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A dialética das tradições de pesquisa de Alasdair MacIntyre

Alasdair macIntyre's dialectics of traditions of enquiry

Alberto Leopoldo Batista Neto
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

A dialética das tradições de pesquisa de Alasdair MacIntyre

Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 1, pp. 314-338, 2020

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 17 Outubro 2019

Aprovação: 19 Janeiro 2020

Resumo: Conhecido principalmente por seu resgate da ética das virtudes de inspiração aristotélica, Alasdair MacIntyre é responsável pela criação de uma sofisticada teoria da racionalidade e do confronto entre perspectivas rivais, elaborada sobre uma compreensão acerca do conceito de tradições de pesquisa. A visão de MacIntyre claramente se inspira em discussões oriundas da filosofia da ciência, com as quais mostra importantes pontos de convergência, mas se afasta consideravelmente delas em alguns pontos fundamentais, apresentando-se como uma espécie peculiar de dialética das tradições de pesquisa racional, que por si apresenta um escopo de aplicação mais vasto que o das tradicionais teorias da ciência. Tais tradições substituem, para MacIntyre, unidades presentes nos debates correntes, tais como as teorias, os paradigmas, os programas de pesquisa e os esquemas conceituais. Embora lide com temas como o das crises epistêmicas e o das transições entre perspectivas prima facie incomensuráveis, a ênfase de MacIntyre, é sobre o conflito, por vezes contínuo, entre tradições rivais, o que permite uma abordagem diferenciada face a problemas como o do progresso epistêmico. Trata-se aqui de exibir as linhas gerais do programa macintyreano, abordando de modo particular as aproximações e afastamentos em relação aos cânones das discussões referidas.

Palavras-chave: MacIntyre, Racionalidade, Dialética, Tradição, Filosofia da ciência, Problema do progresso.

Abstract: Known mainly for his rescue of Aristotelian-inspired virtue ethics, Alasdair MacIntyre is responsible for the creation of a sophisticated theory of rationality and the conflict between rival perspectives, built on an understanding of the concept of traditions of enquiry. MacIntyre’s view is clearly inspired on discussions from the philosophy of science, with which it shows important points of convergence, but it strays away from them in some fundamental issues, presenting itself as a peculiar kind of dialectics of traditions of rational enquiry, wich by itself presents a wider scope than that of the traditional theories of science. Such traditions replace, for MacIntyre, units exhibited in current debates, such as theories, paradigms, research programs, and conceptual schemes. Even although he deals with themes such as epistemic crises and transitions between perspectives, MacIntyre’s emphasis is rather on the conflict, sometimes continuous, between rival traditions, which allows for a distinctive approach in the face of problems such as that of epistemic progress. The general lines of the MacIntyrean program are here shown, and a special emphasis is put on its approximations and divergences relatively to the canons of the aforementioned discussions.

Keywords: MacIntyre, Rationality, Dialectics, Tradition, Philosophy of science, Problem of progress.

Do conflito entre abordagens rivais da racionalidade

A situação de desacordo moral generalizado nas sociedades ocidentais contemporâneas, palco para o triunfo do emotivismo, entendido não como teoria sobre o significado dos enunciados morais mas como teoria sobre o seu uso nas práticas discursivas daquelas sociedades (qualquer indivíduo ou grupo escolhe os princípios morais de sua preferência, sem que haja como recorrer a critérios racionais compartilhados para decidir entre uma e outra escolha), é de onde parte Alasdair MacIntyre, conhecido sobretudo por sua contribuição à filosofia moral, para propor a investigação sócio-histórica dos contextos da racionalidade prática que situam o agente racional nos quadros de alguma tradição moral. Para desfazer a perplexidade ocasionada por tal situação de incomensurabilidade dos discursos relevantes e das concepções de racionalidade (prática) que os sustentam, situação que parece relegar os princípios da moral à arbitrariedade (cf. MACINTYRE, 2007, caps. 2 e 3), coloca-se o problema da possibilidade de justificação racional das tradições morais, que desemboca para MacIntyre numa teoria das tradições de pesquisa moral, extensível às tradições de pesquisa em sentido lato (MACINTYRE, 1988, cap. XVIII). O projeto macintyreano, relativo às tradições de pesquisa, recorre, no que concerne especificamente ao inquérito moral, a uma narrativa particular que dá sentido à situação de crise epistemológica precipitada, segundo seu julgamento, pelo abandono do arcabouço racional (incluindo seus “tentáculos” sociais e institucionais) da tradição clássica (1990a, cap. VIII, 1990b). Essa narrativa, contudo, se insere no contexto mais amplo do confronto entre tradições, sendo de fato um item fundamental do equipamento de uma delas, aquela a que o próprio MacIntyre se filia, no empenho de defender suas próprias posições (aspirando, como se verá, à veracidade). A narrativa se situa, portanto, no seio do que se pode chamar uma dialética das tradições de pesquisa.

A mesma constatação do pluralismo de perspectivas que dá (paradoxalmente) origem à tradição liberal, cuja inconsistência MacIntyre denuncia (1988, cap. XVII), requer a elaboração de uma posição a partir da qual o confronto de tradições preconizado por MacIntyre venha a ter lugar. A solução macintyreana é a sua teoria das tradições de pesquisa moral, que se inspira em filosofias da ciência como as de Kuhn e Lakatos. e relaciona a inteligibilidade das teorias filosóficas à sua inserção em tradições de pesquisa que ordenam os dados da investigação e dão sentido aos recursos teóricos empregues em conformidade com compreensões específicas da racionalidade. Entretanto, a teoria das tradições de pesquisa não é simplesmente uma teoria sobre a sucessão de teorias ou modelos de investigação de modo a estabelecer critérios de testabilidade e progresso uniformemente aplicáveis às diversas teorizações ou modelos de pesquisa, sendo mais propriamente uma dialética. das tradições de pesquisa racional, uma vez que põe em confronto as diversas compreensões sobre a natureza e a estrutura do inquérito racional historicamente articuladas em tradições, consideradas segundo suas próprias pressuposições e critérios internos, em busca de soluções que lhes transcendam os limites iniciais em vista de estabelecer uma perspectiva cognitivamente adequada.

No livro Three Rival Versions of Moral Enquiry (1990a), MacIntyre descreve três programas modernos de pesquisa moral: a tradição enciclopédica, herdeira do iluminismo e representada de modo eminente pela Nona Edição da Encyclopaedia Britannica; a tradição genealogista, que tem como texto-chave a Zur Genealogie der Moral de Nietzsche; e a tradição tomista, que conhece um novo despertar com a publicação da encíclica Aeterni Patris, do Papa Leão XIII (para um apanhado de textos sobre a herança do documento, que inclui o texto integral do mesmo, ver BREZIK, 1981). As duas primeiras tradições, é verdade, diferem significativamente no significado dado aos fatos narrados acerca do desenvolvimento da tradição filosófica. Ao passo em que a tradição enciclopédica o enxerga como uma história de progresso racional, a genealogista o entende como uma história de falsificações e degradação. Ambas, porém, coincidem em tratar aquele desenvolvimento como único e contínuo. A tradição revigorada a partir da publicação do documento eclesiástico mencionado, embora ela própria anterior às demais e mais ou menos contínua em si mesma, não se percebe como um momento numa história unificada que as inclui. Para os seus representantes, houve um momento em que as correntes dominantes da filosofia romperam com a tradição que as precedia, e o trauma dessa ruptura ressoa ainda nos dias atuais. MacIntyre, que se associa a esta tradição., terá o seu modo próprio de narrar essa história (MACINTYRE, 1990a, caps. III-VII).

