Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
A noção de racionalismo aplicado na obra de Gaston Bachelard
Jonivan de Sá
Jonivan de Sá
A noção de racionalismo aplicado na obra de Gaston Bachelard
The notion of applied rationalism on Gaston Bachelard’s work
Griot: Revista de Filosofia, vol. 17, núm. 1, pp. 134-153, 2018
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: O seguinte trabalho buscará revisitar a noção de racionalismo aplicado na obra epistemológica de Gaston Bachelard. Mais precisamente, analisar separadamente os elementos que constituem tal noção, inserida no livro de mesmo nome. Nesse sentido, explorará elementos como: filosofia dialogada, racionalismos regionais, vigilância intelectual de si, dentre outros, tendo em vista contribuir para os debates acerca da relevância da obra epistemológica do autor, assim como, para os debates em epistemologia histórica, de uma forma ampla. O trabalho ainda inclui proposições pontuais acerca da construção de interfaces entre o pensamento epistemológico de Bachelard e temas como educação e política.

Palavras-chave:BachelardBachelard,Epistemologia HistóricaEpistemologia Histórica,HistoricidadeHistoricidade,RacionalismoRacionalismo.

Abstract: The following work will seek to revisit the notion of applied rationalism in the Gaston Bachelard’s epistemological work. More precisely, to analyze separately the elements that constitute such notion, inserted in the book of the same name. In this sense, it will explore elements such as: dialogical philosophy, regional rationalisms, intellectual self-surveillance, among others, with a view to contributing to the debates about the relevance of the author's epistemological work, as well as, for debates in historical epistemology, wide range. The work also includes specific propositions about the construction of interfaces between Bachelard's epistemological thinking and themes such as education and politics.

Keywords: Bachelard, Historical Epistemology, Historicity, Racionalism.

Carátula del artículo

Artigos

A noção de racionalismo aplicado na obra de Gaston Bachelard

The notion of applied rationalism on Gaston Bachelard’s work

Jonivan de Sá
Universidade Federal do Pampa; Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 17, núm. 1, pp. 134-153, 2018
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 24 Março 2018

Aprovação: 04 Maio 2018

1.

A obra do francês Gaston Bachelard (1884-1962) insere-se em uma teia complexa que vai do pensamento epistemológico acerca das reformulações do conhecimento – advindas da física quântica e relativista – até às análises fenomenológicas e poéticas a respeito do devaneio, do espaço, do fogo, da terra e do ar. Embora alguns autores arrisquem, muitas vezes, uma espécie de ligação entre estes dois lados tão distintos do pensamento bachelardiano, o próprio autor foi muitas vezes taxativo no tocante a uma separação inevitável entre os dois polos de seu pensamento. Nesse sentido, proponho uma breve análise da noção de racionalismo aplicado, encontrada na obra de mesmo nome, e que consiste uma das diretrizes mais fundamentais para a compreensão do Bachelard “diurno”, epistemólogo.

Gostaria de situar o centro das discussões expostas a seguir, como não poderia deixar de ser, na problemática a respeito do fenômeno do conhecimento de uma forma geral e da sua relação com as dinâmicas sociais, educacionais e até mesmo políticas no seio das sociedades ocidentais, na medida em que os debates acerca do conhecimento – em suas mais diversas matrizes – vão acabar servindo como base, background, para a construção das nossas realidades sociais – políticas, pedagógicas, etc. Parto do pressuposto de que as dinâmicas sociais se iniciam com percepções características acerca do próprio fenômeno do conhecimento, residindo nisto, justamente, a relevância dos debates epistemológicos conectados a prerrogativas de modificação da realidade – não apenas como pretensa explicação da realidade última, como querem, me parece, algumas abordagens analíticas. Logo, discutir epistemologia – sobretudo, epistemologia histórica – é propor e aceitar a existência de ressonâncias sociais advindas da reformulação constante dos saberes humanos, assim como a definição de um programa de estudos específico que vise contribuir para a apreciação de tais dinâmicas.

Nesse sentido, explorarei noções como as de “filosofia dialogada”, “vigilância intelectual de si”, “cogitamus”, dentre outras, numa tentativa de mais uma vez trazer à tona a perspectiva histórica da epistemologia de Bachelard, tendo em vista a contribuição para discussões acerca da relevância de sua obra, assim como, para discussões acerca de epistemologia histórica, de uma forma ampla e geral.

2.

O Racionalismo Aplicado foi publicado em 1949; obra do último período epistemológico de Bachelard, considerada, inclusive, uma das grandes sínteses de seu pensamento, juntamente com Materialismo Racional de 1952. Talvez um dos elementos mais interessantes no tocante a essa última fase seja o fato de que a essa altura o autor parece não mais considerar a já arraigada dicotomia epistemológica entre empirismo e racionalismo. Apesar de ter se considerado muitas vezes um racionalista, Bachelard nunca negou a relevância do empirismo para as ciências. Porém, nesta sua última fase, enfatiza a real necessidade de uma cisão entre ambos os elementos, entre ambos os paradigmas. Em um primeiro momento, tal cisão pode parecer uma espécie de negação à crítica tecida pelo autor em relação ao empirismo clássico de cunho realista e objetivista.; mas o próprio fato de Bachelard levar em conta, constantemente, a relevância do elemento empirista parece criar a necessidade de tal diálogo. Portanto, a base fundamental para compreendermos a noção de racionalismo aplicado é, justamente, a tentativa bachelardiana de uma aproximação entre empirismo e racionalismo; ou demonstrar as aproximações inevitáveis que haveriam de ocorrer tendo em vista o progresso cada vez mais explosivo das ciências. Pode ser considerado, portanto, como uma chave-de-leitura epistemológica para os enunciados advindos da revolução científica causada pelas teorias quânticas e da relatividade. Como se verá, diz respeito a vários elementos que a constituem e que se apresentam no seio do debate científico.

A partir desde noção, o autor adianta algumas pautas de discussões que serão propostas novamente mais tarde, por autores como Thomas Kuhn (2009) e pelos debates em epistemologia histórica. Aquilo que Bachelard chama por “racionalismo aplicado” se mostra, por exemplo, como uma “filosofia dialogada” quando desenvolvido, precisamente, na cisão, no encontro entre uma racionalidade que visa organizaras teorias e experiências científicas (racionalismo) e outra que visa à aplicabilidade destas mesmas experiências no “real” (empirismo). Evidencia, assim, como no decorrer de sua obra epistemológica, a relevância de fatores históricos e pedagógicos (fatores substancialmente sociais) para a construção do conhecimento científico de uma maneira ampla e para a cisão entre empirismo e racionalismo. O racionalismo aplicado nasce do diálogo entre as diferentes matrizes do pensamento científico: do diálogo entre o racionalismo organizacional e o empirismo realista. Para Bachelard (1977, p. 7), ao acompanharmos as atividades da física contemporânea,

vemos formar-se um diálogo filosófico que tem o mérito de excepcional precisão: o diálogo entre o experimentador dotado de instrumentos rigorosos e o matemático que ambiciona informar de perto a experiência. Enquanto nas polêmicas filosóficas, no mais das vezes, o racionalista e o realista não conseguem falar de uma mesma coisa, tem-se a nítida e consoladora impressão de que, no diálogo científico, os dois interlocutores falam no mesmo problema. [...] A física, portanto, tem dois polos filosóficos. Ela é um verdadeiro campo de pensamento que se especializa em matemáticas e na experimentação, ganhando o máximo de vigor na conjunção de ambas. A física determina uma mentalidade abstrato-concreta como notável síntese.

