Artigos
A díade virtù-fortuna na fundação e manutenção da ordem em Niccolò Machiavelli
Founding and maintaining civic order through the fortuna-virtù pair in Niccolò Machiavelli
A díade virtù-fortuna na fundação e manutenção da ordem em Niccolò Machiavelli
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 2, pp. 309-331, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 15 Janeiro 2020
Aprovação: 21 Maio 2020
Resumo: O par Fortuna-Virtù é discutido nas diversas análises críticas do pensamento de Machiavelli e, embora tais termos possuam origens e tradições bem determinadas ao longo do pensamento latino, principalmente específicas considerações antigas e medievais em algumas recepções durante o humanismo cívico, suas características elusivas ao longo das argumentações de Machiavelli são mantidas, possibilitando inúmeros debates acadêmicos. Diante da ambivalência e da ambiguidade da ideia de Virtù perante relevantes e variadas tradições, contínuas buscas por clarificação são feitas ao longo do corpus do secretário florentino, associando o termo a outras importantes e centrais reflexões, e.g., desiderio, stato, forza. A instabilidade política, as forças além do controle humano, a imponderabilidade das ações civis são temas recorrentes nas concepções sobre a Fortuna em variadas argumentações desse autor. Em aberto diálogo com os humanistas cívicos que enfatizam maior participação política e social, mesclando embasamento racional, consideração moral e as discussões sobre as formas dos regimes políticos, esse escritor apresenta uma concepção historiográfica, a revigorar tradições do mundo antigo, na criação de uma ordem civil mediante a Virtù, a qual demanda comprometimento pessoal e público na exaltação das potencialidades e dos limites humanos. Reinserir a relevância da paridade entre Fortuna e Virtù em Machiavelli é um passo relevante no combate a leituras anacrônicas. Assim, analisar-se-ão os exemplos mais significativos dos fundadores e dos sustentadores da ordem civil destacados nos textos discursivos do florentino, e.g., Romulo, Numa, Moisés, Cesare Bórgia, Castruccio Castracani. Ao estudar as imagens da Fortuna, em face das concepções políticas e antropológicas do autor, discutir-se-á a centralidade da díade Virtù-Fortuna no desenvolvimento argumentativo de algumas ideias principais desse famoso pensador político.
Palavras-chave: Machiavelli, Fortuna, Virtù.
Abstract: Eminent critical evaluations on Machiavelli's thought discuss the Fortuna-Virtù pair. Even though such terms share well-known origins and traditions throughout Latin literary historiography, especially ancient and medieval receptions during civic humanism, their elusive features persist in Machiavelli´s arguments, enabling numerous academic debates. While the idea of Virtù maintain its ambivalence and ambiguity throughout these relevant and varied textual evidences, continual pursuits for clarification are made throughout the Florentine secretary's corpus, associating the term with other important and central concepts, e.g., desiderio, stato, forza. Political instabilities, forces beyond human control, unpredictability of civil actions are recurring themes in Machiavelli's conceptions of Fortune. In open dialogue with civic humanists who emphasize a crescent political and social participation, blending rational reflections, moral consideration, as well as discussions about different forms of regimes, this author exposes a historiographical conception, reinvigorating ancient traditions, in the creation of a civil order. This demands Virtù, a personal and public commitment in the exaltation of human potentialities and limits. Reinserting the relevance of a parity between Fortuna and Virtù in Machiavelli is a relevant step for avoiding anachronistic readings. Thus, the most significant examples of civic founders and maintainers of civic order are investigated, e.g., Romulo, Numa, Moses, Cesare Borgia, Castruccio Castracani. By studying the images of Fortune, in face of Machiavelli´s political and anthropological conceptions, the argumentative development of some main ideas of this famous political thinker sustains the centrality of the Virtù-Fortuna dyad.
Keywords: Machiavelli, Fortuna, Virtù.
A eminência da paridade entre Virtù e Fortuna para a compreensão do pensamento de Machiavelli é largamente atestada por seus comentadores.. Existem inúmeras tradições latinas e medievais que discutem a Fortuna e as ações humanas possíveis, fornecendo aos autores renascentistas uma série de imagens e reflexões exploradas por Machiavelli em suas variadas obras. Compreender os discursos intelectuais que relacionam esses termos no Umanismo e no Rinascimento italianos permite uma apreciação das obras de Machiavelli em sua situação particular e a partir de suas concepções intelectuais. As constantes dualidades e interações entre Fortuna e Virtù são constatadas em variados autores do humanismo cívico italiano. Diferentes escritores, e.g., Petrarca, Salutati e Bruni, enfatizam maior participação política e social, mesclando embasamento racional, consideração moral e as discussões sobre as formas dos regimes políticos..
As inter-relações entre justiça, Liberdade e ambição, juntamente a novas tendências historiográficas a revigorar tradições do mundo antigo, demandam comprometimento pessoal e público, na exaltação das potencialidades e dos limites humanos.. Evidencia-se, portanto, a relação constante entre Virtù e Fortuna ao longo do desenvolvimento intelectual medieval, em especial algumas tradições latinas que ganharam grande destaque no Rinascimento Italiano. A proclamação de uma via ativa no humanismo cívico italiano requer uma ação intelectiva vigorosa para as melhores formas de organização social nas quais os ideais antigos poderiam se atualizar em uma possível glória presente. O tema da Liberdade, em conexão com o pensamento Republicano de Machiavelli, é um dos exemplos ilustres deste período: opõe-se a uma tradição considerada omissa e sem força.. A participação Política e a consistência racional das ações humanas são harmonizadas por concepções teóricas e práticas em que as melhores formas de organização social abranjam uma via contemplativa e uma premissa ativa.. As diversas tradições do humanismo cívico, correntes de pensamento e desenvolvimento de autores particulares, possibilitam uma discussão sobre os variados meios de compreensão das concepções cosmológicas, políticas, retóricas do período, as quais devem ser estudadas para um melhor entendimento das propostas e das constituições das variadas obras de Machiavelli.. A Fortuna, ao atingir a todos e ser perpetuada pelas ações de todos, dissolve tradições e considerações estáveis, associando-se, invariavelmente à ação inexorável do tempo e suas transformações. No desenrolar político das sociedades renascentistas italianas, a descrição de um quadro político desolador, perante as aparências republicanas arquiteta pelos Médici, requer uma oposição à inércia e um desprendimento dos interesses pessoais nas ações civis. Neste contexto, portanto, a Virtù pensada por Cavalcanti opõe-se a uma forma de tirania, sobretudo em face das aparentes decisões coletivas realizadas nas assembleias..