O confronto entre as tradições é decidido, em parte, pelo sucesso na elaboração das respectivas narrativas; em parte, pela falha de alguma(s) das rivais em ater-se aos próprios critérios que estabelece(m) para si; em parte, pela capacidade de representar as tradições alternativas e comunicar-se com elas; e ainda pela fecundidade, adaptabilidade e aptidão de cada uma em solucionar os problemas que se põe.

Uma dialética das tradições

De que modo, porém, se dá o confronto efetivo entre as tradições? A resposta deve ser precedida por outras considerações. MacIntyre reconhece que as tradições de pesquisa têm um início contingente no tempo e no espaço e que, em seus primeiros estágios, supõem uma adesão não questionada a objetivos, procedimentos, modelos e autoridades. No seu próprio desenvolvimento interno, porém, surge a pressão por correções e aprimoramentos que, uma vez satisfeita, confere a seus membros um sentido de progresso, já não apenas relativo ao telos primitivo, mas também na compreensão de seu próprio objeto e direção (MACINTYRE, 1988, p. 355-361).

A ciência das limitações e impropriedades superadas origina um senso de adequação da mente a seu objeto – revelada pelo descobrimento das inadequações – que dará lugar à concepção da verdade como correspondência.. Essa tensão dirigida a uma concepção do verdadeiro como “adequado à realidade” (realidade compreendida como determinante das limitações e erros encontrados – o investigador entende a inadequação como tendo sua fonte em si, isto é, no próprio investigador e em seus procedimentos de estudo, e não no domínio investigado) abre a investigação à admissão da possibilidade constante do erro, de modo que a tradição em que a investigação se desdobra entende-se como constitutivamente falível e passível (pelo menos) de correções. (MACINTYRE, 1988, p. 356-359; 2006b, p. 58-61; 2006g, p. 184-190; 2006h, p. 198-203).

O contato com tradições alternativas determina novas possibilidades aos adeptos de uma dada tradição: uma vez que se entende serem tais programas movidos por semelhantes escrúpulos gnosiológicos (isto é, que buscam, à sua própria maneira e a partir de seu ponto de largada particular, a adequação à realidade que também a eles oferece resistência), é possível neles encontrar recursos de que a tradição nativa até o momento carecia, senão mesmo concluir que a tradição alienígena é mais apta para abordar a realidade comum do que aquela a que até então se pertencera, precipitando um fenômeno de “conversão”. Estes são especialmente característicos dos períodos de crise epistemológica, em que as dificuldades de tal maneira se acumulam e evidenciam para a tradição (possivelmente em razão do próprio confronto com rivais) que a substituição dos modos vigentes de pesquisa passa a fazer parte da ordem do dia (MACINTYRE, 2006a; 1988, p. 361-366).

Há patente similaridade entre a descrição macintyreana de uma crise epistemológica e a de uma crise que precede um período revolucionário na história de uma ciência, tal como apresentada por Thomas Kuhn (KUHN, 1970, caps. VII-VIII). Em ambos os casos, trata-se de uma situação experimentada pelos membros de uma comunidade de pesquisa em que a credibilidade dos modos vigentes (“ciência normal”.) de investigação é abalada a seus olhos, donde se justifica um tatear em direções diversas em busca da superação das anomalias reconhecidas e sobre as quais se concentram os holofotes daquela comunidade, eventualmente culminando com o triunfo de um modelo alternativo, que reestrutura a compreensão do objeto. de tal modo que as proposições aceitas por uns e outros são reciprocamente incomensuráveis..

Entretanto, enquanto para Kuhn é possível falar de um progresso na pesquisa (científica, em seu caso) somente enquanto acréscimo na capacidade de lidar com quebra-cabeças (ainda que admita critérios permanentes de seleção entre teorias, tais como a acurácia, a consistência, o alcance, a simplicidade e a fecundidade, cf. KUHN, 1977, p. 321-325), para MacIntyre, a admissão de um conceito de verdade como correspondência identificada ao telos da investigação, juntamente com a possibilidade de compor uma narrativa satisfatória que inclua os momentos subsequentes (vigência da(o) tradição/paradigma derrotada(o), confronto, crise, superação) de maneira verossímil e coerente10, autoriza-nos a falar de um genuíno ganho cognitivo (em sentido realista) na compreensão de um objeto comum11.

MacIntyre reconhece uma separação entre verdade e racionalidade: se, por um lado, é possível enunciar uma verdade de forma meramente acidental (MACINTYRE, 2006c, p. 201), sem que se disponha de qualquer justificativa razoável para conectar tal enunciado com a realidade a que se refere e com que coincide, sendo esta independente da mente do pesquisador, por outro a existência de uma justificação racional de dada asserção não é suficiente para tomá-la por verdadeira (sendo, aliás, os esquemas de justificação racional passíveis de substituição). No entanto, a racionalidade enquanto tal supõe uma tensão para a verdade, para uma adequação da mente à realidade sobre a qual se debruça12, isto é, a verdade enquanto fim próprio do inquérito racional procura um ajuste entre a realidade a ser explicada e a razão a ser oferecida que os conecte da forma adequada, de tal modo que a mera existência material de uma “crença verdadeira e justificada” não constitui conhecimento em sentido próprio, mas é preciso que a justificação seja, ela própria, adequada (ainda que a título de ideal). Assim, a investigação, embora vinculada a esquemas conceituais e até a uma imago mundi historicamente situada e condicionada pelas práticas de determinada comunidade, não se acha estritamente fechada no interior dessas fronteiras, sendo que mesmo uma mudança revolucionária, em sentido kuhniano, é ainda compatível com a continuidade de uma concepção mais abrangente de racionalidade investigativa (de uma maneira que não se restringe a critérios formais de “escolha teórica”, cf. MACINTYRE, 1990b, p. 39-40).

MacIntyre (2006a, p. 17-18) atribui a Kuhn o erro de, enquanto atenta à experiência de um cientista ora situado no seio de um paradigma que realiza a transição a um paradigma rival – para a qual o próprio Kuhn se vale da imagem da “conversão”, sugerindo uma analogia com a conversão religiosa13 –, não fazer jus à experiência característica do iniciador de um novo paradigma, versado na tradição que enseja superar e ciente tanto das deficiências e limites desta quanto dos seus próprios débitos para com aqueles que o precederam, dos quais toma de empréstimo recursos indispensáveis à formulação de sua própria posição (e assim também das tensões entre continuidade e descontinuidade envolvidas nesse emprenho, reveladas numa narrativa apropriada). Aqui MacIntyre apresenta o seu importante contraste entre Galileu e Descartes como exemplos de um fundador (epistemologicamente) bem sucedido e de um fundador fracassado, respectivamente.

O que faz do programa galileano uma exitosa saída14 à crise experimentada pela ciência física da escolástica tardia foi a capacidade do grande cientista florentino de integrar as contribuições de seus predecessores e o reconhecimento dos incontornáveis limites de sua abordagem, de forma consciente, não somente na própria apresentação de seus métodos e resultados, mas ainda na elaboração de uma narrativa coerente que justifica a superioridade de seu novo aporte (é também sugestivo que o veículo primário que encontrou para a divulgação de suas ideias sobre o novo “sistema do mundo” e as duas “novas ciências” tenha sido o diálogo, que explicita a estrutura dialética de seu raciocínio). (Ver MACINTYRE, 2006a, p. 10-12).

