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As ruas, a opinião pública e o processo penal: uma análise a partir do caso Calas
Edimar Inocêncio Brígido
Edimar Inocêncio Brígido
As ruas, a opinião pública e o processo penal: uma análise a partir do caso Calas
The streets, public opinion and the criminal proceedings: an analysis from case Calas
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 1, pp. 289-302, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: Jean Calas, formalmente acusado pelo crime de parricídio, foi julgado e condenado sem provas. A ausência da materialidade do suposto ato delituoso foi suprida pela convicção dos magistrados, aliada ao clamor popular das massas que ocupavam as ruas, reivindicando por justiça. Partindo da análise desse julgamento histórico, situado nos tribunais franceses do século XVIII, o artigo pretende chamar a atenção para os riscos decorrentes da influência da opinião pública sobre o curso do processo penal. Utilizando-se de fontes bibliográficas, será demonstrado que a intolerância foi o fio condutor que direcionou o rito processual, acarretando na condenação de um homem inocente. Em tempos de ativismo judicial, podemos aprender com a história, mas não é certo que o faremos.

Palavras-chave:Opinião PúblicaOpinião Pública,Processo PenalProcesso Penal,Jean CalasJean Calas,IntolerânciaIntolerância.

Abstract: Jean Calas, formally charged with the crime of parricide, was tried and convicted without evidence. The absence of the materiality of the alleged criminal act was suppressed by the conviction of the magistrates, allied to the popular outcry of the masses occupying the streets, claiming for justice. From the analysis of this historical judgment, located in the French courts of the eighteenth century, the article intends to draw attention to the risks arising from the influence of public opinion on the course of criminal proceedings. Using bibliographic sources, it will be shown that intolerance was the guiding thread that guided the procedural rite, leading to the condemnation of an innocent man. In times of judicial activism we can learn from history, but it is not certain that we will.

Keywords: Public Opinion, Criminal proceedings, Jean Calas, Intolerance.

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As ruas, a opinião pública e o processo penal: uma análise a partir do caso Calas

The streets, public opinion and the criminal proceedings: an analysis from case Calas

Edimar Inocêncio Brígido
Centro Universitário Curitiba, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 1, pp. 289-302, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 01 Setembro 2019

Aprovação: 25 Novembro 2019

Introdução

Voltaire denunciou um caso de injustiça que dizimou uma família e marcou a sociedade francesa, nas últimas décadas do século XVIII. Um caso seminal de julgamento e condenação de um inocente, sob o manto do cumprimento da justiça, motivado pelo fanatismo religioso e pelo clamor das massas que ocupavam as ruas pedindo por “justiça”. Nesse solo de contradições, onde muitas vezes prevalecem o obscurantismo e a superstição, em prejuízo da razão e do bom senso, o “Príncipe das Luzes”. lança um forte manifesto em defesa da verdade, da tolerância universal, da liberdade individual e da justiça.

Nas páginas que seguem, faremos a reconstituição do crime, percorreremos seus labirintos e ampliaremos a ótica da reflexão filosófica a respeito da justiça e da tolerância, do sistema judiciário, dos efeitos das leis e da responsabilidade dos juízes, de sorte que, ao término deste trajeto, o Caso Calas resplandecerá como sinal de alerta para todos os operadores do Direito e promotores da Justiça.

A reinvindicação de Voltaire é para que a justiça não seja muda, como é cega; mas que fale a verdade, que julgue e condene com seriedade e imparcialidade. Que a justiça abandone as velhas togas da tradição, formatadas por opiniões distorcidas da realidade, e se revista de coragem para superar toda forma de superstição. Que o operador do Direito não seja um deus, mas um homem que reconhece a alteridade e que compreende que a injustiça praticada contra um só homem é, na verdade, praticada contra toda a humanidade. “Cumpre apenas, portanto, usar nossa razão para discernir os matizes da honestidade e da desonestidade. Bem e mal tantas vezes estão próximos; nossas paixões os confundem: quem nos esclarecerá? Nós mesmos, quando estamos tranquilos.” (VOLTAIRE, 2001, p. 2.)

Antecedentes históricos: o Edito de Nantes

A França, especialmente entre os séculos XVI e XVIII, foi marcada por uma assustadora sequência de conflitos armados, em geral, tendo como principal válvula a questão religiosa. Em abril de 1598, o rei Henrique IV, que para ser aceito como rei da França abandonou a fé protestante e converteu-se subitamente ao catolicismo, assina o aguardado Edito de Nantes, pondo fim aos anos de perseguição e aos atos de violência contra os protestantes franceses, principalmente calvinistas.. Contrariando os anseios do alto clero e também de boa parte da nobreza, doravante ficava estabelecido que a confissão católica permanecia como religião oficial do Estado e da monarquia, mas a tolerância de credo estava garantida aos cristãos cismáticos, descendentes da recém religião reformada.

Em um terreno dominado por concepções católicas, tal decreto fora aceito com reservas pelos seguidores da religião predominante, mas, ainda assim, significou um grande avanço no processo de pacificação e fim da guerra civil entre católicos e protestantes, garantindo a todos a liberdade de opinião e de culto.

