Artigos
Russell e a análise proposicional
Russell’s propositional analysis
Russell e a análise proposicional
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 2, pp. 258-280, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 23 Março 2020
Aprovação: 25 Maio 2020
Resumo: O presente artigo explica o que é e como funciona o método de análise lógica de Russell no contexto do atomismo lógico, apontando os objetivos e preceitos que ele leva em conta quando se propõe a fazer análises proposicionais. Após explorar o desenvolvimento geral da análise em sua obra, examinamos dois exemplos de análise proposicional: o de proposições relacionais e o de proposições que contêm descrições. Nos dois casos, notamos que Russell busca romper com uma lógica restrita à forma sujeito-predicado, que ele pensava ser a origem de uma gramática defectiva e, por isso, também de muitos dos problemas metafísicos tradicionais. Neste sentido, presumindo que pode haver uma ampla variedade de formas, Russell pensa que o objetivo da análise seria justamente identificar qual é a forma lógica e quais são os constituintes de uma proposição, o que serviria para desfazer mal-entendidos da linguagem e dissolver problemas metafísicos. Portanto, no presente artigo, detalhamos sob quais preceitos teóricos Russell realiza esse objetivo nos dois exemplos especificados.
Palavras-chave: Russell, Atomismo lógico, Análise proposicional.
Abstract: The present paper explains what Russell’s method of logical analysis is and how it works in the context of logical atomism, pointing out the objectives and precepts that he considers when he analyzes propositions. After exploring the general development of analysis in his work, I examine two examples of propositional analysis: that of relational propositions and that of propositions which contain descriptions. In both cases, I have noted that Russell seeks to break with a logic which was restricted to the subject-predicate form, once he thought it was the origin of a defective grammar and, thus, also of many of the traditional metaphysical problems. In this sense, assuming that there may be a wide variety of forms, he says that the objective of the analysis would be precisely to identify what is the logical form and what are the constituents of a proposition, which would serve to bring in evidence the misunderstandings of language and so to dissolve metaphysical problems. Therefore, in the present paper, I detail under which theoretical precepts Russell accomplishes this goal in the two specified examples.
Keywords: Russell, Logical atomism, Propositional analysis.
Considerações iniciais
O presente artigo explica o que é e como funciona o método de análise lógica de Russell no contexto do atomismo lógico (entre os anos de1905 e 1918), apontando os objetivos e preceitos teóricos que ele leva em conta quando se propõe a fazer análises proposicionais. Começamos explorando os aspectos gerais de sua noção de análise; depois, examinamos como ela atravessa sua obra. Então, finalmente, olhamos para o contexto do atomismo lógico, examinando dois exemplos de análise proposicional: o de proposições relacionais e o de proposições que contêm descrições.
Após uma ruptura com a filosofia de Kant e Hegel., Russell passa a nutrir um grande entusiasmo pela análise lógica como ponto de partida. e, ao mesmo tempo, como marca própria da filosofia. Em um sentido bem amplo, a análise consiste em “passar de coisas óbvias, vagas, ambíguas, das quais nós parecemos ter alguma certeza, até a alguma coisa precisa, clara, definida, que encontramos envolvida na coisa vaga da qual partimos” (RUSSELL, 1956, p. 179). Russell propõe a análise de proposições, de fatos, do espaço, do tempo, do infinito, da mente e de inúmeras outras coisas comumente sugeridas como objeto de investigações filosóficas. E a maneira como ele emprega a análise em cada um destes casos é um tanto quanto diferente. Quando faz uma análise, o que Russell sempre busca é, de uma forma geral esclarecer o que são as coisas analisadas através da identificação de suas partes mais simples, compreendendo, de antemão, que essas coisas possuem uma complexidade inerente. No entanto, Russell não se dedicou a explicar o que é, exatamente, a análise enquanto método, nem a apontar e esquematizar as sutilezas das diferentes aplicações que ela assume em cada caso específico. O que temos, na obra de Russell, são considerações espalhadas que, aqui, tentamos reunir para ter uma ideia mais clara de como funciona este método, principalmente quando ele é empregado para a análise de proposições.
A análise aparece na filosofia de Russell como uma reação a um movimento idealista de vertente hegeliana. Este movimento entendia que a realidade é um todo indivisível e que, portanto, as divisões que notamos não passariam senão de divisões irreais, fictícias, advindas do modo pelo qual nós experienciamos a realidade. Russell recusa que a análise seja uma espécie de “falsificação”., de distorção do real, como se o processo de decomposição nos afastasse da compreensão daquilo que é analisado. Ele reivindica a análise como método – ou processo. – legítimo para a filosofia. Para frisar sua oposição ao idealismo, no início, em 1911, Russell opta por chamar a sua filosofia de “realismo analítico”. Ele diz que ela é “realista, uma vez que defende que há entidades não-mentais e que as relações cognitivas são relações externas, que estabelecem uma ligação direta entre o sujeito e um objeto que pode ser não-mental.”(RUSSELL, 1992, p. 410); e “analítica, uma vez que defende que a existência do complexo depende da existência do simples, e não vice-versa, e que o constituinte de um complexo é [...] absolutamente idêntico a si mesmo quando não consideramos suas relações” (RUSSELL, 1992, p. 410).
Mais tarde, contudo, ele passa a chamá-la de “atomismo lógico”, tirando a palavra “realismo” do foco e cada vez mais buscando moderar o peso da metafísica em sua filosofia. Em 1918, em The Philosophy of Logical Atomism (doravante PLA), a palavra “realismo”, como título de sua filosofia, já havia sido posta de lado, mas o vestígio realista ainda podia ser notado ali. Em 1924, por fim, Russell defende que o fundamental na filosofia é a lógica, e que as escolas deveriam ser caracterizadas mais pela lógica do que pela metafísica. Assim, ele diz que importa pouco se a filosofia dele é realista, visto que ele poderia mudar de posição quanto a isso deixando intocável as doutrinas que ele considerava mais fundamentais. E neste sentido, ele afirma que a lógica dele “é atômica, e é esse aspecto que eu gostaria de enfatizar. Portanto, prefiro descrever minha filosofia como ‘atomismo lógico’, e não como ‘realismo’, com ou sem algum adjetivo prefixado”. (RUSSELL, 1956, p. 126)
A análise também é caracterizada por Russell como um processo de retorno às premissas lógicas mais fundamentais (BEANEY, 2018, seção 6). Isso se dá em 1907, junto às aspirações de seu projeto logicista que o levou ao Principia Mathematica (doravante PM). Todavia, a concepção de análise como decomposição de um complexo representa melhor aquilo que nos interessa aqui, pois é assim que Russell entende a análise proposicional. Assim, após essa caracterização do sentido mais geral da análise, buscaremos compreender como a análise proposicional atravessa a obra de Russell e, mais detidamente, como ela se dá entre 1905-1918.
A análise de conceitos ou de proposições não é uma prerrogativa da filosofia de Russell. Se levamos em conta uma definição bastante abrangente de análise conceitual e proposicional, somos capazes de apontar uma infinidade de exemplos na história da filosofia. Salles (2018) traz uma reflexão pertinente quanto a este ponto. Ele diz:
Com a noção de ‘análise’ (esse vago procedimento de reescrita conceitual ou, mais simplesmente, de tornar claros e unívocos os significados das palavras correntes), poderíamos listar posições muito diversas, cuja identidade dificilmente cifraríamos em uma definição ou em preceitos metodológicos comuns, mas cuja semelhança de família se impõe, não sendo menos forte a semelhança por ser cada vez maior a variedade dos seres apresentados. (SALLES, 2018, p. 47)
Portanto, tomando a análise em seu sentido mais amplo (e, logo, mais vago), é claro que seria possível, se quiséssemos, listar uma série de vozes dissonantes sobre o assunto. E, no limite, poderíamos dizer que o seu surgimento é bastante longínquo, não tendo como marco a filosofia de Russell ou, mais amplamente, a filosofia analítica.. Russell mesmo reconhece que vários filósofos propuseram, antes dele, diversos exemplos de análise, muito embora ele não concordasse com os resultados apresentados. Ora, que os resultados das análises tenham sido supostamente equivocados, por mais vasto que sejam os exemplos de equívocos, isso não implica necessariamente que o método, em si, é equivocado. Russell reconhece erros, inclusive, em suas próprias análises, e defende que é da própria natureza da análise que ela esteja sujeita a erros; mas ele não pensa que isso significa que devemos renunciar a ela, e sim que devemos aprimorá-la, tanto o quanto isso estiver a nosso alcance.
Russell aprimora a análise proposicional com a sua teoria das descrições. Antes desta teoria, ele compreendia que cada unidade gramatical da sentença deveria significar uma coisa existente. Uma importante questão para a análise de uma proposição é decidir em quantas partes ela deve ser decomposta, ou seja, é decidir quantas partes logicamente mais simples e autônomas uma proposição possui. O guia que Russell utilizava para decidir sobre isso era, em grande medida, a gramática da proposição. Ele assumia que as unidades gramaticais correspondiam a entidades reais, a constituintes que existem no mundo. Por exemplo, ele acreditava até mesmo que o artigo “the” (“o” ou “a”, em português) deveria denotar algum tipo de objeto “que os lógicos esperariam encontrar em um mundo platônico”.. Com o desenvolvimento da teoria das descrições, Russell abandona esta concepção, enxugando a sua ontologia e fazendo com que a expectativa sobre os resultados de suas análises mudasse significativamente. Russell passa a defender, por exemplo, que o sujeito gramatical de uma proposição não é necessariamente idêntico ao sujeito lógico, e, com isso, ele abandona a ideia de que a gramática é um guia seguro para a análise da proposição. Veremos isso mais adiante, quando abordaremos a análise das proposições que contêm descrições definidas.