O pioneiro do novo aporte é também proficiente na linguagem e nos métodos da perspectiva rival (neste caso, aquela que será abandonada), de modo que é capaz de ver desde o interior e em seus próprios termos as suas radicais deficiências e de perceber o modo como serão superadas pela formulação de uma linguagem nova. Para os que já operam no interior desta, as duas perspectivas parecerão, de fato, incomensuráveis, e não haverá tradução imediata dos termos de uma naqueles da outra. Mas para os que dominam as duas, como duas primeiras línguas (isto é, que supõem a possibilidade de pensar segundo os modos e critérios próprios dos adeptos), é possível estabelecer objetivamente a superioridade de uma delas (MACINTYRE, 1988, p. 364-365).

Descartes, por sua vez, sendo herdeiro do vocabulário e do aparato conceitual (para já não dizer da civilização, da língua e da cultura) dos que o precederam, pretende fazer tabula rasa dessa herança, buscando um ponto de partida que possa apresentar como absoluto, neutro e sem contexto15, inaugurando com isso a posição característica do projeto iluminista de fechar os olhos aos seus próprios condicionamentos e canonizar o padrão de racionalidade em voga numa determinada época como “razão absoluta” e desencarnada, apta a julgar desde um posto observacional ipso facto privilegiado qualquer postulação ao estatuto de conhecimento. Descartes recusa-se a falar a língua de seus predecessores para apontar-lhes as suas falhas nos termos deles e integrar o resultado dialeticamente em suas próprias soluções. Antes lhes impõe os seus próprios termos, rejeitando a visão dos oponentes por achá-la aquém dos seus critérios e fechando, na verdade, os olhos para os seus débitos intelectuais. Portanto, ao buscar, com ferramentas conceituais inadvertidamente emprestadas e em ambiente alienígena, atingir resultados semelhantes aos que obtinham quando usados nas oficinas daqueles que os projetaram e amolaram, não surpreende que fracassasse (MACINTYRE, 2006a, p. 7-10)16. A catástrofe a que se alude em After Virtue está anunciada.

Se o projeto científico de Galileu foi um êxito epistemológico, o fato é que o projeto epistemológico de Descartes não foi um sucesso social de menor escala. Ainda quando se mantêm no interior do marco científico traçado por Galileu (ou naquele que parte em linhas gerais deste, corrigindo-o e expandindo-o), os demais próceres da nova ciência se aliam aos luminares da filosofia barroca ao buscar uma forma de justificação cartesiana de seus métodos e premissas. Não no sentido de adotar os mesmos princípios e diretrizes do pensamento de Descartes, mas no de compartilhar a preocupação cartesiana de estabelecer novas bases para a edificação do conhecimento, prescindindo de referência à tradição. Paralelos aos esforços do próprio Descartes, aliás, é possível situar aqueles de seu contemporâneo Francis Bacon. Pode-se falar, nesse sentido, de múltiplas fundações da ciência moderna, em conformidade com as diversas perspectivas filosóficas que se apresentam para alicerçá-la. No dizer de Paolo Rossi (2001, p. 20), “a ciência do século XVII, junto e ao mesmo tempo, foi paracelsiana, cartesiana, baconiana e leibniziana”.

Quando o iluminismo emerge como movimento de reforma social de contornos bem definidos, a ideia de uma razão autônoma, livre das peias da tradição e alheia a qualquer apelo a uma “autoridade racional”, já se encontra plenamente estabelecida entre os seus principais representantes17. A ideia da autonomia e da atemporalidade da razão científica se tornou uma espécie de truísmo, que teve que esperar até o século XX para que autores como Bachelard, Koyré, Foucault e os próprios Kuhn e Lakatos o viessem a desafiar18. MacIntyre julga que o projeto iluminista, porém, não obstante a sua disseminação e influência, fracassa em seus próprios termos19. Quanto à ciência galileana, por seu turno, considera-a bem sucedida enquanto tradição de pesquisa por razões de ordem propriamente epistemológica.

É aqui que o programa de MacIntyre se aproxima, em certo sentido, das propostas de Lakatos para a avaliação dos programas de pesquisa. Lakatos é um popperiano, e, como tal, está interessado em oferecer uma figuração do progresso da ciência como um progresso essencialmente racional. Embora rejeite (LAKATOS, 1978a, p. 30-47) a versão de Popper do falsificacionismo, com seus “experimentos cruciais” e sua sucessão de teorias com cada vez maior “conteúdo empírico” (cf. POPPER, 1972, cap. VI), Lakatos deseja representar a sucessão de abordagens na história da ciência como encarnando um acúmulo de ganho cognitivo, sem descurar o fato de que os cientistas geralmente operam no interior de programas definidos em que a preocupação com a refutação de conjeturas está longe de ser um objetivo geral e primário (LAKATOS, 1978a, 1978b).

A atenção à história efetiva das disciplinas científicas, portanto, é para ele, assim como para Kuhn, decisiva. Ao invés de uma sucessão uniforme de teorias, Lakatos (1978a, p. 48-52) percebe ser mais adequado falar na operação de séries de teorias no interior de um mesmo programa (grosso modo equivalente ao “período normal” kuhniano20), que se desenvolve por meio de uma heurística negativa (que protege o núcleo rígido do programa, de princípios fundamentais e convencionalmente “irrefutáveis”) aliada a uma heurística positiva (que constrói um “cinturão protetor” em torno do núcleo, determinando a proposição de hipóteses e testes).

O êxito de um programa de pesquisa dependeria, então, da fecundidade da heurística positiva em termos de progresso teórico (proposição de novas hipóteses e teorias) e empírico (confirmação experimental). Nesse caso, tem-se um programa progressivo; caso contrário (quando o programa já não consegue produzir teorizações interessantes e acumular sucessos preditivos), o que se tem é um programa degenerescente. A história de uma disciplina científica se revelaria em conformidade com padrões racionais justamente por sua tendência a preservar os programas progressivos e rejeitar os degenerescentes. As razões para a aceitação ou a rejeição de um programa de pesquisa, porém, não se manifestam senão ex post facto, por meio de uma reconstrução racional dos programas que inclui indispensavelmente um componente narrativo (LAKATOS, 1978b, p. 131-136).

MacIntyre (1988, p. 362-365) está igualmente interessado em estabelecer critérios para a avaliação das tradições de pesquisa, e algo como a “progressividade” de um programa lakatosiano é importante para ele, na medida em que uma tradição deve ser suficientemente flexível não apenas para lidar com seus problemas internos de maneira mais eficiente que aquela exibida por seus rivais, mas ainda para ajustar-se a novas situações e superar dificuldades percebidas em seu interior (ou resultantes do confronto com tradições externas).

Importa notar, contudo, que os critérios para avaliação das tradições de pesquisa no pensamento de MacIntyre, exceto quando dizem respeito às possíveis falhas em sustentar suas posições em seus próprios termos, envolvem necessariamente uma referência a tradições rivais. A teoria macintyreana é uma dialética das tradições de pesquisa. MacIntyre não está meramente interessado nas razões para se manter provisoriamente um modo de investigação “normal” por consenso de uma comunidade de inquérito. Seu objetivo é desenvolver uma teoria das tradições que não apenas leve em consideração a existência de múltiplas racionalidades em competição (em oposição às demandas de consenso que, na visão de autores como Kuhn e Lakatos, parecem ser um desiderato comum das comunidades científicas21) como também se preocupe com uma orientação essencial para a verdade. O componente narrativo em Lakatos, de maneira similar, lhe parece insuficiente: as reconstruções racionais que almeja são, por admissão do próprio Lakatos (1978b, p. 138), caricaturas. Para MacIntyre (2006a, p. 20), é de singular importância que aspirem elas mesmas também à verdade22.