Um dos episódios mais trágicos deste conflito – entre cristãos católicos e calvinistas – ficou conhecido como Massacre da noite de São Bartolomeu, ocorrido entre os dias 23 e 24 de agosto de 1572, na cidade de Paris. Portanto, vinte e seis anos antes da promulgação do Edito de Nantes. No dia em que se comemorava a festa do apóstolo Bartolomeu, uma série de ataques comandados pela família real massacraram milhares de calvinistas franceses, primeiro na capital, depois em Lyon, Bordéus, Toulouse e outras importantes cidades do reino. Para se ter uma ideia da dimensão do massacre, registros apontam que “em Orleans foram mortos mil homens, mulheres e crianças; em Rouen, seis mil.” (FOX, 2001). Não seria imprudente assegurar que essa ocorrência representou o maior e mais cruel atentado religioso do século XVI (KOENIGSBERGER; MOSSE; BOWLER, 1989).

O clima de intolerância religiosa revestiu a atmosfera de Paris, levando muitos huguenotes a acreditar que o catolicismo romano era a religião mais sanguinária e traiçoeira da Europa (CHADWICK; EVANS, 1987, p. 113.). Infelizmente, esse não seria o primeiro nem o último ataque massivo aos protestantes da França. Tensões políticas contribuíam para agravar ainda mais os conflitos. Havia rumores de que os huguenotes estavam prestes a dar um golpe de Estado, o que serviu, ao menos inicialmente, de justificativa para legitimar a chacina.

O Edito de Nantes representa a primeira institucionalização política da tolerância religiosa, o que pôs fim aos episódios de barbárie, ainda que a paz não fosse uma conquista que duraria por muito tempo. Menos de um século depois, durante o reinado de Luís XIV, o Edito de Nantes foi revogado e um novo decreto foi promulgado em substituição ao anterior. O Edito de Fontainebleau, assinado pelo monarca, em 1685, reestabelece o fim da tolerância religiosa e determinava medidas restritivas que, na prática, impossibilitavam a permanência de cristãos protestantes no reino da França. Templos públicos foram saqueados e proibidos; outros foram destruídos, escolas calvinistas foram obrigadas a fechar as portas e muitos comércios sofreram boicote. “Os protestantes foram expulsos de seus cargos, profissões e privilégios, e viram-se, assim, privados de ganhar o pão quotidiano. A decisão foi brutalmente levada à risca, de modo que até as parteiras ficaram proibidas de trabalhar.” (FOX, 2001, p. 45-46).

O papa Inocêncio XI não aprovou a medida adotada pela coroa, e censurou severamente o rei pela violência desmedida, mas já era tarde demais, o sangue já havia jorrado (REARDON, 2010). As tensões voltaram a se disseminar e os efeitos foram nefastos, inclusive para a monarquia e boa parte da nobreza. De imediato, milhares de famílias huguenotes decidiram deixar o país, procurando refúgio em lugares mais tolerantes, como a Inglaterra, Holanda, Dinamarca e em outras regiões onde a liberdade de consciência e de culto estavam asseguradas. O êxodo protestante impactou, de forma negativa, a economia da França, como o próprio Voltaire demonstrará mais tarde, em seu Tratado sobre a Tolerância (1763).

Ao ascender ao trono, Luís XV, bisneto de Luís XIV, levou adiante as políticas religiosas de seu predecessor, fortalecendo com vitalidade a presença do catolicismo como religião do Estado.

O duque de Bourbon, primeiro-ministro, faz o jovem Luís XV declarar que o designío do rei da França continuava sendo o de extirpar a heresia (1724). As antigas leis voltam a viger: pena capital para os pastores surpreendidos em seus ministérios; quanto aos protestantes presos em flagrante delito de praticar o culto, galés. perpétuas aos homens, prisão perpétua para as mulheres. (POMEAU In: VOLTAIRE, 2000, p. X.)

Extirpar a heresia, nesses termos, equivale a eliminar o menor vestígio protestante dos círculos de poder, principalmente dos círculos políticos. Edificar uma France toute catolique. era o projeto. Para obter sucesso e evitar quaisquer formas de resistência por parte da comunidade dos huguenotes, foi lhes negado o estado civil, sendo que os nascimentos, casamentos e óbitos celebrados fora da Igreja Católica não eram reconhecidos legalmente pela coroa. Também estavam impedidos de ascender às profissões de maior relevância e prestígio social e, além disso, permanecia proibida a transmissão de herança, uma vez que os filhos de protestantes eram considerados bastardos, portanto, privados do direito sucessório. Não é de se estranhar o fato de que muitos calvinistas que decidiram permanecer na França, passaram a incluir, em seu cotidiano, práticas puramente formais de catolicidade, entre elas, o batismo, o casamento na igreja e o funeral dos entes queridos (POMEAU, 2000, p. X).

A fórmula que melhor exprime o novo perfil adotado pela França sob a regência de Luís XV é: “une foi, une loi, un roi.” (BACCUET, 2018). Trata-se da unificação do direito e da religião, ambos dirigidos por um rei forte e soberano e a serviço dos interesses do Estado. Estão lançadas as pilastras que servem de sustento para o tão conturbado absolutismo francês, abalado futuramente pelos ideais da revolução de 1789.

O fato é que todas essas medidas políticas adotadas pela monarquia elevou as tensões entre católicos e protestantes de forma intermitente. Se por um lado, os calvinistas abandonaram suas terras aos milhares, procurando refúgio em países menos despóticos, por outro, líderes católicos – clérigos e até mesmo leigos influentes – contribuíram para aumentar ainda mais a perseguição, pois eram seus interesses que estavam em jogo.