Diante disso, a física contemporânea parece não mais aceitar a dicotomia entre o racionalismo e empirismo como doutrinas genuinamente opostas e auto-excludentes. Nesse sentido, o matemático (racionalista que busca a organização lógica dos fenômenos) e o experimentador (empirista que visa à aplicabilidade de experiências minuciosamente construídas) dialogam – ou necessitam dialogar – para que o complexo conhecimento científico derivado das experiências e dos cálculos possa ser pensado e informado de forma conjunta e completa.

Enquanto a ciência física se mostra como o diálogo produtivo entre o experimentador e o matemático, a polêmica filosófica ainda hoje (apesar do autor ter escrito em 1949), encontra, muitas vezes, dificuldades na construção de um diálogo interno. Na medida em que a física se apresenta como um campo de pensamento, a polêmica filosófica parece se mostrar muito mais como um campo de embate. O diálogo é não somente um elemento estruturante da física contemporânea, mas também seu modo de agir, organizando e experimentando o real. Para que se construa o próprio campo de ação da física – o real físico – se faz necessário esse campo de pensamento dialógico. “A atividade científica demanda uma relação entre o racional e o real e não uma relação de antagonismo como era visto até então” (BARBOSA, 2003. p. 33).

Então, para Bachelard, o racionalismo aplicado é todo aquele que nasce do diálogo entre o matemático racionalista e o empirista. É pensado e exteriorizado. É organizado e efetivado. Neste âmbito, “o duplo ideal de cultura que se deve afirmar em todos os temas do pensamento científico é, pois, o modernismo da realidade técnica e a tradição racionalista de toda a teoria matemática” (BACHELARD, 1977, p. 9). Desde Bachelard há este resgate intenso e constante à tradição do pensamento físico/matemático. O exercício da ciência é um exercício de rememoração constante do passado científico. A mais simples aplicação algébrica tem em si séculos de racionalismo matemático. E isso não é simplesmente esquecido em epistemologia. Talvez o cientista em algum momento ou outro se dê ao luxo de assim fazer – talvez, seja justamente isso que distinga um bom cientista de um cientista mediano: sua relação com a tradição científica, tanto no sentido de rememorar como no sentido de a retificar. Retificar é também rememorar.

O que se percebe com Bachelard é que a retificação do elemento empirista passa por sua anexação ao diálogo com o racionalismo. A síntese da retificação de paradigmas passados se apresenta sob a forma do diálogo. Logo, o real, instância última do empirismo, está em conexão direta com a própria racionalidade (BACHELARD, 1977, p. 10)”, ou seja, com a tradição do pensamento racional que é elemento constituinte desta mesma realidade. O “real científico”, campo onde se aplica as ciências, é constituído por seu passado que é, por sua vez, reafirmado ou refutado – ou ambos. O racionalismo aplicado é, justamente, esse movimento de refutação/reafirmação de uma conjuntura histórica que se dá no diálogo.

Tal concepção racional parece nascer não só da retificação empirista, mas da reconfiguração do próprio racionalismo, já que,

para julgar o pensamento cientifico já não se trata de nos apoiarmos num racionalismo formal, abstrato, universal. É preciso atingir um racionalismo concreto, solidário com as experiências sempre particulares e precisas. É preciso também que esse racionalismo seja suficientemente aberto para receber determinações novas das experiências. Experimentando um pouco mais de perto essa dialética, convencemo-nos da realidade eminente dos campos de pensamento (BACHELARD, 1977, pp. 10-11).

Então, se por um lado o racionalismo aplicado visa organizar as experiências no real – ou organizar . real –, por outro, não tem a menor pretensão de que determinados elementos desta organização tornem-se universais. Isto se dá, na mesma medida em que necessita desta abertura para poder comportar as novidades experimentadas e ao mesmo tempo sustentar seu regime dialógico. Conhecer a “realidade eminente dos campos de pensamento” é conhecer a sua história. Conhecer as conjunturas de ruptura e retificação onde se deram a construção dos mais variados tipos de racionalidade e sua relação de aproximação ou distanciamento em relação ao que se tem como ideal epistemológico, ideal de construção de um saber efetivamente científico.

Idealismo

Convencionalismo

Formalismo

Racionalismo Aplicado e Materialismo Técnico

Positivismo

Empirismo

Realismo

No esquema, Bachelard (1977, p. 11) apresenta sua percepção da relação entre os vários paradigmas do conhecimento científico assim como evidencia sua visão acerca de um ideal epistemológico almejado a partir das ciências contemporâneas. Quanto mais afastado do centro, mais se pretende uma explicação universal dos fenômenos. E para que não se caia novamente na armadilha do universalismo, se faz necessária esta constante rememoração do passado destes antigos – porém, muitas vezes, presentes – paradigmas. Entre o realismo ingênuo e o idealismo ingênuo existe um processo que torna os axiomas mais complexos e que culmina no racionalismo aplicado, região aberta e constantemente dialetizada, no sentido de um recorrente diálogo interno entre empiristas e racionalistas.

É como se a atualidade das ciências pedisse uma interpretação que não mais busque a universalidade ou tão arraigada dualidade: o paradigma contemporâneo das ciências precisa se dar através destas noções de diálogo e rememoração. Nesse sentido, “uma ciência incessantemente retificada, em seus princípios e suas matérias, não pode receber designação filosófica unitária. Ela é dialética, não apenas no pormenor de seus processos, mas ainda no duplo ideal de sua coerência teórica e de seu rigor experimental” (BACHELARD, 1977, p. 16). Logo, sua novidade diz respeito a perpetuação dialética de seu movimento, que se dá constantemente. Enquanto formalistas, empiristas, realistas, por exemplo, visam um ápice de evolução em sentindo estático, um racionalista prático se preocuparia muito mais em conseguir acionar as instancias da movimentação interna do paradigma científico contemporâneo. Acionar a região onde hoje repousa o movimento da ciência atual, sempre se retificando.

3.