Os dois elementos, teleológico e narrativo, estão intimamente relacionados para MacIntyre (1990b, p. 50-68). É importante observar que a versão correspondentista da teoria da verdade assumida por MacIntyre diz respeito não à coincidência de um conteúdo proposicional com os fatos descritos, mas a uma adequação da mente à realidade (MACINTYRE, 1988, p. 357-358; 1990b, p. 12-13; 2006b, p. 66-67; 2006c, p. 184-191; 2006d, p. 198-209): isso implica um progressivo aproximar-se, ajustar-se, que não depende em sentido estrito dos valores de verdade das proposições que conformam uma teoria. A verdade é o telos da atividade racional e, como qualquer fim propriamente humano, a sua busca ganha sentido quando integrada numa estrutura narrativa. A ação humana enquanto tal é somente inteligível no contexto de uma narração guiada por fins, e a própria falha de muitas racionalidades modernas estaria associada à marginalização dessa dimensão narrativa23.

A adoção conjunta de uma teoria dialética, ou seja, uma teoria do confrontamento entre as tradições de pesquisa e de uma teleologia do inquérito racional guiado pela busca de uma verdade que transcende todas as possíveis perspectivas (ainda que se tenha que operar a partir de alguma delas) protege o programa de MacIntyre de certas objeções lançadas contra o de Lakatos (cf. FEYERABEND, 2007, p. 225-226; HACKING, 1983, p. 112-113). A crítica de que é insuficiente, para o abandono de um programa de pesquisa, que ele seja identificado como degenerescente, uma vez que é sempre possível (de uma maneira essencialmente imprevisível) “resgatar” um programa de pesquisa de tal estado, não atinge a teoria de MacIntyre: para ele, a superioridade de uma tradição de pesquisa se revela precisamente por mostrar-se capaz de responder os melhores desafios e objeções que lhe foram lançados até o momento presente: a possibilidade de vir a colapsar sob pressões futuras não lhe constitui um obstáculo, mas antes se configura numa precondição de sua racionalidade (MACINTYRE, 1990b, p. 39).

Ou seja, não é em termos de prognósticos de fecundidade, do tipo que serviria para manter vivo o interesse de uma dada comunidade sobre uma tradição como programa de pesquisa, que se deve avaliar-lhe os méritos. Em outras palavras, não é a perspectiva de manter-se como “pesquisa normal” em vista da promessa de resultados que dá suporte racional a uma tradição. Pode acontecer, com efeito, que o êxito de uma tradição em se apresentar como semelhante programa de pesquisa “progressivo” conduza a uma “hipertrofia paradigmática”, em que diversas áreas são sucessivamente invadidas pelos modelos e padrões característicos de determinada conformação da pesquisa sem que haja efetiva confrontação dialética entre as tradições envolvidas, uma vez que se considere uma delas, conforme os presentes interesses cognitivos possivelmente ditados por fatores externos, “estagnada”. Pode-se mesmo dizer que coisa assim ocorre precisamente com a filosofia analítica, em nome da qual Rorty, por exemplo, já considerou o tomismo como um programa de pesquisa que simplesmente chegou ao fim (RORTY, 1992, p. 374).

A ênfase em MacIntyre, portanto, não é tanto sobre a fecundidade de uma tradição em termos de expansões teóricas ou empíricas, que tende a ser central para concepções instrumentais de racionalidade (cf. WEBER, 1978, p. 25-26) 24 – de fato, a perda do domínio da física para a ciência galileana teria constituído antes um reforço do modelo de racionalidade suposto por essa tradição do que um seu enfraquecimento (MACINTYRE, 1990b, p. 39) – quanto sobre a já mencionada tensão para a verdade concebida como adequação do intelecto às coisas.

A necessária referência das tradições de pesquisa às suas rivais, por seu turno, e o inevitável pertencimento do indivíduo a uma tradição (um indivíduo sem tradição estaria ipso facto excluído da pesquisa racional, cf. MACINTYRE, 1988, p. 367) revelam que, para MacIntyre, não existe propriamente o problema da “escolha” de uma tradição (“progressiva”) a que seria racional aderir: somente o engajamento na efetiva dialética das tradições de pesquisa pode determinar o abandono (racional) da tradição a que momentaneamente se pertence em benefício de uma outra, que se descobre ser a ela superior. MacIntyre (1988, p. 366) admite, além do mais, a possibilidade de que, numa dada etapa, haja uma fundamental indeterminação quanto à superioridade de uma entre duas ou mais tradições rivais, de modo que não haja critérios racionais disponíveis para a decisão racional por uma delas (embora o próprio reconhecimento da rivalidade enseje a confrontação contínua e o lançamento de desafios mútuos motivados pela fundamental inclinação de cada uma delas a uma verdade imparcial e transcendente assumida em comum como telos).

A ideia de Lakatos de que o juízo sobre a escolha racional recai não sobre teorias isoladas, mas sobre séries de teorias que encarnam os pressupostos de um programa, mostra uma afinidade importante com a concepção macintyreana (e, com efeito, aristotélico-tomista) de que a verdade (força motriz por trás de qualquer concepção de racionalidade) não consiste na correspondência entre conteúdos proposicionais e fatos do mundo, mas no ajuste (parcial e progressivo) do intelecto do investigador à realidade investigada (MACINTYRE, 1988, p. 356; 2006b, p. 58; 2006c, p. 185; 2006d, p. 209). Carecendo, porém, de uma tal concepção de verdade e construindo um ideal de “história interna” das ciências que admite redundar sempre em caricaturas, Lakatos torna-se apto a receber o rótulo de perspectivista (os critérios de aceitabilidade são sempre internos aos programas). Hacking (1983, p. 120), com efeito, afirma que Lakatos sequer se satisfaz em rejeitar uma noção correspondentista de verdade: rejeita o conceito de verdade in toto. Para MacIntyre (1988, p. 360-361), em contrapartida, embora não se possa atingir jamais a plena certeza de estar em definitiva e perfeitamente adequada posse da verdade25, ela está sempre no horizonte como objeto buscado e critério regulador (que faz com que se percebam inadequações e se esteja sempre à procura de ajustes e mesmo se mantenha, ao menos tacitamente, uma abertura à possibilidade de abandonar a tradição a que ora se pertence).