Dois exemplos se mostram especialmente importantes para a compreensão do método de análise de Russell quando aplicado a proposições. Um é o que acabamos de mencionar, que é a análise de proposições que contêm descrições definidas, então considerada um marco da análise para a tradição analítica. O outro é a análise de proposições relacionais, de onde surge pela primeira vez a crítica de Russell à preeminência da forma sujeito-predicado. Consideramos estes dois exemplos os mais importantes, pois são os que mais fizeram avançar a lógica e a teoria do conhecimento de Russell e, também, os que deixaram legados perenes para novas filosofias da tradição analítica.
Antes, queremos chamar a atenção para uma característica importante da análise proposicional na filosofia de Russell. Russell não considera expedientes da linguagem como ordens ou perguntas em suas análises, mas somente sentenças declarativas, que podem ser verdadeiras ou falsas. Isso, porque, dentre as maiores ambições de seu projeto filosófico, está o interesse pela explicação do que é a verdade (bem como do que é a falsidade). Algo que Russell admite desde o início, e que ele jamais renuncia, é que a verdade é uma espécie de correspondência entre proposição e fato, que uma proposição é dita verdadeira quando ela tem uma espécie de correspondência com um fato do mundo. Essa concepção se mantém firme na filosofia de Russell, apesar de haver mudanças sobre o que ele entende por “fato” e “proposição”, e sobre qual seria a espécie de correspondência que há entre eles.
Aqui, uma nota se faz oportuna sobre a distinção que Russell faz entre sentenças e proposições. No PM, buscando explicar o que é a proposição e qual é a sua condição de formação (que seria uma atitude judicativa desempenhada pelo sujeito), Russell separa o que é, propriamente, uma proposição, e o que é a expressão que a exprime.. Já em PLA, ele diz que a proposição “é a sentença no indicativo, a sentença asserindo alguma coisa, não questionando, nem comandando ou desejando”.. Em My Philosophical Development (doravante MPD), ele diz que “Há, primeiro, a sentença; depois, aquilo que é comum entre as sentenças em idiomas diferentes, que dizem todas a mesma coisa. A esta mesma coisa, eu chamo de proposição” (RUSSELL, 1959, p. 182). Ou seja, em resumo, Russell entende que a sentença é aquilo que, de maneira assertiva, exprime uma proposição; é uma concatenação de palavras que, quando afirmada (não questionada, ou desejada etc.) exprime uma proposição.
Podemos confrontar o que Russell diz com a distinção que hoje parece bem aceita entre enunciados, sentenças e proposições. Dutra (2008) diz que “As noções mais aceitas são as de que uma sentença é uma sequência de termos que segue as regras gramaticais de determinada língua”; sobre o enunciado, este seria “o ato de um falante de dizer algo por meio de uma sentença”; e a proposição seria “o significado ou a ideia que pode ser comunicada por diferentes sentenças que são consideradas sinônimas(DUTRA, 2008, p. 18).Levando isso em conta, esclarecemos os dois níveis que Russell propõe a respeito das sentenças e das proposições. Podemos dizer que Russell entende que as sentenças declarativas são uma espécie de camada mais superficial da linguagem, como se elas fossem o traje das proposições. Ou seja, quando dizemos que Russell analisa proposições, talvez fosse mais apropriado dizer que, na verdade, ele analisa as sentenças que exprimem proposições com o intuito de identificar, com maior clareza, qual a proposição está sendo realmente expressa pela sentença. Mas não faremos sempre todo esse rodeio, sob pena de tornar o texto demasiadamente prolixo. Portanto, o leitor deve estar avisado de que, nas próximas páginas, só destacaremos as sutilezas que separam as noções de proposição, sentença e enunciado se for mesmo necessário que elas estejam em evidência; se elas forem mesmo essenciais para a justeza do tratamento de uma determinada questão. No mais das vezes, não encontraremos prejuízos se tomarmos “sentença” e “enunciado” simplesmente por “proposição”, como, inclusive, o próprio Russell costumava fazer.
Fases da análise na obra de Russell
Por volta de 1917, explicar a relação entre a linguagem e os fatos tornou-se um problema destacado na filosofia de Russell. Até este período, Russell compreendia a linguagem como algo transparente, isto é, nas palavras dele, “como um meio que poderia ser empregado sem que se lhe prestasse a atenção” (RUSSELL, 1959, p. 4). Isso muda quando ele começa a explorar uma concepção behaviorista do significado. Após 1918, Russell passa a considerar, pelo menos em parte, que a concepção behaviorista do significado seria interessante, e que o behaviorismo deveria ser tomado não como uma doutrina metafísica, mas como um princípio de método (RUSSELL, 1956, p. 291).
Nesta forma de conduzir a reflexão sobre a natureza do significado, Russell se depara com novas dificuldades linguísticas antes não exploradas. E então, o vocabulário técnico de sua filosofia do atomismo lógico é colocado sob revisão. Portanto, o ano de 1918 parece ter sido um divisor de águas em sua filosofia no que concerne a sua concepção de linguagem e sobre a origem do significado das palavras. A seguir, explicamos como Russell entendia a relação entre as palavras e aquilo que ela significa, e suas reflexões sobre o significado mesmo de significado, antes e depois de 1918.
O interesse de Russell pelo behaviorismo tem uma motivação antimetafísica. Em 1918, logo após a publicação das conferências sobre o atomismo lógico, ele coloca em xeque as suas posições sobre o realismo pautado no dualismo sujeito-objeto e passa a considerar o monismo neutro de Willian James, antes por ele recusado. Essa mudança acompanha a sua renuncia à noção de familiaridade. O conhecimento por familiaridade era concebido por Russell, no essencial, como uma relação entre duas entidades: sujeito e objeto. E sobre isso, podemos dizer que ela comporta um componente metafísico. Isso não pode ser negligenciado se quisermos fazer uma leitura correta sobre o desenvolvimento da filosofia de Russell e sobre os diferentes resultados esperados pela sua análise da linguagem ao longo do tempo.
A renúncia à noção de familiaridade acontece pela seguinte razão. Russell sentia certo incômodo em admitir, em sua teoria do conhecimento, um sujeito que não pode ser conhecido diretamente, por familiaridade. Isso seria um atestado de adesão a uma metafísica tradicional, que ele mesmo queria combater. Não era de seu interesse postular a existência de um sujeito, sem que essa existência pudesse ser conhecida, mas apenas inferida ou concebida como uma ficção (ou construção) lógica. Russell até chegou a defender, por um breve período, que o sujeito poderia ser conhecido por familiaridade. Isso é ditto em 1911, em Knowledge by Acquaintance and Knowledge by Description. Por exemplo, ele chegou a afirmar que, quando alguém diz “eu tenho familiaridade com .”, a palavra “eu”, neste contexto, seria um nome próprio que denota diretamente o objeto eu (o sujeito); portanto, o eu seria algo que é conhecido por familiaridade. Mas, depois, ele recua, reconhecendo que não tinha argumentos conclusivos para defender isso.
Russell carrega esse incômodo até 1918, quando decide que talvez fosse melhor evitar qualquer expediente suspeitamente metafísico. Assim, ele passa a recusar o realismo e adere ao monismo neutro, o que significa que ele passa a não se preocupar tanto em estabelecer uma distinção de natureza entre sujeito e objeto. Depois disso, ele não emprega mais o termo “familiaridade”; e, a partir desse momento, uma mudança expressiva acontece na maneira como ele se interessa pela linguagem. Sem poder explicar inteiramente o significado das palavras e da relação dessas palavras com o mundo através da noção de familiaridade, Russell começa a dar atenção aos diversos usos da linguagem e aos significados de “significado” em contextos diversos de nossas práticas linguísticas.
Nomes próprios e descrições são terminologias que se preservam mesmo após essa mudança. Todavia, o nome próprio já não é mais encarado como um símbolo simples que denota algo que é simples por natureza, que é conhecido por familiaridade. Ou seja, nesta nova fase de Russell, a simplicidade daquilo que é denotado pelo nome próprio não tem mais um fundamento metafísico-epistemológico. A análise proposicional, portanto, não visaria mais alcançar os “átomos lógicos” da realidade, no sentido de que ela não esperaria encontrar nomes próprios para coisas que seriam simples por natureza.
Num momento anterior, Russell entendia que a análise proposicional deveria considerar como princípio epistemológico que “toda proposição que podemos entender deve ser composta completamente de constituintes com os quais nós estamos familiarizados” (RUSSELL, 1918, p. 219). O princípio é deixado para trás após 1918, e Russell passa até a admitir que a análise de uma proposição poderia proceder ad infinitum, sem que isso necessariamente tivesse consequências devastadoras para a sua ideia de análise como método para o conhecimento filosófico. O ponto é que, depois de 1918, Russell deixa de se preocupar com a metafísica do simples. Na nova fase, a análise não busca mais alcançar aquilo que é simples por natureza; ou seja, não busca mais alcançar os constituintes últimos da realidade, mas sim aquilo que pode ser corretamente tomado como simples diante de circunstâncias adequadas. Em 1924, em LA, Russell diz:
Quando falo do “simples”, devo explicar que estou falando de algo não experimentado como tal, mas apenas conhecido inferencialmente como o limite da análise. É bem possível que [...] a necessidade de assumir o simples possa ser evitada. Uma linguagem lógica não levará a erros se todos os seus símbolos simples (ou seja, aqueles que não possuem quaisquer partes que são símbolos, ou qualquer estrutura significativa) representarem objetos de algum tipo, mesmo que estes objetos não sejam simples. (RUSSELL, 1956, p. 337)
A adesão de Russell ao monismo neutro e a sua ruptura com o realismo, portanto, está associada ao desaparecimento dos constituintes últimos da realidade – da noção de átomo lógico –, ao mesmo tempo em que também desaparece a noção da familiaridade, que seria a explicação sobre o modo pelo qual o sujeito conheceria essas coisas. O desaparecimento da noção de familiaridade leva junto com ela as noções de “sujeito” e “consciência” como elas eram comumente empregadas, exigindo uma redefinição destas noções. Neste processo de redefinir as palavras, Russell, então, passa a fazer considerações sobre o behaviorismo, algo que marca a nova fase de sua filosofia.