Ainda dentro da perspectiva de explorar o racionalismo aplicado na epistemologia de Bachelard, a existência de uma categoria que dê conta dos elementos coletivos do saber é destacada pelo autor como chave de leitura essencial para uma efetiva compreensão da realidade científica contemporânea. Desde já, pode-se tranquilamente atentar para a centralidade de instâncias coletivas dentro desta noção. Primeiro, o racionalismo aplicado como uma filosofia dialogada, negando a dualidade entre racionalismo e empirismo. Agora exploro a noção da existência de um cogitamus – em um contraponto notório ao cogito cartesiano – que diz respeito à comunidade científica como um todo e à teia de pensamento que se cria dentro desta comunidade. Ainda antes de Thomas Kuhn, o grande defensor da noção de paradigma, Bachelard (1977, p.70) faz emergir tal noção: “o cogitamus racional é menos consciência de um ter comum do que uma renda comum. É um sinal de fecundidade de pensamento. Ele determina uma obrigação de pensar de acordo; numa palavra, é consciência comum de uma saber apodítico”. Um “ter” remeteria a um objeto que se possui e não se tem intensão de não possuir, algo dado e imóvel; ao passo que uma “renda comum” parece retomar uma perspectiva de constante construção coletiva. Em outras palavras, na cultura científica contemporânea, no âmbito do racionalismo aplicado, o cogito transmuta-se em cogitamus. “O cogitamusentrega-nos um verdadeiro tecido de coexistência” (BACHELARD, 1977, p.73). O cogitamus é a renda, ou teia onde se movimenta o saber racional, diferentemente do cogito encerrado em seus limites individuais que parecem, muitas vezes, desconsiderar a historicidade do conhecimento.

“O conhecimento científico é um corracionalismo, pois Bachelard compreende a ciência como resultante do trabalho cooperativo entre os cientistas” (CESAR, 1996, p.76). A ideia da retificação dos saberes, central à História das Ciencias, não teria como se dar dentro do âmbito do cogito, na medida em que uma só individualidade não constrói um paradigma sozinha.. Não gratuitamente Bachelard pensa em uma espécie de união dos trabalhadores da prova, justamente, no sentido de evidenciar essa coletividade da construção do saber. Coletividade que, na verdade, sempre definiu os padrões do pensamento científico – apesar das grandes e raras mentes que, vez por outra, propõem, felizmente, uma quebra total dos padrões já aceitos. E mesmo neste caso, como disse, a aceitação do novo se dá coletivamente. “Percorrendo a história de uma cultura racionalista, tem-se, pelo menos, a impressão de que abandonamos sempre uma ‘razão’ por uma ‘razão melhor’” (BACHELARD, 1977, p.41). “Abandonamos”. Nós, coletivamente.

É interessante perceber a relação entre este viés coletivo da construção do conhecimento e sua constante autocrítica ou retificação:

[...] para uma epistemologia completa, acreditamos ser necessário aderir a certo polifilosofismo. [...] A física e a química contemporâneas colocam-nos diante de diferentes enfoques da verdade. A cultura e a técnica conservam a estrutura de um conhecimento aproximado. E impõe-se um exame especial para decidir em que grau de aproximação reinam as melhores confirmações. Por isso, a cultura é continuamente retificada, em seus pormenores e em seus fundamentos (BACHELARD, 1977, p.47).

O racionalismo aplicado parece operar na cisão desta polifonia. Embora, nem por isso, deixe de fazer operar a autocritica constante da cultura e da técnica. O que torna imagem de uma “epistemologia completa” muito mais complexa, já que, constituída de dicotômicos elementos que dialogam entre si, constantemente se dialetizando e criticando. “O pensamento racional é um pensamento de constante reorganização, e jamais simples descrição de uma organização” (BACHELARD, 1977, p.50). Então é o pensamento racional o norte desta coexistência complexa e móvel. A coerência racional – de uma época – é o que dita e organiza seus elementos polifônicos. A dificuldade em captar esse movimento interno do racionalismo, se dá, justamente, por sua complexidade.

O efetivo valor da cultura (tradição) se mostra mais uma vez ao levar-se em conta o fato de que “o racionalismo é uma filosofia que continua; nunca é verdadeiramente uma filosofia que começa” (BACHELARD, 1977, p.66). Logo, a autocrítica parte da história do pensamento. O constante movimento dos paradigmas parte da própria história dos paradigmas científicos. Assim como na hermenêutica filosófica, a crítica e a autocrítica parecem estar no ceio da noção de tradição, tanto de sua perpetuação parcial quanto de sua ruptura.. “A ciência assim compreendida enfoca uma história recorrente, uma história julgada, que se esclarece pela finalidade do presente”; esta é própria “história das revoluções epistemológicas, a história do progresso das relações racionais do saber, que descreve o destino do homem como um destino de racionalidade, de crescente coerência, de uma compreensão melhorada” (CESAR, 1996, p.77).

Esta finalidade do presente, invocada por Cesar, diz respeito ao necessário diálogo interno que não só torna o ambiente científico (o cogitamus) um espaço de agradável convivência entre cientistas, mas também diz respeito à fundamentação das ciências no presente. Tal finalidade remete, portanto, à pluralidade interna das ciências, traduzida pro Bachelard como “regiões epistemológicas”, que exponho a seguir, além centralizar ainda mais uma vez o enfoque de questões epistemológicas na coletividade. A meu ver, tal abordagem acaba abrindo margem para se pensar instâncias sociais e políticas intrínsecas ao pensamento científico. Poder-se-ia, em algum momento, invocar questionamentos radicais sobre os diversos elementos que fundamentam um discurso coletivo acerca de um saber científica qualquer: seus elementos políticos, o papel dos financiadores – cada vez mais relevantes – e sua relação com a reconfiguração das dinâmicas sociais que se opera constantemente dentro do regime capitalista. Em suma, ao trazer à tona elementos coletivos na construção do conhecimento científico, Bachelard dá margem para digressões substancialmente políticas.

4.

A ideia da existência de racionalismos regionais diz respeito à falta de pretensão à universalidade do racionalismo aplicado; ou melhor, diz respeito à dialetização constante de seus elementos internos, o modus operandi da cultura racionalista contemporânea. Nesse sentido, Bachelard (1977, p.140) se questiona:

Será sadia a ideia de determinar regiões distintas na organização racional do saber? Não terá contra si a tradição filosófica do racionalismo apaixonado pela total unidade? E – objeção mais grave – a ideia de regionalizar o racionalismo não irá contra todos os esforços da epistemologia contemporânea para fundamentar a ciência, para encontrar o fundamento de toda a ciência (BACHELARD, 1977, p.140)?

Um dos fundamentos da epistemologia classicamente tomada é a busca incansável por uma estrutura comum e aparentemente estática do conhecimento: todo o conhecimento deveria ser traduzido a uma linguagem especial e se enquadrar em ditames muito específicos para ser considerado válido, para ser aceito na comunidade científica. Se levada em consideração as perspectivas de um racionalismo aplicado que visa, justamente, construir uma perspectiva dialógica do conhecimento científico, onde a incerteza e a mutabilidade também tenham o seu espaço positivo, o fundamento dos novos saberes não poderia repousar simplesmente nessa base outrora tão firme.

