação a estes aspectos primais do pensamento originário grego – aspectos ainda prementes nos dias de hoje –, inclusive de inquirir da possibilidade ou não de se ensinar a virtude. Possibilidade esta que certamente necessita a reflexão pretendida sobre paideia e arete.
Certamente não esqueceremos de Jaeger, nem poderíamos face a essa temática. Porém, embora Jaeger seja um renomado filólogo, nos poremos à escuta de Heidegger e outros estudiosos sobre sentidos de paideia e de arete, que mereçam ser também contemplados e argumentados em sua trama mútua. Eis nosso propósito que vai se desdobrar em uma primeira parte sobre paideia em Heidegger, uma segunda parte, ainda sobre paideia, seguindo os passos de Danielle Montet (1990), e uma terceira parte, sobre arete, à escuta da tese de doutorado de António de Castro Caeiro (2002). Devido à latinização desses termos gregos e às notáveis diferenças em relação ao entendimento comum contemporâneo de paideia como “educação” e arete como “virtude”, que cada uma destas exposições demonstra, optamos por evitar ao longo do artigo estas traduções ordinárias, mantendo estes termos na transliteração não acentuada do grego, como no título.
Concluindo, ensaiamos algumas ponderações sobre a paideia como um aperfeiçoamento das virtudes, um exceler da excelência, como preferimos denominar. Não que assim seja afirmada a possibilidade de aprendizado da virtude, mas que esta possibilidade só se dá como poder-ser do ser-aí, como sua realização, seu tornar-se real, ou como prefere Heidegger, sua propriedade ou autenticidade .Eigentlichkeit).
Paideia no pensamento de Heidegger
Em cerca de 16 de suas obras, Heidegger menciona com menor ou maior trato, a paideia grega. Dentre essas destacamos a coletânea de ensaios, Marcas do Caminho (2008), e seu curso do semestre de inverno 1924-1925 na Universidade de Marburg, Platão - o sofista (2012b), onde Heidegger elabora ainda mais a paideia, sempre em referência ao pensamento de Platão. Vamos tentar resumir o que é dito nas principais passagens sobre o tema nestas obras, nos valendo de citações retiradas das mesmas.
Comecemos primeiro, pelo ensaio “A Teoria Platônica da Verdade” (2008, p. 215-250), onde Heidegger oferece sua interpretação do “mito da caverna” em Platão, em que a paideia é pensada além da noção comum e ordinária de “educação”. Nota-se o incomum de seu pensamento, ao salientar no mito uma “readaptação” da alma, que “com paciência e com os passos sequenciais adequados, deve acostumar-se ao âmbito do ente ao qual está exposta” (ibid., p. 228). Esse “acostumar-se ao âmbito do ente” é demonstrado no mito, pelo transitar da alma da escuridão para luz, dirigindo-se à saída da caverna, e da luz para escuridão, de retorno à caverna. Heidegger frisa também em todo processo um voltar-se da alma para sua busca, uma espécie de conversão em e para si mesma, uma metanoia.. Ao mesmo tempo, insiste na “constância” e na “lentidão” dessa readaptação, desse acostumar-se, dessa paideia..
Mas por que é que em cada âmbito a adaptação deve ser constante e lenta? Porque a transformação concerne ao ser homem e, por isto, se realiza no fundo de sua essência. Isto significa: a postura, que serve de medida e que deve surgir por meio de uma guinada, precisa ser desenvolvida a partir de um empuxo que já sustenta a essência do homem até atingir um comportamento firme. Esta mudança de hábito e este movimento de se reacostumar da essência do homem com o âmbito que lhe é indicado a cada vez é a essência do que Platão chama de παιδεία. Não há como traduzir esta palavra. Em Platão, de acordo com a determinação de sua essência, παιδεία significa a περιαγωγη όλης της ψυχής, a guia que conduz para a transformação de todo o homem em sua essência. É por isto que a παιδεία é essencialmente uma transição, e, em verdade, da άπαιδευσία para a παιδεία. De acordo, como o caráter dessa transição, a παιδεία permanece referida constantemente à άπαιδευσία. Embora não de modo pleno, à palavra παιδεία corresponde o melhor possível a palavra alemã “Bildung” (formação). Todavia, precisamos devolver a essa palavra a sua força original de nomeação, esquecendo a falsa interpretação na qual ela decaiu ao final do século XIX. “Bildung” (formação) significa duas coisas: “Bildung” (formação) é, por um lado, bilden (formar), no sentido de uma cunhagem que se vai desenvolvendo. Esse “bilden” (formar), porém, bildet (forma) (cunha) de imediato a partir de uma conformação prévia a uma visão normatizadora, que se chama justo por isto de paradigma. “Bildung” (formação) é ao mesmo tempo cunhagem e guia por meio de uma imagem. A essência oposta à παιδεία é a άπαιδευσία, a Bildungslosigkeit (falta de formação). Nela, nem se despertou o desenvolvimento da postura fundamental, nem se propôs o paradigma normatizador.