Russell entende que o behaviorismo está vinculado ao monismo neutro. Ele diz que “o behaviorismo pertence ao monismo neutro” (RUSSELL, 1956, p. 279), e o define como “a defesa de que os fenômenos ‘mentais’, embora possam existir, não são passíveis de tratamento científico, pois cada um deles só pode ser observado por um [único] observador” (RUSSELL, 1956, p. 291). Entendido desta forma, o behaviorismo implica uma mudança expressiva na explicação de Russell para o significado das palavras. Ele diz: “Como a linguagem é um fenômeno observável, e como ela tem uma propriedade que chamamos de ‘significado’, é essencial que o behaviorismo forneça uma explicação do ‘significado’ que não introduza nada que só possa ser conhecido por meio da introspecção” (RUSSELL, 1956, p. 291). Apesar disso, ele compreende que uma correta e completa teoria sobre o significado deve poder, em alguma medida, levar em conta a introspecção. Por isso que ele entende que o behaviorismo não deve ser, propriamente, tomado como doutrina metafísica. Ele pensa que a abordagem behaviorista do significado é interessante, mas que ela não deve ser adotada com a recusa completa e antecipada da introspecção.
Nesta fase, Russell começa a fazer considerações até mesmo sobre o que seria uma palavra sem considerar o que ela significa, ou seja, sobre o que seria uma palavra apenas como uma coisa física, como um aglomerado de sons proferidos e escutados, ou como riscos em um pedaço de papel. Isso, contudo – ele alerta – não faria parte da definição de palavra, visto que é o significado da palavra que a distingue de outros conjuntos de sons e riscos (RUSSELL, 1921, p. 189). Então, por que Russell passa a fazer esse tipo de consideração? Se não importa à palavra a sua mera expressão sensível, mas sim, principalmente, aquilo que essa expressão significa, por que fazer longas considerações que não tocam diretamente esse ponto mais essencial? Ora, uma vez que a noção de familiaridade tenha deixado de servir como o fundamento último para o significado de toda e qualquer palavra que integra uma proposição significativa, as questões sobre o que é, exatamente, o significado de uma palavra (e como ele se estabelece) ganham lugar destacado na filosofia de Russell, agora, sob uma perspectiva behaviorista. As relações de causa e efeito entre o falante e aquele que escuta passam a ser levadas em conta na investigação sobre o significado de uma palavra. E para examinar essas relações de causa e efeito, seria preciso considerar, a princípio, a palavra como coisa física, pois isso é o que se encontra ao nosso alcance de imediato; é só depois disso que podemos, então, avançar e alcançar alguma clareza sobre o significado das palavras.
Ou seja, o que Russell quer dizer quando afirma que a linguagem, para ele, já não é mais tão transparente é que não podemos supor que certas palavras têm um significado preciso, e que esse significado pode ser completamente explicado pela referência a coisas que conhecemos por familiaridade. Eis o ponto em que Russell rompe com o paradigma referencial do significado. O significado das palavras passa então a ser por ele concebido com certo grau de vagueza; e a explicação desse significado passa a levar em conta as relações de causa e efeito presentes na comunicação. A passagem a seguir, do livro The Analysis of Mind (1921), ilustra muito bem essa nova fase de Russell sobre a investigação do que significa o significado das palavras. Ele diz:
Para que um homem entenda uma palavra, não é necessário que ele “saiba o que ela significa”, no sentido em que se possa dizer “esta palavra significa isso e isso”. Entender palavras não consiste em conhecer as suas definições de dicionário, ou ser capaz de especificar os objetos aos quais elas são apropriadas. Tal entendimento pode pertencer a lexicógrafos ou a estudantes, mas não aos meros mortais da vida cotidiana. Entender a linguagem é mais como entender o [jogo] críquete: é uma questão de hábito, adquiridos individualmente e corretamente pressupostos nos outros. Dizer que uma palavra tem um significado não é dizer que aqueles que a usam corretamente já tenham pensado sobre o que ela significa. O uso da palavra vem primeiro, e o significado deve ser destilado dele por observação e análise. (RUSSELL, 1921, p. 197)
Ou seja, fica claro que, nesta nova fase, a análise proposicional de Russell tem objetivos e preceitos teóricos diferente, e os seus resultados esperados também têm características diferentes. Antes, Russell considerava, por exemplo, que a “brancura” era uma espécie de objeto, um universal cuja existência independe de um sujeito, e considerava que somente uma familiaridade com a “brancura” poderia nos permitir entender o correto significado da palavra “branco” quando ouvimos, por exemplo, “Esta mesa é branca”. Na nova fase, Russell já não explica o significado da palavra “branco” dessa maneira. Como ele diz, ele não se preocupa em especificar os objetos aos quais as palavras são apropriadas. Aliás, discutir se “há um universal chamado ‘brancura’, ou se as coisas brancas devem ser definidas como aquelas que têm uma certa espécie de similaridade com uma coisa padrão” (RUSSELL, 1921, p. 196) já não é uma questão que interessa a Russell, e não só ele não se interessa por essa questão, como também ele a considera estritamente insolúvel.
Na nova fase, para explicar o que significa o significado de uma palavra, Russell lista diferentes maneiras pelas quais nós as usamos e as entendemos. Por exemplo, (i) quando em que certas ocasiões usamos a palavra apropriadamente; (ii) quando ouvimos uma palavra e agimos apropriadamente; (iii) quando associamos a palavra com outra que tem o efeito apropriado sobre o comportamento e (iv) quando a palavra é aprendida pela primeira vez e podemos associá-la a um objeto, que é o que ela “significa” (RUSSELL, 1921, p. 199-200). No que diz respeito a estes quatro exemplos, Russell defende que o significado das palavras pode ser corretamente explicado pelo behaviorismo. Todavia, ele aponta que há pelo menos dois outros exemplos que escapam a uma tal explicação. É (i) quando as palavras podem ser usadas para descrever ou evocar uma “imagem-recordação”, e (ii) quando elas podem ser usadas para descrever ou criar uma “imagem-imaginação” (RUSSELL, 1921, p. 202). Ou seja, em situações onde queremos comunicar uma imagem dada na imaginação, ou uma imagem dada na memória, o behaviorismo apresenta limitações para explicar o significado das palavras que usamos. Por isso, Russell chama a atenção para o fato de que além do uso demonstrativo das palavras, que pode ser bem explicado pelo behaviorismo, existem também os usos narrativos e imaginativos, que demandam uma explicação diferente. Por isso ele não faz uma adesão completa ao behaviorismo. E, ademais, ele compreendia que negar que a imaginação e a memória tenham um papel na explicação do significado de algumas palavras estaria fora de cogitação.
Qualquer que seja a explicação do “significado” nos usos narrativo e imaginativo das palavras, fica claro que a análise, após o atomismo lógico de 1918, já não tem a pretensão de encontrar símbolos logicamente simples da linguagem que denotam objetos também simples da realidade. Russell passa a admitir uma noção escorregadia de significado, que considera a pluralidade de usos das palavras; e, por isso, a primazia da nomeação ou denotação como fundamento último para o significado das palavras é superada. Procurar objetos simples que são denotados por nomes simples já não é tarefa da análise na nova fase de Russell. Em sua nova fase, parte da análise consiste mais em reconhecer e distinguir os múltiplos usos da linguagem, e fornecer uma explicação, em grande medida psicológica, para o significado de “significado” em cada um destes diferentes usos.
Há uma passagem de The Analysis of Mind que resume bem como a ruptura de Russell com o paradigma referencial redesenha a sua concepção de linguagem e, também, os preceitos antes adotados em sua filosofia. Ele diz que, “a tirania das palavras tradicionais é perigosa, e devemos estar prevenidos contra o perigo de supor que a gramática é a chave da metafísica, ou que a estrutura de uma frase corresponde exatamente à estrutura do fato que ela afirma” (RUSSELL, 1921, p. 212). Apesar de deixar de pressupor uma espécie de correspondência exata entre proposição e fato, ou seja, de pressupor, por exemplo, que há um mesmo número de elementos simples na proposição e no fato por ela afirmado (e que, por isso, ambas compartilham uma forma lógica idêntica), Russell nunca deixa de considerar que a linguagem representa algo que é diferente dela mesma, e que pode ser chamado de “fato”. Neste sentido, ao representar um fato, a proposição teria sim alguma espécie de correspondência com este fato. Russell apenas deixa de considerar que a relação da linguagem com o fato deve pressupor uma ligação ponto a ponto entre coisas que seriam simples por natureza.
Ou seja, Russell deixa de pressupor que a relação dos símbolos logicamente simples da proposição com as partes do fato se explica através de uma única noção de significado, então explicada pela noção de familiaridade. E, com isso, ele dispensa a discussão sobre a metafísica dos constituintes dos fatos. Portanto, ao romper com o paradigma referencial do significado, Russell revê a sua posição sobre que tipos de relações a proposição tem com o fato, mas jamais abandona a ideia de que proposições verdadeiras correspondem a fatos extralinguísticos. Em MPD, Russell diz que “nunca conseguiu sentir simpatia por aqueles que tratam a linguagem como uma província autônoma” (RUSSELL, 1959, p. 14), ou seja, como algo que poderia ser estudado sem que a sua relação com a realidade extralinguística fosse colocada em pauta. E isso parece nunca ter se perdido em sua filosofia. Russell sempre buscou preservar a ideia de que “o essencial sobre a linguagem é que ela tem significado, ou seja, que está relacionada a algo diferente de si mesma, que é, em geral, não linguístico” (RUSSELL, 1959, p. 14).