A partir de 1760, uma série de eventos simultâneos reforçam ainda mais o clima de instabilidade e intolerância generalizada em todo o reino. As disputas de poder, a ignorância aliada ao fanatismo religioso, a prevaricação e a falta de cultivo intelectual, foram os ingredientes que somados resultaram na perseguição de centenas de milhares de homens e de mulheres que foram privados de um direito que deveria ser fundamental: a liberdade de consciência.

Toulouse e a intolerância religiosa

Quase duzentos anos após o Massacre da noite de São Bartolomeu (1572), a história volta-se a repetir, dessa vez direcionada contra uma família que, ao que tudo indica, o único crime tenha sido o de professar a fé protestante em uma região regada pelo fanatismo religioso que fazia muitas vítimas.

Toulouse, cidade francesa que foi palco do suposto parricídio do qual Jean Calas figura como réu, lutou durante muito tempo para conquistar a independência política em relação aos reis que governavam a França. Sendo considerada a mais temível “capital dos cátaros” (SCHAUS, 2006), e núcleo da revolta contra o poder central, a monarquia francesa, aliada aos interesses religiosos e políticos do pontificado de Roma, investiram homens e armas em três longas cruzadas contra aquela região, obtendo, no ano de 1229, depois de muitas lutas a ferro e fogo, a rendição dos “criminosos”, indiciados e condenados por heresia.

De acordo com documentos apresentados pelo historiador Jonathan Sumption, na obra The Albigensian Crusade (SUMPTION, 1999), o papa Inocêncio III decidiu usar de diplomacia para acabar com o movimento cátaro que se alastrava pelo sul da França e norte da Itália. O Pontífice enviou juristas e pregadores para orientar e converter os infiéis, mas não obteve sucesso, tendo um dos seus delegados assassinado quando retornava para a Cúria Romana. Com o fracasso e consequente extinção da missão diplomática, deu-se início à Cruzada Albigense. Após décadas de combate, destruição sistêmica dos seus textos e morte dos mentores, a seita estava aniquilada. Depois do ano de 1330, praticamente inexistem registros de processos contra cátaros no Tribunal do Santo Ofício..

Com a vitória da coalizão católica, o alvo das perseguições muda de direcionamento e, a partir de meados do século XVI, tornam-se os religiosos jansenistas., principalmente os huguenotes, protestantes calvinistas que começam a se proliferar com uma rapidez assustadora no sul do reino.

O modelo religioso adotado na França não oferecia muita flexibilidade de interpretação do cristianismo, podendo, no máximo, variar entre uma posição mais ortodoxa, perto daquilo que era incentivado pela Igreja Romana, ou adequar-se a uma proposta mais próxima do molde racionalista, à qual começava a ganhar impulso e adeptos, uma espécie de religião natural. Para Voltaire, diferentemente do que ocorria em Paris, “na província, o fanatismo quase sempre prevalece sobre a razão” (VOLTAIRE, 2000, p. 12), e os Calas pagarão um alto preço por essa triste realidade.

Na noite do crime

Fazia muitos anos que a família Calas residia na casa de número 16 da rua des Filatiers, em Toulouse, na França. Dedicava-se ao trabalho no comércio de tecidos importados da Índia, que funcionava no pavimento térreo da casa onde moravam. Era uma das poucas lojas protestantes naquela rua movimentada, estando cercados por mais de uma dezena de ricos comerciantes católicos. Jean Calas, o patriarca de 64 anos, era casado com Anne-Rose Cabibel, nascida na Inglaterra de uma família de protestantes franceses emigrados, com quem teve seis filhos, quatro homens (Marc-Antoine Calas, 28/29 anos; Pierre Calas, 28; Louis Calas, 25; Donato Calas, 22) e duas mulheres (Anne-Rose Calas, 19 anos e Nanette Calas, 18 anos). Com eles, habitava uma velha criada católica, senhora Jeanne Viginére, que há mais de trinta anos atendia à família nos serviços diários..

A fim de evitar maiores problemas com as autoridades locais, os Calas, embora calvinistas, com exceção de um filho que havia abjurado a fé reformada e a quem o pai concedia uma pequena pensão mensal., adequaram sua rotina à dinâmica social e religiosa10, conforme era costume na época, levando uma vida marcada pela discrição. O patriarca fez questão de batizar todos os filhos na Igreja Católica, assim como havia sido feito com ele nos tempos de juventude, um rito de catolicidade que poderia ajudar a prevenir incidentes futuros. Além disso, todos os quatro rapazes receberam educação católica tradicional, estudando por muitos anos nos mais prestigiados colégios dos padres jesuítas.

Seguindo o relato do filósofo Voltaire, na noite do ocorrido, em 13 de outubro de 1761, a família recebia para o jantar a visita do jovem estudante de direito, François-Alexandre Gaubert Lavaisse, também calvinista, de apenas 19 anos de idade. Estavam reunidos para a ceia, além do casal de anfitriões, do jovem convidado e da empregada, dois filhos: Marc-Antoine e Pierre Calas. Ao término da refeição, o filho primogênito, Marc-Antoine, decide sair para caminhar sozinho pelas ruas da região – aquele dia não havia sido fácil para ele – enquanto isso, os demais se dirigem para uma conversa descontraída na sala de estar.

Mais tarde, com o relógio passando um pouco das 21 horas, o convidado se despede da família e é acompanhado até a porta pelo amigo Pierre. Ao descerem as escadarias escuras em direção ao portão que dava acesso à rua, são surpreendidos por uma imagem terrível. Encontram o corpo de Marc-Antoine, já sem vida, estendido no chão e com marcas de corda no pescoço. O finado estava vestido com um camisolão, suas roupas se encontravam dobradas sobre uma pequena mesa próxima ao corpo. Os cabelos estavam penteados, não haviam outros indícios de violência, a não ser o da corda no pescoço.

Quanto à vítima, ficou provado que se tratava de um “homem dedicado às letras”, culto e amante da boa literatura. Diziam ser um espírito inquieto, sombrio e, não raras vezes, um pouco agressivo. Por ser calvinista e não conseguir obter todos os registros de catolicidade, foi impedido pelas autoridades acadêmicas de seguir os estudos superiores para a magistratura, como desejava. Embora não demonstrasse muita afinidade para o comércio, passava a maior parte dos dias auxiliando o pai na loja de tecidos da família, cuidava do estoque e dos fornecedores. Ao que tudo indica, há algum tempo estava pensando em tirar a própria vida, adquirindo, inclusive, algumas obras técnicas a respeito do tema. No mesmo dia de sua morte, ele havia perdido uma soma significativa de dinheiro no jogo, o que pode ter contribuído para que antecipasse a decisão.

A cena de horror provoca o desespero dos pais e da empregada que desde cedo havia ajudado a criar os filhos do casal. Enquanto a mãe procura reanimar de todas as maneiras o corpo desfalecido do filho, Pierre e o amigo correm pelas ruas da vizinhança à procura de auxílio, encontrando um estudante de medicina à disposição para ajudá-los. Ao inspecionar a vítima, o aprendiz constata o óbito inevitável, e também observa a existência de uma marca de corda logo abaixo do queixo, findando atrás das orelhas, diante do que concluiu preliminarmente que Marc-Antoine não havia morrido de causa natural, mas em decorrência de uma lesão provocada por enforcamento ou estrangulamento.

A sorte da família estava lançada, só restava a Pierre Calas procurar pelo assessor dos capitouls11, e aguardar pela elucidação do mistério. A essa altura, alertados pelos gritos que emergiam do interior da casa, os vizinhos começavam a afluir ao redor da residência, todos querem tomar conhecimento do que se sucedeu ali. Em meio ao desespero crescente, a criada da família sai na janela aos prantos: “Meu Deus, meu Deus, mataram-no!”. Em pouco tempo uma grande multidão de curiosos acompanhava de perto o trágico desfecho.

Os boatos começam a circular e não demorou muito até que

algum fanático da população gritou que Jean Calas havia enforcado seu próprio filho Marc-Antoine. Esse grito, repetido, logo tornou-se unânime; outros acrescentaram que o morto pretendia fazer abjuração no dia seguinte; que sua família e o jovem Lavaisse o haviam estrangulado por ódio contra a religião católica. Um momento depois, ninguém duvidava mais; toda a cidade foi persuadida de que é um imperativo religioso entre os protestantes que um pai e uma mãe devem assassinar seu filho tão logo ele queira converter-se.

Uma vez excitados, os espíritos não mais se detêm, imaginou-se que os protestantes de Languedoc haviam se reunido na véspera; que haviam escolhido, em deliberação conjunta, um carrasco da seita; e que a escolha recaíra sobre o jovem Lavaisse; que esse jovem, em vinte e quatro horas, recebera a notícia de sua eleição e chegara de Bordéus para ajudar Jean Calas, sua mulher e seu filho Pierre, a estrangularem um amigo, um filho, um irmão.( VOLTAIRE, 2000, p. 6)

O clima de tensão ganha as ruas e praças da cidade. No imaginário coletivo repousa a certeza de que Jean Calas e sua família eram os verdadeiros culpados pela morte do filho. A massa desprovida de razão clama por justiça e exige uma pena exemplar e à altura do crime cometido. O tribunal popular já está instalado, antes mesmo de a polícia e de as autoridades judiciais chegarem ao local do assassinato.

O inquérito

David de Beaudrigue, chefe de polícia e magistrado em Toulouse, encarrega-se do inquérito e inicia imediatamente as primeiras investigações e interrogatórios a fim de solucionar o caso e devolver ao povo a sensação de segurança e justiça. Nessa fase da instrução, que sob a responsabilidade dos capitouls era denominada de inquirição, estava vedado o direito de defesa e a audiência pública aos acusados. O processo corre em segredo, à mercê do arbítrio dos magistrados. Nem sequer a presença de um advogado de defesa para acompanhar os trabalhos era garantida pela legislação.

Excitado pelos rumores que circulavam do lado de fora da casa, Beaudrigue ordenou imediatamente a prisão de todos que estavam presentes na residência no momento em que o corpo foi encontrado, inclusive da empregada que era católica devota e, ao que parece, não teria motivos para desejar a morte do jovem rapaz. Movido pela cólera e por testemunhos apaixonados, iniciava-se um processo criminal contrário ao bom senso e às normas jurídicas, cujo desfecho mais provável acarretaria em injustiça.

Jean Calas, a esposa, o filho, o amigo e a empregada aguardariam o julgamento em regime fechado, trancados em celas isoladas da Câmara Municipal12. O magistrado considerou suspeita a versão idêntica que foi contada pelos cinco acusados, como se fossem peças de uma narrativa de defesa decorada nos mínimos detalhes e acertada previamente. Sua intuição ganhou o apoio do relatório médico emitido pelos legistas designados pela justiça, Latour, Peyronnet e Lamarque, que realizaram o trabalho de autópsia do corpo. No parecer dos peritos, a análise do estômago do jovem dava prova de que a morte ocorreu poucas horas após o jantar, tendo como causa primária o enforcamento ou o estrangulamento. Em suas palavras: A la tète, les vaisseaux, engorgés, suite des morts de cette espèce. — La poitrine n’a rien présenté de particulier.— L’estomac n’avait que peu d’alim ents; [...]13.