A força interpretativa da “alegoria da caverna” concentra-se em tornar visível e cognoscível a essência da παιδεία na plasticidade da história narrada. Em forma de rechaço, Platão quer mostrar também que a παιδεία não tem a sua essência em entulhar a alma despreparada com meros conhecimentos, como se faz com um recipiente vazio, que se apresenta arbitrariamente. Contrariamente a isto, a verdadeira formação apanha e transforma a própria alma na totalidade, alocando o homem antes de tudo em seu lugar essencial e com ele acostumando-o. (HEIDEGGER, 2008, p. 228-229)
Para Heidegger, o “melhorar”, o “completar”, o “perfeccionar”, que poderiam corresponder à paideia é muito mais uma conversão, uma transformação, um “acostumar” progressivo com a luz, como no “mito da caverna” de Platão (República.). Essa “metanoia”, também pregada nos Evangelhos, este ir além por uma mutação do noûs (inteligência), esta mudança de direção, esta conversão, concerne o homem em sua essência e opera no fundo desde seu ser. De maneira que a atitude (Haltung) decisiva resultante da mudança de direção deve se precisar e se tornar um comportamento (Verhalten) bem estabelecido, a partir de uma relação já sustentando a essência do homem. Justamente essa nova orientação, essa mutação do noûs, essa adaptação do ser humano ao domínio que lhe a cada vez assinalado, constitui a essência disso que Platão chama a paideia, palavra traduzível só aproximativamente. A paideia em Platão, é um caminhamento do homem em direção a uma viragem de todo seu ser .metanoia): uma passagem da apaideusia à paideia. Cabe notar que o termo alemão, Bildung, que Heidegger adota como tradução de paideia, embora ainda aquém desse seu sentido maior, é uma aproximação razoável, como elabora Hans-Georg Gadamer sobre sua difícil versão para outras línguas, em seu clássico Verdade e Método (1999, p. 47-60).
O “mito da caverna”, por sua força simbólica, está centrado sobre o desígnio de tornar a essência da paideia “visível” e “cognoscível” através das formas sensíveis de um relato. A gradativa exposição à luz que se intensifica de etapa em etapa do trajeto de saída da caverna, até uma total conversão da própria visão em luz, face o sol, deixa claro que não se trata de acumular saberes, que poderiam ser obtidos dentro da própria caverna, ou seja, comprometidos pela ilusão de imagens propostas pelo olhar de lampejos de luz e de sombras no recinto da caverna. Para Heidegger, a verdadeira paideia, ao contrário, apreende e transfigura a alma ela mesma, a alma integralmente, conduzindo então o ser humano ao lugar e acontecer de sua essência e “aí” fazendo-o se habituar, se acostumar a ser em modo ético, a habitar o hábito, ou seja, ser desde sua morada original, o êthos.
Como todavia o que é a paideia, segundo Heidegger, reside em um caminhamento do ser humano para uma “reviravolta” de todo seu ser, ela permanece constantemente, enquanto reviravolta, uma re-volta conquistada sobre a apaideusia, a não-paideia. A paideia guarda nela mesma a relação essencial que a une em retaguarda à ausência de paideia .apaideusia). E, se o “mito da caverna”, de acordo com as palavras de Platão, deve nos tornar sensíveis o ser da paideia, tal "pôr em evidência" deve também fazer destacar um fator essencial, para Heidegger, precisamente esta paideia de todos os instantes, todos os agoras, sobre a ausência de paideia. Faz parte do mito o retorno à caverna e o ensinar que se segue ao aprender; o ser humano, sendo-aí, é o que sabe, ensina o que aprendeu. O que se pode constatar na recorrente disposição e abertura de uma criança à paideia sobre a não-paideia.