Há também o problema relacionado ao que se poderia chamar o elitismo da teoria de Lakatos (HACKING, 1983, p. 125-126), que também concerne de perto ao ponto de vista de MacIntyre. Ambos reconhecem a importância da atuação de uma autoridade intelectual no processo de normatização da prática investigativa. As elites lakatosianas (LAKATOS, 1978b, p. 125-128) não somente dão direção à pesquisa, mas determinam ainda a elaboração de sua história interna (com sua importância heurística). Entretanto, enquanto mergulhadas na ordem social mais ampla, sofrem a influência da história externa, de um modo que pode afetar as reconstruções racionais que legitimam. Os critérios de racionalidade dos programas de pesquisa, que ensinam a rejeitar os programas degenerescentes e estimular os progressivos, pretendem servir como proteção contra os abusos perpetrados por tais elites científicas e seu entorno institucional. Porém, como foi visto, a própria identificação do caráter progressivo ou degenerescente de um programa é sobremaneira frágil, e a construção da história interna, como reconhecida pelo próprio Lakatos, não logra evitar a produção de caricaturas. Além do mais, a concepção instrumental de racionalidade que se observou estar envolvida na avaliação lakatosiana dos programas de investigação pelo par progresso/degeneração está diretamente vinculada à procura de bens externos às práticas relevantes, de modo que os próprios valores26 incorporados à pesquisa não oferecem por si mesmos resistência ao tipo referido de interferência externa sobre o establishment científico27.

MacIntyre, como Lakatos, também considera essencial a atuação de uma “elite” racional sobre a articulação da pesquisa como prática – e como “arte” (craft, cf. MACINTYRE, 1990a, p. 61-68)28. A autoridade racional dos mestres e uma estrutura institucional para a iniciação dos discípulos, a transmissão dos conteúdos e o desenvolvimento da própria investigação, são para ele condições indispensáveis ao florescimento de uma tradição de pesquisa. Como, porém, para MacIntyre a pesquisa é uma prática dirigida por uma teleologia que lhe confere determinados fins internos – os quais se tornam, eles próprios, objeto de escrutínio e constante reelaboração segundo a interação entre êxitos e dificuldades no transcurso de sua história –, deverá, sob pena de corromper-se (não meramente no sentido de se revelar estagnada e infecunda, mas de desviar-se de seus fins característicos), atender a padrões intrínsecos de excelência, manifestados no exercício de virtudes. As instituições dependem crucialmente de bens externos (recursos materiais, financeiros, poder de atuação) e determinam um regime de concessão e distribuição de semelhantes bens (remunerações, títulos, fama e prestígio entre outros) como condição de sua operação; estando inseridas no contexto social mais amplo, estão sempre sob o risco de fazer das pressões externas o motor principal de sua atividade e mesmo de degenerar numa busca de bens exógenos por sua própria causa. É, contudo, o reconhecimento dos bens internos à investigação e das virtudes necessárias para buscá-los (tais como veracidade, constância, coragem e humildade) que se ergue contra as ambições desmesuradas das instituições e sua tendência intrínseca à corrupção (MACINTYRE, 2007, p. 194-195).

Interessa notar que o problema da incomensurabilidade é importante para MacIntyre (1988, p. 350-352). Embora seu programa trate de critérios para a avaliação comparada de tradições e a decisão racional entre elas, MacIntyre considera a incomensurabilidade um dado real e inextirpável do debate. Como toda pesquisa racional tem lugar no contexto de (pelo menos) uma tradição, estrutura-se em seus termos, percebe a realidade através de suas lentes. Não há um domínio pré-teórico a que apelar no juízo das reivindicações de uma tradição, pois todo dado invocado terá já a forma que lhe imprime determinada perspectiva, será mesmo visto de acordo com o próprio recorte de interesses (possivelmente derivado de alguma compreensão substancial de racionalidade) que determina a sua seleção; os diferentes critérios classificatórios e interesses cognitivos empregados implicam que os dados não podem ser diretamente comparados: a própria tentativa de tradução das afirmações pertinentes a uma tradição nos termos de outra tende a ter um efeito deformador.

Donald Davidson (1984) propôs uma famosa crítica do conceito de incomensurabilidade, afirmando que os próprios defensores da noção se traem ao descrever, desde a sua própria perspectiva teórica, as posições do ponto de vista alternativo. O próprio fato de que se reconheça um “esquema conceitual”, “comensurável” ou não, como tal, revela já um terreno comum; mais ainda em comum se deve conceder se alguém pretende ter os adeptos de um dado esquema entre seus interlocutores – a aplicação de um princípio de caridade asseguraria uma base suficiente de prévia concordância entre os representantes de sistemas rivais para sustentar uma fundamental intertraduzibilidade (desde que sejam feitos os ajustes requeridos) entre os esquemas. Para isso seria preciso, contudo, abandonar o “dogma” do dualismo entre esquema e conteúdo, que envolve o reconhecimento de uma realidade externa aos esquemas, de modo a evitar o relativismo conceitual que impõe aos participantes de diferentes “paradigmas” a consequência de parecerem trabalhar em “mundos diversos”. Tomam-se, então, os esquemas não como descrições rivais de um objeto (“realidade”) comum, mas como de alguma forma autocontidos, mas admitindo uma ampla medida de concordância que assegura a compreensão mútua e uma possibilidade de avaliação comum com base nas evidências, holisticamente concebidas, disponíveis (DAVIDSON, 1984, p. 189-198).

Um problema com o argumento de Davidson é que sua visão sobre os esquemas conceituais tende a representá-los meramente como estruturas abstratas com conteúdos comuns (podendo haver aqui, clara, convergências significativas), ignorando que os usos efetivos a que os diferentes esquemas conceituais são postos podem supor padrões de interpretação encarnados em práticas e valores sociais radicalmente divergentes29, em conformidade, ademais, com uma pluralidade de fins possíveis. A própria convergência parcial em estrutura e conteúdo pode servir para mascarar esses aspectos. MacIntyre (1988, p. 387-388) não nega a possibilidade de uma compreensão mútua entre “esquemas conceituais” alternativos. Em primeiro lugar, entre aqueles fundados em tradições que compartilham um número suficiente de características, entre referências, critérios e práticas. Mas o campo comum não pode ser simplesmente suposto como de “ampla” dimensão (com qualquer grau de definição ou vagueza que tal medida suporte), sendo frequentemente esse tipo de suposição responsável por uma presunção de capacidades compreensivas que mascaram e blindam incapacidades radicais. É preciso que uma tradição se abra à possibilidade de entender suas rivais em seus próprios termos, ao ponto de deixar-se, ela própria, ler de acordo com aqueles padrões e deixar-se por eles desafiar. Pode-se, em certo sentido, dizer que a comparação entre elas (que é o objetivo premente da teoria macintyreana das tradições de pesquisa), exige, como para Davidson, o recurso a um território comum. Este não é dado, todavia, pelo mero estatuto partilhado de “esquemas conceituais”, mas pela compreensão, interna às perspectivas adversárias, de que constituem empenhos investigativos rivais.

O reconhecimento da rivalidade revela a existência de um bem de litígio: as tradições de pesquisa são organizadas como práticas ordenadas à consecução de fins, e envolvem a referência do intelecto a uma realidade à qual se deve conformar (verdade como correspondência), percebendo nas falhas de ajuste a necessidade de reformar-se continuamente. Não podem, portanto, de maneira alguma ser autocontidas. Também nisso se fundamenta o diálogo com tradições estrangeiras. Se duas tradições de pesquisa distintas buscam, cada uma por suas próprias vias, o ajuste da investigação a uma realidade que a transcende, é possível comparar êxitos e fracassos, e estabelecer um diálogo capaz de proporcionar a alguma das tradições recursos para superar suas próprias dificuldades.