Também registraram que o corpo estava ileso, o que indica que não houve qualquer reação de defesa por parte da vítima. Por outro lado, o mesmo magistrado que acatou os relatórios médicos, ignorou detalhes substanciais no momento da coleta de provas materiais. Não estranhou o fato de que o corpo da vítima estava isento de qualquer marca de confronto e sem nenhum indício de resistência física; não haviam móveis quebrados ou fora do lugar no local do crime; também não desconfiou do silêncio que pairava sobre a casa dos Calas no momento do martírio. Em se tratando de um assassinato, Marc-Antoine não teria resistido em um combate longo e violento a fim de preservar a sua própria vida? Gritos terríveis não teriam alertado toda a vizinhança ao redor? Como Jean Calas, um homem com idade avançada e com problemas de articulação nas pernas, teria conseguido supliciar um jovem forte de 28 anos? Ao que parece, as investigações foram conduzidas para um fim previsto, e as evidências foram propositalmente ignoradas.

De acordo com os autos, os interrogatórios foram registrados na madrugada do dia 14 de outubro de 1761. No primeiro momento nenhum dos envolvidos falou em suicídio, essa tese certamente foi escondida por receio da legislação vigente que previa ao suicida condenado o escárnio público, tendo seu corpo nu exposto e arrastado numa grade de madeira pelas ruas da cidade em meio a insultos e pedras lançadas pela população. Quanto à família do suicida era reservada a desonra moral, arcando com as consequências decorrentes do estigma social. Ainda assim, no dia seguinte, temendo os rumos que as coisas estavam tomando, os acusados falaram pela primeira vez em suicídio, sendo censurados de imediato pelo magistrado David.

Ao que tudo indica, Jean Calas temeu a opinião pública e o rigor da legislação, por isso optou por esconder das autoridades o suicídio do filho, manipulando o local do crime para parecer que o jovem havia morrido de forma natural, o que foi rapidamente desmentido pelo estudante de medicina que inspecionou o cadáver. Em meio ao desespero, o pai mudou de versão, sugerindo que o filho teria sido vítima de um criminoso que invadiu sua casa e o estrangulou violentamente até a morte, não deixando rastros de seu paradeiro. Quando percebeu que nenhuma das explicações correspondiam com o disposto na cena do ocorrido, decidiu falar a verdade, relatando o momento em que encontrou o filho com a corda no pescoço, já sem vida, vitimado por suas próprias mãos.

O doutor Carrière, advogado que ajudou na defesa da família Calas, é o primeiro a sugerir aos Calas que digam a verdade sobre o suicídio. Ele redige três cartas, uma para Jean, outra para Pierre e a última para Lavaisse, pedindo que não escondam nada a respeito da veracidade dos fatos, e que apresentem a mesma versão para evitar margem para questionamentos da acusação. Dessas cartas, apenas uma chega até as mãos do destinatário:

Não esqueça, senhor, o que lhe disse ontem para relatar, em que estado encontrou o seu irmão quando acompanhava Gaubert Lavaysse ao entrar na loja, e sobretudo porque o não disse quando do primeiro interrogatório, porque me disse que o seu pai lhe recomendara que dissesse que encontrara o corpo estendido no chão, com receio de ser arrastado pela lama. Foi por este motivo que fez tal declaração no primeiro interrogatório; é preciso exprimir este motivo, quando for interrogado, e acrescentar que recomendou a Gaubert Lavaysse que dissesse a mesma coisa, seguindo o conselho que o senhor seu pai tinha lhe dado. Não se esqueça de dizer que nesse instante saiu da loja para chamar o seu pai, gritando: Ah! Meu pai, meu pai, meu Deus, meu Deus! E que no instante em que o seu pai desceu, ao encontrar o seu irmão naquele estado, o retirou daquela posição, cortou a corda e lançou-a para qualquer sítio, de que já não se lembra. Explicará como a corda estava suspensa na vara e indicará o local em que colocou a vara, que me disse estar atrás da porta da loja, à esquerda [...]. É inútil assinar esta carta porque se lembrará que ontem lhe falei, durante o seu jantar. (BERTIN, s.d., p. 216-217)

O capitoul Beaudrigue interceptou as demais correspondências, o que serviu para aumentar a sua desconfiança contra a família inteira. Além disso, constatou que a versão de suicídio não correspondia com a disposição física do mobiliário da sala comercial. Marc-Antoine era alto demais para se enforcar em uma porta do armazém, as medidas corroboravam isso. Ademais, o magistrado não encontrou nenhuma cadeira que pudesse servir de suporte e facilitar o atentado. Nem mesmo a vara que teria servido para amarrar a corda pôde ser localizada. Descartando a possibilidade de enforcamento, restava a única alternativa plausível: o estrangulamento criminoso, executado por mãos de terceiros, possivelmente pessoas próximas à vítima. A linha de argumentação utilizada pela acusação seguiu essa tese.

Em Toulouse, havia quatro confrarias de penitentes: a azul, a branca, a cinza e a negra14. Os membros que integravam o grupo religioso dos penitentes brancos reforçaram a ideia de que Marc-Antoine Calas teria sido vitimado pela intolerância religiosa que reinava dentro de sua própria família, uma vez que estava prestes a abjurar a heresia calvinista e abraçar a fé católica. De súbito, o jovem foi aclamado mártir, recebendo um velório digno dos grandes heróis da fé, sendo inumado com honras religiosas por parte dos penitentes brancos, e tendo a companhia de uma grande multidão que rezava e pedia justiça:

Todo o mundo o via como um santo; alguns o invocavam, outros iam rezar junto ao seu túmulo, outros pediam-lhe milagres, outros relatavam os que havia feito. Um monge arrancou-lhe alguns dentes para ter-lhe relíquias duráveis. Uma devota, um pouco surda, disse que escutara o som dos sinos. Um padre apoplético foi curado após tomar o vomitório. Prepararam-se relatórios sobre esses prodígios. O autor do presente relato possui um testemunho de que um jovem de Toulouse ficou louco por ter rezado várias noites junto ao túmulo do novo santo e não ter podido obter um milagre que implorava. (VOLTAIRE, 2000, p. 56)

O fanatismo religioso toma parte no processo contra a família Calas. Aliado a isso, a pressão popular esperava por uma condenação à altura do truculento crime cometido. Alguns magistrados que julgariam o processo eram membros oficiais da confraria dos penitentes brancos, mas em momento algum sentiram-se impedidos de julgar o caso. Sem poder contar com o bom senso dos magistrados, o destino de Jean Calas e de sua família já estava selado, uma vez que a ausência de provas fora facilmente suprida pelas vozes do público em geral.

Na segunda fase da instrução, conforme previsto no ordenamento jurídico do antigo regime, foi lançado um apelo público, também denominado de monitoria, lido em todas as paróquias e espaços públicos da região, solicitando testemunhas que pudessem contribuir de alguma forma com o reestabelecimento da justiça e o devido esclarecimento do caso. As pessoas que tivessem informações a respeito do ocorrido deveriam se apresentar diante dos sacerdotes e oficializar seus depoimentos, sob pena de excomunhão, caso não o fizesse.

No primeiro artigo do texto do edital constava os seguintes termos:

1° Contre tous ceux qui sauront, par ouï dire ou autrement, que le sieur Marc-Antoine Calas aîné avait renoncé à la religion prétendue Réformée dans laquelle il avait reçu l’éducation; qu’il assistait aux cérémonies de l’Eglise catholique et romaine; qu’il se présentait au sacrement de Pénitence, et qu’il devait faire abjuration publique après le 13 du present mois d’octobre; et contre tous ceux auxquels Marc-Antoine Calas avait découvert sa résolution; (SALVAN, 1863, p. 93-94, tradução nossa)15

Ainda que sem o consentimento dos bispos, os quais se recusaram a assinar o termo da Monitoria16, o edital foi fixado e lido em todas as celebrações litúrgicas das paróquias da cidade. Sem nenhum critério de seleção, subitamente foram coletos depoimentos de cento e três testemunhas, embora muitas outras estavam dispostas a dar sua contribuição à justiça, caso fosse necessário. Como é possível constatar, o texto do edital não menciona em momento algum a possibilidade do suicídio, mas parece endossar a tese do parricídio motivado pela – possível – abjuração do jovem, a qual, de fato, nunca ocorreu.

Em 18 de novembro de 1761, passados trinta e três dias desde o início das investigações, os magistrados municipais condenaram os Calas a sofrerem tortura ordinária e extraordinária. O jovem Lavaisse e a criada deveriam ser apresentados posteriormente perante o tribunal, mas foram convocados a assistir a tortura. A estratégia adotada pelo capitólio consistia em obter a confissão de culpa dos acusados por meio da tortura. Tão logo a sentença tenha sido proferida, a família Calas recorre da decisão ao Parlamento de Toulouse, instância absoluta da justiça do Estado.

Ao tomar ciência das sutilezas do caso, os conselheiros do Parlamento decidem por anular a sentença da jurisdição inferior, emitida pelos capitouls, e revisar atentamente as numerosas páginas processuais. Terminada a instrução, o senhor Cassan-Clairac foi nomeado conselheiro-relator, enquanto que treze juízes se reuniam diariamente para concluir o processo.

Seis juízes persistiram por muito tempo em condenar Jean Calas, seu filho e Lavaisse ao suplício na roda, e a mulher de Jean Calas à fogueira. Sete outros, mais moderados, queriam ao menos que se averiguasse. Os debates foram reiterados e longos. Um dos juízes, convencido da inocência dos acusados, e da impossibilidade do crime, falou vivamente em favor deles; opôs o zelo da humanidade ao zelo da severidade; tornou-se o defensor público dos Calas em todas as casas de Toulouse, onde os clamores contínuos da religião equivocada exigiam o sangue desses infortunados. Um outro juiz, conhecido por sua violência, falava na cidade com tanta exaltação contra os Calas quanto o primeiro se empenhava em defendê-los. Enfim, a grita foi tão grande que ambos foram obrigados a julgar-se incompetentes, retirando-se do caso. Mas, por estranha infelicidade, o juiz favorável aos Calas teve a delicadeza de persistir em seu afastamento, enquanto que o outro voltou para dar seu voto contra aqueles que não devia julgar: esse voto é o que determinou a condenação ao suplício na roda [...]. (VOLTAIRE, 2000, p. 8)

Enquanto os juízes divergiam em suas opiniões, os advogados de defesa trabalhavam em favor da inocência da família. Como era costume no sistema jurídico da época, os advogados deveriam apresentar a defesa por escrito, pois não tinham acesso à sala de audiências durante o julgamento. Théodore Sudre, um dos defensores dos Calas, em uma argumentação modesta, porém astuta, redige a defesa alegando que não há provas suficientes que comprovem a tese do suicídio, o que poderia inocentar a família Calas, mas, de igual maneira, também afirma que não existem provas de que Marc-Antoine não poderia ter se enforcado. Diante do impasse, Sudre pede ao Tribunal a absolvição dos réus por falta de provas materiais.