E se a “alegoria da caverna”, segundo a explicitação do próprio Platão, deve dar concretude plástica à essência da παιδεία, então essa concretização plástica terá de tornar visível também e precisamente este momento essencial, a constante superação da ausência de formação. É por isto que a narrativa da história não acaba, como gostaríamos, com a descrição da chegada ao nível mais elevado da escalada a partir da caverna. Ao contrário, pertence à “alegoria” a narrativa do retorno do liberto para o interior da caverna, para junto daqueles que ainda estão amarrados. O liberto também deve retirar agora estes homens daquilo que é para eles o mais desvelado e conduzi-los para cima para diante do mais desvelado. Mas o liberto já não consegue orientar-se dentro da caverna. Corre o risco de sucumbir à supremacia da verdade que serve ali de medida, isto é, à pretensão da “realidade” comum como sendo a única. O liberto está ameaçado pela possibilidade de ser morto, uma possibilidade que, no caso do destino de Sócrates, “mestre” de Platão, se tornou realidade. (HEIDEGGER, 2008, p. 234)
A outra passagem na obra de Heidegger, aportando uma reflexão inusitada sobre a paideia, encontra-se em seu curso sobre O Sofista de Platão. Nessa passagem, depois de falar sobre a ignorância (agnoia) na base de tudo aquilo sobre o que nos enganamos na suposição, na dianoia (no pensamento discursivo), Heidegger (2012b, p. 406) destaca que essa agnoia é designada no Sofista (229c9). como amathia (desconhecimento), cujo fenômeno positivo é a paideia (formação), o “ser educado” propriamente dito. Mas faz um alerta para se evitar uma possível confusão na tradução de paideia por “formação”: não se deve compreender alguém bem formado, como “alguém que conhece tudo o que é possível conhecer de todas as áreas do saber, da arte e coisas do gênero” (HEIDEGGER, 2012b, p. 406). A paideia implica muito mais em ter condições de instigar uma questão propriamente dita, se mostrando como um investigador por excelência. A paideia não é uma formação no sentido de conhecimento geral, “trata-se muito mais de uma pragmateia”, uma tarefa, ou seja, ela não é nenhuma posse óbvia, ela é uma tarefa que nem todos poderiam iniciar por si, mas uma que depara precisamente em cada um de nós mesmos com seus obstáculos propriamente ditos (ibid., p. 407). E mais ainda, trata-se de um ensinamento (didaskalike) nos discursos (logois), um ensinamento “que se realiza sob o modo de falar um com outro e do falar para o outro” (ibid., p. 408). O que podemos e defendemos denominar um “discurso terapêutico”.
Em passagem anterior (ibid., p. 244), na mesma obra, Heidegger demonstra como paideia para os sofistas é algo totalmente diferente de paideia para os filósofos, no antigo pensamento grego:
Ante o sofista, o dialético e o filósofo são determinados pelo fato de que levam a sério aquilo sobre o que falam, de que têm em seus discursos o intuito de, de maneira substancial e consonante com a coisa, trazer compreensão para aquilo sobre o que falam, enquanto o sofista não atenta para o conteúdo do discurso, mas apenas para o discurso ele mesmo, para o ter razão e para o brilhar. Por isso, a ideia pela qual os sofistas são guiados é a παιδεία (formação), certo ser educado com vistas ao falar sobre todas as coisas. Essa παιδεία (formação) tem caráter formal, no sentido do poder falar bem, ευ, sobre tudo. Aristóteles também conhece esse ideal do ser educado no sentido da formação científica, ele também possui aí, em certo aspecto, um significado formal: a παιδεία (formação) não está restrita a uma região material determinada. Em Aristóteles, porém, παιδεία (formação) significa o ser educado com vistas à possibilidade de se medir respectivamente pela coisa da qual se fala, ou seja, precisamente o contrário daquilo que a παιδεία (formação) significa nos sofistas, o ser educado no sentido de uma despreocupação fundamental e corrente. Em Aristóteles, a παιδεία (formação) designa o ser educado para falar a cada vez de maneira apropriada sobre a coisa. Na medida em que há regionalmente muitas coisas, essa παιδεία (formação) não pode ser caracterizada simplesmente em termos de conteúdo, mas precisa dizer respeito a um determinado tipo de formação, à formação metodológica do nível científico com vistas ao questionamento e à preparação das investigações.
De posse destas inusuais considerações sobre paideia, passemos ao exame do sentido originário da paideia.
Paideia no pensamento grego
Segundo breve estudo de Danielle Montet (1990, p. 187-210), paideuein, como governar, significa “melhorar”: o indivíduo pela paideia, a polis pela techne politike. “Melhorar” guarda seu sentido original do latim melior, “melhor”, referindo-se não a pessoa em si mesma, mas à “situação humana”, expressão que Caeiro (2002, p. 17) opta como tradução do grego praxis. Ou seja, “melhorar” no sentido de “melhor dispor uma situação humana”, em uma “melhor praxis”. É justamente neste horizonte da situação humana (praxis) que se poderá alcançar o “melhor”, que se poderá encontrar e realizar a sua possibilidade extrema (da praxis), qual seja a excelência (arete).
Segundo Montet (1990, p. 187), a impossível autarcia de todo e cada um ser humano é uma coação a se fazer uma polis, mas esta indigência original está também no princípio da paideia, no imperativo da abertura a se ensinar e se aprender. Todavia, tanto quanto a arte política, a arete não se ensina verdadeiramente. Por conseguinte, que significa paideuein? Como procede a paideia? Questões cujo debate com os sofistas, nos diálogos platônicos, ou até na condenação de Sócrates, confirmam a agudeza e a pertinência.