Esse diálogo, contudo, não envolve uma simples assimilação por tradução mais ou menos direta, mas é preciso, por assim dizer, tornar-se proficiente na linguagem característica da tradição externa, aprendida à maneira de uma segunda primeira língua (ou língua materna), para usar a paradoxal mas sugestiva expressão de MacIntyre (1988, p. 364-365; o conceito em si é familiar aos antropólogos de campo). Somente assim é possível assimilar o que a perspectiva estranha é capaz de oferecer, buscando rearranjar os próprios recursos no esforço de exprimir aquilo que pertence ao “esquema conceitual” alheio ou, quando necessário, introduzir novos termos que viabilizem a assimilação (MacIntyre dá o exemplo do enriquecimento da língua e do pensamento latinos pela forjadura de filosofemas, notadamente por Cícero, que traduzem os termos próprios da filosofia grega).

Mais importante, talvez, é que a capacidade de pensar desde o interior dos esquemas rivais permite a uma tradição deixar-se desafiar por outra, possibilitando o tipo de embate que pode resultar na assimilação de uma tradição mais “frágil” por uma mais robusta, na “conversão” dos membros de uma tradição a uma outra ou na elaboração consciente de uma nova tradição capaz de assumir as melhores contribuições de duas ou mais tradições em conflito e superar as suas dificuldades, enquadrando o resultado em um esquema conceitual mais apto. Ou seja: o modelo do “bilinguismo” galileano pode ser generalizado. Em tal embate, tem importância a capacidade de uma tradição para elaborar uma narrativa que dê conta dos seus condicionamentos e desenvolvimentos internos, em especial a maneira como supera dificuldades e eventuais crises epistêmicas (MACINTYRE, 2006a, p. 15-26). Externamente, é relevante a capacidade, concomitante à anterior e coerente com ela, de revelar compromissos e condicionamentos das tradições rivais, possivelmente ocultos a seus próprios adeptos, de tal modo que aquilo que não raro se toma como atemporal e autojustificado termina por se revelar historicamente situado e mesmo racionalmente problemático (MACINTYRE, 1990b, p. 53-68).

Uma perspectiva como a de Davidson, por oferecer um horizonte geral de inteligibilidade que se dispensa de enxergar o mundo com os olhos das tradições alternativas por supostamente tomá-las, a partir de critérios internos a si mesma, como cognitivamente transparentes e, portanto, essencialmente traduzíveis, assemelha-se num aspecto importante às posições iluministas criticadas por MacIntyre (1990a, p. 23-31). Tal como elas, a postura de Davidson apresenta uma concepção de racionalidade “acabada”, alegadamente consistente com a prática corrente da investigação científica, em termos da qual as demais concepções podem ser entendidas e julgadas na medida em que dela se aproximam ou afastam. Implícita nela está uma narrativa de progresso que considera dar um “passo a mais” em relação ao holismo naturalismo quineano, acrescentando à rejeição dos dois “dogmas empiristas” da distinção entre analítico e sintético e da testabilidade separada de enunciados discretos a demolição de um terceiro, o do “dualismo de esquema e conteúdo” (DAVIDSON. 1984, p. 189-190). Embora a “caridade” de princípio exigida na leitura dos esquemas alienígenas acrescente um elemento de condescendência em comparação com o juízo geralmente mais ríspido do iluminista típico às tradições estranhas ou abandonadas, trata-se ainda de uma compreensão da racionalidade dotada, por construção, de uma universalidade postulada, sendo os diversos esquemas alternativos passíveis de compreensão (e avaliação) nos seus próprios termos, e não nos deles (já que podem se conceber, ao contrário do que postula Davidson, como radicalmente divergentes e efetivamente incomensuráveis) e assim a compreensão davidsoniana se torna essencialmente surda aos desafios que podem ser erguidos contra ela a partir desses esquemas rivais.

Apesar de se propor como forma de evitar os problemas (em especial o do relativismo conceitual) que acometem perspectivas como a de Kuhn, a de Davidson tem em comum com ela uma compreensão do progresso epistemológico (primariamente científico) que não reconhece uma teleologia substantiva do ser humano como agente investigador e, assim, se torna pouco apta a superar o fulcro das objeções relativistas (e perspectivistas) e oferecer uma compreensão conjugada do progresso e da racionalidade científica que possa ser compreendida em termos não redutíveis a critérios “eficientistas”/instrumentalistas.

O problema de encontrar uma base racional para enfrentar o impasse emotivista da filosofia moral contemporânea levou MacIntyre a elaborar uma teoria das tradições de pesquisa racional que se inspira em medida significativa nas discussões sobre a filosofia da ciência de autores como Kuhn e Lakatos e tem com elas importantes pontos de contato. Entretanto, como se tem visto, a abordagem de MacIntyre diverge daquela de tais autores em aspectos cruciais, tais como a importância epistêmica das narrativas, o papel atribuído à virtude e a tensão produtiva entre incomensurabilidade e realismo. À diferença das teorias desses autores, a de MacIntyre apresenta-se ainda como uma dialética das tradições de pesquisa, de tal modo que mesmo tradições academicamente marginais (esquecidas ou ignoradas) ou abandonadas podem levantar desafios relevantes à racionalidade dominante. Nisso se vê que, em contraste com o foco do debate na filosofia da ciência, a teoria de MacIntyre não é uma explicação de um progresso assumido. É preciso desenvolver este ponto em particular, para evidenciar a particularidade do aporte macintyreano e, tal como se fará nos capítulos consecutivos, preparar uma crítica da tradição analítica como uma crítica da razão filosófica reduzida à razão científica.

O problema do progresso

O projeto macintyreano de construir uma teoria geral das tradições de pesquisa apresenta, como até aqui se viu, um componente inerentemente narrativo e uma dimensão propriamente dialética, dentro da qual aquele componente se enquadra, manifestando especialmente o caráter de uma teleologia particular, que de certo modo informa todo o seu esforço teórico. Em confronto com teorias como as de Kuhn e Lakatos, esse desenvolvimento sugere um modo peculiar de engajamento com um problema primordial para essas teorias: o problema do progresso. Este é aqui considerado de um ponto de vista epistemológico, que certamente está relacionado, no nível da ideologia, ao tema do progresso social, que não se tratará especificamente no presente trabalho.

Embora partilhe de certos interesses (epistemológicos) com autores como Kuhn e Lakatos (problema da racionalidade da pesquisa, contexto social das práticas cognitivas, desafio relativista), interessa pontuar que, diferentemente deles, MacIntyre não tem sua motivação nas dificuldades geradas pela noção de progresso científico. A guinada histórica da filosofia da ciência anglófona, com efeito, é inaugurada pela busca popperiana de uma narrativa de progresso capaz de dar conta das descontínuas transformações sofridas pelas disciplinas científicas e pela própria concepção de “ciência” (assim como pelas visões de mundo construídas desde cada uma dessas compreensões). Popper (1972, p. 303-308) obtém uma visão do progresso da ciência que conta com a verdade como ideal regulador (negativo) e um sentido teleológico bem definido, mas que atenta pouco às minúcias da própria história da ciência, além de supor conceitos que tornam especialmente problemático o tipo de narração linear que propõe, tais como a ideia de que a observação científica está sempre “contaminada” de teoria30 e o inescapável elemento de convencionalismo na definição da base empírica empregada para o teste das teorias (POPPER, 1972, p. 111-113).

Mais sensíveis às complicações do registro histórico, Kuhn e Lakatos propõem teorias do progresso menos lineares e abandonam o critério de verdade como ideal regulador, assumindo uma teleologia de caráter extrínseco (capacidade de resolver quebra-cabeças, progressividade do programa). Em ambos há uma identificação entre os critérios de avaliação das teorias (paradigmas, programas) e certa medida de eficácia, determinada por comparação, que pode tornar mais razoável, em sentido prático, a opção por uma dada abordagem mas elimina a necessidade de uma correspondência à realidade: é antes esta que se conforma às demandas investigativas.