Tendo analisado o caso, em fevereiro do ano seguinte, o conselheiro-relator emite parecer favorável à culpabilidade dos Calas. Seguindo esse mesmo entendimento, o procurador geral Riquet de Bonrepos, apresenta o requerimento pedindo a pena de morte para os três Calas, sendo a mulher enforcada e o pai e o filho despedaçados vivos. O processo contra a criada e o amigo da família seria prorrogado por mais algum tempo (BAYER; AQUINO, 2015). Cinco meses após o ocorrido, em 9 de março de 1762, embora nem todos os parlamentares do tribunal criminal estivessem cegos pelo fanatismo religioso, pela maioria de oito votos de treze, o processo de Jean Calas foi desmembrado dos demais acusados e ele foi considerado culpado de crime de homicídio, sendo condenado ao suplício da roda. A essa decisão do tribunal não cabe recurso, devendo ser cumprida imediatamente.

Nem mesmo a pequena margem de diferença entre votos contrários e favoráveis à condenação foi suficiente para despertar um sentimento de prudência no íntimo dos juízes. Um exemplo a ser seguido eram os tribunais da antiga Grécia, onde eram necessários cinquenta votos além da metade para ousar pronunciar a pena capital contra um réu. Jean Calas não teve tal sorte. A maioria dos magistrados estavam convictos de que o melhor era resolver o quanto antes a questão, acalmando os ânimos inflados da opinião pública.

Era consenso entre os juízes favoráveis ao suplício de Jean Calas, que o velho homem não suportaria os tormentos da tortura e confessaria o crime em detalhes, o que legitimaria a sentença de morte e tornaria mais fácil a condenação dos demais envolvidos. Desse ponto em diante, conforme costume do antigo regime, o réu condenado deveria ser devolvido para os juízes de primeira instância, para que cumprissem a sentença, encerrando o processo no tribunal de origem.

No amanhecer do dia seguinte, 9 de março de 1762, o comerciante é torturado e executado em plena praça Saint-Georges de Toulouse, e, para surpresa de todos, sustentou com impressionante coragem a sua inocência até o último momento, clamando a Deus como testemunha e negando que tivesse cometido qualquer ilícito contra seu filho, a quem muito amava. Até mesmo um cura católico que acompanhava de perto o sofrimento daquele pobre homem atestou a firmeza de espírito de Jean Calas17. Ainda com vida, após um tormento de duas horas na roda, tendo seus braços e pernas quebrados por uma barra de ferro, foi estrangulado e seu corpo jogado em uma fogueira ardente.

Diante do silêncio e da constrangedora ausência de confissão, os juízes não ousaram condenar os outros quatro acusados à pena de morte, o que seria esperado, já que, em princípio, todos haviam incorrido no mesmo crime. Pode ser que tenham tomado consciência do infortúnio gerado para uma família inofensiva; ou simplesmente temeram por suas reputações, evitando mal maior.

Contra o jovem Pierre Calas foi pronunciada uma inusitada sentença de banimento: “Esse banimento parecia tão inconsequente, tão absurdo quanto o resto, pois Pierre Calas era ou culpado ou inocente do parricídio; se fosse culpado, devia ser submetido ao parricídio como seu pai; se fosse inocente, não tinha cabimento bani-lo.” (VOLTAIRE, 2000, p. 10).

O conflito está posto: por que não o supliciar, se é culpado do crime de parricídio? E, por que exilá-lo, se é inocente? Diante do paradoxo sem solução, apresenta-se o inevitável dilema jurídico: a injusta condenação de um inocente não seria mais prejudicial e menos preferível do que a injusta absolvição de um réu culpado? Banir Pierre foi o mesmo que reconhecer, ainda que implicitamente, o engano cometido pelo judiciário, ainda que nada fosse feito para repará-lo de alguma forma. Quanto aos outros acusados, a mãe, a empregada e o amigo que visitava a família, foram postos para “fora do tribunal”, uma forma de absolvição nada convencional.

Como se não bastassem as injustiças provenientes daquele tribunal, à pedido do procurador-geral do rei, a senhora Anne-Rose Cabibel, viuva de Jean Calas, teve suas duas filhas arrancadas de seu seio e trancafiadas em um semoto convento católico. A pobre mulher que quase foi regada com o sangue de seu marido, “tendo amparado nos braços seu filho primogênito morto, vendo o outro banido, privada de suas filhas, despojada de todos os seus bens, estava só no mundo, sem pão, sem esperança e sucumbindo ao peso de sua infelicidade.” (VOLTAIRE, 2000, p. 11).

Esse foi o trágico fim da família Calas, que padeceu sob a intolerância religiosa e o gládio vicioso do sistema de justiça francês. Esse processo figura entre os casos mais paradigmáticos da história universal, equiparando-se a grandes julgamentos, como o de Sócrates, de Jesus Cristo e tantos outros.