Respondendo as questões incialmente postas, o fundamento do racionalismo aplicado não nega um espaço epistemológico comum, mas o modifica, no sentido de evidenciar seus traços históricos fundamentais. O conhecimento nasce com a ideia e só então é posto à prova, e todo este processo não se dá fora da história tradicional, mas sim em seu seio, rememorando-a e retificando-a, já que,

“[...] o racionalismo é uma filosofia que não tem começo; é da ordem do recomeço. Quando o definimos em uma de suas operações há muito que ela já recomeçou. Ele é a consciência de uma ciência retificada, de uma ciência que carrega a marca da ação humana, da ação refletida, operosa e normalizante. [...] foi quando Cristóvão Colombo descobriu a América que a terra certa de ser redonda se pôs decididamente a girar. Então a rotação dos céus parou, então as estrelas fixas tornaram-se – durante os quatro séculos que antecederam Einstein – as balizas de um espaço absoluto” (BACHELARD, 1977, p.144).

O racionalismo aplicado é uma forma de consciência. Consciência que a ação humana opera em todos sentidos na ciência, sempre organizando e produzindo. Organizando conhecimentos, produzindo provas e experiências, em suma, mudando a própria história a partir da história. O autor ainda relembra o fato de que teria sido preciso tornar a rotação da Terra um pensamento racional, que se aplicasse a vários domínios científicos, para que fossem anulados os elementos de uma leitura vulgar, inicial. É justamente em função disso que “os fatos encadeiam-se tanto mais solidamente quanto mais implicados estão numa rede de razões” e é por este encadeamento, concebido racionalmente, “que os fatos heteróclitos adquirem seu estatuto de fato científico. Que a terra gira, eis uma ideia antes de ser um fato. Esse fato não tem, a princípio, qualquer traço empírico. É preciso pô-lo em seu domínio racional de ideias para ousar afirma-lo” (BACHELARD, 1977, p.144). A construção desta teia necessita a anexação da ideia em diversos domínios de aplicabilidade para que esta seja reconhecida como fato científico. Esta anexação se faz, inicialmente, racionalmente. O sentido é construído historicamente, a partir das ideias (pensamentos racionais) organizadas, postas em várias regiões de operacionalidade.

A grande relutância na assimilação de tal perspectiva nasce, em partes, da forma com que se educa, na medida em que no “ensino científico das escolas, retemos os fatos, esquecemos razões, e é assim que a ‘cultura geral’ fica entregue ao empirismo da memória. Será preciso, pois, encontrarmos exemplos mais modernos em que possamos acompanhar o esforço efetivo de instrução” (BACHELARD, 1977, p.145). Esquecemos as razões como se a experiência se desse de forma isolada e solitária. No processo educacional massificado não há retorno algum ao tecido racional-histórico – e suas diversas regiões – onde se dá determinada experiência. Não há nem sequer a menção a esse tecido. Isso também faz com que se deixe de perceber que o “racionalismo realiza-se como um desligamento dos interesses imediatos; situa-se no reino dos valores refletidos, o que se pode também exprimir como o reino da reflexão sobre os valores do conhecimento” (BACHELARD, 1977, p.146). O sujeito racional, nessa perspectiva, é todo aquele que reflete sobre os valores do próprio conhecimento e leva em consideração a necessidade de suas múltiplas regiões, valorizadas e ressignificadas na história. Só o contato com essa teia que visa expressar todas as regiões aplicáveis a tal saber faz com que os sujeitos tenham massa de trabalho para questionamentos do tipo.

Disso se conclui que:

O eu sem preparação não poderia ser o centro da fenomenologia científica, e sua preparação é uma verdadeira conversão pela qual devem ser destruídos os interesses imediatos, tanto aqueles que vêm – tão atrativos – do próprio objeto. Em outras palavras, enquanto o existencialismo introverte o conhecimento objetivo, quase imediatamente, o racionalismo tenta, em mil tentativas, converter todos os interesses em interesses de conhecimento, e não cessa enquanto não consegue extroverter os próprios princípios da convicção (BACHELARD, 1977, p.150).

As garantias da objetividade vêm do rechaço dos interesses imediatos advindos da experiência sensitiva primeira. Logo, nasce do interesse refletido. Modifica o sujeito. E mesmo essa reflexão que parece tão individualizada é “essencialmente cultural”, já que “o homem não está mais sozinho diante do objeto científico. Não se cultiva mais sozinho. Não nos cultivamos sozinhos”. A cultura científica “incorpora, ao mesmo tempo, uma historicidade que não é a historicidade do sujeito e uma retificação da historicidade de conhecimento do sujeito. A cultura normaliza a própria história” (BACHELARD, 1977, p.160). Logo esta objetividade refletida que busca a compreensão das regiões aplicáveis de determinada ideia científica (embrião do fato científico) seria – ou poderiaser – o modo de ser da própria cultura científica.

Explorarei mais adiante uma perspectiva pedagógica a partir do racionalismo aplicado, que parece ser um vetor de disseminação do cogitamos e dos regionalismos racionais. A seguir, buscarei explorar o papel que uma necessária vigilância intelectual de si ocupa em uma devida leitura das realidades científicas contemporâneas, agora sim, em um sentido mais individualizado, porém refletindo sempre na construção coletiva dos saberes formais.

5.

Dentro do racionalismo aplicado, como chave-de-leitura para conjunturas epistemológicas de nascimento e disseminação do conhecimento, a instância de uma vigilância intelectual de si se faz presente e necessária. Lembra muito uma espécie de consciência histórica, onde o cientista ou quem quer que esteja interessado na cultura científica precisa se instalar, no sentido de assimilar devidamente os novos saberes científicos. “É preciso manter contato, um contato cada vez mais estreito com o real, mas o espírito deve estar alerta, ciente de suas perspectivas, seguro de seus pontos de referência” (BACHELARD, 2004, p.15). E estes “pontos de referência” dizem respeito, justamente, à conjuntura social e histórica onde se dá o fenômeno do conhecimento. Os indivíduos preparados – no sentido do “eu” preparado – para a cultura cientifica devem, sempre que possível, acessar esta forma de consciência.

A vigilância intelectual de si remete ao reconhecimento e acesso de instâncias bastante específicas que constituem o racionalismo aplicado: como os valores racionais, por exemplo. “Todo valor divide o sujeito valorizante. Ele dá, pelo menos, ao sujeito a história de sua valorização; o sujeito tem, então, um passado de não valor a contrastar com um presente de valor” (BACHELARD, 1977, p.78). É interessante perceber que a dinâmica dos valores epistemológicos (racionais) parece funcionar tal qual a dinâmica dos valores morais – embora não sendo ambos os mesmos, evidentemente. O que há é uma acentuação da relevância do presente de valor e a constante memória das ignorâncias passadas. A memória do irracionalismo – ou de um racionalismo simplista e limitado, como do tipo cartesiano, por exemplo – é elemento constitutivo do presente racionalista. Diz respeito a sua dinâmica atual.