Tais considerações possuem suas raízes em desenvolvimentos intelectuais apresentados desde a Grécia antiga, em que a Fortuna é honrada e temida, responsabilizada pelos acontecimentos e propulsora das ações humanas.. A Tyche transforma o rico em pobre; é generosa e cheia de caprichos; encontra-se em todos os eventos do mundo. Por ser imprevisível, indomável e sem meios de ser entendida racionalmente, apresenta-se como algo maligno a perpetuar as limitações e a miserabilidade humanas. Todavia, por meio da Tyche, mediante suas atividades a promover inevitáveis mudanças, os sucessos das ações humanas são obtidos, ordenações políticas são estabelecidas, impérios são conquistados. Ao não poder ser controlada, ela insere incertezas, mistérios e dúvidas a ponto de conduzir todos os humanos, e.g., atletas, heróis, pescadores, governantes, a refletir sobre suas vitórias e seus fracassos, suas potências e suas limitações. Por um lado, a eficiência nos atos humanos deve ser cultivada; todavia, a Tyche torna os fracos, fortes; reduz os ricos à miséria; fornece dádivas a quem não as pode encontrar por suas próprias forças; retira as possibilidades daqueles que possuem os meios necessários de obter àquilo que desejam. Não há explicação plausível e razoável para suas ações, mas ela não pode ser unicamente responsabilizada pelos acontecimentos, visto não coadunar com a imprudência.
Há, ao longo das inúmeras trocas simbólicas nas eras imperiais helênicas e romanas, asserções sobre a imprevisibilidade e, em decorrência, malignidade da Tyche e da Fortuna; todavia, concomitantemente, existem as posições que realçam os sucessos imperiais e promovem uma avaliação positiva dessas inexoráveis mudanças. Mediante conexões e desconexões no ato receptivo, as concepções da Fortuna no mundo romano também são manifestas em todas as estratificações sociais, associando-se aos sucessos imperiais, mas também realçando suas ambiguidades e ambivalências (POLLIT, 1994, 12-17; BROUCKE, 1994, 33-49; CANTER, 1992, 64-82). Pode-se considerar que as ponderações cristãs, ao proporem a graça e a providência divinas, desarticulam as características do imponderável mediante expressões e realizações escatológicas e apocalíticas10. Ressaltam, assim, o governo divino e suas inegáveis ações para o bem humano nas articulações do summum bonum11. Esta relação entre Providência, Fortuna e desconhecimento humano das ações divinas é destacada por Virgílio em um pedido de explicação de Dante no quinto círculo do Inferno12. Se este poeta florentino associa a Fortuna à Intelligenza e à ordem do universo, Bocaccio relacionará a mesma às possibilidades das ações narradas no Decameron ocorrer, embora mantenha a racionalidade e a efetivação da vontade divina (Cioffari, 1974, 1-13) Vincenzo Cioffari, "The function of Fortune in Dante, Boccaccio and Machiavelli" Italica 24.1 (1947): 1-13..
Em diálogo com estas tradições, Machiavelli ressalta a instabilidade da condição humana por meio de descrições poéticas e considerações intelectuais a respeito da Fortuna, uma força caprichosa que eleva aos humanos e os destrói, aparentando-se a uma mulher caprichosa amiga dos jovens13. Em oposição às implacáveis forças da Fortuna, Machiavelli enfatiza a noção antiga da Virtù em contraposição ao acaso e às determinações exteriores ao humano, requerendo flexibilidade para melhor se adequar às circunstâncias (MANSFIELD, 1998, 49-52). Nota-se, portanto, o modo seletivo em que o autor florentino adentra as incomensuráveis vias destas tradições antigas, medievais e do humanismo cívico italiano. Cicero, por exemplo, em sua obra De Officiis, descreve um bom líder em sua escolha deliberada em evitar a brutalidade e a violência, traçando uma distinção entre vir e as bestas. Reconhecendo esta herança, atestada e revivida pelo humanismo cívico italiano14, Machiavelli desvirtua tais imagens ao propor que o governante deve agir como uma besta selvagem em um mundo marcado pelo engano e pela crueldade15. Os humanistas, seguindo uma corrente interpretativa16, fazem uma associação entre virtus e vis, diferenciando, portanto, qualidades cardeais e força bruta. Por outro lado, Machiavelli insiste que a força é uma condição sine qua non para o exercício do governo, seja em defesa das cidades em batalhas, da Liberdade, ou ainda na conquista e na manutenção do stato17.
Em contraposição a uma vivência considera sem vigor e incapaz de legitimar leis e estabelecer a ordem, a Virtù é uma iniciativa pessoal a expressar habilidade, força e astúcia contra a aflição, a desordem e as misérias – as quais também são decorrentes da Fortuna. O revigoramento dos ideais cívicos nos reinos italianos opõe-se a usos das tradições pretéritas que não enfatizam a realização presente, a gloria e a ambizione. Nas palavras de Quentinn Skinner, faz-se necessária a “ancient prudence in the face of modern vandalism”18. Interpretações relevantes das obras de Machiavelli, invariavelmente sustentam suas avaliações na relação entre Virtù e Fortuna em passagens particulares do autor (MANSFIELD, 1998, 6-15; GILBERT, 1951,53-55). Diante da ambivalência e da ambiguidade da ideia de Virtù perante relevantes e variadas tradições, contínuas buscas por clarificação são feitas ao longo desse corpus, associando o termo a outras importantes e centrais reflexões, e.g., desiderio, stato, forza entre outros19. A instabilidade política, as forças além do controle humano, a imponderabilidade das ações civis são temas recorrentes nas concepções sobre a Fortuna20. Desse modo, reinserir a relevância da paridade entre Fortuna e Virtù em Machiavelli é um passo relevante no combate aos anacronismos, os quais fragilizam "nossa leitura dos textos principais de Maquiavel no lugar de esclarecê-los"21. Ao estudar a díade Virtù-Fortuna no autor, temas primordiais, e.g., força, história, degeneração, corrupção, ambição e glória são ressaltados em todos os assuntos humanos e em suas repercussões políticas. Para tanto, analisar-se-ão os exemplos mais significativos dos fundadores e dos sustentadores da ordem civil, destacados nos textos discursivos do florentino22, e..g, Rômulo, Numa, Moisés; Cesare Bórgia; Castruccio Castracani. Assim, ao avaliar as ações da Fortuna, em face das concepções políticas e antropológicas do autor, evidenciam-se possíveis respostas humanas, as quais, se adequadas são vistas como plenas de Virtù. Desse modo, destaca-se a centralidade da díade Virtù-Fortuna no desenvolvimento argumentativo de suas principais obras.
Ao mesmo tempo temida por sua ação devastadora, a Fortuna propicia a Ocasião por meio da qual a Virtù atinge sua excelência na criação e na fundação das ordenações civis necessárias para a libertà. O surgimento de Roma e sua decorrente grandeza evidenciam características históricas exemplares em que as ações solitárias de Rômulo e a legislação proposta por Numa indicam como ações individuais extraordinárias são necessárias para a criação de uma ordem e a manutenção da mesma é mais bem articulada pelo consenso obtido pelas necessidades civis, o ardor militar e o ânimo religioso. Os regimes políticos devem estar aptos a se adaptarem aos imperativos das ocasiões, cultivando a Virtù em constantes e variados modos de retornar aos princípios primordiais da organização social estabelecida. Devem-se conjugar as aptidões de Rômulo e de Numa; estar preparado para os tempos de guerra e para os momentos de paz. Assim também é descrito Moisés, pois, ao utilizar uma autoridade não estabelecida por sua própria potência, foi hábil em eliminar a discórdia e as divisões, agindo para salvaguardar o interesse público na promulgação de seus éditos, a ponto de eliminar seus adversários. Exigem-se industria e forza para a instauração e para a manutenção da ordem. Assim, entende Machiavelli que as belas palavras proféticas sem coerções militares possibilitam o surgimento de desordens que conduziram a península itálica à situação de miséria, abandono e escravidão. Desse modo, Cesare Bórgia e Castruccio Castracani são apresentados como idealizações dos governantes que personificaram a Virtù necessária para superar as idiossincrasias da Fortuna. Em ambos, a astúcia e a força são manifestas ao longo de suas jornadas; contudo, no desenrolar de suas carreiras, mesmo os mais aptos não conseguem resistir aos caprichos e desmandos de uma maligna Fortuna que age além dos controles humanos: priva-os de conquistar a glória em decorrência de mortes súbitas. Os paralelos entre os dois personagens desvelam um modelo de cidadão com dotes físicos e civis adequados para o exercício do comando, ao demonstrarem audácia, força, astúcia, indústria, prudência, amabilidade na conquista de territórios, na preservação de amigos, na eliminação de inimigos e em todos os outros caminhos para a manutenção do poder e para a promoção das ordens civis.
Rômulo é apresentado junto a Ciro e Moisés em Il Principe, expondo os modos pelos quais a Fortuna propicia a Ocasião na qual sua Virtù alcança excelência na criação e na fundação de Roma23. Esses mesmos atos são vistos na exposição da grandeza dessa cidade devido às ordenações implementadas desde a sua origem nos Discorsi: a ação solitária de Rômulo funda um viver civil pela autoridade de suas ações que propiciam as ordenações propostas por Numa24. A excelência de Rômulo é atestada pelas ocasiões que cercaram sua vida e suas ações, essas são mais facilmente realizadas por serem atos armados25. A origem de Roma é retratada pela mistura dos elementos históricos e do míticos, e..g, Enéas e Rômulo. Evidencia-se que a edificação de uma urbe livre é atribuída a esse último, ao estar relaciona às forças daqueles nascidos no local e não pelas mãos de estrangeiros26. As ordenações civis de Rômulo, em conjunto com as legislações de Numa, garantem o sucesso da cidade e seu amplo domínio ao longo do tempo. Desse modo, as ações individuais e coletivas personificam a Virtù necessária para as conquistas e para as ordenações na Roma antiga27.
Dentre os variados tipos de República, a romana caracteriza-se por ter suas leis surgidas paulatinamente devido a eventuais acidentes28. A felicidade das cidades que não precisam ser reformadas é grande, pois o caminho para reestabelecer uma boa ordenação é árduo, visto que os humanos não se submetem às inovações, sobretudo àquelas que retiram seus privilégios29. Desse modo, não há como impedir a degeneração das formas de regime em seus vícios mais obtusos30. No caso particular de Roma, o controle desejado em que as formas de regime possam ser conjuntamente usadas para a preservação da libertà31 não ocorreu pela Virtù de um governante: Machiavelli atribui tal ação à Fortuna. A mudança do regime monárquico para o republicano exigia disposições que os reis não poderiam imaginar e estabelecer. Expulsam os reis, sem eliminar a possibilidade de uma autoridade real; ao estabelecerem a magistratura consular, criam os tribunos para acalmar os clamores populares; assim, geriam os tumultos e os conflitos entre as estratificações, meios necessários para a uma República perfeita. As leis que sustentavam o vivere libero romano são obras da Fortuna e da ocasião 32, as quais demandam ação vigorosa, de indivíduos e da coletividade. Ordenar ou reformar uma República realiza-se mais facilmente por ações individuais, sobretudo diante da necessidade de praticar atos contrários ao senso comum. Nesse sentido, Rômulo deve ser lembrado como aquele que instaura um regime que considera o bem comum, não para ganhos pessoais, mesmo tendo que cometer um homicídio.33 Possui em si mesmo a Virtù para as ordenações civis e não carece de uma autoridade divina34. Tamanhos foram os efeitos de suas ações que possibilitam as ordenações de Numa, devendo ser imitado por aqueles que ambicionam a manter o poder em todos os tempos35, mas também diante das dificuldades em manter os princípios da liberdade republicana36. Assim, Rômulo e Numa são exemplos a serem imitados, pois devido às suas ações foram assegurados os sucessos de Roma37. Ao desejar longa vida para um regime republicano, é mister retornar constantemente aos seus princípios norteadores, sem os quais a degeneração da civilidade e da religiosidade conduzem ao enfraquecimento pessoal e comunitário38, sem esquecer-se da necessidade de atos individualizados.
Numa possui uma significante presença no desenvolvimento da argumentação do primeiro livro dos Discorsi, sobretudo devido a sua caracterização como legislador e atuante primordial para a preservação da ordem romana estabelecida. Para tanto, Machiavelli discorre a respeito da atuação sacerdotal para animar a população, estabelecendo e preservando a ordem civil em busca da libertà.As dificuldades encontradas, interna e externamente, exigem constante vigilância e adequações aos perigos presentes. Ao buscar elogiar o paradigma republicano idealizado em suas leituras de Tito Lívio, Machiavelli propõe que a origem da cidade foi livre e sem depender de outros. Ademais, as leis recém-criadas por Rômulo são efetivadas com grande êxito por Numa, a tal ponto que o sucesso posterior de Roma não deve ser visto apenas como decorrente da Fortuna, mas da ação desses personagens na Ocasião apresentada. Nem mesmo suas múltiplas vantagens materiais, e.g., fertilidade, posição no mar, vitórias militares, ou o tamanho do domínio, puderam corromper a Virtù dessa cidade39. Desenvolvem-se, no primeiro livro dos Discorsi pela exposição de Numa, as possibilidades de uma Virtù civil para se cultivar a libertà mediante a presença do ânimo religioso, a necessidade de uma ação individual e a força para a manutenção da Ordem diante da corrupção dos costumes40. Há, assim, um louvor às ações de Rômulo e Numa nas ordenações e legislações, ao mesmo tempo em que é apresentada uma censura contra àqueles que buscam preservar somente a belicosidade do primeiro ou apenas os meios pacíficos do segundo.
Ao discorrer sobre a religião dos romanos, Machiavelli infere que as leis promulgadas por Numa possuem inspiração divina, confirmadas pelo grandioso sucesso dessa cidade41. Ao encontrar um povo ferrosíssimo, obtem paz e obediência civil para a manutenção da sociedade (civilità) por meio dos ritos religiosos42. O fervor civil, nutrido pela crença religiosa, propicia o amor à pátria e atesta a implementação das leis. A religião propicia o ânimo militar, promovendo concórdia na população, a qual não é facilmente obtida quando apenas a autoridade individual é utilizada. A Virtù de Numa, portanto, promulga uma legislação e uma obediência às instituições civis que sustentam todo o desenrolar histórico da cidade de Roma43. Contudo, apenas uma dependência da Virtù dos antecessores não permite a subsistência de uma urbe a longo prazo, visto que os frutos das boas ordens não perduram para a eternidade44. Deve-se, portanto, conjugar as aptidões de Rômulo e Numa em todas as gerações45: a arte da guerra e a arte da paz. Decerto, o princípio da liberdade, defendido na fundação de Roma, encontrava constantes obstáculos, exigindo sempre novas ações, novas criações e novas instituições46.
Machiavelli destaca a figura de Moisés em Il Principe e nos Discorsi como um governante de Virtù na utilização de uma autoridade proveniente dos ritos religiosos, mas sem esquecer a organização social e o uso das armas. Dessa maneira, o famoso personagem judaico-cristão é contraposto a profetas desarmados, e.g., Savonarola, os quais não possuem possibilidade de serem bem-sucedidos, mas também àqueles que ignoram ou não compreendem os modos pelos quais os ritos religiosos são importantes para a coesão militar e civil.
Ao discutir os modos pelos quais as cidades são fundadas e mantidas, Moisés e Enéas são comparados devido às imigrações e conquistas militares de ambos47: na exposição de Machavelli, o personagem bíblico conquista e instala seu povo em localidades com estruturas políticas já existentes48, enquanto o herói de Virgílio edifica uma nova urb. Expondo outras características das variadas possibilidades para as cidades estabelecidas, realça a importância da liberdade dos humanos, as leis promulgadas e a natureza da região escolhida para sua localização49. Se inicialmente há um silêncio aos modos pelos quais as leis devam ser promulgadas ou reformadas na comparação entre esses personagens, posteriormente, os Discorsi aludem para a necessidade de uma ação individual, a pensar mais no interesse público do que nos benefícios pessoais, mesmo com o uso da violência – Coloca Moisés, portanto, em paralelo com Rômulo50. Se o indivíduo funda e reforma às ordenações civis, a coletividade é o melhor meio de salvaguardar essas51. Ademais, ao relatar a criação dos cônsules romanos, delineia que as ações em prol do coletivo são sustentadas pela autoridade dada pela população aos governantes e fundadores, apontando os exemplos de Moisés, Licurgo e Sólon52. Não desenvolve seu argumento e as características desses líderes em detalhes por considerar os mesmos de conhecimento geral53, mas relata como Ágis assassina os líderes opositores que o impedem de restabelecer a ordem desejada em Esparta, pois esses evitavam que ele obtivesse a autoridade por suas ambições pessoais54.
Novamente, encontram-se as justificativas para essa interpretação das ações de Moisés em passagens posteriores dos Discorsi. Ao discorrer a respeito de um cidadão que deseja criar algo bom com sua autoridade, deve eliminar a inveja daqueles que desejam o poder e ordenar militarmente à cidade perante seus inimigos externos55. Ao ler as ações de Camilo em Tito Lívio, Machiavelli pondera sobre os meios utilizados para a organização dos exércitos, para o fornecimento de armas e comida, assim também para o aparelhamento dos negócios públicos. Nesse último caso, nomea seus mais próximos colegas e partidários, afastando a inveja e honrando suas ações com altas magistraturas. Assim, a Virtù de Camilo dispersa a inveja, por sua sabedoria e bondade, sendo extremamente útil para a pátria56. Perigos iminentes, assim também a violenta e pública morte de seus inimigos, são outros meios de superar esse malefício que impede as boas ações dos cidadãos e corrompem as ordens civis57. Nesse contexto, apresenta “uma interpretação sensata” de Moisés, pois esse é forçado a matar inúmeros opositores, os quais cheio de inveja, impossibilitavam a efetivação de seus desígnios e de suas leis58. Atitude impossível de ser seguida por Savonarola, pois não detinha autoridade, e também por Piero Soderini, que acreditava que sua bondade, a sua Fortuna, os benefícios dados dispersariam a inveja e as consequentes lutas pelo poder sem qualquer tumulto, violência e escândalo59. Esses dois exemplos sucumbiram por não terem a mesma atitude vista em Moisés, visto que não seja possível esperar que os humanos mudem com o tempo, pois a bondade não é suficiente, a Fortuna é volátil e a maldade indomável60.
A famosa reprovação feita ao Frei Girolamo Savonarola em Il Principe compartilha esse mesmo contexto argumentativo. Ao discorrer sobre os principados novos adquiridos por armas próprias e Virtù, a imitação dos caminhos bem-sucedidos por outros, adaptados à situação, deve ser considerada para que ao menos certo “odor” desses bons desígnios antigos sejam sentidos no presente. Moisés é apresentado como um príncipe novo que obteve sua posição por Virtù pessoal, não por Fortuna – é visto em paralelo a Ciro, Rômulo e Teseu61. Primeiramente, Machiavelli escusa racionalizar sobre Moisés, pois esse seria um mero executor das ordens divinas62. Todavia, mostra como as ações de Ciro e outros que fundaram reinos não são discrepantes às de Moisés, embora não possuísse um preceptor divino63. Ao estudar a vida desses fundadores, avalia-se que a Fortuna apenas propicia a ocasião e a efetivação material para a forma desejada e estipulada pela Virtù pessoal desses iniciadores64. As adversidades decorrentes da escravidão dos judeus no Egito são condições necessárias, propiciadas pela Fortuna na gestão da Ocasião, para que o povo obedeça a Moisés com o objetivo de sair da servidão65. Assim também são vistas as circunstâncias das vidas e das ações Rômulo, Ciro e Teseu: as adversidades são materializações da Ocasião mediante as quais a Virtù pessoal é manifesta no fortalecimento do coletivo66. As dificuldades das conquistas e da manutenção das ordens, decorrentes dos desejos humanos e da inconstância dos povos, exigem Virtù e Forza, pois a persuasão demanda ordenação civil e meios pelos quais a crença da coletividade seja mantida. Desse modo, para o estabelecimento da obediência civil e para a superação dos inimigos – internos e externos – faz-se necessário o uso da força: os profetas armados, vencem; os desarmados são arruinados67. Em sua exortação final aos cabeças da península itálica para superar os governos estrangeiros em seus territórios, Machiavelli aconselha ao seu destinatário a observar essas mesmas ações listadas em comparação com as ações necessária na situação dessas comune. A Itália está dilacerada, reduzida, escravizada, sem liderança e carente da Virtù de Moisés, da grandeza do ânimo de Ciro e da excelência de Teseu68. Embora existam pequenos momentos de respiro – spiraculo –, essas cidades encontram-se sufocadas à espera da Virtù a reanimar os antigos valores que não estão mortos no coração dos humanos69.
Personagem histórico e ficcional70 no corpus de Machiavelli, Cesare Bórgia, o duque Valentino, é, ao mesmo tempo, um paradigma a ser seguido por sua ascensão e um exemplo a ser evitado devido a sua queda. Em Il Principe71, encontra-se o maior número de citações, mas há menções importantes nos Discorsi e em outros escritos72. A descrição dos métodos usados na morte de Vitellozo Vitelli, Oliverotto da Fermo e o Gravina Orsini73 é um elemento textual bastante conhecido e importante para a avaliação de Machiavelli a respeito desse duque. Reúne em si qualidades paralelas ao relato biográfico de Castruccio Castracani, buscando a todo instante autossuficiência para depender apenas de sua Virtù e não do sucesso de outros. Embora tenha sucumbido por uma doença inesperada, seus graduais avanços na Romanha concedem a esse duque fama, prestígio e reputação.
Em Dell'arte della guerra, embora Fabrizio prefira não tratar dos personagens contemporâneos ao período do diálogo, pela dificuldade de falar de si e por não saber o que falar dos outros74, abre exceções para retratar as ações de Cesare Bórgia. No primeiro exemplo descreve o cerco a Forlì em que a fortaleza de Catarina Sforza é conquistada pela má engenhosidade da construção e pela fraqueza de ânimo dos encarregados de sua defesa75. Efetiva-se um evidente paralelo com algumas argumentações em Il Principe e nos Discorsi em que as fortificações não devem ser escolhidas em detrimento de outros meios de estabilidade civil e militar76. Ademais, atesta a engenhosidade no combate em Urbino, enganando seus adversários, pois ao esconder a direção dos seus ataques conseguia ocupar em um dia cidades que demandariam muito trabalho e despesas77. O crescente poder político e notória reputação são atestados na submissão de suas vontades ao cruzar o território florentino à força, desvelando a fraqueza do regime político dessa cidade e a materialização da Virtù pessoal desse duque. As formas republicanas débeis hesitam em suas decisões e agem mais pela necessidade do que pela deliberação. Desse modo, a indecisão fornece uma resposta no afã dos acontecimentos e não pela sabedoria78. Assim, relata a indecisão de Florença diante do pedido do duque Valentino, que deseja cruzar a cidade ao retorna de uma negociação com Bolonha. O impasse resultou que o duque fizesse seu percurso à força, demonstrando sua potência e, ao mesmo tempo, a fraqueza de Florença que se via coberta de vergonha79.
Ao discorrer sobre as dificuldades de novas ordens em um Principado misto, Machiavelli expõe como Luís XII, rei da França, propiciou o crescimento do poder temporal da Igreja e não auxiliou àqueles que anteriormente haviam feito acordos nas terras itálicas80. Considera o autor florentino que o monarca francês cometeu uma série de erros81, os quais podem associar-se a tentativas de evitar conflitos bélicos e honrar palavras dadas ao papa. Pondera Machiavelli que nunca se deve deixar prosperar uma desordem civil para afastar a guerra, pois apenas posterga-se o inevitável com altos custos para a civilità; além de seus famosos ditos a respeito da manutenção da palavra e da integridade82. Cesare Bórgia, em contrapartida, está sempre apto a usar da força e da dissimulação, buscando a todo instante criar meios de atualizar sua potência e sua Virtù.
No contexto dos Principados adquiridos pela Fortuna ou pelas armas de outros, o autor de Il Principe alude a dois exemplos que considera estar na memória coletiva de seu tempo: Francesco Sforza e Cesare Borgia. O primeiro, com grande Virtù tornou-se duque de Milão, todavia, as muitas atividades para a conquistas resultam em pouco reforço para a manutenção83. O Valentino, por sua vez, adquire seu domínio e o perde em decorrência da Fortuna do Pai, Papa Alexandre VI84. Embora Cesare Borgia pudesse agir conforme o esperado, pleno de Virtù, uma tremenda e maligna Fortuna o impediu de obter o êxito desejado85. Na leitura de Machiavelli, Alexandre VI perturbou as ordens e desordenou as cidades italianas pela reputação do rei francês, adquirindo um reino na Romanha para o seu filho86. Esse viu-se impossibilitado de expandir pela fraqueza de suas armas e pelo desejo do rei estrangeiro. O Valentino não desejava depender das armas e da Fortuna alheias87, tornando os adeptos de seus inimigos seus correligionários, fornecendo chefias militares e de governo88. Aguardou a ocasião adequada, usando de simulação e dissimulação, para exterminar seus opositores, promovendo o bem-estar das regiões conquistadas – destaca-se o que deva ser digno de imitação89. Após reunir-se com o rei Luis, Cesare Bórgia desejava atacar Bolonha para assegurar seu território na Romanha. Alguns de seus seguidores, dentre os quais os Vitegli e os Orsini, temiam que ele se tornasse muito poderoso e os eliminasse para se tornar senhor único desses domínios90. Preocupavam-se com a grandeza, o ânimo e o apetite do duque91. As conjurações foram conhecidas e todos aqueles que estavam descontentes com o Valentino armavam-se para o combater. Esse encontrou proteção em Florença e aguardava os reforços da França. Nesse meio tempo, dissimulava que gostaria de permanecer apenas com as honras públicas, mas o domínio deixaria para os seus antigos subordinados, enquanto aumentava suas providências para o confronto92. Persuadia a seus inimigos com acordos, tratados de paz e benesses ao mesmo tempo que, em silêncio, pagava a todos os seus soldados para estarem aptos e prontos para a guerra. Enganava aos conjurados com astúcia e sagacidade93, fornecendo a impressão que estaria disposto a aceitar sua atual condição. Todavia, ao possuir maior poder bélico, domina seus opositores e os executa.
O duque Valentino, portanto, é um exemplo de Virtù em comparação com a fraqueza dos demais senhores da região, pois esses semeavam a desunião devido à permissividade, latrocínios, brigas e insolências94. Ao discutir os caminhos possíveis da piedade e da crueldade, Machiavelli atesta que um príncipe deve ser tido por piedoso e não por cruel. Todavia, a exemplo de Rômulo que comete um assassinato para fundar a cidade de Roma, Cesare Bórgia pode ser visto como cruel por alguns, muito embora tais ações tenham reconciliado a Romanha. Conclui o autor, portanto, que tais ordenações são mais pias do que aquelas existentes entre o povo florentino que permitiam grandes desuniões e facções95. A pacificação requereu medidas violentas, purgadas publicamente para ganhar a comoção popular, um espetáculo bastante conhecido que gerou impacto, estupefação, satisfação e terror nos habitantes locais96. As divisões nas cidades possuem três meios de resolução, de acordo com Machiavelli: exterminar as pessoas, remover da cidade, ou obrigar as partes a fazerem as pazes com a coação de não se ofenderem97. Esse último é menos eficaz, mais danoso e possui pouca utilidade, visto que os meios para as intensas querelas existem diariamente; o primeiro é o mais seguro, mas uma República débil mal consegue executar os exílios, com grandes custos em sua atuação. A debilidade humana para a ação civil nutre-se da fraqueza educacional devido ao pouco conhecimento das coisas antigas98. Assim, os agentes civis preferem confiar em estrangeiros e em fortalezas, em manter as cidades divididas.
Tornava-se cada dia mais poderoso, eliminava seus inimigos, precavia-se da morte de Alexandre VI, avançava até a Toscana ao ponto de estar próximo de depender apenas de sua própria potência e Virtù99. Machiavelli, ao discorrer a respeito das milícias, se essas deveriam ser auxiliares, mistas ou próprias, indica ao leitor, novamente, o crescente desejo de autossuficiência, visto que ele abandona o uso das tropas auxiliares francesas e o uso dos mercenários, e.g., os Orsini e os Vitelli100. Machiavelli utiliza-se das ações do duque Valentino para asseverar que ele garantiu maior respeito ao ser inteiramente dono de suas armas101. Todavia, a morte do pai, a saúde debilitada, os grandes exércitos em sua volta e a eleição de Júlio II o impediram de consolidar seu domínio102. Ainda assim, conclui Machiavelli que Cesare Bórgia é um exemplo ideal para um príncipe novo, listando as ações desse: precaver-se dos inimigos; ganhar para si amigos; vencer pela força ou pela fraude; fazer-se amado e temido pela população; ser seguido e respeitado pelos soldados; aniquilar àqueles que possam ameaçar; renovar com novos modos as ordens antigas; ser severo e grato, magnânimo e liberal; exterminar as milícias infiéis e criar novas; cultivar amizade de reis e príncipes para o seu benefício e para a redução dos malefícios103.
A centralidade da díade Virtù-Fortuna no relato histórico proposto sobre a vida de Castruccio Castracani é evidenciada pelas descrições da fraqueza política das comune itálicas, pelo baixo nascimento do biografado juntamente aos eventos para a sua formação humana e civil, pelos modos de vida e de atuação social em paralelo com os exampla romanos, mas também pela sua surpreende morte quando seus intentos de dominar a Toscana aparentavam estar tão próximos. Machiavelli atesta a fama e a força de Castruccio Castracani nas guerras entre as potências itálicas, recordando como os florentinos se entregaram sem reservas ao poder de Roberto, rei de Nápoles, por buscarem proteção diante da iminente derrota para esse comandante104. Ademais, pondera que logo após a morte desse, Florença mostra enorme coragem para atacar o duque de Milão, ainda que tenha sido derrotada em seus próprios territórios105. Tal status de Castracani é resultante das constantes batalhas travadas pelo controle da região da Toscana, essas que remontam aos confrontos entre os guelfos e os gibelinos, assim também às variadas facções espalhadas por toda a península itálica, perpassando os poderes imperiais e papais106. Desse modo, as guerras entre Florença e Lucca, comandadas por Castruccio Castracani, um jovem, inflamado e feroz107 que liderava alguns gibelinos da Toscana, rendem reconhecimento, reputação e fama a esse condottiero108. A divisão da cidade de Florença resulta em derrotas vergonhosas e acordos escusos, vãs tentativas de obter o desejado pelos exilados e pelas camadas da população excluídas das decisões centrais109. Crescia o domínio e o prestígio de Castracani a ponto de Florença pensar ser necessária uma guerra frontal, terminada em derrota devido às deslealdades e às ambições de seu comandante que desejava ser aclamado Príncipe110. Os prejuízos políticos e econômicos foram enormes, pois, além dos eventuais saques, Castracani fazia incursões pelos limites da cidade111. Se Florença conseguira integrar Pistóia a seus domínios por acordos, Castracani sitiou a cidade com tamanha Virtù e ostinazione que os florentinos não conseguiam o retirar pela forza, tampouco pela industria112. Tais acontecimentos marcam profundamente a concepção política e militar florentina, seja alterando as formas de suas magistraturas113, seja nos modos de concepção sobre as divisões internas das facções e suas ambições pelo controle da cidade114, ou ainda nas concepções diplomáticas com as outras comune italianas115. Nota-se, contudo, que as imagens de Catruccio Castracanni são díspares entre as passagens supracitadas e o relato histórico-biográfico proposto por Machiavelli. Nessas, ele é descrito como un vile cittadino lucchese e tiranno; enquanto que naquelas, sua Virtù é louvada em face aos vitupérios da Fortuna.
Destaca Machiavelli que a Fortuna desvela sua força ao mundo ao mostrar que não há prudência que possa tornar algum humano grande116. A vida de Castruccio Castracani demonstra esse preceito, por ser de baixo nascimento, não ter nenhuma aflição sobre as mudanças dos tempos e, ainda assim, pelas ações da Fortuna e também pela aquisição de grandes sucessos ser um grande exemplo para os seus contemporâneos117. O infante é acolhido por uma família abastada, a exemplo de Moisés, abandonado e cuidado como filho pela piedade alheia118. Amadurece como um cidadão modelo, em dotes físicos e civis, mostrando uma variedade de aptidões: destreza na espada; montaria; costumes; modéstia; boa fala; amabilidade119, prudência; coragem e popularidade120. A exemplo de Cesare Bórgia rejeita uma carreira clerical por ter uma preferência pelas armas121. A popularidade e o poder de Castruccio Castracani cresciam rapidamente, a ponto de gerar inveja e acusações de tirania, sobretudo após a morte de Francesco Guinigi e sua efetivação como tutor de Pagolo, o filho do falecido122.
Machiavelli descreve com detalhes a sagacidade política e a eficiência bélica de Castruccio Castracani, especialmente diante das alianças firmadas com outros governantes das comune itálicas, mas também diante das constantes batalhas entre o reino Francês, o território de Nápoles, o Império e a Igreja. Desse modo, o biografado é um exemplo de Virtù nas condições mais adversas, em batalhas físicas ou em negociações públicas. Há inegáveis paralelos com as famosas argumentações expressas em Il Principe e nos Discorsi, a partir das quais Castracani pode ser visto como um modelo histórico a ser seguido de acordo com as interpretações propostas por Machiavelli (BONDANELLA, 1972, 302-314). Desde o baixo nascimento até a repentina morte de Castruccio Castracani a díade Virtù-Fortuna apresenta-se conjugada nos campos de batalha, nos acordos políticos e nos estabelecimentos de ordens civis nas comune da Toscana. As descrições de Machiavelli enfatizam constantes adversidades e os meios pelos quais o personagem histórico supera-as, emulando em muitos momentos posições intelectuais defendidas ao longo do corpus de Machiavelli: a Fortuna assenhora-se dos assuntos humanos e necessita ser combatida123; a utilização da forza não é suficiente sem a indústria enraizada na Virtù individual de humanos específicos124; no caminho da obtenção do poder e em seu processo de manutenção, invejas pessoais e traições são inseparáveis no exercício do comando civil125; faz-se necessário aparentar misericórdia e ser implacável contra seus inimigos, replicando a fúria no campo de batalha nos modos de ordenação civil126; tanto o indivíduo quanto a cidade possuem somente a si para a defesa da libertà, os humanos, as outras cidades italianas, os reinos estrangeiros, a Igreja e o Império não são confiáveis e não podem fornecer a ajuda necessária no tempo devido127. Desse modo, em uma constante e feroz luta contra a Fortuna, a Virtù de Castruccio Castracani é física e retórica, por reunir em torno de si amigos, ser terrível contra os inimigos, justo com seus súditos e ser apto a se adaptar política e militarmente às circunstâncias128. Desse modo, o personagem emula a personificação de um exemplum ao melhor estilo da retórica histórica e literária da Roma Antiga.
Estando sob suspeitas diante dos olhares dos poderosos de Lucca, observa as brigas internas e externas de sua cidade. Alia-se a Uguccione, e eles promovem uma batalha no interior e no exterior da cidade simultaneamente, visto que o governante de Pisa forçava uma entrada e Castracani chamava o povo às armas129. Acreditava Florença que o partido gibelino havia conquistado muita autoridade na Toscana atacou Lucca. Durante a batalha, Uguccione é acometido de uma doença que o impede de estar na frente de batalha, recaindo tal responsabilidade a Castracani. Esse condottiere, cheio de astúcia, retarda o conflito imediato, aparentando medo aos inimigos, ao mesmo tempo em que anima a seus soldados130. Por sua vez, os florentinos criam que seus inimigos estavam sem comando, devido à ausência de Uguccione131. Em sua espera, Castracani induziu uma falsa confiança nos soldados inimigos e pode vencer a batalha com um ajuste tático do posicionamento das tropas, eliminando qualquer reação132.
A fama de Castracani é enorme devido ao sucesso de suas batalhas, gerando tamanha inveja que a vitória parecia não ter dado o comando, mas o retirado esse de Uguccione133. Deve o biografado sobreviver a intrigas políticas e tentativas de assassinatos. Castracani fornece guarida a um assassino de um nobre estimado pelo povo de Lucca, propiciando a Uguccione uma justificativa para a sua prisão e seu assassinato. Pede a seu filho, alocado na cidade, que convidasse Castracani para uma ceia com a finalidade de o prender e o matar. Neri retarda a pena máxima, ao temer a reação popular, exige a confirmação do pai. Após sair de Pisa para realizar a tarefa com quatrocentos cavaleiros, criticando o atraso e a covardia do filho, recebe a notícia que os habitantes de Pisa pegaram em armas, matando os membros de sua família que permaneceram na cidade. Temendo perder Lucca também, Uguccione direciona-se rapidamente à cidade impossibilitado de conter as falas desrespeitosas à autoridade estabelecida (parlare sanza rispetto), as revoltas (tumulti) e a subsequente libertação de Castracani. Diante da fuga de Uguccione, Castracani transforma-se em capitão e príncipe, estando em alta estima com a população de Lucca134.
Ao assumir o governo da cidade, Castracani buscava alianças com o império em amistosas recepções com Frederico da Baviera, por meio do qual o controle de Pisa lhe foi garantido135. Desse modo, com a reputação conquistada em Lucca e nos campos de batalha, juntamente à aliança com o imperador e os exilados de outras comune itálicas, Castracani desejava assenhorar-se de toda a Toscana136. Em meio às batalhas pela conquista da região, Castracani retornou a Lucca para resolver motins que desejavam a sua expulsão. A família Poggio, julgando não ser remunerada segundo os méritos de ter feito Castracani reconhecido e príncipe137, inicia uma série de acordos com outras famílias, matando o tenente que administrava a cidade. Stefano di Poggio, visa a conter a escalada de violência e a ser o mediador entre seus desejos e Castracani. Com as armas depostas, Castracani encontra sua cidade pacificada, e promete mostrar sua clemência e liberalidade (clemenza e liberalità): reúne a todos e mata-os138. Estabelece uma trégua com Florença e decide assegurar seu poder em Lucca, eliminando a seus inimigos e àqueles que pudessem pensar em ter o principado nas mãos: confiscos, mortes e exílios são feitos139.
Fortifica-se militarmente com os bens de seus inimigos e busca constantemente crescer seu domínio. Para tanto, engendra o duplo assassinato dos lideres de Pistóia e submete o povo dessa cidade à obediência por sua grande Virtù: não apenas pela trama, mas por promessas e perdões de débitos antigos140. O povo de Pistóia aquieta-se pela maestria de Castracani. Sua fama é tamanha que é chamado a apaziguar Roma, ausente do comando papal visto que João XXII estava preso em Avignon. Apenas sua presença, assim também o envio de trigo oriundo de Lucca e a punição dos líderes opositores, promoveu o restabelecimento da ordem sem qualquer derramar de sangue desnecessário. Tais ações fornecem grandes honras a Castracani, inclusive ser elevado a senador romano141. Devido às suas ausências de Pistóia, os florentinos julgavam ser possível conquistar a cidade com a ajuda de alguns exilados dessa. Ao invadirem, matam e expulsam os magistrados designados por Castracani. Buscam ainda antecipar os caminhos pelos quais o condottiere retornaria da Romanha. Todavia, ciente que tinha um exército numericamente inferior, Castracani refugia-se no castelo de Serravale, uma posição estratégica que possibilitaria sua vitória142. Em posse do castelo, confusão e desordem eram espalhadas nas fileiras da cavalaria e da infantaria florentinas por estarem suprimidos entre um desfiladeiro e a artilharia oriunda da fortaleza. Nesse sentido, destaca-se que Castracani utilizava-se habilmente da forza e da Virtù, ao contrário desses inimigos, os quais, incapacitados de resistir, fugiam143. Libera cavaleiros e infantes para destroçarem furiosamente seus inimigos, dentre os quais muitos nobres. Pistóia expulsa os partidários dos florentinos, guelfos, aceitando a submissão a Castracani – celebrada com jogos e moedas satirizando os florentinos144.
Florença não é totalmente saqueada pelo auxílio enviado pelo rei Roberto de Nápoles e pela necessidade de Castracani conter a revolta de Benedicto Lanfrachi em Pisa145. Esse, não admitindo o domínio de Lucca, decide pela conjuração que acaba com sua morte e de seus familiares. Diante de constantes traições e brigas em Pistóia e Pisa, Castracani estava ciente que não poderia contar com a fidelidade dessas cidades e, portanto, buscava constantemente consolidar seu poder por industria e forza146. Por outro lado, com a chegado do príncipe Carlos de Nápoles, Florença armou-se em um grande exército para atacar Pisa – por acreditarem ser suscetível a revoltas e influenciar diretamente às decisões em Pistóia147. Perante tamanha adversidade, Machiavelli ressalta a crença de Castracani de que a Fortuna havia lhe conferido a oportunidade de dominar todo o território da Toscana148. Novamente, o condottiere mostra sua maestria: separa o exército inimigo de suas provisões, deixando apenas como opção de batalha atravessar o rio Arno ou lutarem para conquistar um castelo. Ao cruzarem o rio, os soldados florentinos estão em desvantagem, mas travam uma intensa batalha149. Castracani finge um recuo para trocar suas unidades de batalha, empurrando os aliados de Florença novamente para o rio.
Todavia, a Fortuna, inimiga de sua glória, retira-lhe a vida150. Segundo Machiavelli, uma brisa, sempre pestilenta do Arno, causou febre terminal a Castracani151. Após os enormes esforços em batalha, o comandante esperou para saudar suas tropas diante da iminente vitória e lhes infundir ânimo. Desengano pelos médicos, chama Pagolo Guinigi, de quem havia se tornado tutor. Em seu discurso de despedida, assevera que a Fortuna deseja torna-se árbitro de todos os assuntos humanos, impossibilitando-o de conhecer de antemão seus desígnios e o impedindo de superar suas ações152. Se estivesse ciente que não lograria êxito em suas ambições, buscaria outros meios para administrar os reinos que eles possuíam, pois: os príncipes de Milão e o imperador não são confiáveis, pois estão distantes153; os florentinos estão irados após tantas e ardorosas batalhas154; Pistóia está dividida e não possui fidelidade a eles155; os habitantes de Pisa são volúveis e cheios de falácias, ainda que possam estar sob a servidão jamais consentiriam em um domínio de Lucca156; por fim, a cidade natal de ambos não estará contente de estar sob o domínio do herdeiro de Castracani157. Nessas circunstâncias, pondera que agiria de maneira distinta, buscando um menor domínio, porém mais estável, com menos inimigos e menores invejas em uma tentativa de maior tranquilidade e menores conflitos158. Contudo, em vista das experiências que viveram conjuntamente, Castracani orienta a Pagolo a somente confiar em sua própria industria, na memória de sua Virtù e na reputação da vitória obtida159. Requer-se, portanto, prudência para buscar um acordo com os florentinos. Mistura-se a vida relatada de Castracani e seu exemplo ao relato do historiador, também analista político, Machiavelli, pois o condottiere ressalta ter deixado um reino e também ensinado a mantê-lo160. Deve-se aprender com a vida e com o relato da vida de Castruccio Castracani, pois é necessário conhecer a si mesmo e saber misturar a força do ânimo pessoal com a potência das ordens civis sob seu comando161. Enquanto Castracani cercava-se de inimigos em todas as esferas, imaginando alcançar gradativamente mais poder e glória, esse sugere a Pagolo Guinigi construir amizades que renderão segurança e conforto162. Apreende-se da vida de Castracani, das ações da Fortuna e de seus conselhos a Pagolo que o humano virtuoso deve estar preparado tanto para a guerra bélica quanto para a paz diplomática163. Evidencia-se, portanto, que mesmo um personagem, inicialmente favorecido pela Fortuna e pleno de Virtù em suas ações, não escapa às ações imponderáveis dos acontecimentos. Com grande astúcia e indústria supera seus inimigos em condições de extrema adversidade, podendo ser comparado a Felipe da Macedônia e Cipião. Todavia, é impossibilitado de atualizar seus intentos por não possuir as mesmas “pátrias” que esses164.
A partir dos exemplos históricos selecionados ao longo do corpus de Machiavelli, constata-se a necessária ação humana, plena de Virtù, para o estabelecimento das ordenações civis e as medidas necessárias para a sua manutenção. A Díade Fortuna-Virtù é atestada em argumentações centrais do pensador florentino, associando-se às ocasiões e as ações imprescindíveis para o agir humano na história. A instabilidade política, as forças além do controle humano, a imponderabilidade das ações civis são temas recorrentes nas concepções sobre a Fortuna em variadas argumentações de Machiavelli. Em aberto diálogo com os humanistas cívicos que enfatizam maior participação política e social, mesclando embasamento racional, consideração moral e as discussões sobre as formas de governo, esse escritor apresenta uma concepção historiográfica a revigorar tradições do mundo antigo na criação de uma ordem civil mediante a Virtù, que demanda comprometimento pessoal e público, na exaltação das potencialidades e dos limites humanos.
Referências
Baron, Hans. The Crisis of Early Italian Renaissance. Princeton: Princeton University Press, 1993
Bell, Sinclair. Role Models in the Roman World: Identity and Assimilation. Ann Arbor: Michigan Press, 2008.
Benner, Erica. Machiavelli´s Ethics. Princeton: Princeton University Press, 2009
Bignotto, Newton. A Antropologia Negativa de Maquiavel. Analytica v.12, n.2, p. 77-100, 2008.
Bignotto, Newton. Maquiavel Republicano. São Paulo: Loyola, 1991,
Boethius. The Consolation of Philosophy. Cambridge: Harvard University Press, 1978.
Bonadella, Peter. Castruccio Castracani: Machiavelli´s Archetypal Prince. Italica v.49, n.3, p.302-314, 1972.
Bonadella, Peter. Machiavelli and the Art of Renaissance History. Detroit: Wayne State University Press, 1973.
Broucke, Pieter. Tyche and Fortune of Cities in the Greek and Roman World. Yale University Art Gallery Bulletin, p. 33-49, 1994.
Brucker, Gene. Renaissance Florence. Berkeley: University of California Press, 1983
Canter, H.V. Fortuna in Latin Poetry. Studies in Philology v.19, n.1, p. 64-82, 1992.
Chaplin, Jane. Livy´s Exemplary History. New York: Oxford University Press, 2000.
Cioffari, Vincenzo. The function of Fortune in Dante, Boccaccio and Machiavelli. Italica v.24, n.1, p. 1-13, 1947.
Dante, Alighieri. Opere. Bologna: Nicola Zanichelli, 1966.
de Assis, Jean. "Acaso, Chance, Fortuna e Azar: Imagens da Tyche no pensamento grego antigo" Fragmentos de Cultura 29.2 (2019): 301-309.
Frakes, Jerold. The Fate of Fortune in the Early Middle Ages: The Boethian Tradition. Leiden: Brill, 1988.
Garin, Eugenio. L´Umanesimo Italiano: Filosofia e Vita Civile Nel Rinascimento. Editori Laterza, 1978.
Gilbert, Felix. On Machiavelli´s Idea of Virtu. Renaissence News v.4, n.4, p. 53-55, 1951.
Lefort, Claude. Machiavelli in the Making. Evanston: Northwestern University Press, 2012,
MACHIAVELLI, Niccolò. Tuttele opere di Niccolò Machiavelli a cura di Francesco Flora e di Carlo Cordiè. 2 volumi. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1949.
Mansfield, Harvey. Machiavelli´s Virtue. Chicago: The University of Chicago Press, 1998.
Pocock, J. G. A. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition. Princeton University Press, 1975.
Pollitt, J.J. An Obsession with Fortune. Yale University Art Gallery Bulletin, p. 12-17, 1994.
PRICE, Russell. Ambizione in Machiavelli´s Thought. History of Political Thought v.3, p. 383-445, 1982.
Price, Russell. The Senses of Virtù in Machiavelli. European Studies Review v.3, p.315-345, 1973.
PRICE, Russell. The Theme of Gloria in Machiavelli. Renaissance Quarterly v.30, n.4, p. 588-631, 1977.
Roller, Matthew. Models from the Past in Roman Culture: A World of Exempla. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.
Skinner, Quentin. The Foundations of Modern Political Thought: Volume 1, The Renaissance. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
Skinnner, Quentin. Visions of Politics: Renaissance Virtues. New York: Cambridge University Press, 2004.
van Egmond, Bart. Augustine´s Early Thought on the Redemptive Function of Divine Judgment. New York: Oxford University Press, 2018.
Viroli, Maurizio, O Sorrido de Nicolau: História de Maquiavel. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
Vivanti, Corrado. Nicolau Maquiavel nos Tempos da Política. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
Whitfield, J.H. The Anatomy of Virtue. The Modern Language Review v.38, n.3, p. 222-225, 1943.
________________________________________________________________________________ Autor(a) para correspondência: Jean Felipe de Assis, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rua Alexandrina 288, Rio Comprido, 20261-232, Rio de Janeiro – RJ, Brasil. jeanfelipe@hcte.ufrj.br