Na análise desenvolvida por Voltaire,

o assassínio de Calas [...] é um dos mais singulares acontecimentos que merecem a atenção de nossa época e da posteridade. Esquece-se facilmente a quantidade de mortos em batalhas sem conta, não somente por tratar-se da fatalidade da guerra, mas porque os que morrem pela sorte das armas podiam também dar a morte a seus inimigos, e não morreram sem se defender. La onde o perigo e a vantagem são iguais, o espanto cessa, e a própria piedade diminui; mas, se um pai de família inocente é entregue às mãos do erro, da paixão, ou do fanatismo; se o acusado só tem como defesa a sua virtude; se os árbitros de sua vida, ao decapitarem-no, apenas correm o risco de se enganar; se podem matar impunemente através de uma sentença, então o clamor público se levanta, cada um teme por si próprio, percebe-se que ninguém está seguro de sua vida diante de um tribunal erigido para zelar pela vida dos cidadãos, e todas as vozes se juntam para pedir vingança. (VOLTAIRE, 2000, p. 3)

Quando o acesso à Justiça é negado, pelos motivos mais variados, a sensação de insegurança se instala rapidamente, colocando em risco a ordem social. Quando o Judiciário promove a injustiça, por interesses escusos ou por pura negligência, o elo de confiança com a sociedade é rompido, acarretando a descrença nas Instituições do Estado. Cria-se um estado de exceção, no qual cada cidadão é por si, sentindo-se desamparado diante das leis; muitas vezes busca justiça com as próprias mãos, gerando um comportamento anômico que, não demora muito, transforma-se em uma patologia social. É a dinâmica do medo em execução, a qual se insurge contra tudo o que é diferente e representa uma ameaça em potencial. Quando a coleta de provas é fraudada por vagas e extraviadas suposições; quando o direito à ampla defesa é negligenciado; quando as testemunhas são acuadas e o segredo se torna a palavra de ordem; quando a sentença é prévia e a opinião pública é decisiva, a única alternativa que resta é apelar ao tribunal da razão, rogar ao bom senso em favor de uma ética humanista, verdadeiramente condescendente, como fez Voltaire, em plena Europa das luzes.

Considerações finais

Na sentença que condenou Jean Calas consta o seguinte: “O tribunal, decidindo o despacho interlocutório da sua precedente sentença de 5 de dezembro último, declara Jean Calas pai, atingido e acusado de crime de homicídio por ele cometido na pessoa de Marc-Antoine Calas, seu filho mais velho, para reparação do qual o condena a ser entregue nas mãos do executor da Alta Justiça, que o colocará, de cabeça descoberta, descalço, sem camisa, com a corda ao pescoço, sobre a carroça a isso destinada e o conduzirá até a porta principal da igreja de Toulouse, onde o réu de joelhos, segurando nas mãos, aceso, um brandão de cera amarela, com o peso de duas libras, fará uma confissão pública e pedirá perdão a Deus, ao Rei e a Justiça dos seus crimes e maus atos.

Feito isso, voltará a subir à dita carroça para ser conduzido até a Praça Saint-Georges, desta cidade, onde sobre um cadafalso que ali será erguido para esse efeito, o executor lhe quebrará os braços, pernas, coxas e rins. Seguidamente, deitá-lo-á sobre uma roda voltada para o céu, para ali viver na dor e arrependimento de seus crimes e maus atos e servir de exemplo por quanto tempo a Deus aprouver dar-lhe vida, e seu corpo morto será lançado numa fogueira ardente preparada para esse efeito na praça, a fim de ser consumido pelas chamas e seguidamente as cinzas lançadas ao vento […] O dito Calas pai será estrangulado depois de ter ficado duas horas sobre a roda”18.

Dúvidas permanecem e nunca serão devidamente respondidas. Teria o jovem Marc-Antoine cometido suicídio em plena juventude? Seria Jean Calas um pai sem coração e capaz de assassinar seu próprio filho? Foi um crime premeditado e que teve motivação religiosa? Existe algum personagem oculto nessa história toda? Nunca o saberemos, apesar dos indícios levarem a crer que tudo não tenha passado de um lamentável caso de suicídio. O fato, e nisso não podemos nos enganar, é que houve um erro judiciário, uma vez que a decisão do tribunal de justiça de Toulouse foi determinada por elementos externos ao processo, ocultos em meio ao nevoeiro da permissiva intolerância religiosa. O julgamento nunca se deu pela lente jurídica; em momento algum o tribunal se prendeu aos fatos e às regras processuais, mas tão somente aos testemunhos apaixonados de um povo marcadamente supersticioso.

A condenação de Jean Calas foi decretada pelas ruas. Seu veredito foi fixado a priori, independente das provas coletadas na cena do crime. A opinião pública conduziu o processo penal e determinou seu desfecho, o tribunal apenas legitimou a vontade popular. Em tempos de ativismo judicial, podemos aprender com a história, mas não é certo que o faremos.

Material suplementar
Referências
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BAYER, Diego; AQUINO, Bel. Família Calas: culpados ou inocentes por intermédio de Voltaire? Justificando/Carta Capital, São Paulo, 14 de janeiro de 2015. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2015/01/14/familia-calas-culpados-ou-inocentes-por-intermedio-de-voltaire/. Acesso em: 06 de jan. 2018.
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Autor(a) para correspondência: Edimar Inocêncio Brígido, Unicuritiba - Câmpus Milton Vianna Filho, R. Chile, 1.678 - Rebouças, 80220-181, Curitiba – PR, Brasil. edimarbrigido@hotmail.com
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