Larry Laudan (1977, p. 11-12) propõe expressamente a ideia de um progresso dirigido à eficácia na solução de problemas que ele julga evitar problemas como o da incomensurabilidade e do relativismo, além de dispensar as caricaturais reconstruções racionais de Lakatos, ao mesmo tempo em que insiste na autonomia da ciência como empreendimento cognitivo (esquivando-se à dicotomia verdade/práxis, cf. LAUDAN, 1977, p. 223-225). Em que, entretanto, radicaria o ímpeto para semelhante busca “autônoma” para a solução de problemas, de modo essencialmente desvinculado dos interesses práticos de seres humanos imersos nas contingências da cultura e da vida social, é talvez questão que o filósofo da ciência considere além de sua alçada, mas a ausência de uma resposta não obstante obscurece a alegação de que o bem da ciência enquanto solução racional de problemas seja fundamentalmente de caráter não instrumental.

Para esses filósofos, ademais, o progresso científico é simplesmente um dado. Suas teorias buscam, pois, explicá-lo e não propriamente pô-lo à prova. Há um óbvio sentido em que a “ciência” (ou uma disciplina ou programa científico) progride: em termos materiais e sociológicos. Contabiliza-se o crescimento dos departamentos que são dedicados ao seu estudo, das publicações, dos investimentos públicos e privados, da sua relação com as inovações tecnológicas, sua inserção cultural, seu prestígio social etc. Entretanto, em nenhum sentido óbvio se equaciona esse tipo de progresso com um progresso de tipo especificamente epistemológico31. No vocabulário macintyreano, pode-se dizer que essa medida de progresso é dada pelo êxito na obtenção de bens externos à prática científica ela mesma ou bens de eficácia considerados do ponto de vista do agente investigador.

O que se observa é uma identificação da “racionalidade científica” com a racionalidade tout court, juntamente com uma vaga assimilação do evidente progresso material e social da ciência com o que seria um progresso epistemológico, que exige então a elaboração de um rationale. Mesmo para críticos agudos da noção de progresso científico como Feyerabend, há uma assimilação implícita da razão científica à razão simpliciter, de modo que os argumentos que sustentam o fracasso do projeto epistemológico (progressista) da ciência moderna lhe parecem impugnar as pretensões (à “objetividade”, “universalidade” etc.) da razão enquanto tal32.

MacIntyre, como foi dito, não faz de uma noção de progresso simplesmente assumida o eixo central de sua teoria das tradições de pesquisa. Não há um sentido óbvio e conspícuo em que a pesquisa progride. O que se apresenta como “progresso”, para ele, longe de ser simplesmente um “dado”, pode ser uma máscara ideológica (MACINTYRE, 1990a, p. 28-31). As tradições de pesquisa não podem ser julgadas por meros critérios de eficácia, mas envolvem uma discussão permanente de seus próprios fins, que devem ser conhecidos, explicitados, precisados. O próprio progresso não pode senão ser avaliado de acordo com essa teleologia assumida. Uma falha patente das teorias correntes sobre o progresso (científico ou de qualquer outra natureza) é precisamente a ausência de uma noção bem definida de telos (MACINTYRE, 1990b, p. 65-68). Progresso é naturalmente definido como aproximação a uma meta.

Já foi visto como, para MacIntyre, o componente narrativo está intimamente associado à importância do telos como guia da investigação, não bastando apresentar-se como “caricatura” (como para LAKATOS, cf. 1978, p. 138) ou como justificação ideológica a posteriori (como para KUHN, cf. 1970, p. 166-167), posturas que partem do suposto de que a narração é, por si mesma, privada de relevância epistemológica. No entanto, esses mesmos autores pretendem construir uma explicação do progresso, de modo que não conseguem esquivar-se ao aspecto narrativo, embora não tenham êxito em integrar satisfatoriamente em suas teorias uma justificação racional para ele33. Para MacIntyre (1990b, p. 65-68), ao contrário, a narração é, ao mesmo tempo, requerida para estruturar coerentemente a noção de progresso no inquérito e um item fundamental na avaliação de tradições em conflito: cada uma delas oferece uma narrativa (passível, ela própria, de discussão e aprimoramento: a autocompreensão de uma tradição requer um ordenamento à adaequatio de suas próprias narrativas) que deve pretender-se verossímil, de modo que o embate entre tradições deve comportar também um confronto de narrativas (cf. MACINTYRE, 2006a, p. 15-23; 1988, p. 350).

É oportuno também reparar que a afirmação do progresso permanece essencialmente inalterada, enquanto a concepção do telos varia substancialmente quando se passa de um autor a outro. Há, portanto, uma ideologia subjacente de progresso que pode tomar sua inspiração no crescimento material, social e institucional das práticas científicas e sua cada vez maior inserção na vida das sociedades modernas – isto é, no sentido “óbvio” e externo de progresso a que se aludiu anteriormente –, ou mesmo na crescente sutileza das elaborações teóricas e acúmulo de sucessos em termos de predição e controle de fenômenos (critério, observe-se, já “eficientista”), mas que não se traduz de forma incontroversa em critérios de ordem epistemológica34.

As tentativas de fazê-lo tendem a apelar a termos sucessivamente mais vagos, como “capacidade de resolução de quebra-cabeças” ou de “solução de problemas”. Há uma dificuldade sensível em conceber a atividade científica como prática ordenada a fins próprios, que se reflete na indeterminação dos traços epistemológicos relevantes, ou seja, repercute sobre o problema da demarcação: como caracterizar o conhecimento científico em contraste com outras modalidades de discurso. Os métodos empregados nos diversos ramos da ciência são em larga medida autônomos e regionais, e se vê antes um esforço por abstrair sobre a prática corrente (por mais heterogênea que se revele) dos cientistas do que no sentido de regulá-la a partir de uma epistemologia geral. A epistemologia se retorce para acompanhar o dado sociológico35, mas o próprio dado sociológico tende a desaparecer no fundo, sobressaindo a superestrutura de “racionalidade” que nesse contexto se produz36.

A epistemologia de MacIntyre, porém, não ignora o dado sociológico: antes, pelo contrário, vincula os esforços cognitivos à estrutura das práticas humanas, histórica e socialmente situadas, e a avaliação de seus produtos não pode ignorar essa dimensão. Nesse sentido, MacIntyre chega a aproximar-se, sob certos aspectos, às teses de Foucault (cf. FOUCAULT, 1989a), com sua insistência sobre a influência formativa das práticas e dos valores sociais sobre a episteme (veja-se, porém, a dura crítica de MacIntyre à “subversão” foucaultiana em MACINTYRE, 1990a, p. 206-210). Esse tipo de abordagem com frequência valeu a MacIntyre a acusação de aderir a uma forma de historicismo ou relativismo (ver, por exemplo, HALDANE, 2004a, p. 19-22) inconsistente com suas pretensões epistemológicas.

