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O díptico communitas / immunitas e o pensamento afirmativo
The diptych communitas / immunitas and the affirmative thinking
O díptico communitas / immunitas e o pensamento afirmativo
Griot: Revista de Filosofia, vol. 17, núm. 1, pp. 22-32, 2018
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 04 Março 2018
Aprovação: 13 Maio 2018
Resumo: O texto tem como objetivo apresentar a categoria de “biopolítica afirmativa” de Roberto Esposito. Para tanto, na primeira parte discute-se rapidamente o que se convencionou chamar de “a diferença italiana”. O segundo tópico do texto discute o significado de comunidade a partir do seu étimo originário munus. Na seção seguinte aborda-se o “dispositivo imunitário” onipresente em nossas sociedades. A partir dessas considerações pode-se, na última parte, discutir o problema central proposto, isto é, a biopolítica afirmativa.
Palavras-chave: Comunidade, Imunidade, Biopolítica afirmativa, Esposito.
Abstract: The text aims to present the category of "affirmative biopolitics", proposed by Roberto Esposito. To do so, the first part discusses quickly what has been called the "Italian difference". The second topic of the text discusses the meaning of "community" from its origin, "munus". The next section addresses the "immune paradigm" which is ubiquitous in our societies. From these considerations we can, in the last part, discuss the proposed central problem, that is, the affirmative biopolitics.
Keywords: Community, Immunity, Affirmative biopolitics, Esposito.
Introdução
Nenhum conceito atraiu tanto a reflexão da filosofia política nos últimos 20 anos quanto o conceito de biopolítica. Tal conceito, se não cunhado, foi reproposto e requalificado longamente por Foucault nos anos 1970, que curiosamente, viverá certo ostracismo no período que vai da mudança de perspectiva das pesquisas do próprio Foucault e sua morte prematura, até mais ou menos meados dos anos 1990. A partir desse período, filósofos representantes de correntes tão diversas como o marxismo, o pós-estruturalismo e a psicanálise passam a reelaborá-lo de forma intensa tendo em vista descrever os fenômenos ligados às mudanças radicais na semântica da vida. Para além de todas as questões levantadas por Foucault a respeito das relações entre poder e vida (tais como o problema das disciplinas, das regulamentações, da governamentabilidade, etc – que não será objeto de análise desse texto) ., fatos históricos recentes como os precários desembarques de refugiados/imigrantes nas costas dos países da Europa Ocidental com as consequentes ações de bloqueio por parte da política e da polícia; ou as práticas terroristas operadas por homens e mulheres que se explodem a si mesmos com o intuito de suprimir o maior número de vítimas possíveis; ou ainda as pesquisas de biotecnologia genética, dão a impressão que a política e o poder estão, muito mais do que antes, relacionados à própria vida. Como essas considerações produzidas na segunda metade dos anos 1970 na França impactam o pensamento político italiano a partir dos anos 1990, desdobrando-se até os dias atuais? Quais seriam os motivos, como explicar o fato de que alguns autores italianos importantes tenham recentemente desenvolvido de uma forma bastante original as reflexões de Foucault sobre a biopolítica, situando com isso o pensamento italiano no centro do debate filosófico internacional?
A diferença Italiana
Essas questões são, dentre outros autores, objeto dos últimos trabalhos de Roberto Espósito. Ver por exemplo Pensiero Vivente (2010) e Da Fuori (2016). O objetivo desse texto não é revisitar tais questões, mas partir de alguma das aquisições fruto dessas reflexões, tentando tirar algumas consequências mesmo que provisórias. . Entre tais aquisições poderíamos sugerir as seguintes. 1. O pensamento italiano em seu léxico seria prevalentemente político e “afirmativo”. 2. Diferiria, nesse sentido, da “neutralização” francesa e da “intenção negativa” da teoria crítica alemã. 3. Poria em evidencia e valorização o “conflito”. 4. O real não é monolítico, como querem os frankfurtianos, tampouco se pulveriza em uma miríade de diferenças como imaginam os pós-modernos franceses. E por fim, 5. Como decorrência imediata da anterior, defronte a essas duas representações opostas, no pensamento italiano prevaleceria uma concepção bipolar de luta entre as forças.
Pois bem, partamos de uma constatação óbvia. É evidente que uma postura antagonista não é estranha nem à filosofia alemã, nem à teoria francesa. Ela é o pressuposto da dialética negativa de Adorno, como da dinâmica entre poder e resistência em Foucault ou na dicotomia entre “molar” e “molecular” em Deleuze. Mas o que diferenciaria o pensamento italiano das duas outras tradições seria o seu esforço em dar coloração política explícita a suas análises. A “matéria” do discurso filosófico do pensamento italiano seria explicitamente o “político” em sua dimensão conflitual, ao passo que na teoria francesa essa “matéria” seria grosso modo a “escritura” e na filosofia alemã o “social”. (Cf. ESPOSITO, 2016, p. 157 e ss)
Exemplificando. Sabemos da hereditariedade da dinâmica foucaultiana entre poder e resistência. Decorre em parte da genealogia nietzscheana. Sabemos também que Foucault a aplica a todo tipo de relação social estendendo-a a todo o arco da experiência humana. Inflacionando a coloração social, perderia ele intensidade no político? Ao contrapor-se, poder e resistência acabariam por equivaler-se, visto que ambos seriam a expressão de uma reação? Se o poder produz resistência, essa produz novo poder. Como a resistência é uma forma de poder, esse último, por sua vez, seria ele mesmo um modo de resistência? São problemáticas essas questões. Por outro lado, sabe-se que a genealogia nietzschiana reconduz todo o real a um choque entre duas ordens de forças, uma ativa e outra reativa. No entanto, no entender de Nietzsche as forças não se equivalem sobre o plano qualitativo: enquanto as primeiras não fazem mais que afirmar, as segundas negam tal afirmação. Aquelas reforçam-se, essas tentam enfraquecer as outras. Tal dimensão teria fugido a Foucault, por exemplo? Não me aprece provável, no entanto ela é essencial para todo o pensamento italiano atual, como veremos abaixo. Outro aspecto tão ou mais importante na genealogia de Nietzsche é a precedência lógica das forças afirmativas sobre as reativas: a afirmação é primeira, a reação segunda. Toda reação negativa é, portanto, segunda em relação à ação afirmativa. Fato é que esse simples ensinamento de Nietzsche – jamais pensar o positivo somente como o êxito da negação do seu oposto – terá consequências importantes no pensamento italiano em grau de intensidade talvez inaudito nas outras duas tradições do pensamento europeu continental, seja o francês, seja o alemão. Essa modalidade afirmativa do pensamento é o horizonte comum de um grande número de textos, não obstante muito diversos entre si. A tentativa de cada um deles é de tentar romper com a máquina metafísica ou teológico-política que pensa o positivo/afirmativo como o êxito da negação de seu oposto. A partir de um olhar atento, as principais categorias políticas modernas como propriedade, soberania, liberdade se mostram como produtos derivados, contrastivos de uma outra elaborada para ser negada. Assim, por exemplo, em Hobbes, o estado civil, a soberania, não surge senão como resultado da negação de um hipotético estado de natureza negado. Da mesma forma, a propriedade em Locke é somente o êxito de uma privatização e, nesse sentido, negação de todo espaço comum. Ambas, soberania e propriedade, antes de ser uma afirmação de si, são resultados da negação do seu contrário. É a este dispositivo tipicamente metafísico que a filosofia italiana em seus diversos autores, tentam se opor, buscando pensar de forma afirmativa. (Cf. ESPOSITO, 2016, p. 157 e ss).
O mesmo Roberto Esposito em dois outros de seus livros, esses, escritos em forma de díptico: Communitas. Origine e destino della comunità (1998) e Immunitas. Protezione e negazione della vita (2002) a meu ver representa claramente uma dessas modalidades de pensamento político afirmativo italiano. O intuito desse texto a partir de agora será, analisar alguns dos desdobramentos de tal pensamento. O motivo desse referimento se encontra, entre outros, no fato de que Esposito opera nesse díptico a junção de duas semânticas caras ao pensamento italiano contemporâneo: os problemas da comunidade e da biopolítica. Outro motivo importante de tal escolha reside no sua inserção no ponto de tensão entre as duas vertentes principais do pensamento francês: o heideggeriano representado por Derrida e o nietzschiano explicitado por Foucault e Deleuze. Portanto, junção de duas semânticas e diálogo com duas vertentes do pensamento franco-germânico.
Communitas
Para se compreender o que está em jogo no pensamento de Esposito e nos problemas por ele levantados é necessário, de início, situá-lo no debate aberto nos anos oitenta sobre a “comunidade”, mesmo que en passant, como será o caso aqui. É sabido, que esse debate, no geral, intentou “desconstruir” as concepções de comunidade prevalentes durante boa parte do século XX. Primeiro a sociologia organicista do Gemeinschaft, depois as várias éticas da comunicação e por fim o neocomunitarismo americano. Apesar de todas as diferenças entre essas várias concepções todas podem ser nomeadas como “substancialistas”, ou seja, a “comunidade” é entendida como uma substância que conferiria pertença e propriedade a determinados sujeitos. Nesse sentido, o “comum” se liga aqui paradoxalmente ao “próprio”: quer se tratasse de apropriar-se do que é comum, ou comunicar-se o que é próprio, a comunidade seria definida como uma apropriação. Como escreve Esposito “Il suoi membri risultavano avere in comune il loro próprio, essere proprietari del loro comune” (2016, p. 179).
Contra essa concepção de comunidade como apropriação em que o “comum” se liga em curto-circuito com o “próprio”, se insurgem, em um arco temporal de poucos anos, uma série de textos, tais como: La communauté désoeuvrée de Jean-Luc Nancy (1986), La communauté inavouable de Maurice Banchot (1984), La comunità che viene de Giorgio Agambem (1990) e exatamente Communitas de Esposito (1998). Percebe-se nesses textos, apesar de percursos muito diferentes, uma sensível alteração da semântica anterior. Ao invés de ser entendida como uma propriedade ou como uma pertença de seus membros, a comunidade passa a ser referenciada a uma alteridade constitutiva que a subtrai de qualquer conotação identitária, o que não elimina uma relação com a subjetividade. “Ciò non elimina il rapporto com la soggettività – communes sono i soggetti, non i beni dela comunità –, ma in una forma che, anziché un processo di interiorizzazione, pressupone una sorta di esteriorizzazione. Anziché concentrati su di sé, essi risultano affacciati sul proprio fuori – o anche sul fouri del proprio” (ESPOSITO, 2016, p. 179).
Não se tem como objetivo discutir as várias concepções de comunidade acima referidas, digamos somente que, para Esposito, malgrado a fecundidade dessas análises elas fracassariam em um ponto crucial: na articulação com a política. Seguindo o contributo do autor na discussão sobre o aspecto político implícito na noção de comunidade, diríamos que tal contributo aparece de início no seu empostamento genealógico em busca do significado do termo latino communitas. Apesar de também estar teoricamente muito próximo dos desconstrutivistas franceses, tal como Nancy, a atenção genealógica de Esposito sobre o termo latino communitas não se detém sobre o cum (como Nancy o faz), mas sobre o munus. Essa passagem tem um ganho considerável que é o seguinte: o significado bivalente de “lei” e “dom” ou de “lei do dom” do munus, permite a Esposito manter e até mesmo acentuar a semântica expropriativa dos desconstrutivistas, mantendo, no entanto, um canal aberto para a dimensão política.
O “dispositivo imunitário”
É nesse canal aberto que Esposito encontra o “dispositivo da imunidade” ao qual seria difícil acessar a partir do cum, visto que “imunidade” deriva seu significado, privativo, do termo munus. Com efeito, se a communitas liga seus membros a um recíproco empenho, a immunitas os desonera de tal incumbência. “Come la comunità rinvia a qualcosa di generale, l’immunità rimanda, al contrario, alla particolarità privilegiata di una condizione sottratta all’obbligio comune” (Esposito, 2016, p. 181). Dois paralelos ajudam a entender o problema. A imunidade é entendida na linguagem biomédica como uma forma de isenção ou de proteção a uma doença qualquer. Na linguagem jurídica ela representa uma sorte de salvaguarda que coloca aquele que a detém numa condição de intocabilidade em relação a uma lei comum. Em ambos os casos, imune é aquele que está a salvo de riscos a que estão expostos todos os outros membros da comunidade. Já assim se percebe certa dialética entre imunidade e comunidade que está na base das análises dos livros Immunitas. Protezione e negazione della vita (2002) e Bíos. Biopolitica e filosofia (2004). De forma genérica na etimologia de ambas as categorias na sua formulação latina de immunitas e communitas, vê-se que uma é o reverso da outra e ambas derivam do termo munus que, como dito, em latim significa “dom”, “obrigação”. Uma sorte de “obrigação donativa” ou “dom obrigatório”. Assim, se os membros da comunidade se caracterizam por essa “obrigação donativa”, a imunidade implica a isenção, a derrogação de tal condição. “è imune chi è al riparo dagli obblighi o dai pericoli” (ESPOSITO, 20012, p. 80). Esposito defende duas teses em Immunitas (2002). A primeira seria que esse dispositivo imunitário (a exigência de isenção e proteção) que originariamente se reduz ao âmbito médico e jurídico, se expande no curso do tempo a outras linguagens, acabando por invadir toda a experiência contemporânea, seja nos campos teológico, antropológico ou político. Vemos surgir de todos os lados barreiras, muros, fronteiras, linhas de separação diante de algo que ameaça, ou pelo menos parece ameaçar nossas identidades biológica, social, cultural, ambiental. Como nos lembra Esposito evocando Elias Canetti quando esse último indicava na origem da modernidade um curto-circuito perverso entre tato, contato e contágio: “O contato, a relação, o estar em comum, parece imediatamente esmagado sob o risco da contaminação” (ESPOSITO, 2017, P. 141).
A segunda tese de Esposito pode ser enunciada assim: a imunidade, necessária para proteger a vida, quando levada para além de certos limites, termina por negar a própria vida. Daí o subtítulo da obra Immunitas: “proteção e negação da vida”. Esposito, em uma entrevista a Timothy Campbell (2012) sugere que poderia ser dito “proteção . negação da vida”, no sentido de que, ultrapassado um determinado limite, tal proteção constringe a vida em uma armadura que não só coloca em risco a própria liberdade, como também o sentido mesmo da existência individual e coletiva. Aquilo que protege o corpo individual e político é ele mesmo o que impede seu desenvolvimento. Armadura, jaula que impede a circulação do sentido o expor-se da existência fora de si. “Poder-se-ia dizer – para usar a linguagem de Walter Benjamin, ele mesmo morto pelo fechamento de uma fronteira – que a imunização em altas doses é o sacrifício do vivente, isto é, de toda forma de vida qualificada, às razões da simples sobrevivência. A redução da vida a seu estrato biológico nu, do bios à zoé” (ESPOSITO, 2017, P. 143). Um leitor atento reconhece nessa última citação não só Benjamin, explicitamente nomeado, mas também Aristóteles, Arendt e o próprio Agamben, sem contar Foucault, claro. Assim, pode-se sugerir que se a comunidade determina a quebra de barreiras protetivas da identidade, a imunidade as reconstrói de forma defensiva e às vezes agressiva em face de qualquer agente externo que venha a ameaçá-la. Claro que isso vale para os indivíduos como para as comunidades elas mesmas, cada vez mais imunizadas.
O problema político essencial de nosso tempo é que a comunidade identitária entendida e vivida como uma “pertença do próprio” nos moldes da sociologia organicista, das éticas comunitárias e do neocumunitarismo americano, se torna mais e mais uma imunidade. O mundo contemporâneo com espasmos mais ou menos graves a depender do ano ou do mês se debate no âmbito interno do triângulo do monoteísmo cristão, judeu e islâmico de espectro histórico bem mais largo. Boa parte dos nossos problemas políticos reflui no interior do círculo fatal do monoteísmo. O problema é que as civilizações – islâmica e cristã através da judia – se confrontam não por serem diferentes e opostas, mas ao contrário por serem demasiadamente semelhantes ligadas que estão em todas as suas categorias constitutivas à lógica do Um, do monoteísmo. Se no oriente ela se exprime na figura do Deus único, no ocidente essa lógica se mostra através de um outro Deus único, o dinheiro. No fundo não muda o problema, trata-se da lógica do um, da lógica monoteísta, da Unidade. O monoteísmo político se esconde por detrás de um monoteísmo religioso e epistemológico. Cada um com sua verdade única parcial e pretensamente universal se digladiam no horizonte do que singelamente estamos acostumados a denominar de globalização. Por um lado a verdade pretensamente universal do Corão, de outro, a verdade do niilismo ocidental do cristianismo securalizado, também pretensamente universal segundo a qual a verdade é de que não há verdade, visto que o que conta é somente o princípio de performance técnica, a lógica do lucro, da produção total. De ambos os lados, verdades, absolutas, exclusivas e excludentes que se confrontam no interior do dispositivo imunitário. O resultado nos é conhecido: fechamento de fronteiras, exclusão do outro, da alteridade, do fora que venham eventualmente embaraçar a lógica do Um-Tudo. No momento em que o dispositivo imunitário se generaliza no nível global o comum se transforma em uma dimensão real e simbólica de resistência a esse excesso de imunização. Se a imunização tende a encerrar a vida em uma cúpula protetiva, a comunidade (entendida aqui como falta, despossessão, contrária a lógica do próprio e da propriedade), seria uma fenda, uma brecha, uma cunha que se esforça conceitualmente em liberar-nos de nossa obsessão securitária. Assim, argumenta Esposito, se percebe como graças a essa chave hermenêutica e sem cair em uma concepção metafísica e substancialista, a comunidade readquire uma nova conotação política.
A biopolítica afirmativa
O passo que gostaria de dar agora é o de tentar mostrar o aspecto afirmativo de tal conceituação. Que a elaboração teórica da communitas (1998) preceda a da immunitas (2002) na obra de Esposito, não deve ser entendido como um mero acaso. O problema é de precedência lógica do primeiro termo sobre o segundo. Retomando o que dizíamos no início sobre as forças ativas e reativas, não é a comunidade que reage a imunidade, mas justo o contrário, é esta a reagir a aquela. “È l’apertura originaria della communitas – com l’opportunità e il rischio che implica – a determinar la risposta defensiva della immunitas” (Esposito, 2016, p. 182) . Isso, no entanto, não quer dizer que a comunidade seja temporalmente anterior à sociedade, como gostaria Tönnies. No entender de Esposito, a communitas jamais existiu em tempo algum, seja na antiguidade, seja na modernidade. Nem mesmo algo virá depois dela, como gostariam os neocomunitaristas, ou qualquer espécie de messianismo de uma “comunidade por vir”. Nem um retorno a um passado perdido, nem um tipo qualquer de teleologismo. “La communitas non va intesa né como un’origine né come uma destinazione, ma come una soglia epistemologica, o una misura critica, rispetto all’immunizzazione cui è esposta la società. Da questo punto de vista, essa è sempre contemporanea all’immunità – non come il suo rovescio negativo, ma come il suo dritto affermativo” (Esposito, 2016, p. 182). Reafirmação, portanto, de um pensamento afirmativo, seguindo o ensinamento de Nietzsche.
Tal operação teórica de leitura da modernidade se distancia seja daquela frankfurtiana antimoderna, seja da outra francesa de tipo pós-moderna. Mas difere também de outras operações ao interno da própria filosofia italiana recente. Sustentar que comunidade e imunidade não precede uma a outra ou se alternam no tempo, significa afirmar que são o verso e o reverso de um mesmo e único processo e que não haverá termo final ao conflito. A separação da vida em bios e zoe não é originária nem necessária, mas produto de um dispositivo reativo a algo que venha a ameaçá-la. O discurso filosófico da modernidade poderia ser lido como um conjunto discursivo de resposta imunitária cada vez mais eficaz contra os riscos, reais ou presumidos, decorrentes das relações humanas.
É Nesse sentido crítico que em Bios (2004) Esposito associa o momento específico da imunização à modernidade, quando o individualismo e o “privatismo” substituem as antigas formas de organização associativa. Em termos filosóficos, ainda segundo o autor, o começo simbólico do processo de imunização na modernidade se daria com Hobbes: é nesse momento que a imunização encontra seu lugar na teoria e na práxis política. Na forma esperada da dialética imunidade-comunidade, os súditos trocam seu direito natural pela proteção do soberano contra os riscos e perigos implícitos na comunidade. Os súditos na mesma medida em que se associam ao soberano se dissociam entre si. O resultado do contrato é um “nada de comunidade”, um “nada em comum”. Para Esposito as categorias modernas de soberania, propriedade e liberdade, seriam expressões secularizadas jurídico-políticas que surgiram, após o desmantelamento do dispositivo teológico, que deram conta, da melhor maneira possível, das demandas de proteção de autoconservação que surgiram do fundo da própria vida (Cf. ESPOSITO, 2012, p. 86).
É evidente que hoje as condições de nossa experiência contemporânea e, portanto, a semântica imunitária é muito diversa dessa da primeira modernidade. Enquanto na primeira modernidade a relação imunitára entre política e conservação da vida era mediata, justamente pela soberania, representação, direitos individuais, em um segundo momento e por derivas inúmeras chegando até nós, essa mediação se enfraquece progressivamente, a ponto de se constituir uma sobreposição muito mais imediata entre política e vida. Daí uma grande corrida em busca de dispositivos de segurança cada vez mais extensos e intensivos, o que faz com que os mecanismos imunitários que haviam funcionado em um passado mais ou menos recente passem a não mais funcionar adequadamente, com efeitos sempre mais complexos e danosos. A esse processo pode-se dar o nome de globalização. Quanto mais os homens, ideias, linguagem, técnicas se intercambiam, mais se exigem dispositivos de imunização. Assim, a deriva étnico-fundamentalista da qual somos contemporâneos é uma tentativa de imunização contra a contaminação operada pela globalização. Essa deriva fundamentalista e imunitária, parte dos dois lados e das duas formações culturais e religiosas monoteístas de oriente e de ocidente. Diz Esposito na já citada entrevista a Campbell,
L’attuale conflito [2006] appare, infatti, scaturito dalla pressione contraposta di due ossessioni imunitarie ala fine speculari: quella del fondamentalismo islâmico, deciso a proteggere fino alla morte la propria pretensa purezza religiosa, etnica, culturale dalla contaminazione della secolarizzazione occidentale e quella di una parte dell’occidente, inpegnato ad escludere il resto del pianeta dalla condivisione dei propri beni in eccesso, a defendersi dalla fame di una larga parte del mondo sempre più condannata ad un’anoressia forzata. (2012, p. 84)
É nesse quadro que deve ser pensada uma biopolítica afirmativa. Como desenhar-lhe os contornos? Como desenvolvê-la? Longe de pretender dar uma resposta precisa a tais questões, trata-se evidentemente de tentar reverter as relações de força entre comum e imune, ou seja, reverter, ou melhor, “desativar” o próprio “dispositivo imunitário”. Tentar transformá-lo de um dispositivo de barreira e exclusão em um filtro móvel entre interno e externo, dentro e fora. Desativação dos dispositivos de imunização negativa e ativação de um novo espaço do comum. Nada disso é simples visto que se, por um lado a imunização exclui, por outro, protege. Como já havia notado o próprio Foucault: todo assujeitamento está intrinsecamente ligado aos processos de subjetivação. Mas há a meu ver um outro grande problema a ser desconstruído no processo generalizado de imunização em que vivemos. Refiro-me à noção de “bem comum” na sua relação com “bem público” e “bem privado”. Vivemos desde muito uma retirada do comum sobre a pressão do público e do privado. Aliás, Hanna Arendt já havia percebido tal processo no seu A condição humana. “L’ imunità non si è limitata a rafforzare i confini del proprio, ma ha investito progressivamente anche la sfera pubblica. Non per nula la sovranità reppresenta il primo, e fondamentale, dispositivo immunitario moderno” (ESPOSITO, 2016, p. 184). A propriedade do estado longe de ser o oposto da propriedade privada é seu reverso complementar. O processo de apropriação, seja pelo público, seja pelo privado dos recursos ambientais, dos espaços de cidadania, da inteligência coletiva nos âmbitos informacionais são campos de luta de uma biopolítica afirmativa em vistas do reforço do comum. Ou seja, nada nisso é muito fácil. O próprio direito milita no sentido inverso. Não dispomos de um aparato jurídico direcionado à instituição do comum, não contemplado na distinção moderna entre “direito público” e “direito privado”. Não dispomos de um léxico organizado para falarmos de algo como o “comum” excluído que foi do processo de modernização e depois do da globalização.
Uma palavra a mais. Uma das formas de se tentar começar a elaborar um léxico apropriado à explicitação do comum seria partir das noções de impessoal e singular. Aqui como em outros lugares Esposito se inspira em Espinosa e Deleuze. Trata-se de tentar desestabilizar ou desativar a absoluta imanência da vida individual em favor da absoluta singularidade de “uma vida”. Pressente-se aqui o passo gigantesco dado por Deleuze em seu último texto “A imanência: uma vida”.
La vie de l’individu a fait place à une vie impersonnelle, et pourtant singulière, qui dégage un pur événement liberé des accidents de la vie intérieure et extérieure, c’est-à-dire de la subjectivité et de l’objectivité de ce qui arrive. “homo tantum” auquel tout le monde compâtit et qui atteint à une sorte de beatitude. C’est une hecceité, qui n’est plus d’individuation, mais de singularisation: une vie de pure immanence, neutre, au-delà du bien et du mal, puisque seul le sujet qu l’incarnait au milieu des choses la rendait bonne ou mauvaise. La vie de telle individualité s’efface au profit de la vie singulière immanente à un homme qui n’a plus de nom, bien qu’il ne se confonde avec aucun autre. Essence singulière, une vie... (1995, p. 5)
Essa vida da qual fala-nos Deleuze, “impessoal , todavia singular” é a vida a que se refere a biopolítica afirmativa, o comum. Público e privado, cada um à sua forma, implicam em propriedade. O comum a seu turno implica em desposseção, implica no impessoal, ou seja a desposseção de si mesmo. Só uma “coisa” pode ser propriedade de alguém. Poderia ser não apropriado, não apropriável, somente um corpo humano que não pertencesse a um sujeito, mas que fosse ele mesmo tal. Estamos em pleno espinosisno. Nesse caso não poderíamos mais dizer, como comumente fazemos, que temos um corpo, mas que somos um corpo. Para Esposito isso só seria possível se pensarmos a pessoa (persona) na forma da impessoalidade. É essa a “terza persona”, o impessoal a persona do comum, da communitas, da biopolítica afirmativa. (ESPOSITO, 2007). Essa vida impessoal é “uma vida” imanente, desse “mundo”, entendido como um grande conjunto imanente a si mesmo, que contem uma pluralidade de seres em relação recíproca, expostos aos acontecimentos, no qual toda forma de vida vale enquanto tal. Um espinosismo lúcido.
Considerações finais
O que singelamente temos nos acostumados a denominar processo de globalização é a face visível do dispositivo imunitário contemporâneo. Saídas fáceis estão fadadas ao fracasso. Em termos histórico-político a primeira delas seria uma tentativa de retorno ao “modelo Westfalia”, ao acordo dos Estados plenamente soberanos e livres em relação a todos os outros que ocupou a cena mundial nos últimos cinco séculos. Impossível parece também supor o retorno dos blocos contrapostos, cena que dominou o mundo desde o fim da segunda guerra até os anos 1990. Tampouco seria razoável pensar em um retorno a uma constelação de lugares etnicamente definidos unidos por terra, sangue e linguagem. Os três modelos claramente fracassaram e estão calcados na dialética entre local e global. Não se trata de tentar tirar uma saída fácil da cartola, elas não existem, mas talvez a construção de uma nova relação entre singular e mundial possa apontar para algumas possíveis saídas. Mas isso claro só seria possível com o ultrapassamento da lógica monoteísta, constitutivamente imunitária e intimamente ligada ao léxico teológico-político no qual ainda, e apesar de toda a secularização, estamos imersos como bem nos explicitou teoricamente Carl Schimitt e o problema do monoteísmo nos explicita pratica e historicamente a cada momento.
Por outro lado e como se tentou argumentar o pensamento italiano tem como característica principal o fato de ser um pensamento político e afirmativo. Viu-se também a tentativa de Esposito que, seguindo vários outros autores, repropõe e reposiciona a noção de comunidade entendida como um conjunto de personas unidas não por uma propriedade, mas por uma falta, não de um mais, mas de um menos, de uma ausência. O comum sempre foi entendido na modernidade como uma forma de propriedade, Esposito, ao contrário, o opõe ao proprium. O comum se diferencia do público e do privado no sentido de não poder ser objeto de propriedade, nos destitui até mesmo de “nossa própria” subjetividade. O comumé constituído pelo impessoal, pelo singular é a “singularidade plural”, des-identificada de que nos fala Deleuze (1995). É essa categoria que se opõe e se relaciona dialeticamente com a imunidade excludente, própria, identitária. Mesmo que os tempos atuais que nos acostumamos de nominar como globalização sejam tempos de exclusão imunitária, do medo e da elevação de muros e fronteiras, prontos a defender o proprium, seja ele em nome do “nosso” ou do “meu”, é também um tempo de oportunidades inéditas de criarmos novas formas de política. Somente invertendo a lógica imunitária seremos capazes de constituir uma biopolítica afirmativa. Naturalmente, sei bem que converter essa lógica filosófica em práxis real e histórica e em lógica política não é tarefa fácil. No entanto, é preciso encontrar formas, linguagens conceituais para inverter ou mesmo desconstruir a lógica imunitária subjacente a todos os fundamentalismos políticos. É preciso pensar e mais ainda praticar o mundo – irreversivelmente biopolítico e globalizado – como “unidades de diferenças”, “sistemas de distinções” a partir de uma lógica singular e plural em que as diferenças se tornem aquilo que mantem unido o mundo. Sei bem que fórmulas filosóficas não se transformam em prática real e em lógica política como em um passe de mágica, mas sei também que o trabalho dos conceitos é uma arma para inverter, como dizia Foucaulat a linha do presente.
Referências bibliográficas
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NANCY, Jean-Luc. La communauté désoeuvrée. Paris : Christian Bourgois éditeur, 1986.
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Autor(a) para correspondência: Fernando Gigante Ferraz, Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, R. Caetano Moura, 121, CEP 40210-905, Federação, Salvador - BA, Brasil. fernandogferraz@gmail.com