Tais valores não remetem à cultura puramente tradicional, estática. Já que, como se viu, a cultura científica parece ser muito mais construída racionalmente, dialogicamente (cogitamus) do que simplesmente tradicionalmente. O movimento de autocrítica dos sujeitos e dos elementos desta cultura a constituem como tal. Para Bachelard, inevitavelmente, a cultura científica é a cultura do movimento que nasce, justamente, da crítica constante. Onde a crítica constante se faz constitutiva, as estruturas estáticas e coercitivas não tem espaço. Não podem ter. Sob o risco da cultura mesma se converter em dogmatismo. Há, portanto, a necessidade de uma espécie de severidade dos indivíduos inseridos nesta complexa conjuntura. “Mas é preciso apenas separar a severidade arbitrária, ditatorial, absoluta, em proveito de uma severidade justa que se revele muito discursivamente ao apelar para a necessidade do progresso que assinala todo o psiquismo em busca da cultura” (BACHELARD, 1977, p.90). É preciso saber acionar tipos de severidade. A cultura da autocrítica e das rupturas não é necessariamente a cultura da negação de qualquer severidade – como parecem querer alguns pós-modernos. A severidade é vista aqui não como um elemento de coerção, que usa da ideia do progresso para assujeitar os indivíduos e alijá-los do processo de construção do saber – nesse caso poder-saber. A ideia do progresso é vista como um transfundo comum a todo o psiquismo que se instala na cultura científica. Logo, a severidade é muito mais seriedade do que severidade. Na busca por uma efetiva compreensão e na luta, no trabalho de constante atualização dos saberes, se faz necessário certo grau de severidade. A severidade justa – ou seriedade – é um elemento constituinte dessa cultura que busca autocriticar-se continuamente. Quando a seriedade da autocrítica se afrouxa, a seriedade totalizante se hegemoniza. Por isso a necessidade da insistência em se acessa o devido tipo de severidade no trato científico, social e até mesmo político.

Bachelard (1977, p.83) propõe esta vigilância intelectual de si, em parte, retomando uma perspectiva freudiana da construção de saberes. Parte do pressuposto de que estruturalmente nossa psique está apta a vigiar-se tanto em campo moral como em campo epistemológico. Logo, a compreensão da própria compreensão constitui um dos elementos ativos desse vigiar-se epistemológico: “só se está instalado na filosofia racional quando se compreende que se compreende, quando se pode denunciar com segurança os erros e os símiles de compreensão” (BACHELARD, 1977, p.92). Logo,

A vigilância é, pois, consciência de um sujeito que tem um objeto: e consciência tão clara que o sujeito e seu objeto se esclarecem ao mesmo tempo, acasalando-se de modo tanto mais cerrado quanto o racionalismo do sujeito prepara mais exatamente a técnica de vigilância do objeto analisado (BACHELARD, 1977, p.93).

Logo, a consciência do próprio conhecimento é consciência efetiva de uma estreita relação com o objeto. É interessante constatar que para Bachelard, quanto mais complexa a técnica, maior é o entrosamento entre o racionalismo dos sujeitos e os objetos de análise. Na contrapartida da cultura cartesiana, onde, quanto maior a técnica (sempre de cunho mecanicista), tanto menos se daria – pelo menos, aparentemente, ou discursivamente – a interação entre sujeito e objeto. Este é um dos elementos centrais não só da obra de Bachelard, mas também do novo paradigma das ciências microfísicas e microquímicas: quanto maior a complexidade técnica, maior a interação. Não o oposto antes verdadeiro: quanto maior a técnica, mais puro o saber natural. A técnica é, justamente, a mão humana – demasiada humana – em ação, que reafirma a necessidade de uma constante vigilância de si.

Por “vigilância da vigilância”, o autor entende o efetivo rigor de autocrítica, ou a busca pelo refinamento constante da cultura e dos sujeitos inseridos nela. Nesse sentido, argumenta que “uma educação do pensamento científico ganharia em explicitar essa vigilância da vigilância que é a nítida consciência da aplicação rigorosa dos métodos” (BACHELARD, 1977, p.95). O rigor na aplicação do método deixa de ser uma instância de controle da cultura em relação aos indivíduos e passa – através da noção de fenomenotécnica, que explorarei mais adiante – a ser justamente o oposto: uma espécie de controle dos próprios indivíduos sobre a cultura.

A vigilância intelectual de si também pode ser lida como uma certa garantia para que o próprio sentido da ciência (como busca das satisfações materiais humanas) não se perca em abstrações metafísicas. Nesse sentido, argumenta Cesar (1996, p.65): “Bachelard busca um conceito de verdade que conduz a uma crítica do ceticismo, do dogmatismo e do cientificismo; enfatiza os laços entre verdade e ética, pondo os valores da racionalidade a serviço do cumprimento do destino humano de felicidade e criação”. Anexa, portanto, um horizonte ético – no sentido de autovigilância – às instâncias do saber científico. Tal forma de vigilância acaba por enfatizar ainda mais uma vez a separação entre conhecimento comum e conhecimento científico. A seguir, busco explorar mais atentamente esta separação tendo em vista o racionalismo aplicado bachelardiano.

6.

Com seu racionalismo aplicado Bachelard mais uma vez evidencia a necessária separação entre conhecimento comum e conhecimento científico. Parece se preocupar fundamentalmente com questões pedagógicas acerca do advento das novas ciências ou em como as práticas pedagógicas lidam – e deveriam lidar – com os novos saberes. “As ciências físicas e químicas, em seu desenvolvimento contemporâneo, podem ser caracterizadas metodologicamente como domínios de pensamentos que rompem nitidamente com o conhecimento vulgar”, porém “a ‘educação científica’ que se acredita suficiente para a ‘cultura em geral’ tem em vista apenas a física e a química ‘mortas’, no sentido em que se diz que o latim é uma língua ‘morta’” (BACHELARD, 1977, p.121). Logo, se faz necessária uma espécie de reconstrução do aparato pedagógico das ciências, assim como se fez necessária a ruptura com os velhos paradigmas, à época do surgimento dos novos saberes. A grande questão parece ser: como transmitir estes caracteres puramente epistemológicos e fundamentais para uma ‘cultura geral’?

Partindo do pressuposto de que “a quarta idade [à qual precedem a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade], Época Contemporânea, realiza precisamente a ruptura entre conhecimento vulgar e conhecimento científico” (BACHELARD, 1977, p.121), Bachelard se preocupa com a história do agora. das ciências. A epistemologia se relaciona constantemente com a sua historicidade. Toda a teoria do conhecimento pós-metafísico necessita de uma valorização das conjunturas históricas para se sustentar argumentativamente; com a cultura científica parece não ser diferente.

Para Cesar (1996, p.76), o conhecimento científico em Bachelard diz respeito à fundamental oposição entre conhecimento comum e conhecimento quotidiano. À descontinuidade essencial entre tais formas de percepção do mundo, a autora liga a própria ideia das revoluções científicas e suas possíveis ressonâncias tanto nas ciências em si quanto na percepção quotidiana. Nesse sentido “o conhecimento científico é a superação de obstáculos epistemológicos, tanto no campo do conhecimento empírico (opinião), quanto no plano do conhecimento racional” (CESAR, 1996, p.76). Então a descontinuidade inicial entre conhecimento científico e conhecimento comum, seria a garantia das ressonâncias do conhecimento científico no conhecimento vulgar: sua separação inicial garantiria que o saber comum se servisse – até certo ponto – dos resultados cada vez mais precisos dos saberes científicos.