Várias notas se impõem para situar o conceito de paideia na interpretação de Montet (ibid.). Primeiro, é um termo de dupla entrada; assim como khreia, é ativo e passivo. “Paideia”, a ser ainda entendido em seu sentido próprio, significa tanto algo que se dá como algo que se recebe, ensinar e aprender, do mesmo modo que khreia enuncia ao mesmo tempo o uso que se faz de uma coisa e aquele uso ao qual ela se presta a ser usada. Cada um dos dois termos se encontra, por sua vez, replicado por sinônimos que permitem precisar esta dupla entrada, ou flexão: khresis e khrema para khreia, paideusis e paideuma para paideia. Por conta desta dupla entrada, replicada até nestas palavras afins, tanto paideia como khreia, são preferidas por Platão, pois, tanto em um como em outro caso, dão a pensar a reversibilidade, a circularidade ativo-passivo. O próprio Sócrates testemunha que, ao buscar conhecer um tema ou uma virtude junto a outro, ao procurar uma escola à qual frequentar, acaba por fomentar no interlocutor ele mesmo, a questão da paideia. Com efeito, podemos concluir que somos mestre e aluno de nós mesmos, o que ensinamos é o que aprendemos, o que aprendemos é o que ensinamos, o que comprova no fundo a máxima: “Conhece-te a ti mesmo”.
Montet (ibid.) afirma que a tradução de paideia por “educação” ou “formação” não oferece de modo algum o campo semântico de paideia, articulado ao redor de pais, criança ou infante. A paideia se relaciona à infância sem implicar no entanto em uma qualquer pedagogia. “A não ser que vos torneis como criancinhas, não vereis o Reino dos Céus”, já profetizava Jesus. Evidentemente como adultos só podemos nos tornar como criancinhas se tivermos a devida disposição em nós mesmos de ensinar e aprender, de aceitar que estamos constantemente ensinando e aprendendo, ao mesmo tempo. Ser-aí é abertura de ensino e aprendizado simultâneo em sua constituição fundamental ser-em-o-mundo.
Ao passo que o latim, qualifica a criança, o infante, a partir de seu mutismo (infans), o grego sublinha sua natureza enquanto pais, enquanto algo deficiente e inacabado, uma incompletude que excede a deficiência de linguagem, seja no mutismo seja no aprendizado da língua. Montet (ibid., p. 188) demonstra que o termo pais, aparentado a uma família semântica que significa a pequenez, a precariedade, a carência, marca a criança com uma deficiência originária que vai além de seu mutismo. A criança é pensada a partir de um limite inerente, de uma carência, que a paideia virá justamente redimir, porque o “humano” nasce pais, sofre de uma deficiência original, patente desde seu nascimento.
A expressão platônica, frequente em seus diálogos (Alcibíades 122b; Fédon 107d; República 424a-b; Filebo 55d), trophe kai paideia, geralmente traduzida por “formação e educação”, não se reduz a desenvolvimento físico e formação intelectual. Os dois termos, trophe e paideia, se reforçam na articulação de nuances complementares: a “formação” supõe sempre um “nutrimento” (trophe) mas aí não se limita. Não basta nutrir – física e intelectualmente – para cultivar um ser humano, pois a relação viva na paideia é mais complexa, como diz Montet (ibid.). Assim também, “paideuein” se opõe a “plattein” modelar, confeccionar. A paideia é mais que um “nutrimento” de saberes e difere de uma “modelagem”, de uma “formadura”, o que põe em suspenso a evidência de uma tradução por formação.
Paideia, por conseguinte, não é da ordem de um apropriar saberes ou em si mesmo um saber ou um saber-fazer, nutriente de qualquer pedagogia. No Filebo (55d) é feito explícito que a paideia não é como uma “arte plástica”, e que trophe e paideia se opõem ao que é da ordem da poiesis (fazimento) do demiurgo. Por conseguinte, não se conformando à modelagem ou qualquer “modelador” e não se enquadrando na ordem da poiesis, de qualquer orientação técnica, da techne, Montet (ibid., p. 189) faz lembrar que Platão jamais empregou a expressão techne paidagogike.