Depois de esclarecer como os objetivos e alguns preceitos teóricos da análise proposicional são modificados no desenvolvimento da filosofia Russell, agora, voltaremos a atenção ao contexto do atomismo lógico de 1918, explorando detidamente dois exemplos de análise lógica da proposição. Primeiro, abordaremos a análise das proposições relacionais; depois, a análise das proposições que contêm descrições.
A análise de proposições relacionais
Nesta sessão, abordamos a análise que Russell faz das proposições ditas relacionais, que são aquelas que relacionam duas ou mais coisas. Começaremos pela sua crítica à maneira como a análise das proposições relacionais é feita por Leibniz. Em A Critical Exposition of the Philosophy of Leibniz (doravante CEPL), Russell sugere que há um erro lógico muito difundido na filosofia moderna, que é considerar que toda proposição verdadeira tem a forma sujeito-predicado. Leibniz – diz ele – seria um exemplo de autor que teria cometido este erro. Mesmo quando faz a análise das proposições relacionais, Leibniz tenta reduzi-las à forma sujeito-predicado. Russell aponta alguns problemas lógicos decorrentes disso, ao mesmo tempo em que faz considerações sobre suas novas posições filosóficas sobre as relações. Foi nos estudos sobre Leibniz que Russell encontrou a ocasião para exemplificar essas posições, então já afastadas do idealismo em que ele esteve imerso durante os anos iniciais de sua formação (RUSSELL, 1959, p. 48). Por isso é que Leibniz é considerado um autor importante para Russell, e é, também o principal alvo de suas críticas à preeminência da forma sujeito-predicado na filosofia moderna.
Em CEPL, Russell defende que o compromisso de Leibniz com a ideia de que toda proposição verdadeira atribui um predicado a um sujeito impõe a condição de que todas as relações podem ser reduzidas a adjetivos. Contra isso, ele mostra que alguns problemas de lógica aparecem quando tentamos reduzir as relações a adjetivos; e, além disso, ele critica o modo como Leibniz entende a natureza das relações, como se elas fossem meramente “o trabalho da mente” e, ao mesmo tempo, como se todas as relações fizessem parte da natureza intrínseca dos termos que elas relacionam (aqui, temos resumida a doutrina das relações internas). Russell defende uma posição realista sobre as relações. Ou seja, segundo ele, as relações como “estar antes de”, “ser maior que”, “ser mais alto que” etc. existiriam com autonomia em relação a nossas mentes. Além disso, Russell defende que pelo menos algumas relações – para não dizer todas, sem que antes isso pudesse ser provado – são independentes dos termos que elas relacionam (aqui, temos resumida a doutrina das relações externas).
Alguns anos antes de escrever CEPL, Russell estava imerso em uma tradição idealista de origem hegeliana. Neste período, ele adotava uma doutrina das relações internas muito parecida com a de Leibniz. Ele mudou de concepção em 1898, por influência de Moore, que, neste período, estava à frente de um movimento de oposição ao idealismo britânico. O idealismo britânico era embasado por ideias advindas do idealismo alemão e defendido, por exemplo, por Bradley. Essa mudança se consolidou quando Russell começou a estudar Leibniz, em 1989, e pôde ver, ali, uma espécie de espelho côncavo, que refletia suas próprias posições idealistas de forma ampliada.
Ao estudar Leibniz, Russell diz ter enxergado melhor as suas próprias posições filosóficas. E, portanto, ao criticá-lo em CEPL, ele também estaria criticando a si mesmo, determinando, com isso, uma ruptura definitiva com o idealismo hegeliano (RUSSELL, 1959, p. 53). É então que ele passa a defender, por oposição a Leibniz, uma doutrina das relações externas e uma concepção realista sobre as relações. Griffin (2012) aponta que Russell não teria se dado conta de que, antes, como um filósofo idealista, ele adotava uma doutrina das relações internas, pois ele sequer discutia a questão das relações neste período. Ele somente teria se dado conta quando notou um problema na doutrina das relações internas em um artigo apresentado ao Cambridge Moral Sciences Club, logo depois de ele ter começado a ministrar um curso sobre Leibniz:
Até esse ponto, Russell não só não havia discutido a doutrina das relações internas, como também não havia a estabelecido nem identificado. Ela é simplesmente admitida, é uma suposição não reconhecida no centro de sua filosofia. De fato, a doutrina é declarada somente depois que é rejeitada. Ela é explicitamente declarada em “A Classificação das Relações”, um artigo que foi lido no Cambridge Moral Sciences Club em 27 de janeiro de 1899, logo após o início de suas aulas sobre Leibniz. No artigo, Russell não fornece um argumento contra ela, mas suas bases para rejeitá-la podem ser encontradas em partes do “Análise do Raciocínio Matemático”, que ele incorporou ao esboço de 1899-1900 de Os Princípios da Matemática. (GRIFFIN, 2012, p. 2-3)
Russell descreve a doutrina das relações internas como a doutrina que diz que toda relação está fundamentada na natureza dos termos relacionados. Por exemplo, se tomamos a proposição “. está à esquerda de .”, devemos entender, segundo a doutrina das relações internas, que a natureza de . é complexa e inclui a sua relação com .; e, da mesma maneira, devemos entender que a natureza de B é complexa e inclui a sua relação com A. Ora, como, presumivelmente, toda coisa tem alguma relação com outra coisa, disso podemos concluir que a natureza de qualquer coisa em particular pode ser descrita como tendo a mesma complexidade que o universo como um todo(KLEMENT, 2015, seção2.1).
Segundo Russell, esta parece ser, em termos gerais, a visão metafísica do idealismo. Ele defende que esta visão é uma consequência do compromisso com a concepção lógica de que toda proposição verdadeira é analítica e tem a forma sujeito-predicado. Ou seja, Russell pensa que há uma íntima ligação entre a adoção da forma lógica sujeito-predicado como a única forma legítima da proposição, a doutrina das relações internas e a visão metafísica de que as relações não são coisas reais e autônomas em relação a nossas mentes. Dessa maneira, para refutar o idealismo, Russell o ataca na raiz, que seria justamente a preeminência da forma sujeito-predicado. Ele defende que as proposições relacionais não devem ser analisadas sob a forma sujeito-predicado, pois, assim, algumas de suas propriedades lógicas fundamentais são suprimidas, dando origem a uma série de dificuldades lógicas, como, por exemplo, na definição de ordem. Ele mostra que o problema é mais claro quando analisamos as proposições relacionais que contêm relações assimétricas. Veremos, a seguir.
Em CEPL (e, também, em PM), Russell menciona uma carta de Leibniz à Clark, onde Leibniz analisa a razão entre duas linhas L e M. Russell aponta que esta passagem é importante, por que, ali, “a ideia monadista está colocada com admirável clareza”(RUSSELL, 1925, p. 222) e, também, por que ela mostra o compromisso de Leibniz com a preeminência da forma sujeito-predicado (RUSSELL, 1900, p. 31). Russell faz uma crítica à análise proposta por Leibniz, recusando que as relações possam sempre ser reduzidas a adjetivos. Em CEPL, as críticas de Russell são direcionadas, em maior medida, para as contradições internas da filosofia de Leibniz10. Em The Principles of Mathematics, por outro lado, vemos um Russell mais interessado em montar as bases de sua própria filosofia, e as suas críticas à Leibniz são mais direcionadas à análise das relações assimétricas, que já era, de alguma forma, abordada em CEPL, mas que, depois, aparece fazendo parte de um projeto autoral sobre a explicação de séries formais. Vejamos a passagem da carta de Leibniz citada por Russell:
A razão ou proporção entre duas linhas L e M podem ser concebidas de três maneiras diferentes; como uma razão da maior L para a menor M; como uma razão da menor M para a maior L; e, por último, como algo abstraído de ambos, isto é, como a razão entre L e M, sem considerar qual é o antecedente, ou qual é o consequente; qual é o sujeito, e qual é o objeto... Na primeira forma de considerá-los, a maior L, na segunda, a menor M, é o sujeito daquele acidente que os filósofos chamam de relação. Mas qual delas será o sujeito, na terceira maneira de considerá-los? Não se pode dizer que ambas, L e M juntas, são o sujeito de tal acidente; pois se assim for, devemos ter um acidente em dois sujeitos, com uma perna em um e outra perna no outro; o que é contrário à noção de acidentes. Portanto, devemos dizer que essa relação, na terceira maneira de considerá-la, está, na verdade, fora dos sujeitos; mas não sendo uma substância, nem um acidente, deve ser uma mera coisa ideal, cuja consideração é, no entanto, útil. (RUSSELL, 1900, p. 13; RUSSELL, 1925, p. 222)
Aqui, Leibniz apresenta três maneiras possíveis de se conceber a razão entre as linhas L e M. No primeiro caso, ele considera a razão entre “a maior L” e “a menor M”. No segundo, ele considera a razão entre “a menor M” e “a maior L”. No terceiro, ele considera a razão entre L e M sem que seja considerado quem é o antecedente e quem é o consequente, quem é o sujeito e quem é o objeto. Na análise do primeiro caso, “a maior L” é tomada como sujeito do “acidente que os filósofos chamam de relação”, enquanto que, na análise do segundo, “a menor M” assume este papel. Na análise do terceiro caso, Leibniz diz que “a maior L” e “a menor M” não podem ser, ambas, tomadas como sujeito de um mesmo acidente, pois isso “é contrário à noção de acidente”. Assim, ele conclui que a relação de razão entre duas linhas não pode ser nem acidente, nem sujeito, e que, então, ela deve ser “uma coisa meramente ideal”, ou seja, algo que está apenas em nossas mentes.
Russell não concorda com a análise de Leibniz, nem com a sua conclusão acerca da natureza das relações. Ele entende que a conclusão de Leibniz sobre a natureza das relações é consequência de seu compromisso com a preeminência da forma sujeito-predicado e defende que, com a análise da razão entre as linhas L e M, Leibniz “pareceu ter se dado conta de que a relação é algo distinto e independente do sujeito e do acidente”(RUSSELL, 1900, p. 31); mas que, como ele pressupõe que proposições relacionais precisam sempre ser reduzidas à forma sujeito-predicado, e que somente proposições da forma sujeito-predicado são legítimas, ele pensou que não haveria lugar para as relações dentre as coisas reais. Ou seja, Russell defende que, se nós não nos obrigamos a sempre reduzir proposições relacionais à forma sujeito-predicado, então não precisamos necessariamente concluir que as relações são coisas que existem apenas em nossas mentes. Por isso, Russell não vê problemas em tomar as relações como coisas reais11 – ele admite que as relações podem ser reais – e, ademais, ele passa a defender uma doutrina das relações externas, compreendendo que pelo menos algumas relações são independentes dos termos que elas relacionam. Vejamos, portanto, como ele conduz a crítica à análise de Leibniz e como, a partir disso, como ele passa a defender uma posição realista e externalista sobre as relações.
Russell interpreta a análise de Leibniz da seguinte maneira: quando analisamos a proposição “L é maior que M” de acordo com a proposta de Leibniz, L deve ser tomada como sujeito, e a expressão “maior que M” deve ser tomada como adjetivo de L. Interpretando desta forma, Russell pensa que a proposta de Leibniz é errada, pois “é evidente” que “maior que M” é complexa, que há, aqui, pelo menos duas partes – “maior” e “M” – e que essas partes são essenciais (RUSSELL, 1937, §214). Ademais, ele argumenta que dizer, simplesmente, que L é “o maior” – “thegreater L” – não esclarece o significado da proposição “L é maior que M”, pois M poderia muito bem ser, também, “o maior”, no caso de haver outra linha menor do que M em questão. Segundo Russell, para ser claro, Leibniz deveria ter explicado como “o maior L” é relativo a M, ou seja, como, de alguma maneira, “o maior L” faz referência a M. Tentar fazer isso sob a forma sujeito-predicado – diz ele – é “meramente uma forma incômoda de descrever uma relação” (RUSSELL, 1937, §214).
Dando sequência à crítica, Russell apresenta a análise de Leibniz sob a seguinte representação simbólica:
É uma opinião comum, muitas vezes sustentada inconscientemente e empregada na argumentação, mesmo por aqueles que não a defendem explicitamente, que todas as proposições, em última análise, consistem em um sujeito e um predicado. Quando essa opinião é confrontada por uma proposição relacional, ela tem duas maneiras de lidar com tal proposição, das quais uma pode ser chamada monadística, e a outra, monista. Dada, digamos, a proposição aRb, onde R é alguma relação, a visão monadística vai analisa-la em duas proposições, que podemos chamar de ar. e br., que dão a . e ., respectivamente, adjetivos que supostamente seriam, juntos, equivalentes a R. A visão monista, ao contrário, considera a relação como uma propriedade do todo composto por . e ., e, assim, equivalente a uma proposição, que podemos denotar por (ab)r. Dessas visões, a primeira é representada por Leibniz e (no todo) por Lotze; a segunda, por Spinoza e o Sr. Bradley. Vamos examinar essas visões sucessivamente, como aplicadas a relações assimétricas; e, por uma questão de definição, tomemos as relações de maior e menor. (RUSSELL, 1925, p. 221)
Segundo Russell, Leibniz, Lotze, Spinoza e Bradley são exemplos de filósofos que adotam a ideia de que “toda proposição consiste, em última análise, de sujeito e predicado”. Contudo, eles apresentam propostas diferentes, pois enquanto os dois primeiros são monadistas, os dois últimos são monistas. De acordo com a proposta monadista, dada uma proposição da forma aRb, para analisá-la sob a forma sujeito-predicado, devemos separá-la em duas outras proposições ar. e br., de sorte que os adjetivos r. e r. (que são atributos de . e .) equivaleriam, conjuntamente, à relação .. De acordo com a proposta monista, a relação . é considerada como uma propriedade do todo composto por . e ., e, portanto, uma maneira de representar simbolicamente a proposição relacional, neste caso, poderia ser (ab)r. Russell defende que ambas as propostas estão erradas, pois as proposições relacionais que contêm relações assimétricas, se assim analisadas, não preservam todas as suas propriedades lógicas essenciais, o que implica problemas para uma correta definição puramente lógica de ordem.
Explicamos o que é uma relação assimétrica. Uma das grandes contribuições de Russell para a lógica é o seu trabalho sobre a lógica das relações, que aparece pela primeira vez em The classification of relations. Russell classifica as relações em dois grupos: (i) simétricas, não-simétricas e assimétricas; e (ii) transitivas, não-transitivas e intransitivas.
Uma relação simétrica é tal que quando se aplica de A para B, também se aplica, necessariamente, de B para A. Por exemplo, a relação de ser “parente” é simétrica, pois se A é “parente” de B, então B é necessariamente “parente” de A. O mesmo vale para a relação de “semelhança”. Se A é “semelhante” a B, necessariamente, B é “semelhante” a A. As relações que não são simétricas são chamadas de não-simétricas. Por exemplo, se A é “irmão” de B, não necessariamente B é “irmão” de A (pois poderia ser “irmã”). Uma relação assimétrica é tal que quando se aplica de A para B, nunca se aplica de B para A. As relações “pai”, “mãe”, “avô”, “avó” etc., as relações “antes”, “depois”, “maior”, “menor”, “direita”, “esquerda” são exemplos de relações assimétricas. Ora, se A é pai de B, necessariamente B não é pai de A.
Uma relação transitiva é tal que quando se aplica de A para B e de B para C, também se aplica de A para C, necessariamente. As relações “antes”, “depois”, “maior”, “menor”, “direita”, “esquerda” são todas transitivas. É não-transitiva toda relação que, quando se aplica de A para B e de B para C, não necessariamente se aplica A para C. Por exemplo, se A é “diferente” de B e B é “diferente” de C, não necessariamente A é “diferente” de C – pois A e C podem ser iguais. É intransitiva toda relação que quando se aplica de A para B e de B para C, nunca se aplica de A para C. A relação “pai” é intransitiva.
Russell aponta que as relações assimétricas são fundamentais para à noção de ordem. Ora, as relações “antes” e “depois” são relações sem as quais não podemos explicar a noção de ordem. Todavia, quando analisamos “. está antes de .” na proposta de Leibniz, a propriedade lógica de assimetria, que é essencial à proposição, parece ser dissipada. A análise de Leibniz pode até preservar, em alguns casos, as propriedades lógicas das relações que são simétricas, mas o problema é claro quanto às relações assimétricas. Ora, na proposta de Leibniz, a análise da proposição “. está antes de .” deve resultar em duas proposições que são verdadeiras12 e que descrevem, cada uma delas, uma substância diferente com o seu respectivo atributo. Podemos descrever essas duas novas proposições da seguinte maneira: “., o antecessor” e “., o sucessor”. Colocando-as no simbolismo proposto por Russell, temos: ar. e br.. A crítica de Russell é a seguinte: a análise proposta por Leibniz não explica corretamente a relação envolvida em “.está antes de .”, pois não mostra que há uma relação entre r. e r., entre “o antecessor” e “o sucessor”, nem que essa relação é assimétrica. Ora, não podemos conceber uma sucessão ordenada de termos simplesmente tomando “., o antecessor”, “., o sucessor”, “., o anterior”, etc. Temos que saber, relativo a qual termo, um é antecessor ou sucessor ao outro. Para dar conta da noção de ordem, a análise proposta por Leibniz precisaria mostrar que há uma relação entre r. e r., e, além do mais, que esta relação é assimétrica. Todavia, se assumimos que há uma relação R’ entre r. e r. e seguimos analisando essa relação à maneira de Leibniz, R’ deveria ser também desmembrada em dois atributos distintos e intrínsecos aos termos r. e r.. Assim, a proposta de análise leibniziana implica uma regressão ao infinito, que não permite explicar corretamente a noção de ordem.
Assim, Russell propõe que uma proposição que expressa uma relação entre duas coisas seja analisada em três partes, e que a sua forma seja representada simbolicamente por “aRb”, onde as letras minúsculas “.” e “.” representamos dois termos relacionados, e a letra maiúscula “.” representa a relação. Segundo Russell, esta análise dá base para uma definição precisa e correta de ordem, uma vez que ela permite que preservemos as propriedades lógicas das relações assimétricas. Vejamos esta definição de ordem, tal como ela está colocada em Introduction to Mathematical Philosophy:
Dada qualquer relação serial, digamos P, diremos que, com respeito a essa relação, x “precede” y se x tiver a relação P com y, que escreveremos “xPy” para abreviar. As três características que P deve possuir para ser serial são:
(1) Não devemos nunca ter xPx, isto é, nenhum termo deve preceder a si mesmo.
(2) P. deve implicar P, i.e., se x precede y e y precede z, x deve preceder z.
(3) Se x e y forem dois termos diferentes do campo de P, devemos ter xPy ou yPx, isto é, um dos dois deve preceder o outro.
O leitor pode se convencer facilmente de que, quando essas três propriedades são encontradas numa relação de ordenação, as características que esperamos das séries poderão também ser encontradas, e vice-versa. É legítimo, portanto, tomar o que foi mencionado como uma definição de ordem ou série. Cabe ressaltar que a definição foi levada a cabo em termos puramente lógicos. (RUSSELL, 1993, p. 34)
As relações seriais, segundo a classificação de Russell, são assimétricas, transitivas e conexas13. Ele diz que “onde quer que haja uma ordem, é possível encontrar alguma relação que possua essas três propriedades, gerando-a” (RUSSELL, 1993, p. 32). E, por isso, as ordens de magnitude, como a que há na proposição “L é maior que M”, também envolvem uma relação assimétrica, transitiva e conexa. Portanto, somente uma análise das proposições relacionais que simbolize as relações entre coisas sem se dobrar à imposição da forma sujeito-predicado pode permitir uma correta definição de ordem. Nota-se que, sem fazer recurso à forma aRb, Russell não poderia apresentar uma definição de ordem em termos puramente lógicos.
Vimos que Russell critica a assunção dogmática da forma sujeito-predicado como única forma legítima da proposição a ser considerada na análise. Com isso, ele rejeita as doutrinas metafísicas que – ele pensava – estariam ligadas a esse dogma, como o idealismo e a doutrina das relações internas. Russell aponta que, ao tentar reduzir as proposições relacionais à forma sujeito-predicado, encontramos dificuldades para explicar a noção de ordem, uma vez que as propriedades lógicas essenciais das relações assimétricas são corrompidas. A sua proposta alternativa de análise das proposições relacionais, por outro lado, permite uma definição de ordem que é clara, precisa e puramente lógica, e que evita os problemas advindos de uma redução dogmática e injustificada.
A análise de proposições que contêm descrições definidas
A teoria das descrições tem sido por muitos considerada a contribuição mais importante da filosofia de Russell, tendo em vista as grandes implicações que ela tem nos campos da lógica, da filosofia da linguagem e da epistemologia. Ela é apresentada em On Denoting com o intuito de explicar qual é a análise correta das sentenças que contêm descrições definidas, como contraponto às teses de Frege e Meignon. A seguir, apresentamos esse contraponto, colocando em evidência o que Russell leva em conta para decidir sobre a maneira apropriada de analisar as proposições que contêm descrições.
Russell abre o On Denoting chamando a atenção para o fato de que, na linguagem, há um tipo de expressão que pode ser definida em virtude de sua forma, e que ele chama de “expressão denotativa”. Os exemplos são: “um homem, algum homem, qualquer homem, cada homem, todos os homens, o atual rei da Inglaterra, o atual rei da França, o centro de massa do sistema solar no primeiro instante do século XX, a revolução da terra ao redor o sol” (RUSSELL, 1956, p. 41).
Dentre as expressões denotativas, ele discrimina três casos diferentes: as expressões que denotam um objeto definido; as que denotam de maneira ambígua; e as que não denotam nada. O exemplo do primeiro caso é “o atual rei da Inglaterra”, que, em 1905, denotava um homem determinado; do segundo, “um homem”, que não denota um homem determinado, nem todos os homens, mas sim alguém inespecífico; e, do terceiro, “o atual rei da França”, que não denota nada, visto que, em 1905, a França já não era uma monarquia. Ao apontar essas três diferenças, Russell chama a atenção para um problema relativo às expressões denotativas. Ora, fica evidente que elas podem, em certas circunstâncias, nada denotar, mesmo podendo ser por nós compreendidas. Por isso, é importante buscar uma análise dessas expressões que resolva este problema em questão, e que permita que evitemos, tanto o quanto possível, pressuposições e considerações metafísicas desnecessárias.
O problema pode ser resumido na seguinte pergunta: como uma sentença pode ser significativa mesmo quando alguma de suas expressões componentes parece não denotar nada? Parte da solução de Russell é que as expressões denotativas só podem ter significado no contexto de uma sentença, e, nunca, de maneira isolada. Dentre as expressões denotativas, destacamos as descrições definidas, que têm a forma “o tal-e-tal” (ou “a tal-e-tal”). A marca principal de uma descrição definida é a presença do artigo definido seguido de uma expressão que, no todo, parece se referir a uma, e apenas uma, coisa determinada. Dois dos três exemplos mencionados acima são descrições definidas: “o atual rei da Inglaterra” e “o atual rei da França”. O que Russell aponta sobre as descrições definidas (que doravante chamamos apenas de descrições) é que não necessariamente elas precisam denotar um objeto para serem significativas e, portanto, que uma correta análise das sentenças que contém descrições deve mostrar como isso é possível. Ele defende “que as expressões denotativas nunca têm qualquer significado em si mesmas, mas que toda proposição em que, na expressão verbal, elas ocorrem, tem um significado” (RUSSELL, 1956, p. 42); e que “as dificuldades relativas à denotação são [...] todas resultado de uma análise errada das proposições cujas expressões verbais contêm expressões denotativas” (RUSSELL, 1956, p. 43).
Antes da teoria das descrições, Russell entendia que expressões como “todo”, “nenhum” e “algum”, bem como os artigos definidos “a” e “o”, teriam um significado que é independente das sentenças nas quais elas ocorrem, e que cada uma delas denotaria “um tipo de objeto curioso”. Em MPD, ele diz que “Eu pensava que a palavra ‘o’, por exemplo, denotava algum tipo curioso de objeto que o lógico virtuoso esperaria encontrar no céu platônico. A teoria das descrições me fez abandonar tais esperanças” (RUSSELL, 1959, p. 160).
Portanto, é a partir da teoria das descrições que Russell rompe com esta primeira concepção, tão carregada de ontologia. A teoria das descrições tem o efeito de enxugar as entidades metafísicas de teorias sobre o significado das palavras. Pautado em um princípio de economia ontológica, então inspirado pela Navalha de Occam, Russell decide que deve ser preferível, na análise da linguagem, qualquer consideração dentro do campo da lógica e da teoria do conhecimento que possa resolver os puzzles colocados, de sorte a evitar, tanto o quanto possível, que uma teoria tenha compromissos com entidades metafísicas. Assim, não apenas a sua proposta inicial de que os artigos definidos seriam nomes para “um tipo de objeto curioso” é suplantada, mas também teorias como a de Meinong, que buscava explicar o significado de expressões como “a montanha de ouro” e “o quadrado redondo” com a postulação de entidades que, embora não existissem efetivamente, supostamente possuiriam algum tipo de realidade.
Dessa maneira, Russell sugere uma nova análise das sentenças que contêm descrições. Tomemos o seu conhecido exemplo, a sentença “O atual rei da França é calvo”. Aqui, segundo Russell, não teríamos a forma sujeito-predicado, como se um predicado fosse simplesmente atribuído a um sujeito, pois o sujeito gramatical “O atual rei da França” é uma descrição que nada denota. Poderia parecer, que, por isso, não seríamos capazes de dizer se ela é verdadeira ou falsa. Essa impossibilidade comprometeria um importante princípio. A saber, o princípio de bivalência, que diz que se uma sentença tem sentido (se ela pode ser entendida), ela deve ser bivalente: ou verdadeira, ou falsa. Russell vê este princípio como algo evidente e jamais se coloca a questioná-lo. Assim, ele defende que se, de alguma maneira, nós conseguimos entender a sentença “O atual rei da França é calvo”, então devemos poder reconhecer as suas condições de verdade, que devem ser evidenciadas através de uma análise. Para tal, Russell não aceita nenhuma solução que reconheça a realidade de um suposto objeto imaginário, “irreal”, então denotado pela descrição “o atual rei da França”. Ele também não aceita a solução de Frege, que, por sua vez, diz que a descrição denota um conjunto vazio e que, portanto, poderíamos legitimamente atribuir um predicado a ela para formar uma sentença significativa14.
A solução, segundo Russell, aponta na direção de identificar a correta forma lógica das sentenças que contêm descrições, que não é a forma predicativa a qual a tradição filosófica se acostumou a considerar. Embora, à primeira vista, a sentença “O atual rei da França é calvo” pareça ter a forma sujeito-predicado, Russell nos mostra que, em virtude da descrição que ela comporta, a sua forma é mais complexa. Ele defende que o significado desta sentença fica mais claro se interpretado da seguinte maneira: “há uma, e apenas uma, coisa que é o atual rei da França, e esta coisa é calva”. Com isso, ele propõe que a sentença pode ser analisada em três diferentes sentenças. A primeira seria “há uma coisa que é o atual rei da França”; a segunda, “há apenas uma coisa que é o atual rei da França”; a terceira, “essa coisa é calva”. Na lógica contemporânea, podemos representar simbolicamente a forma dessas três sentenças da seguinte maneira. Considerando “o atual rei da França” como um predicado representado pela letra F e “calvo” como um predicado representado pela letra C, temos, para a primeira, ∃xFx – que significa “existe um x, tal que x é F”; para a segunda, ∀y(Fy → x=y) – que significa “para todo y, se y é F, então y é idêntico a x”; e, para a terceira, Cx– que significa “x é C”.
Assim, a forma completa das três sentenças em conjunção, que compõem o todo do significado da sentença inicialmente analisada, pode ser representada da seguinte maneira: ∃x(Fx ∦ ∀y(Fy → x=y) ∦ Cx). Essa seria, portanto, a correta análise da sentença “o atual rei da França é calvo”. A partir da análise, podemos reconhecer claramente por que razão ela é falsa. Podemos ver qual é o significado de “o atual rei da França” no contexto da sentença; ou seja, podemos ver que a sentença não pretende tomar como pressuposto que existe algo que é o atual rei da França. A sentença afirma que existe algo que é o atual rei da França. Ou seja, a descrição “o atual rei da França” é interpretada por Russell não como sujeito lógico da sentença analisada, mas sim como uma descrição que determina uma função proposicional, ou seja, como um símbolo incompleto. No contexto da sentença, a descrição “o atual rei da França” significa a afirmação da existência de uma determinada coisa, ou seja, significa a afirmação de que existe uma, e apenas uma, coisa que pode ocupar o lugar da variável x na função proposicional “x é o atual rei da França”. Portanto, podemos ver que a sentença é falsa, já que sabemos que a França não tem um rei atualmente. E, assim, fica claro que “o atual rei da França é calvo” é falsa, não porque pudemos conhecer o atual rei da França e descobrir que ele tem cabelo o suficiente, mas sim porque sabemos que ele não existe.
Podemos ver que esta análise de Russell incorpora duas noções presentes na lógica contemporânea: as noções de função proposicional e de quantificador. Ele define as funções proposicionais como “qualquer expressão que contém um constituinte indeterminado, ou vários constituintes indeterminados, e que se torna uma proposição assim que os constituintes indeterminados são determinados” (RUSSELL, 1956, p. 230). Dessa maneira, podemos ter como exemplos de função proposicional “x é humano”, “n é um número”, “x é M”, “x é irmão de y” etc. Em relação aos quantificadores lógicos existencial (∃) e universal (∀), no início, Russell não faz uso destes símbolos, propriamente; mas eles se encontram expressos, de forma equivalente, em sua análise das sentenças que contêm as palavras “todo” e “algum”. Ele analisa a sentença “Todo homem é mortal” da seguinte maneira: “‘Se x é humano, x é mortal’ é sempre verdade” – e diz que isso é equivalente ao que expressamos na lógica simbólica como “‘x é humano’ implica ‘x é mortal’ para todos os valores de x” (RUSSELL, 1956, p. 43-44).
No simbolismo da lógica contemporânea, podemos expressar a análise de Russell da seguinte maneira: ∀x(Hx → Mx), onde H representa o predicado “humano” e M representa o predicado “mortal”. Ele vê essa análise da sentença, que incorpora quantificadores e funções proposicionais, com grande vantagem em relação à lógica aristotélica, por diversas razões. Uma vantagem que se destaca é que a noção de função proposicional permite desfazer certos nós metafísicos presentes em discussões sobre modalidade. Russell defende que “necessário”, “possível” e “impossível” são propriedades de funções proposicionais; não de proposições. Uma função proposicional é necessária quando sempre verdadeira; é possível quando às vezes verdadeira; e é impossível quando nunca verdadeira (RUSSELL, 1956, p. 231). Dessa maneira, podemos afirmar, por exemplo, que “‘x é homem’ é possível” e que “‘x é um unicórnio’ é impossível” (e, nestes casos, ambas as afirmações seriam verdadeiras). Já em relação à proposição “Sócrates é mortal”, por exemplo, não seria correto afirmar que ela é necessária, possível ou impossível. Só podemos dizer que ela é verdadeira, ou que ela é falsa, e ponto final. Russell diz:
Muita filosofia falsa surgiu por confundir funções proposicionais e proposições. Há uma grande parte da filosofia tradicional ordinária que consiste simplesmente em atribuir a proposições os predicados que somente se aplicam a funções proposicionais, e, ainda pior, às vezes, em atribuir a indivíduos predicados que meramente se aplicam a funções proposicionais. O caso do necessário, possível e impossível é um caso em questão. Em toda a filosofia tradicional, surge um capítulo de “modalidade”, que discute o necessário, possível e impossível como propriedades de proposições, ao passo que, na verdade, eles são propriedades de funções proposicionais. Proposições são apenas verdadeiras ou falsas. (RUSSELL, 1956, p. 231)
Além disso, o grande legado de sua análise para afastar considerações metafísicas tortuosas é a ideia de que algumas partes da proposição não têm significado isoladamente, uma vez que elas seriam símbolos incompletos. Como vimos, a função proposicional aparece na forma das descrições, determinando, então, que as descrições são símbolos incompletos. O resultado mais importante disso é que as proposições “Scott é mortal” e “O autor de Waverley é mortal” não têm exatamente a mesma forma lógica. Na primeira, a palavra “Scott” seria um nome, enquanto, na segunda, a expressão “O autor de Waverley” seria uma descrição; e embora ambas se refiram à mesma pessoa, isso não significa que as formas das duas proposições em que elas ocorrem são idênticas. Assim, segundo Russell, não podemos considerar que ambas as proposições são simples, que elas atribuem um predicado a um sujeito. “Isso é uma ilusão completa: uma delas é (ou melhor, pode ser) e uma delas não é” (RUSSELL, 1956, p. 253).
Russell chama a atenção para o fato de que os filósofos foram muitas vezes enganados pela gramática; pois eles não teriam notado a presença das inúmeras espécies de símbolos incompletos na lógica, e, por isso, teriam se emaranhado em confusões e desembocado em “falsa filosofia”. Assim, em resumo, ele defende que “‘o autor de Waverley’ por si só, não significa nada, porque quando é corretamente usado em proposições, essas proposições não contêm nenhum constituinte correspondente a ele” (RUSSELL, 1956, p. 253). Com essa proposta, qualquer consideração metafísica sobre os objetos significados pelas descrições se mostra supérflua.
As funções proposicionais não foram ideia inédita de Russell. Elas aparecem, antes, na Ideografia de Frege (FREGE, 1879). A lógica de predicados de Frege trouxe avanços consideráveis, permitindo que, mais tarde, Russell viesse a desenvolver a teoria das descrições. A partir dessa teoria, o problema sobre o significado de expressões como “o quadrado redondo” e “a montanha de ouro” recebe uma solução considerada muito sofisticada. A solução é boa, pois é ontologicamente econômica. Russell não precisou enveredar por uma explicação metafísica sobre “entidades não-existentes, porém reais”, então dadas para explicar o significado das expressões (como faz Meignon). Ademais, com a teoria das descrições, Russell afasta o uso das propriedades modais para a caracterização de coisas, como acontecia, por exemplo, quando os filósofos diziam que “‘o quadrado redondo’ é impossível”. Segundo ele, para evitar confusões, necessário, possível e impossível deveriam ser noções estritamente reservadas às funções proposicionais. Em Introduction to Mathematical Philosophy, Russell resume a sua crítica às filosofias que propuseram uma ontologia para explicar o significado das descrições definidas:
A questão da “irrealidade”, com que nos defrontamos neste ponto, é muito importante. Induzidos em erro pela gramática, a grande maioria dos lógicos que lidaram com essa questão o fez em linhas enganosas. Considerou a forma gramatical como um guia mais seguro na análise do que de fato é. E não souberam distinguir que diferenças na forma gramatical são importantes. [...]
Por falta do aparato das funções proposicionais, muitos lógicos foram levados à conclusão de que há objetos irreais. Há quem afirme, por exemplo, Meinong, que podemos falar sobre “a montanha de ouro”, “o quadrado redondo”, e assim por diante; podemos fazer proposições verdadeiras das quais esses são os sujeitos; portanto, eles devem ter algum tipo de existência lógica, visto que de outro modo as proposições em que ocorrem seriam sem sentido. Em tais teorias, parece-me, há uma falha daquele senso de realidade que deveria ser preservado mesmo nos estudos mais abstratos. (RUSSELL, 1993, p. 168-169)
Só podemos compreender por que a solução de Russell pode ser considerada melhor que a de Meignon se temos clareza sobre o critério de comparação que estamos utilizando quando afirmamos isso. Neste sentido, precisaremos lembrar do princípio da Navalha de Occam que Russell adota em sua filosofia. Enxugar entidades metafisicas era uma aspiração de Russell em suas análises. Além do mais, também era de seu interesse “reduzir o número de termos e de proposições necessárias em um corpo de conhecimento dado” (RUSSELL, 1959, p. 71), o que, segundo ele, diminuiria a chance de erro na elaboração de suas teorias15. Com o passar dos anos, a presença da Navalha de Occam foi se tornando cada vez mais forte na filosofia de Russell, e foi fundamental para modelar a sua compreensão da realidade e das coisas que existem16. Como ela vinha apresentando bons resultados nas ciências, como a física e a matemática, Russell pensava que ela também deveria trazer proveitos à filosofia. Assim, aos poucos, o seu interesse pela Navalha de Occam foi se consolidando, de sorte que ele já não questionava sua correção, nem sentia a necessidade de justificá-la. Wood (1959) escreve o seguinte:
A Navalha de Occam não é apenas uma espécie de campanha filosófica de economia; é como descrever um escultor como um homem que se livra de lascas de mármore desnecessárias. Não é, como sugerido por Wittgenstein, uma regra do simbolismo. Nem é apenas uma regra para garantir uma chance maior de precisão nos cálculos filosóficos. O uso de Russell da Navalha de Occam não era apenas um meio para um fim, mas parte de algo que era um motivo em si mesmo; era uma paixão que tinha quase tanta força na mente de Russell quanto sua paixão pela verdade impessoal. (WOOD, 1959, p. 268)
Há certo exagero quando Wood (1959) diz que a Navalha de Occam era “uma paixão que tinha quase tanta força na mente de Russell quanto sua paixão pela verdade impessoal”, pois apesar de se comprometer com tal princípio, Russell não se via sempre obrigado a aceitar os resultados que ele impõe (veremos isso, mais adiante). Diríamos que Russell tinha mais um respeito pela Navalha de Occam, do que uma paixão cega e implacável. Seja como for, podemos notar que ela é um princípio que Russell usa para orientar sua filosofia. Para ele, se uma teoria apresenta um número de entidades metafísicas menor do que outras, e se ela traz explicações mais simples para os puzzles que ela visa resolver, então ela deve ser preferida. Devemos lembrar que, segundo Russell, não há como saber, de uma vez por todas, se uma teoria filosófica está correta. O que podemos fazer é comparar as teorias disponíveis e escolher qual parece ser a mais correta. E, nessa escolha, a Navalha de Occam cumpre um papel importante.
Russell considera a economia ontológica como um importante critério para decidir sobre a correta análise de proposições, mas não o único, e nem necessariamente o principal. Vimos que Russell propõe uma análise das proposições relacionais que ele pensa ser melhor que a de Leibniz. Todavia, um ponto curioso é que, do ponto de vista da Navalha de Occam, talvez a análise de Leibniz fosse preferível, pois ela considera a relação como uma coisa estritamente mental, e, portanto, ela reduz a quantidade de constituintes na análise, dispensando uma posterior explicação sobre a realidade das relações. Todavia, como a análise de Leibniz acaba implicando problemas lógicos (sobretudo nos casos em que há uma relação assimétrica envolvida), é claro que Russell não pode aceitá-la como correta. Portanto, chamamos a atenção para o fato de que Russell considera o princípio da Navalha de Occam, no sentido de buscar uma economia ontológica e uma maior simplicidade em suas análises, mas somente até o ponto em que nenhum problema lógico surge. E a análise que menos apresenta problemas lógicos deve ser preferida, ainda que, no fim das contas, ela apresente uma ontologia mais robusta, demandando a admissão de um número maior de entidades existentes.
Portanto, Russell parecia disposto a preterir a Navalha de Occam se, por força da lógica, isso fosse preciso. Ou seja, ela não tem maior peso do que outros preceitos em sua filosofia. A vinculação de Russell à Navalha de Occam não é metafísica, e, sim, metodológica. Mencionamos anteriormente que, em certa fase de sua filosofia, Russell acaba adotando o behaviorismo como “princípio de método”, e não como uma teoria metafísica. Analogamente, entendemos a sua adesão à Navalha de Occam da mesma forma. É verdade que ela tem um papel destacado em sua obra. Mas em relação ao exemplo que acabamos de apontar, fica claro que Russell não a segue incondicionalmente, sem sopesar outras questões e preceitos. De qualquer sorte, não deixamos de considerar que a Navalha de Occam desempenha um papel destacado no método de análise de Russell, servindo de guia para que possamos decidir qual é a análise mais adequada de uma proposição.
Apontamos, agora, um resultado que é derivado da teoria das descrições. Russell defende que nomes de pessoas e de lugares (por exemplo, “Sócrates” e “Londres”), devem ser, em última instância, analisados como descrições. Ele compreende que, do ponto de vista lógico, nós não podemos considerar os nomes próprios ordinários como palavras que denotam coisas simples, mas sim como palavras que abreviam descrições de uma maneira peculiar. Assim, “Londres” seria, por exemplo, “a capital da Inglaterra”, e “Sócrates” seria, por exemplo, “o mestre de Platão”17. De acordo com Russell, os nomes próprios são palavras que denotam coisas simples, por exemplo, um particular (um retalho de cor ou de som, etc.) com o qual nós temos familiaridade. Estas palavras teriam, portanto, um significado que é logicamente simples, que não poderia ser analisado em partes mais simples. Se assim estritamente considerados, os nomes lógicos não podem ser identificados com os nomes próprios ordinários. Russell diz que é difícil encontrar exemplos de nomes lógicos em nossa linguagem ordinária. Ele cita apenas alguns, como os pronomes demonstrativos “este”, “aquele” etc., e chama a atenção para o fato de que um pronome demonstrativo só pode ser considerado nome lógico, no sentido estrito, em circunstâncias muito específicas:
Pode-se usar “isto” como um nome para apontar a um particular com o qual se está familiarizado no momento. Nós dizemos “Isto é branco”. Se você concordar que “Isto é branco”, significando o “isto” que você vê, você está usando “isto” como um nome próprio. Mas se você tenta apreender a proposição que estou expressando quando digo “Isto é branco”, você não pode fazer isso. Se você quer se referir a esse pedaço de giz como um objeto físico, então você não está usando um nome próprio. É somente quando você usa “isto” de uma maneira muito estrita, para se referir a um objeto presente do sentido, que ela é realmente um nome próprio. E, nisso, ela tem uma propriedade bastante estranha para um nome próprio, a saber, que ela raramente significa a mesma coisa em dois momentos correntes, e que não significa a mesma coisa para o falante e para o ouvinte. Ela é um nome próprio ambíguo, mas, mesmo assim, ela é realmente um nome próprio, e é quase a única coisa que eu consigo pensar que seja usada apropriadamente e logicamente no sentido que eu estava falando do nome próprio. (RUSSELL, 1956, p. 201)
Ou seja, o que Russell diz sobre as palavras “este” e “aquele” é que elas só podem ser consideradas nomes próprios, no sentido estrito, quando são proferidas por um falante na exata intenção de denotar um objeto particular e imediato dos sentidos. No momento em que a palavra proferida é considerada por um ouvinte, ela é, para este ouvinte, não mais um nome próprio, mas, sim, uma descrição (como “Sócrates” e “Londres”), tendo em visa que ela não mais denota aquele mesmo objeto particular dos sentidos do falante, mas sim se refere a um objeto físico que é suposto na comunicação. Ora, o ouvinte não pode experienciar o mesmo objeto particular dos sentidos do falante. E, portanto, o significado da palavra “este” para quem ouve também não pode ser considerado um objeto particular dos sentidos do ouvinte. Se examinamos o diálogo com atenção, podemos notar que o ouvinte sempre pressupõe um objeto físico na comunicação, um objeto que é público e objetivo. Considerada pelo ouvinte, portanto, a palavra “este” não é um nome lógico, pois não denota um objeto particular dos sentidos (nem seu, nem do falante), mas sim se refere a um objeto físico suposto. A palavra “este” só é um nome próprio para o falante (e somente se ele tem a intenção de denotar um objeto particular e imediato dos sentidos). A palavra “este”, portanto, comporta certa ambiguidade. Pode ser ora um nome, ora uma descrição; e pode ser nome para coisas diferentes, em circunstâncias diferentes; pois, se proferida por diferentes falantes, ou por um mesmo falante em momentos diferentes, é claro que ela pode denotar diferentes objetos dos sentidos. Apesar disso, Russell diz que “mesmo assim, ela é realmente um nome próprio” (RUSSELL, 1956, p. 201), e que ela é, aliás, o único exemplo que ele tem disponível de palavra da linguagem corrente que pode ser um nome próprio.
Ou seja, fica claro como a teoria das descrições de Russell contribui para a sua ruptura com a preeminência da forma sujeito-predicado que é dada na tradição filosófica. As palavras que ocupam a posição de sujeito gramatical nas sentenças são quase sempre por ele concebidas como descrições (definidas ou indefinidas), que, quando analisadas, determinam uma função proposicional, e que são por isso consideradas símbolos incompletos. Com isso, Russell mostra que uma descrição não necessariamente denota um objeto existente, tornando supérfluas as ontologias dadas pela tradição filosófica para explicar o significado das descrições. Ademais, ele restringe o uso de palavras relativas à modalidade – como necessário, possível e impossível – a propriedades de funções proposicionais, e determina que não podemos atribuir estas palavras com o mesmo sentido a proposições. Proposições, para ele, são verdadeiras ou falsas, e apenas isso. Com essa determinação precisa do vocabulário filosófico, Russell aponta que muitos problemas metafísicos tradicionais são originados a partir do fato de que, muitas vezes, ficamos presos à gramática de superfície sem refletir adequadamente sobre a estrutura lógica das proposições e sobre o sentido exato em que certas palavras são empregadas.
Nota final
Identificamos que a análise proposicional assume contornos específicos no atomismo lógico de Russell entre 1905 e 1918, quando ele compreendia que o significado das palavras poderia ser completamente explicado pela teoria da familiaridade e pela teoria das descrições. Neste período, Russell tomava como princípio epistemológico fundamental para a análise de proposições que “toda proposição que podemos entender deve ser composta completamente de constituintes com os quais estamos familiarizados”. Examinamos dois exemplos de análise que estão ligados a este preceito teórico: o das proposições relacionais e o das proposições que contêm descrições. Apesar de identificar as limitações desta concepção de análise, ainda assim, podemos afirmar que ela traz bons resultados para a filosofia. Ora, notamos que, em ambos os exemplos de análise proposicional, Russell aponta que tomar a forma sujeito-predicado como a única norteadora da análise é um erro grave. Ele defende que isso dá origem a uma gramática defectiva que produz confusões linguística e que, por conseguinte, acaba nos levando a muitos dos problemas tradicionais da metafísica. Essa crítica surge inicialmente em sua análise das proposições relacionais, na virada do século XX. E ela ganha ainda mais força em 1905, com sua teoria das descrições. Ou seja, a recusa da preeminência da forma sujeito-predicado nas análises proposicionais é uma linha divisória na filosofia de Russell. É a partir desta recusa que ele rompe com o idealismo hegeliano e desenvolve o seu método análise, traçando objetivos claros para a análise proposicional: a saber, identificar as formas lógicas e os constituintes de proposições com o intuito de desfazer mal-entendidos linguísticos. E é então que ele busca desenvolver os preceitos teóricos (lógicos e epistemológicos) da análise, estabelecendo, a partir da teoria da familiaridade, o que pode contar como constituinte da proposição, e orientando como descobrira forma lógica de uma proposição levando em conta a teoria das descrições, as noções de quantificação e função proposicional e o princípio da Navalha de Occam.
Referências
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________________________________________________________________________________ Autor(a) para correspondência: Murilo Garcia de Matos Amaral, Estrada de São Lázaro, 197, Federação, 40210-730, Salvador – BA, Brasil. murilogmamaral@gmail.com