Talvez o elemento do racionalismo aplicado que mais evidencie a ruptura entre saber comum e saber cientifico seja a noção de fenomenotécnica. Tal noção diria respeito ao “caráter indireto das determinações do real científico” (BACHELARD, 1977, p.122). Destaco o exemplo do espectroscópio de massa, dado pelo próprio Bachelard, que, embora longo, ilustra devidamente a questão da fenomenotécnica:

Por exemplo, quando se tratava, num espírito positivista, de determinar os pesos atômicos, a técnica – sem dúvida muito rigorosa – da balança, bastava. Mas quando, no século XX, selecionamos e pesamos os isótopos, impõe-se uma técnica nova, indireta. O espectroscópio de massa, indispensável para essa técnica, é baseado na ação dos campos elétricos e magnéticos. Trata-se de um instrumento que bem se pode qualificar de indireto, se comparado à balança. A ciência de Lavoisier que fundamenta o positivismo da balança está em ligação contínua com os aspectos da experiência usual. Já não é a mesma coisa quando se acrescenta um eletrismo no materialismo. Os fenômenos elétricos dos átomos estão ocultos. É preciso instrumentá-los numa aparelhagem que não tem significação direta na vida comum. Na química de Lavoisier, pesa-se o cloreto de sódio como na vida comum se pesa o sal de cozinha. As condições de rigor, na química positivista, nada mais fazem do que acentuar as condições de rigor comercial. De uma percepção a outra, não se altera o pensamento da medida. Mesmo lendo a posição da agulha no fiel da balança, com um microscópio, não abandonamos o pensamento de certo equilíbrio, de certa identidade de massa, aplicação muito simples do princípio da identidade, tão tranquilamente fundamental para o conhecimento vulgar. No que se refere ao espectroscópio de massa, estamos em plena epistemologia discursiva. É necessário longo circuito na ciência teórica para compreender-lhe os dados. De fato, os dados são, no caso, resultados” (BACHELARD, 1977, p.122).

Retoma os primórdios de sua filosofia, onde afirma, em Ensaio Sobre o Conhecimento Aproximado, que “o dado é relativo à cultura, está necessariamente inserido em uma construção” (BACHELARD, 2004, p.18). O espectroscópio de massa acaba rompendo com as intuições que vinham se refinando desde o Renascimento até a segunda metade do século XIX. Os paradigmas mudam e a mente humana – mão humana nas ciências – acaba por ganhar cada vez mais valor constitutivo na construção dos dados. Logo, “trata-se nada menos do que o primado da reflexão sobre a percepção, nada menos que a percepção nomenal dos fenômenos tecnicamente constituídos”, já que “as trajetórias que permitem separar os isótopos no espectroscópio de massa não existem na natureza; é preciso produzi-las tecnicamente. Elas são teoremas retificados”. Disso se conclui que o “que um homem faz em uma técnica científica do quarto período [período contemporâneo] não existe na natureza, e nem é uma sequência natural dos fenômenos naturais” (BACHELARD, 1977, p.123).. A rigor, nem sequer pode-se falar em uma contemporânea ciência microfísica da natureza.

E é justamente a essa altura que acaba se questionando sobre o lugar de uma racionalidade positivista nas novas ciências. Em que medida tais rigorosos métodos não derivariam de um positivismo mascarado – ou nem tão mascarado assim? .De fato, não há cultura científica sem um cumprimento das obrigações do positivismo”, porém “é preciso passar pelo positivismo para superá-lo”; logo, todos aqueles que visam determinar as condições efetivas do progresso científico precisam “ter como positivo o positivismo em oposição ao caráter retrógrado das filosofias da natureza, marcada da metafísica idealista [...]” (BACHELARD, 1997, p.123). Então, o caráter positivista das novas ciências, que embora não intente reforçar um cientificismo objetivista e unilateral, diz respeito à transcendência de uma perspectiva puramente naturalista, idealista, das novas ciências. O positivismo (terceiro período das ciências) se fez necessário, deixou suas marcas: em algum grau é negado – como doutrina –, porem em outro, é afirmado – como uma espécie de rechaço à noção de metafísica de uma natureza que simplesmente se impõe à percepção, sem uma efetiva relação com os sujeitos.

Bachelard não hesita em criticar parte das abordagens filosóficas em torno da ciência já vigentes em sua época. Em outras palavras, critica a falta de uma efetiva relação entre a filosofia e história contemporânea das ciências, em toda a sua complexidade e diversidade.

Assim prosseguem as utopias da teoria filosófica do conhecimento numa época em que o conhecimento científico multiplica os exemplos de novos conhecimentos efetivos, criando por toda parte tipos de conhecimentos novos. Essa extensão de métodos, esta multiplicidade de objetos não atraem a atenção dos filósofos. Eles acreditam poderem instruir-se imaginando situações elementares. Nova prova de que estudando origens, os filósofos acreditam poder descobrir criações (BACHELAR, 1977, p.134).

A teoria do conhecimento que não busca se apropriar devidamente deste pluralismo que é constitutivo das ciências contemporâneas, acabaria por simplesmente se perder em utopias idealistas. Não há como ser diferente. Na medida em que se é idealista, se perde o contato com a própria historicidade, em detrimento de um presente e de um futuro sem o mínimo de materialidade possível. É-se posto fora da dialética materialismo/racionalismo. A falta de uma devida problematização das ciências por parte de algumas matrizes filosóficas se dá também pela falsa impressão de continuidade que se perpetua nas esferas pedagógicas. A própria história das ciências, quando apresentada como uma continuidade entre antigo e novo, acaba deixando oculta a perspectiva da ruptura. Inevitavelmente “em tal atmosfera de confusão psicológica, será, pois, sempre difícil esclarecer os traços específicos do novo espírito científico” (BACHELARD, 1977, p.124).

Juntamente com a história do agora das ciências surge a questão da sua relação com o conhecimento das massas, ou seja, se há alguma necessidade ou possibilidade da inserção destes novos paradigmas na cultura massificada. “Quais serão as consequências humanas, as consequências sociais de tal revolução epistemológica” já que, “é, inclusive, difícil avaliar o alcance psicológico dessas profundas modificações do intelectualismo”? Na mesma medida, “o intelectualismo especial que se revela sob a forma de um novo espírito científico que localiza-se numa comunidade intelectual muito restrita, muito fechada” (BACHELARD, 1977, p.124), tornando ainda mais complexa sua transposição – mesmo que parcial – à cultura geral.