De acordo com Montet (ibid., p. 190), a paideia revela uma cura .melete=atenção) que só nutre aquele que cuida, por conta do que é cuidado. Sócrates pode assim se apresentar como o verdadeiro “amante” de Alcibíades. Sua cura de Alcibíades visa uma melhoria e toma a revés a pretensão de Alcibíades de se bastar a si mesmo, de ser autárcico, de ser auto-suficiente. A paideia que visa uma melhoria, passa pelo reconhecimento de uma carência, de uma precariedade deste infante que em nós permanece desde o nascimento. Só eros pode atender à cura deste limite e desta carência; só eros pode revelá-la, fazendo dela ocasião de melhoria. Montet (ibid., p. 191) lembra que Diotima no Banquete de Platão esclarece Sócrates como, a partir do amante, pode-se compreender o que está em jogo no amor: não o belo, mas o “engendrar-se no belo”. O belo é este meio propício ao engendramento, fonte de toda criação e procriação. Pela mediação do que se tem cura, aquele que cura, o amante da sabedoria (philosophos), libera. Ele é “parteiro” como Sócrates se diz, fazendo obra de paideia por meio de um discurso sobre a excelência (arete), “discurso terapêutico” que ressoa em completude à carência daquele que a reconhece.
O homem exige uma paideia: tem a ser aquilo que não lhe é simplesmente dado ser e, para isto fazer, a relação a outro é incontornável. O outro constitui o único meio de acesso a si mesmo para o melhor (na paideia) e para o pior (na apaideusia). Só a relação a outro permite responder a injunção délfica, o que Sócrates tenta fazer entender Alcibíades: “A alma, se ela quer se conhecer ela mesma deve olhar uma alma (como o olho que se quer se ver, o pode na pupila de um outro olho) e nesta alma a faculdade própria à alma (he psyches arete), a inteligência [nous]” (MONTET, 1990, p. 193).
O Léxico de Platão (2012, p. 108-110), em sua entrada paideia, ressalta que ao esclarecê-la no símile do “mito da caverna”, Platão guarda seu fundamento no conhecimento da ideia de Bem; a paideia tem em seu centro a vida boa, bem-sucedida, que se apoia na ação boa e exitosa, por conseguinte, aquela que resulta no bem na alma em seu estado ordenado. A maiêutica socrática é condutora da periagoge, o ato de os habitantes da caverna se afastarem das imagens de sombras voltando-se então para as coisas mesmas, para o ser dos entes, único caminho para ascensão à luz da verdade. “A psyches periagoge (‘conversão da alma’, República 521c) condiciona e fundamenta a paideia” (ibid.). A ordenação da alma encontra-se no centro do ideal de nobreza antigo, a kalokagathia (termo composto de kalos kai agathos: o belo (to kalon) e o bem ético, moral (to agathon) são respectivamente sinais externos e internos, reflexos resultantes do suceder de uma paideia.
Concluindo esta parte, entendemos que o amplo estudo de Jaeger ganha nova luz a partir das considerações acima. Jaeger (1986) vê na polis grega e na constituição de sua governança por um Estado, um fato impulsionante para o aperfeiçoamento do indivíduo, e decorrentemente a afirmação de uma paideia que virá a ser conduzida pelos sofistas. Estes, em sua orgulhosa pretensão e equívocos inúmeros sobre o profundo sentido da tarefa que se outorgaram, viriam a ser, por sua vez, duramente combatidos por Sócrates e Platão.
Nas palavras de Jaeger (1986, p. 199), “difícil é dizer se foi o Estado que predominantemente impulsionou o espírito ou se foi o espírito que impulsionou o Estado. Mas é o segundo caso que parece mais provável”. O fato é que a origem da “educação” como a conhecemos hoje em dia, na referência ao termo paideia, se deu nessas condições, sob a égide dos sofistas no século IV (ibid., p. 233). Apesar da grandeza do esforço de Sócrates e Platão, na investigação da arete e da verdadeira paideia, que esboçamos acima, para Jaeger a paideia sofista “durante o helenismo e o império haveria de ampliar cada vez mais sua importância e a amplitude de seu significado” (ibid.).
Arete
António Pedro Mesquita (1995, p. 45-78) considera que os primeiros diálogos de Platão ressaltam a centralidade da questão “o que é?” e a circularidade ser-saber, a partir de uma dialética que visa à determinação da excelência, ou de um de seus aspectos ou ideias, em “sua enumeração mais corrente e simultaneamente mais completa” (ibid., p. 45): a justiça (dikaiosyne, dikaiotes), a coragem (andreia), a temperança ou moderação (sophrosyne), a piedade (osion, osiotes) e a sabedoria (sophia, episteme, phronesis)..
Mesquita elabora sua argumentação demonstrando que, em cada um destes primeiros diálogos, presencia-se à convocação de uma arete perante a investigação do que ela seja, ou, a busca de respostas à questão “o que é?” tal excelência. Salienta, no entanto, que mesmo em diálogo terminando por “uma suspensão aporética, em que nenhuma resposta aparentemente se acha”, descobre-se “um vínculo unificador da própria excelência, “que faz de cada uma delas justamente uma excelência. E tal vínculo unificador é o saber” (ibid., p. 46).