É comum aos filósofos da tradição analítica, com efeito, acusar do cometimento da falácia genética37 (isto é, atacar uma posição não pelo seu conteúdo próprio, mas pela sua origem) aqueles que se debruçam sobre os condicionamentos histórico-culturais das teorias para questionar-lhes o alcance e a validade (cf. MACINTYRE, 2007, p. 265-272). Tendem, pois, a partir do “estado atual” das ciências como dado, tomando-as como o melhor disponível no momento38. Por um lado, entretanto, o conteúdo do “estado atual” do “conhecimento científico” é supostamente assumido em vista do prestígio epistemológico da ciência; por outro, esse prestígio epistemológico é (após as melhores tentativas) definido segundo um modelo de “progresso” fundamentalmente dependente de determinados acordos (muitas vezes locais e geralmente provisórios) e dada organização institucional e social da prática investigativa, que os produz. Eludir, portanto, a dimensão sociológica pode redundar numa grave lacuna para um projeto epistemológico, ou ao menos para um que encontre em si um lugar para a ciência moderna.

Há, para ser exato, tentativas de “reconstrução” formal do conhecimento científico que determinam uma espécie de arcabouço racional para a apresentação dos dados extraídos das diversas disciplinas. Este era já o objetivo de Carnap (cf. 2003, p. 5) e no mesmo espírito se encontrava a proposição de Quine (cf. 1963b) do seu sistema NF como nova base para a lógica matemática. As limitações intrínsecas, em termos de representabilidade (matemática), de uma abordagem dedutiva/axiomática levaram autores como Suppes (2002, p. 3-5) e Van Fraassen (2007, p. 84-89, 104-109) a propor antes uma abordagem baseada primariamente na construção de modelos – o que, com as vantagens oferecidas pela riqueza do aparato formal empregado, parece oferecer novo suporte para versões do realismo científico de molde estruturalista, como aquele defendido, por exemplo, por Poincaré (1995, p. 164-170), para quem a ciência é capaz de revelar (nada mais que) a invariância dos padrões de relações obtidas entre os fenômenos.

O próprio Van Fraassen, porém, longe de trilhar o caminho do realismo científico (sendo um dos principais representantes da postura antirrealista), aponta as graves dificuldades envolvidas na noção de representação (isto é, a relação entre a realidade e sua “imagem” científica). Por um lado, um isomorfismo – como o que se pretende obter entre a realidade e um modelo abstrato – entre estruturas supõe uma prévia apresentação matemática de ambas (que, enquanto isomórficas, não podem ser distinguidas – requerendo sua distinção uma caracterização, por exemplo algébrica, independente). Por outro, há uma subdeterminação dos dados empíricos em relação às diversas “representações” formais, podendo modelos (restritos a linguagens particulares e cada qual com seus artifícios matemáticos) distintos representar igualmente o mesmo domínio de “fatos” (cf. VAN FRAASSEN, 2007, cap. 2). Tais considerações afetam ainda programas realistas como o de Richard Boyd (1980), para quem a ciência progride por um conhecimento cada vez maior da estrutura causal do mundo: essa “estrutura causal” só pode ser representada pelos padrões de relações supostamente existentes entre os fenômenos, mas é difícil concebê-los de forma independente das estruturas matemáticas que os descrevem (o próprio conceito de causa se torna especialmente imperscrutável, se se pretende que ele transcenda os diversos esquemas concretos).

Van Fraassen busca, pois, uma meta epistêmica mais modesta: atingir a adequação empírica (consistência entre modelos e a base empírica), embora esse escrúpulo empirista não baste para decidir entre alternativas igualmente, isto é, para todos os efeitos práticos, adequadas. A explicação científica, para ele, torna-se uma questão de ciência aplicada, dependente dos modelos e dirigida por interesses cognitivos particulares – o que o aproxima de uma posição instrumentalista. A adequação empírica, entretanto, depende essencialmente do próprio modo de descrição da base empírica, que será inapelavelmente afetada pelos esquemas conceituais adotados (VAN FRAASSEN, 2007, p. 274-275). Em outras palavras, a cláusula “para todos os efeitos práticos” é projetada ao primeiro plano, de modo que as possibilidades de aplicação da ciência terminam por ditar a agenda epistemológica39. Os caracteres materiais e sociológicos retomam, pois, sua proeminência (na prática), ainda que a organização institucional da prática científica esteja longe de constituir o foco da discussão.

Para MacIntyre, por seu turno, a proeminência da dimensão sociológica não é, de maneira alguma, um estorvo para a elaboração de uma epistemologia realista: antes é sua precondição. O investigador racional sempre toma seu ponto de partida contingente desde o interior de uma tradição, que estabelece um determinado modo de descrição da realidade, delimita problemas, estabelece objetivos de inquérito, determina um ambiente institucional regulado onde a pesquisa vem a efeito. O pesquisador destituído de uma tradição (que é antes uma ficção que um personagem historicamente exemplificado) está privado do mínimo de recursos necessário para empreender uma investigação racional (MACINTYRE, 1988, p. 368)40.

A necessidade de um ordenamento institucional como contexto para a pesquisa e a importância do cultivo das virtudes para atingir os seus fins próprios reforçam o caráter social e ético de uma tal empresa. Mas é justamente a consideração dos fins da pesquisa que conecta diretamente a prática social aos valores epistemológicos. Como arte, a pesquisa apresenta determinados modelos compartilhados que constituem padrões de excelência, os quais envolvem os participantes na busca de dados bens que eles próprios não escolhem: os próprios modelos apontam para uma realidade que transcende como tal a prática, que permite a reelaboração contínua da sua compreensão dos seus fins e da organização de seu ofício, de maneira que permite a própria regulação da prática (cf. MACINTYRE, 1990a, p. 61-68).

Somente a partir desse começo contingente, da aceitação inicial de determinadas autoridades, esquemas conceituais, critérios de avaliação e valores institucionais é que o pesquisador pode perceber a inadequação de determinadas posturas investigativas que o torna particularmente consciente da adequação almejada e permite o esforço no sentido do progresso da tradição ou, num caso limite, a percepção da necessidade de abandoná-la, seja já por uma alternativa disponível, seja por uma que ainda tem que se construir. Esta construção, porém, não será de modo algum uma criação ex nihilo: terá que partir dos materiais e recursos (também no nível da articulação sócio-institucional), legados pelas tradições que por si mesmas se revelam insuficientes (cf. MACINTYRE, 1988, p. 354-365).

A busca de uma tal adequação como uma meta assumida pela pesquisa e não como construída a partir dos resultados efetivamente atingidos requer, para MacIntyre, uma compreensão substantiva de verdade, que impede toda redução da verdade à mera redundância, à expediência pragmática ou à noção de asserção justificada (cf. MACINTYRE, 2006b, p. 54-61; 2006c, p. 207-208)41: em cada um desses casos, há uma relativização da verdade ao contexto discursivo em pauta. Em vista da multiplicidade, sincrônica e diacrônica, de tais contextos, a solução terá de ser ou bem uma noção de racionalidade e de progresso racional divorciada da verdade ou bem uma noção de verdade “localizada” como no “realismo interno” de Putnam (cf. PUTNAM, 1990; 1991, p. 113-116)42. A ideia, porém, de uma pesquisa concebida como empenho comunitário que constitui uma atividade conforme a fins que transcendem os esforços de seus participantes a um tempo exige uma compreensão mais robusta de verdade e é pré-condição de uma confrontação racional de tradições segundo as linhas do programa macintyreano.

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Autor(a) para correspondência: Alberto Leopoldo Batista Neto, Av. Rio Branco, 725, 89300-000, Caicó – RN, Brasil, albertolbneto@yahoo.com.br

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