Dentro desta complexa conjuntura, se faz inevitável uma discussão acerca da transmissão formal destes novos paradigmas: transmissão que ocorreria, naturalmente, em âmbito pedagógico. O conhecimento científico transmitido pedagogicamente se mostra como suporte a “uma leitura abrangente do mundo contemporâneo e à compreensão das necessidades e possibilidades de sua transformação. Com essa noção de alfabetização científica, o ensino das ciências naturais se reveste de maior importância e cresce em amplitude” requerendo, assim, “mudanças que ultrapassem a tradicional postura escolar de transmissão/recepção passiva de informações” (SILVA, 1997, p.111). Ver-se-á a seguir a relevância que a pedagogia científica adquire na obra de Bachelard, no sentido de transmissão devida dos valores científicos, como transcendência da lógica tradicional do ensino.

7.

Como já havia exposto, Bachelard dá uma certa centralidade à questão das práticas pedagógicas em torno da ciência. Estando estritamente ligada à história e aos indivíduos, a epistemologia científica não pode se dar ao luxo de não considerar as características da transmissão da cultura científica. Nesse sentido o autor traz a ideia de um racionalismo docente . um racionalismo aprendido como elementos fundamentais na constituição do racionalismo aplicado.

Já década de 80, Piaget e Garcia (apud SILVA, 1997, p.111) mostram que muitos dos conceitos científicos empregados por crianças, se apresentam como conceitos científicos já defasados. Porém três décadas antes, e em mais um explícito retorno à psicologia, Bachelard propõe o racionalismo como um elemento cultural, cultivado nas mais diversas instâncias sociais, e que, embora tenha seu ápice de expressão na relação entre professor e aluno, começa a ser construído muito mais cedo, ainda à época da infância. A relação entre poder e saber, como propõe, é uma das variáveis mais valiosas na distinção entre adultos e crianças. “Os pais abusam frequentemente mais ainda de seu saber do que de seu poder” (BACHELARD, 1977, p.89)., logo o próprio saber pode ser encarado como uma instância de controle ou distinção. A esse primeiro processo de poder-saber é seguindo um segundo, desta vez em âmbito escolar, já que, “a onisciência dos pais” é “seguida imediatamente em todos os níveis da instrução pela onisciência dos professores”, e mecanicamente “instala um dogmatismo que é a negação da cultura” (BACHELARD, 1977, p.89).. Em outras palavras, o contato inicial dos indivíduos com instâncias coletivas de conhecimento, se dá segundo uma perspectiva dogmática, de relações de poder, no sentido de manter uma ideia de continuidade de uma estrutura já existente; por isso mesmo, tal dogmatismo se apresenta como oposição à cultura científica da ruptura e do movimento proposta por Bachelard.

Partindo do pressuposto de que “[...] a melhor maneira de se avaliar a solidez das ideias era ensiná-las”, propôs Bachelard (1977, p.19) suas percepções acerca das práticas pedagógicas ao também proeminente epistemólogo Léon Brunschvicg – quando este se viu surpreendido pela relevância que as preocupações pedagógicas ganhavam na obra do primeiro. O autor, que se dizia “mais professor que filósofo”, evidencia a relevância que instâncias pedagógicas têm para a construção do próprio paradigma científico de uma época, na medida em que a ciência nunca é um trabalho solitário, existindo todo esse transfundo tradicional em torno da práxis quotidiana do cientista. Já que “as ciências não são atividades isoladas das demais, sendo o conhecimento científico parte da cultura humana, sua dissociação do meio social em que é produzido conduz a perda de significado” (SILVA, 1997, p.119). Na medida em que este transfundo social é transmitido pedagogicamente, os meandros da prática docente e discente acabam se constituindo como elementos de extrema relevância na constituição dos resultados mesmos.

Uma espécie de reação da clareza pedagógica do mestre manifesta-se na colocação em ordem do espírito do discípulo. É preciso forte personalidade para ensinar o impessoal, para transmitir os interesses de pensamento independentemente dos interesses pessoais. E veremos que a consciência de impessoalidade deve ficar vigilante [...]. De qualquer modo, cremos que é mutilar a atividade do pensamento científico esquecer esses matizes dialéticos (BACHELARD, 1977, p.20).

Logo, tanto o ato do ensino quanto o ato da aprendizagem dizem respeito à forma como se dá (dialogicamente) o próprio racionalismo, seu modus operandi. As instâncias psicológicas dessa dialética ensino/aprendizagem são constitutivas do racionalismo. Por isso a importância do aspecto pedagógico das ciências, pois este é o responsável pela transmissão da tradição racionalista. Materializa o racionalismo como prática substancialmente social.

Porém, é preciso se ter em mente que “o hábito da razão pode converter-se em obstáculo da razão. O formalismo pode, por exemplo, degenerar num automatismo do racional, e a razão torna-se como que ausente de sua organização” (BACHELARD, 1977, p.21). Esta consciência de racionalidade diz respeito ao adentrar-se nas instâncias psicológicas de ensino e aprendizagem que teriam servido como suporte da organização racionalista. “Consciência de racionalidade” é a consciência dos processos que levam à organização racional que passa por elementos psicológicos e tem seu lugar puramente na história. Logo, “o pensamento científico está em estado de pedagogia permanente” (BACHELARD, 1977, p.23), no sentido de um necessário e contínuo retorno a estas instâncias pedagógicas e psicológicas constituintes.

Ainda em âmbito pedagógico, Bachelard (1977, pp.25-26) propõe a existência de uma certa pluralidade interpretativa, mesmo na física. Em repostas à questão “o que é uma reta?”, por exemplo, poderia se receber uma enxurrada de distintas interpretações, mesmo entre os físicos mais especializados: ora responderiam como formalistas, ora como realistas, ora como racionalistas. Mas essa pluralidade não deixa de fazer com que se entendam, não deixa com que esqueçam do terreno comum no qual busca se instalar toda a epistemologia. A eficácia do racionalismo depende, inclusive, deste movimento plural que acaba afirmando os aspectos pedagógicos da construção coletiva do conhecimento científico, na medida em que cada um é educado – ou se educa – dentro de matrizes pedagógicas distintas. Nesse sentido,

A fim de percorrer o trajeto cultural que vai do real percebido à experiência realizada pela ciência, sem esquecer qualquer um dos traços filosóficos que ajudam ou entravam a cultura, o mais simples é acompanhar as ideias em seu transforma-se no ensino, situando-as sistematicamente no campo interpsicológico que tem como dois polos o professor e o aluno. É nele que se forma o interracionalismo que vem a ser o racionalismo psicologicamente comprovado (BACHELARD, 1977, 27).

A noção de interracionalismo, por sua vez, parece ilustrar devidamente este campo relacional a partir do qual emerge o racionalismo aplicado. Relação entre professor e aluno; relação entre diferentes paradigmas; relação efetiva entre sujeito e objeto – mesmo quando a consciência de impessoalidade deve se manter vigilante. Um “racionalismo psicologicamente comprovado”, diz respeito, portanto, ao acesso a todas estas instâncias relacionais a partir da psique. Logo, todo o “racionalismo ensinado deverá verificar-se sua tomada de estrutura, precisamente como valor pelo qual se vê que compreender é uma emergência do saber”. Portanto, “o professor será aquele que faz compreender – e na cultura mais avançada em que o aluno já compreendeu – será ele que fará compreender melhor” (BACHELARD, 1977, p.27). Nesse sentido, não se faz necessário somente compreender as variáveis que compõem os problemas propostos por uma problemática científica, ou apenas interpretar resultados de experiências: “compreender melhor” é captar os meandros da operação racionalista em toda a sua complexidade, pluralidade, enfim, em toda sua estruturação social. Como já se viu, a experiência racionalista (racionalismo aplicado) diz respeito à dinâmica de valores. Pode-se dizer que o racionalismo é uma instância cultural transmitida substancialmente na conjuntura professor/aluno. E este compreender melhor diz respeito à transmissão efetiva do valor racionalista.