Com efeito, a dialética socrática nestes primeiros diálogos não é uma esforço puramente do raciocínio para se alcançar uma definição desta ou daquela arete, mas assenta-se sobre a convicção de que a investigação dialética, com base na sustentação da pergunta “o que é?”, mesmo face a uma aporia, é de fato apropriação de um saber, pela conformação e configuração do ser ignorante ao logos emanada do noûs, em uma espécie de ascese em si mesma capaz de promover à organização e à ordem imprescindível à confirmação do que Mesquita conclui provisoriamente (ibid., p. 53): “saber a excelência é sê-la; saber é ser. O que na fórmula lapidar do Górgias, se converte: o ta dikaia memathekos dikaios, ‘o que aprendeu a justiça é justo’ (406b)”. Esta intrínseca circularidade entre o ser e o saber, como denomina Mesquita, será melhor tratada adiante quando abordarmos finalmente a questão da paideia da arete. Agora nos voltemos para esta organização e ordem, fundamento da harmonia ser-saber, e portanto da anthropeia arete, excelência humana.
Continuando no Górgias (506e), tomemos como ponto de partida esta definição de arete de Platão (HAMILTON & EMLYN-JONES, 2004, p. 106): “A excelência de uma coisa depende dela ter uma certa organização (taxis) e ordem (kosmos) que é o resultado de um arranjo”. Caeiro (2002, p. 27) opta por uma tradução muito próxima, porém mais clara: “A ‘excelência’ de cada coisa é arranjada numa ordem através de uma estrutura organizativa”. Segundo ele, sobressai “a fórmula organizado estruturalmente e ordenado constitutivamente (taxei tetagmenon te kai kekosmemenon)” (ibid., p. 29).
O que se denomina taxis, traduzido apenas como organização, ou disposição, ou arranjo, ou estrutura organizativa, é uma estrutura ontológica que segundo Caeiro (ibid., p. 28) “está encerrada nos termos ‘organização estruturalmente constituinte’”, que juntamente com a “ordenação” (kosmos), também constituinte, respondem pela excelência (arete) de qualquer coisa, em qualquer caso. Mas o que entender por taxis e kosmos? E sua sustentação da arete? E sua possibilidade ou não de paideia? Eis questões “dignas de pensar” em se tratando de “excelência”.
Segundo Les Notions philosophiques (1990, T. II, p. 2549), taxis deriva da raiz tag- / tak-, donde o verbo tassein “ordenar”, “colocar onde é preciso”, de maneira organizada, com o sentido de ordem, de prescrição, de disciplina. Os pré-socráticos empregavam com frequência a taxis em relação com kosmos; os pitagóricos, sobretudo no mundo estelar. Em Anaximandro, a retribuição entre os poderes cósmicos se cumpre segundo a taxis do Tempo; a taxis é uma das três propriedades do átomo para os atomistas. No Górgias (503 e seq.), Platão ilustra a taxis da alma segundo modelo do artesão que vigia para que cada parte se adapte harmoniosamente a uma outra, até que se manifeste a obra completa, produto de taxis e de kosmos, como na definição acima, também do Górgias (506e).
Essa mesma enciclopédia de filosofia, Les Notions philosophiques (T. I, p. 1423), nos informa que a palavra kosmos exprime originalmente a noção de ordem, de colocar em ordem, assim como taxis, nos sentidos material e moral. Por outro lado, o sentido “ornamento” já se insinua na Ilíada (IV, 145; XIV, 187). Este elemento semântico está certamente contido no uso posterior de kosmos no sentido de “universo” (sentido empregado pela primeira vez por Pitágoras): o kosmos se distingue do khaos inicial. Seu ordenamento e a regularidade de seus fenômenos sancionam a ideia de lei. Heráclito proclama a eternidade do kosmos, “fogo sempre vivo, se acendendo e se apagando por medidas”: o que leva os estóicos a se reivindicar de sua autoridade em favor da conflagração periódica do universo. Para Platão o kosmos visível é imagem de um modelo inteligível (Timeu 30c-d). Para Aristóteles, o Primeiro Motor está fora do kosmos, que ele move enquanto ser amado (Metafísica Λ, 7). No tocante à excelência humana, Caeiro (2002 p.32) afirma: “ordem (kosmos) é o que, produzindo-se em cada ente, fornece a aptidão peculiar a cada coisa”. Por outro lado, ressalva (ibid.): “quando a perversão (kakia) nos detém a existência, o que se gera é caos e confusão”, ou seja, “a perversão (kakia) caracteriza-se enquanto privação (steresis) da excelência”.
Pela excelência específica, cada coisa produz bem os seus produtos. Quando infectados pela perversão (kakia) desvirtuadora, esses produtos são mal produzidos (República 353c). O sentido do trabalho (ergon) é idêntico ao que nós entendemos por função. É por qualquer coisa ter uma determinada função que ela pode estar ou não em funcionamento, que pode estar a funcionar bem ou mal, ou de todo em todo fora de funcionamento. Esta verificação de fato resulta da presença eficaz e efetiva da excelência (arete) ou da perversão (kakia) num determinado ente, do efeito que ambas fazem surtir sobre o ente a que dizem respeito. Uma permite a qualquer coisa o bom desempenho das funções que lhe competem. A outra, pela sua ação, estraga, desfaz, desvirtua e perverte o trabalho (ergon) de cada ente (República 353d).
A “privação da excelência” (República 353c) não acaba com um determinado ente. Não faz que ele deixe, por exemplo, de estar disponível aí no mundo. O que acontece é que o seu trabalho específico é levado a cabo de uma forma deficiente. (CAEIRO 2002, p. 36)
Configurados os dois termos taxis e kosmos como significando, respectivamente, “organização” e “ordenação”, ou, poderíamos, em resumo, dizer como significando ambos o conceito de “ordem”, o Léxico de Platão levanta sua importância extraordinária no pensamento de Platão segundo três contextos temáticos relevantes para nossa investigação sobre a arete: 1) a cosmologia; 2) a psicologia; 3) a política. O que não é de estranhar dada o estreito relacionamento entre essas três esferas. Enquanto, para Platão, existem princípios de ordem amplos, ao mesmo tempo válidos para o universo, a alma e a politeia, no campo do cosmos esses três princípios vigem de fato, porém na alma e na politeia devem ser vinculativos no sentido normativo.
Às vezes, Platão emprega kosmos no sentido de “ordem estatal (ou jurídica)” (Leis 758d-759a, 764b-d), às vezes com o significado de “céu” (Féd. 108e; Rep. 509d; Tim. 92c), mais frequentemente, porém, no sentido de “universo” (Lísis 214b; Górg. 508a; Crát. 412d; Pol. 270b, 272e; Fil. 28d; Tim 28c, 69c). O uso mais filosoficamente interessante é o do significado de “ordem do mundo” (Pol. 269d, 273a; Tim. 27a, 28b; Leis 821a, 897c, 898 a). O conceito de taxis é usado em Platão no sentido de “ordem legal” (por exemplo, Pol. 294e), no sentido de uma instrução ou ordenação (Tim. 42e) ou no sentido daquela ordem que se deve encontrar na alma do homem e também na do Estado (Rep. 577d). (SCHÄFER, 2012, p. 231)
Essas acepções de taxis e de kosmos aproximam-nos a algo que nos interessa, no tocante à virtude, e que permeia o “todo da totalidade”, talvez até como o próprio todo (holon) do tudo (to pan). Algo que em sua versão latina veio a ser nomeado universus .to pan; holon), em sua referência ao macrocosmo, e mundus .kosmos), em sua referência ao microcosmo, ao ser humano em suas esferas superiores imediatas (ouranos).
Rémi Brague (1988 p. 28-32) examina brevemente o termo “mundo” desde o pensamento grego arcaico, concluindo que o mundo, kosmos, antes de ser nomeado está implicitamente concebido como a totalidade do que está presente: o Todo ser do tipo “todas estas coisas que eis aí” (tade pante). “O mundo é o que está presente, o que está presente agora, o que vemos agora, o que, agora, é visto como presente por nós” (ibid., p. 29). Em Empédocles o mundo adquire o sentido de unidade, recebe um nome próprio, kosmos, “um termo que significava antes de tudo ‘ordem, arranjo’” (ibid., p. 30); trata-se agora de uma totalidade bem ordenada, una, a ser também referida em termos de multiplicidade, todo (holon ou ouranos) ou tudo (to pan) (ibid., p. 31).
Se levarmos em conta que, “para Platão, não há mundo senão o sensível, a noção de ‘mundo inteligível’ só aparecendo muitos séculos após ele” (BRISSON & PRADEAU, 1998 p. 33), essa ordem (kosmos) pode ser entendida como aquela que configura o mundo sensível à percepção da alma (psyche), guiada pelo intelecto (noûs), direcionado ao Bem (agathon), o Uno (hen). Da mesma maneira, a desordem (akosmia) é aquela que configura o mundo sensível à percepção da alma “quando a perversão [kakia] nos detém a existência”., nos privando à excelência de ser, na retidão (orthes) do intelecto, direcionado ao Bem.
Com relação a esta percepção configuradora, Richard Sorabji (2005, p. 37) deixa claro, inclusive com diversas citações, que reconhecimento e julgamento perceptual formam um processo ativo que requer conceitos e a projeção de conceitos: os estóicos definiam a razão (logos) como uma coleção de conceitos e preconceitos (ennoiai, prolepsis); os neoplatônicos, por sua vez, preferiam se referir ao plural logoi, que em seu uso geral significa qualquer espécie de princípio racional, para conceitos, que tinham de ser desdobrados ou projetados (proballein, proballesthai) com o propósito de juízo perceptual (krinein, krisis), reconhecimento (gnorisis) e compreensão (synesis).
Constatação também feita por Robert Véron (1987, p. 140), que ainda afirma: “a ação do espírito [noûs] é claramente comandada pelo Bem [agathon]”; “assim se conhecerá a ‘causa segundo o espírito [noûs]’”. O intelecto (noûs) é, por conseguinte, como afirma Anaxágoras “coisa infinita, independente, única em si mesmo e para si mesmo” (Fragmento 12), causa motora e inteligente que conhece as misturas das coisas e cada um de seus componentes, sendo “a mais desligada das coisas e a mais pura” (ibid.). E ainda, segundo Véron (1987, p. 141), embora o noûs possa “se insinuar entre elas para dividi-las e ordená-las, ele não se mistura em absoluto e deixa agir as causas mecânicas, sem ter em vista os fins”..
Um dia, no entanto, ouvi fazer a leitura de um livro cujo autor, dizia-se, era Anaxágoras. Afirmava-se aí que é a inteligência que é a causa ordenadora e universal. Esta causa, ela me agradou muito. Parecia-me que era um coisa boa, em um sentido, que fosse a inteligência que fosse causa de tudo; e pensei: se assim é, se é a inteligência que põe ordem, ela deve ordenar todas as coisas e dispor cada uma da melhor maneira possível. Aquele portanto que desejasse descobrir como cada coisa vem a existir, perecer, ou é, deveria também descobrir qual é a melhor maneira para esta coisa de ser, de sentir ou de fazer o que quer que seja. Em me apoiando neste raciocínio, estimei que o único objeto de exame que convém a um homem, era – quer se tratasse dele mesmo ou de todo o resto – o melhor e o excelente. E que haveria, ao mesmo tempo, o saber do pior, pois é uma mesma ciência que se prende aos dois.. (Fédon 97c-d)
Véron (1987, p. 141) conclui que para Platão, “o Bem orienta para si toda coisa em lhe conferindo a essência e a existência; ele o faz pelo ministério do espírito [noûs]”. Nesta qualidade, consagrada por uma espécie de delegação de poder, o noûs é, para o universo (o macrocosmo) e para o ser humano (o microcosmo), o instrumento da causalidade do Bem e o artesão da maior perfeição, da excelência. Resumindo em diferentes citações dos Diálogos de Platão: “no conhecível, o que se encontra a termo, é a forma do bem, e só se a vê com esforço, mas uma vez vista, deve-se concluir que é ela que constitui de fato para todas as coisas a causa de tudo o que é reto e belo” (República 517c), e sob sua égide, o intelecto é o rei de nosso céu e de nossa terra (Filebo 28c); não sendo permitido também “submeter o intelecto ao que quer que seja, muito menos dele fazer escravo” (Leis IX 875c), pois “existe nos astros um intelecto que é o guia dos seres” (Leis XII 967d), e que “a alma, enquanto se junta ao intelecto divino, posto que ela é a justo título uma divindade, guia todas as coisas na retitude e na felicidade” (Leis X 897b).
Conclusão
A arete não podendo ser ensinada ao “humano”, sempre se dá (es gibt), ou seja, sucede como “acontecimento” (Ereignis), em seu sentido forte no pensamento de Heidegger: “ser-capaz de realizar o próprio”, um próprio não pessoal e nem possessivo, um próprio “sem dono”, portanto sem conteúdo apropriativo. Estamos obviamente falando do próprio de cada ser-aí, o qual, por exemplo, na andreia, a virtude da “coragem”, afirma o aí-se-é e não somente um aí-eu-sou .aí-ego-sum?). Assim a arete é-Aí, onde é capaz de ser evocada e se manifestar ou se realizar, na aquiescência, na escuta, da paideia; a começar por se pôr à escuta de um discurso terapêutico.
Referências
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SORABJI, Richard. The Philosophy of the Commentators 200-600 AD, Vol I. Ithaca: Cornell University Press, 2005.
VÉRON, Robert. Platon. Une introduction à la vie de l’esprit. Paris: Belles Lettres, 1987.
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Contribuição dos(as) autores(as): João Cardoso de Castro escreveu o artigo e Murilo Cardoso de Castro fez a revisão. Ambos aceitaram e aprovaram a versão final do texto.
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Autor(a) para correspondência: João Cardoso de Castro, Editora Unifeso. Centro Universitário Serra dos Órgãos. Av. Alberto Torres, 111 – Alto, 25964-004, Teresópolis – RJ, Brasil. : joaocardosodecastro@gmail.com