Tendo em vista que “[...] numa educação de racionalismo aplicado, racionalismo em ação de cultura, o mestre apresenta-se como negador das aparências, como freio a convicções rápidas” (BACHELARD, 1977, p.29), tem-se a necessidade de uma práxis contínua e específica dentro da relação professor/aluno, no sentido da vigilância intelectual de si, tendo em vista a ruptura com estas convicções. O racionalismo, quando em seu ápice de desenvolvimento interno, se configura como cultura da autovigilância constante. O racionalismo ensinado é a própria transmissão desse valor cultural de autovigilância. A grande questão no tocante ao conhecimento científico como cultura é “como e o que se está ensinando?”.

Nesse âmbito de transmissão cultural do racionalismo, a complexidade advinda dos novos axiomas constitui no principal empasse pedagógico, na medida em que, “no ensino das ciências, muitas vezes, é comum ocorrerem dificuldades para a apreensão de determinados conceitos científicos, especialmente aqueles que demandam uma maior abstração” (LÔBO, 1997, p.153), deixando levar a uma banalização dos conceitos científicos, através de exemplos rasos que se querem intuitivo. E é, justamente, tendo em vista a possível perda do real sentido dos conceitos racionais que a vigilância de si se faz constantemente necessária. A pedagogia permanente necessita de uma vigilância (de si) permanente. A segunda é garantia da primeira. E é nesse sentido, “defendendo a necessidade de superação de posturas realistas” ingênuas “e um devir do pensamento científico de transformação do realismo para o racionalismo, através de processos de ruptura”, que “a epistemologia bachelardiana traz uma colaboração”, inclusive, “para o ensino das ciências” (LÔBO, 1997, p.155). A epistemologia bachelardiana, atrelada a elementos pedagógicos pode contribuir, inclusive, para a falta de sentido muitas vezes atrelada ao ensino das ciências. Logo, pode acabar tendo ressonâncias na forma de transmissão cultural dos valores epistemológicos inerentes ao conhecimento científico e humano, de uma forma ampla.

8.

O racionalismo aplicado, conceito que constitui uma das grandes sínteses epistemológicas da obra de Gaston Bachelard, acaba se mostrando como multifacetado, um complexo de elementos de visam, substancialmente, demonstrar aspectos coletivos da construção do conhecimento científico – tendo como transfundo a problemática da separação entre racionalismo e empirismo, tentando construir, inclusive, um ponto de justaposição entre estas lógicas aparentemente contraditórias. Ao pensar a construção do saber científico como produto de dinâmicas sociais bastante características, Bachelard inaugura as discussões contemporânea acerca da validade do discurso cientifico como obra coletiva – que necessita de reconhecimento constante de uma comunidade científica que, por sua vez, tende a transmitir os valores epistemológicos a partir dos quais foi educada.

A partir de tais perspectivas, que levam em conta, inclusive, os regimes pedagógicos através dos quais operariam a transmissão de uma cultura racionalista, abre-se, a meu ver, um novo campo de análise e de disputas discursivas que se questiona: em que medida há uma relação entre a validade do conhecimento como obra coletiva e instâncias de organizacionais, pedagógica, política e, até mesmo, econômica que visam se estruturar como meios válidos de organização social? Ou ainda, há uma relação mensurável entre o conhecimento formalmente aprendido e às diversas dinâmicas sociais as quais estamos todos inseridos quotidianamente?

Refletir sobre a construção coletiva do conhecimento é também refletir sobre os modos particulares e coletivos de atuação em sociedade, já que, a partir de Bachelard e da epistemologia histórica, não aprendemos nada sozinhos e ressoamos o que aprendemos. Lanço as questões acima expostas como uma forma de provocação (pessoal e ampla), no sentido de estimular o debate acerca da estreita relação entre poder e saber – já exposta por Foucault, mas que acaba carecendo, muitas vezes, de um debate mais materializado, até mesmo fora do campo semântico proposto por este –pensando a criação de um novo campo nas ciências sociais que leve em conta estes debates epistemológicos.

O racionalismo aplicado – como aplicação no mundo da vida de um racionalismo aprendido pedagógica e culturalmente que constrói conhecimento – abre o espaço, portanto, para tais discussões. Podendo ser visto, tranquilamente, como ponto inicial da interligação entre as discussões epistemológicas e este novo campo a que me refiro, ainda embrionário e carente de perspectivas. A filosofia contemporânea de uma forma geral, muitas vezes carece de uma aplicabilidade mais direta e talvez uma possível interface com as ciências sociais possa ser, ainda mais uma vez, uma saída plausível, através da criação de grupos de debates. e produções acadêmicas que tratem destas possíveis interfaces. Em sentido de registro, finalizando estas considerações finais, gostaria, portanto, de propor a possibilidade da construção coletiva deste campo, sempre a partir da luz projetada pela epistemologia histórica – que muitas vezes tem sido deixada em segundo (ou terceiro) plano.

Material suplementar
Referências bibliográficas
BARBOSA, Elyana. “Gaston Bachelard e o Racionalismo Aplicado”. Revista Cronos. Natal, n.1/2, pp.33-37, dez. 2003.
BACHELARD, Gaston. Ensaio Sobre o Conhecimento Aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.
___________________. A Experiência do Espaço na Física Contemporânea. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.
___________________. A Filosofia do Não: Filosofia do Novo Espírito Científico. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. pp.159-245.
__________________. O Novo Espírito Científico. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. pp.247-338.
__________________. O Racionalismo Aplicado. Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1977.
CÉSAR, Constança Marcondes. A Hermenêutica Francesa: Bachelard. São Paulo: Alínea, 1996.
KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. Editora Perspectiva: São Paulo, 2009.
LÔBO, Soraia Freaza. “Crise no Ensino de Ciências: um olhar a partir da epistemologia bachelardiana”. Revista Ideação. UEFS, Feira de Santana, Vol. 1, n.1, pp.143-158, 1997.
SILVA, José Luiz de Paula Barros, “Valor Pedagógico da História das Ciências”. Revista Ideação. UEFS, Feira de Santana, Vol. 1, n.1, pp.109-124, 1997.
______________________________________________________________________
Autor(a) para correspondência: Jonivan de Sá, Universidade Federal de Santa Maria, Av. Romaima, 1000, CEP 97105-900 Bairro Camobi, Santa Maria, RS, Brasil. jonivanmartins@yahoo.com.br
Notas
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc