Resumo: Este artigo pretende analisar o processo de entrada da arte no horizonte da estética. Para isso, Martin Heidegger acompanha alguns dos conceitos desenvolvidos pelos gregos, como por exemplo, a relação entre matéria e forma e a arte como mímesis. O filósofo alemão também explicita a ligação entre sujeito e objeto como o pressuposto da época de imagens de mundo. Considerando as intepretações oferecidas pelos pensadores modernos, Heidegger avalia como a obra de arte se torna um suporte para experiências sensíveis e como o juízo de gosto associou a estética com a beleza e nossa sensibilidade.
Palavras-chave:HeideggerHeidegger,ArteArte,EstéticaEstética,ModernidadeModernidade.
Abstract: This paper aims to analyze the process of art’s moving into the purview of aesthetics. Therefore, Martin Heidegger follow some concepts developed by the greeks, for instance the conjunction between matter and form and art as mimesis. The german philosopher also explain the relation between subject and object as the time of the world picture’s assumption. Considering the interpretations given by the modern thinkers, Heidegger evaluate how the artwork becomes a support of sensitive experiences and how the judgment of taste associated aesthetics with the beauty and our sensibility.
Keywords: Heidegger, Art, Aesthetics, Modernity.
Artigos
Heidegger e a entrada da arte no horizonte da estética
Heidegger and art’s moving into the purview of aesthetics
Recepção: 31 Janeiro 2018
Aprovação: 04 Maio 2018
Um dos grandes interesses de Martin Heidegger se concentrou na ontologia da obra de arte. Diferente daqueles que construíram uma estética filosófica, o pensador alemão segue o caminho de uma investigação fenomenológica e hermenêutica. Esse afastamento das teorias estéticas mostra sua intenção de falar sobre o modo de ser da obra de arte, em vez de tecer argumentos sobre os efeitos provocados no sujeito. À época do ensaio A origem da obra de arte (1935-36), as obras já eram acessíveis ao público, embora com um alcance menor que possuem nos dias de hoje, diante da ampla divulgação através da internet e da relativa facilidade com que é possível visitar museus e monumentos históricos. Por essa razão, é natural reduzir as obras à condição de coisa, o que aparece ilustrado no seguinte argumento:
Obras de arte são conhecidas de todo mundo. Obras arquitetônicas e pictóricas encontram-se em lugares públicos e estão apresentadas nas igrejas e nas moradias. As obras de arte das mais diferentes épocas e povos estão guardadas nas coleções e nas exposições. Se olharmos as obras considerando a sua realidade vigente intocável e nisso não tenhamos nenhuma ideia preconcebida, então mostra-se: as obras são tão naturalmente existentes como aliás também as coisas. O quadro está pendurado na parede do mesmo modo que uma espingarda de caça ou um chapéu. Uma pintura, por exemplo, aquela de van Gogh que apresenta um par de sapatos de camponês, vai de exposição em exposição. As obras são expedidas como o carvão do Ruhr e os troncos de árvore da Floresta Negra. Durante as campanhas de guerra, os hinos de Hölderlin foram guardados na mochila juntos com os utensílios de limpeza. Os quartetos de Beethoven estão nos depósitos da editora como as batatas estão no porão. (HEIDEGGER, 2010a, p.41)
Heidegger percebe que, na tradição, a obra de arte não é acessível em si mesma, mas em suas relações exteriores, tanto com as pessoas que aplicam um trabalho em torno delas como através dos fenômenos e das circunstâncias que a compõem. Seria então necessário distinguir o que seria uma obra de arte diante da pluralidade de coisas e utensílios. Assim, ele argumenta que a obra não é um utensílio (Zeug), visto que não oferece uma funcionalidade para a vida cotidiana. Porém, não é exatamente uma mera coisa (Ding)., algo aleatório presente no mundo. Portanto, se as obras estão disponíveis e fazem parte do nosso cotidiano, significa que elas precisam de uma meditação exclusiva e que nos permita dizer o que elas são propriamente em seu ser, isto é, livres de representações.
Para desenvolver suas próprias reflexões, Heidegger dialoga com alguns pensadores que o antecederam e, ao entrar em contanto com textos específicos sobre a arte, ele se deparou com a disciplina chamada estética (Ästhetik). A partir de uma leitura atenta da mencionada conferência dos anos 30, fica evidente que Heidegger não busca formalizar uma ideia de arte tampouco pretende esboçar alguma teoria estética. Muitos dos seus esforços são uma tentativa de afirmar que a essência e a origem da arte ficaram de fora da estética e, por isso, ele tomou para si a tarefa de explicar como a arte entrou nesse horizonte tão desconhecido dos gregos, porém, bastante familiar aos modernos.
Para que possamos discutir o processo de entrada da arte na estética a partir da modernidade, é preciso falar sobre o período no qual, para Heidegger, a arte ainda não fazia parte dessa mencionada ciência. É verdade que a chamada grande arte grega foi imprescindível para a história do pensamento ocidental. Porém, nesse período, escapava aos gregos uma conceituação sobre as causas e os efeitos das obras, assim como a noção de vivência ainda não havia sido consolidada. O domínio que os gregos possuíam dispensava a tarefa de recorrer a meditações filosóficas, uma vez que eles já estavam dotados de “um saber claro, tão originariamente desenvolvido, e uma tal paixão pelo saber, que eles não careciam de nenhuma estética em meio a essa claridade.” (HEIDEGGER, 2010b, p.74) Teria sido a partir do declínio da grande arte grega que se iniciou uma nova reflexão.
A partir das reflexões de Platão e Aristóteles, questionamentos sobre a arte e as obras apresentam conceitos essenciais que aparecem nas subsequentes especulações filosóficas (HEIDEGGER, 2010b, p.74). Conceitos como matéria-forma, techné e mímesis contribuíram de maneira relevante para o entendimento sobre a arte. Cada um desses termos merece uma breve menção neste estudo, pois sem eles não há uma compreensão adequada das nossas experiências estéticas. Para introdução, é possível dizer que a união entre matéria e forma é decisiva para o discurso sobre a arte, visto que toda obra é a imposição e o acabamento de alguma forma na matéria escolhida pelo artesão. Heidegger afirma então que o par matéria-forma é “pura e simplesmente o esquema conceitual usado em todas as teorias da arte e da Estética.” (HEIDEGGER, 2010a, p.63)
Através do mármore das esculturas, da tinta presente nas telas ou das pedras de uma grande obra arquitetônica, a matéria é concluída, aperfeiçoada e encontra seu estilo na forma, trazendo uma ideia à aparência. Esse é o mesmo processo que acontece, por exemplo, na fabricação de uma mesa de madeira. No caso, o sentido amplo de arte reside no conceito de técnica, uma vez que as obras de arte não se adequam ao conceito de coisa natural; ao invés de surgirem espontaneamente, elas consistem em uma produção humana. A palavra techné era interpretada tanto com ênfase no fazer artesanal colocado em prática pelo artesão, como era considerada enquanto um fazer no campo das belas-artes, efetivada pelo artista e apresentada através de obras como esculturas ou pinturas. Não se trata de um meio aleatório de fazer algo, senão de uma produção guiada pela racionalidade..
Por essa razão, enquanto techné, a arte é um saber-fazer através do qual o ser humano usa seus talentos para transpor a manufatura e trazer algo ao acabamento. Mais do que simplesmente um fazer., a techné se submete à produção no sentido de poiesis, isto é, “um produzir que dá forma, um fabricar que engendra, uma criação que organiza, ordena e instaura uma realidade nova, um ser.” (NUNES, 2016, pp.21-2) Os conceitos de arte e techné coincidem na medida em que tudo o que abriga uma capacidade de produzir algum efeito é definido como arte. Essa noção de que a arte é uma produção de algo já visto determinou o entendimento comum de que a música, a poesia, a escultura e a pintura são artes miméticas, ou seja, elas são essencialmente uma imitação.
No décimo livro da obra A república, Platão explora a noção de mímesis e a aproxima das artes em geral. O pensador grego defende a existência de dois mundos, a saber, o sensível e o suprassensível, ainda que estes não sejam completamente dissociados um do outro. O que chega aos nossos sentidos é algo inferior e obscuro; por outro lado, a ideia que pertence ao mundo suprassensível é apresentada no mundo concreto como mera aparência e “decai de certa maneira para o mesmo plano que a imagem” (HEIDEGGER, 2010b, p.162). Desse modo, a ideia perde a força e o esplendor fundamentais, enquanto deveria estar isenta de qualquer deformação e encobrimento. O conceito de eidos representa a forma ideal vislumbrada na obra e apreensível no plano sensível.
O exemplo da pintura. é usado para explicar a mímesis e se assemelha ao processo de criar com um espelho. Nos dois casos, o resultado é a mera reprodução da aparência. Através do uso de um espelho, seria mais fácil e rápido criar os fenômenos que se mostram (PLATÃO, 2009, p.335). Mas se alguém utiliza o espelho para reproduzir uma mesa, certamente não consegue transpor para a imagem gerada a madeira da qual ela é feita, sua textura e sua solidez, mostrando apenas seu contorno e suas cores. A pintura se assemelha ao espelhamento porque ambos copiam uma aparência da ideia e não criam uma composição autêntica, isenta de qualquer obscuridade provocada por esse processo. Mesmo assim, ainda se trata de uma produção: a arte nunca é inerte e desprovida de movimentos.
Essa “posição subordinada” (HEIDEGGER, 2010b, p.153) contribuiu para a depreciação da arte, que passou a ser determinada como mímesis. Como consequência, ao estar situada distante do conhecimento e da verdade, a arte deveria ser aceita somente até certo limite. O marceneiro, o pintor e o poeta são dotados da técnica da imitação, tornando-se capazes de enganar aqueles que entram em contato com suas obras. Esses observadores, igualmente distantes da verdade, copiam porque não conseguem criar e não criam por lhes faltar um conhecimento efetivo. Platão até acreditava que, se o artista dedicasse todo o seu talento para exprimir sensações e pensamentos próprios, ele eternizaria sua criação (PLATÃO, 2009, p.338), em vez de despertar impressões e sensações capazes de dissimular nosso lado mais racional.
O conceito de mímesis também aparece na obra aristotélica, em especial, na Poética, embora dispensando o caráter depreciativo ao qual a arte fora anteriormente submetida. Enquanto Platão associa este termo a um simulacro., para Aristóteles a mímesis tem um sentido fundamental: ela é um acontecimento natural, um instinto próprio do desenvolvimento humano.. A imitação está presente em todas as formas de arte, ou seja, na poesia, na música, nas artes figurativas e plásticas. O artista retrata ações, sentimentos e pensamentos dos outros homens, mas também manifesta as formas da natureza. Contrapondo-se a Platão, o estagirita defende que o conhecimento seja livremente despertado pela imitação, a qual não é reduzida à mera representação e se estende às variadas atividades humanas.
Isso só acontece porque estamos sempre dispostos a obter novas informações, conhecer os fenômenos e experimentar sensações diversas, inclusive a sensação de prazer. Aristóteles acredita que todos os seres humanos sentem prazer quando conhecem algo. A contemplação conecta sujeito e obra na medida em que ele apreende o significado dos elementos da obra e reconhece algo que lhe seja familiar. Esse prazer estético ainda não pode ser confundido com a sensação que será posteriormente apresentada na modernidade; sentimos prazer porque reconhecemos algo que nos comove, mas que a razão reconhece porque isso está dentro dos limites da verossimilhança e da imaginação.
Fica então determinada a superioridade da ideia em relação à aparência e do conhecimento pelo raciocínio em relação ao conhecimento conquistado pelos sentidos. Essas reflexões contribuíram bastante para um rebaixamento da sensibilidade diante da razão e, em consequência, impediram que as reflexões sobre a arte e as obras tenham sido sintetizadas em alguma disciplina filosófica durante o período grego. Trata-se de um dos problemas que Heidegger encontrou ao investigar os conceitos delimitados pela tradição antiga. As artes se definiam como uma atividade imitativa e não “provinham do artístico. As obras de arte não provocavam prazer estético. A arte não era setor de uma atividade cultural” (HEIDEGGER, 2006, p.36). Ainda não havia a estética enquanto uma disciplina voltada para a sensibilidade, o que acontecerá apenas com a mudança de perspectiva do homem moderno.
Se a grande arte grega dispensava reflexões sobre seus pressupostos e efeitos, na modernidade a arte reivindica para si uma investigação própria. Esse fato é marcado como um dos cinco fenômenos fundamentais desse período., como Heidegger deixa evidente em A época da imagem do mundo (1938): “Um terceiro fenômeno da modernidade, igualmente essencial, está na primazia com que se desloca a arte para o horizonte da estética. Isso significa: a obra de arte torna-se objeto da vivência e, em virtude disso, a arte vale como expressão da vida do homem.” (HEIDEGGER, 2005, p.192) A época moderna tem como princípio o pensar através da representação, a qual fora tomada enquanto fundamento das relações humanas com o mundo nos âmbitos científico, técnico e artístico. Para Heidegger, esse comportamento está sustentado no esquema sujeito-objeto.
As críticas feitas pelo filósofo à ligação entre sujeito e objeto no curso Ontologia: hermenêutica da faticidade (1923) e em Ser e tempo (1927), sua obra principal, foram decisivas, uma vez que delinearam aquilo que seria o impulso das ideias posteriormente transpostas para as teorias da arte. No entanto, é importante ressaltar que em momento algum Heidegger nega a importância dessa relação, segundo a qual a referência de um sujeito ao objeto se tornou condição de possibilidade de qualquer modo de conhecimento. Ele apenas a considera insuficiente, visto que o homem não pode converter tudo o que o circunda em mero objeto de pesquisa e reflexão.. Portanto, uma das mudanças paradigmáticas mais importantes e notáveis surgidas com a proposta da ontologia fundamental foi uma ruptura com a filosofia da consciência.
O existente humano era definido como um sujeito pensante que atribui sentido a toda e qualquer realidade, partindo de uma posição central que ocupa diante daquilo que se apresenta como objeto. Em contraposição às propostas metafísicas, Heidegger afirma então que o homem não é uma coisa, um conjunto de vivências nem “o sujeito (eu) que está diante do objeto (não eu)” (HEIDEGGER, 2011, p.54). É por essa razão que ele substitui definições que haviam sido consolidadas para designar o ente que nós somos – tais como animal racional, pessoa e consciência – pela expressão Dasein, o ser-no-mundo que experimenta os entes à sua disposição e é capaz de compreendê-los, em vez de apenas senti-los e vivenciá-los. A tentativa de Heidegger teria sido modificar o processo de conhecimento que se realizava através do domínio que o sujeito exerce sobre os entes.
Na perspectiva da modernidade, o ser humano existe, pensa, interroga e atribui sentido ao mundo em busca de uma verdade evidente e inabalável, mas livre das imposições aos quais antes era submetido, tais como as doutrinas religiosas e morais. Suas certezas se tornam incontestáveis e determinantes de toda forma de ação e pensamento. Assim, tudo é definido pela perspectiva do sujeito. Heidegger sugere que o homem moderno constrói uma imagem (Bild) do seu mundo. Referir-se à modernidade como “a época de imagens do mundo” (die Zeit des Weltbildes) significa que, a partir do instante em que o sujeito interpreta qualquer ente como imagem, também admite a possibilidade de que até mesmo o mundo seja entendido como um produto da sua interioridade. Isso ocorre na modernidade porque o homem é entendido como centro de referência do que é colocado como oposto, o objeto (Gegenstand) situado diante de si para que possa dominá-lo.
Ao mesmo tempo, o existente humano passa a ser a única e privilegiada medida do que é verdadeiro. Segundo Heidegger, portanto, a modernidade é a época na qual o homem constrói uma visão de mundo, sendo incapaz de ver além dos limites da sua própria visão. O objeto é elevado à condição de vivência, isto é, integra-se ao sujeito e passa a ser absorvido por ele, deixando de ser apreendido enquanto um fenômeno que possui um modo de ser. Essa relação de interioridade acaba definindo nossa relação com a arte. O filósofo alemão afirma que “vivência é a fonte paradigmática não só do prazer do artístico, mas também da criação artística. Tudo é vivência. Porém, a vivência é o elemento no qual, talvez, a arte morre.” (HEIDEGGER, 2010a, p.203)
Faltava uma interrogação pela essência da arte (a arte enquanto arte), livre do seu caráter de coisa e das imposições de algum observador. Portanto, o paradigma da modernidade, sustentado na relação entre sujeito e objeto, foi transposto para as questões da arte. Do mesmo modo, é decisiva a convicção que o homem tem de sua própria existência, ao se colocar na posição central de indicar o que são as coisas e como estas devem ser experimentadas e julgadas a partir do estado no qual ele se encontra. O que uma pessoa julga ser belo não é concluído pelo objeto contemplado. Antes, constitui-se belo a partir do que o sujeito percebe e como é afetado pela obra de arte. A apreensão do objeto estético leva o sujeito a experimentar sensações como prazer, inquietude, desassossego, curiosidade. Diante de uma escultura, uma pintura ou uma paisagem natural, o ser humano forma uma impressão de acordo com as qualidades que despontam da obra.
Essa mudança coloca a consciência com seus juízos e os gostos do homem como totalizadores, conferindo à investigação sobre a arte o papel de lidar com questões consideradas inéditas, tais como a sensibilidade, o belo e o gosto. Define-se, ainda, como o terceiro dos seis fatos fundamentais da estética10, constituindo um modo de pensar específico ao período no qual o sujeito moderno estava situado. As indagações se deslocam da produção e da obra “para o interior da ligação com o estado sentimental do homem” (HEIDEGGER, 2010b, p.77). A dimensão dos afetos fica em primeiro plano e as belas artes fazem parte da sua experiência meditativa. Surge então um novo modo de lidar com a arte, apoiado na inevitável relação entre sujeito e objeto:
Uma vez que a obra de arte é determinada no interior da consideração estética da arte como o belo produzido pela arte, a obra é representada como o que suporta e suscita o belo no que diz respeito ao estado sentimental. A obra de arte é estabelecida como “objeto” para um “sujeito”. A ligação sujeito-objeto é normativa para sua consideração e, como efeito, como uma ligação sentimental. A obra torna-se objeto em sua superfície que está voltada para a vivência. (HEIDEGGER, 2010b, p.72)
A arte é associada ao belo assim como às categorias do gosto e do prazer, o que significa que agora ela é associada à dimensão da subjetividade e também aos sentidos. A questão da beleza é incorporada às considerações artísticas, onde se procura perguntar se há uma concordância entre a obra e o gosto daquele que a contempla. De certo, existe a percepção de um sujeito e esse ponto de vista comporta a expressão aisthesis, que designa “o conhecimento do comportamento sensível, sensorial e afetivo, assim como disso por meio do que ele é determinado.” (HEIDEGGER, 2010b, p.71) A origem do termo estética – a ciência da beleza e da arte – remete a Alexander Gottlieb Baumgarten, filósofo alemão do século XVIII. Ele observou que as obras eram uma fonte de deleite para a sensibilidade humana e, por isso, as manifestações artísticas também mereciam se converter em tema de estudos mais detalhados e precisos.
Nesse caso, havia uma luta frequente entre o conhecimento racional, o qual era considerado superior e trazia estabilidade nas suas informações; e o conhecimento sensível, geralmente interpretado como falível, obscuro e inferior em relação àquele. Houve então uma espécie de sistematização das teorias que se relacionavam ao belo e à percepção, manifestando a intenção de alcançar a perfeição que advém do intelecto. Baumgarten é bastante conciso quando determina que estética “é a ciência do conhecimento sensitivo.” (BAUMGARTEN, 2012, p.70) Esse foi um esforço de atribuir determinada cientificidade e racionalização à própria sensibilidade. Com isso, Baumgarten introduziu a arte como uma forma de conhecimento, pois a estética também possuía um caráter de crítica, porém, sem jamais se reduzir a um mero breviário sobre obras de arte.
As reflexões estéticas se referem à arte e adotam um caráter especulativo, quando utilizam como pressuposto as teorias daqueles que trabalham com a arte e a vivem. Essa disciplina não deve ser reduzida a críticas e descrições de períodos e técnicas, pois seu objetivo é construir teorias definitivas sobre a beleza e as sensações provocadas pelas obras de arte. Isso porque as próprias modificações e a emancipação da arte, no período que abrange os séculos XVII a XIX, solicitou um novo olhar de investigação. Antes correspondente a horizontes diversos, por exemplo, o horizonte religioso com a representação de seus objetos sagrados, as obras tinham a condição de produto de fabricação ou imitação de algo com o qual nos deparamos no mundo, quer seja uma paisagem, uma mesa ou uma flor. Posteriormente, a obra despontou como objeto de contemplação, apreciação e adequação a um gosto, além da função que lhe fora atribuída de constituir um meio de expressar e despertar vivências.
Por essa razão, o empirismo traz contribuições relevantes para o campo da estética, visto que o conhecimento surge da experiência fundamentada nas impressões e sensações que as coisas provocam no interior do sujeito. Os dados do conhecimento e da reflexão vêm dos sentidos, cujo papel desponta diante do racionalismo vigente. Assim, o termo estética (aesthetica) é aplicado às meditações sobre o belo, inaugurando um caminho que pensa a arte e procura interpretá-la a partir do estado do próprio sujeito. Com o cientificismo específico da modernidade, havia a exigência de um método de pesquisa particular, o qual reivindicava que as disciplinas fossem tratadas com mais rigor. Isso provocou um distanciamento radical entre os objetos de pesquisa, tais como a verdade, o bem e o belo.
No texto Vontade de poder como arte (1936-37) Heidegger justifica o uso da palavra estética, comparando-a aos termos aplicados para designar a lógica e a ética. A lógica pesquisa o modo como nosso pensamento funciona, subordinando-o a regras que buscam uma evidência acerca dos enunciados e para dizer aquilo que .. O saber da lógica é determinado pelo intelecto e, portanto, não se dirige à esfera da sensibilidade. Por sua vez, a ética tem como pressuposto investigar o comportamento humano e suas mais diversas relações, baseando-se na máxima aristotélica de que “aquilo que é bom para todas as coisas e a que todas elas visam é o bem por excelência” (ARISTÓTELES, 1984, p.220). Na ética, já existe determinada orientação para o interior do ser humano, ao lidar diretamente com sua postura diante das situações nas quais ele se encontra, para enfim determinar suas escolhas e seu modo de agir.
Semelhante ao modo como se formaram essas disciplinas, dá-se o desenvolvimento da estética, ciência que se refere ao conhecimento sensível e à posição adotada diante da arte. Mas ao se direcionar a um saber baseado na sensibilidade, de certa forma distante daquele buscado pela lógica e considerado isento de uma determinação racional, a estética não se vincula às questões em torno da verdade. É como se fosse negada à arte a capacidade de revelar a verdade do mundo, dos homens e de uma época. Fica então determinado que, respectivamente, “O verdadeiro, o bem, o belo são objetos da lógica, da ética, da estética.” (HEIDEGGER, 2010b, p.72) Foi a partir das inquietações provocadas por essa descoberta que Heidegger, no ensaio A origem da obra de arte, procurou trazer o desvelamento da verdade através da arte.
A estética lida com os objetos exteriores que se manifestam aos sentimentos e com as sensações provocadas em nosso interior. Enquanto a lógica se ocupa com a verdade e a ética com o bem, a estética considera o comportamento humano em relação aos sentidos e, no caso, ao belo produzido pela arte, comportando uma ligação sentimental e afetiva com o ser humano. A relação que cada um possui com a arte gira em torno de dois polos: o polo do sujeito criador, ou seja, o artista que produz e atribui forma a uma matéria para criar uma aparência; e o polo de um sujeito receptivo, contemplador, capaz de ser afetado pela obra de arte e sentir seus efeitos. Essa relação é decisiva a partir do momento em que “fornece o âmbito normativo de determinação e de fundamentação: aquela meditação sobre a arte junto à qual esta permanece seu ponto de partida e sua finalidade.” (HEIDEGGER, 2010b, p.72)
Ao mesmo tempo, Heidegger admite as privações desse método, uma vez que argumenta sobre o estado sentimental do sujeito em vez de investigar o ser da própria obra. Também não oferece um caminho de acesso à arte e à pergunta por sua origem. Seria fundamental olharmos além do objeto, livre dos juízos de gosto e da sensibilidade, para que tenhamos uma experiência originária com a arte e, em especial, para nos aproximarmos da sua relação com a verdade. Na modernidade, porém, a arte depende da sensibilidade e da imaginação, assim como da razão com sua função crítica e avaliativa. Para que seja possível alguém julgar e discutir através de critérios válidos, é preciso “reviver a obra de arte” (BASTOS, 1986, p.55) e isso significa deixar que os sentidos assumam o comando da investigação. A análise de uma obra de arte exige que o sujeito volte sua atenção para o objeto posto diante dele, em uma contemplação desinteressada, sem estar atento à utilidade ou a qualquer possibilidade oferecida pelo objeto.
Homens e mulheres são afetados pela sensação de prazer suscitada na arte, pela percepção das suas formas, cores e texturas, pela satisfação dos sentidos. Nesse caso, o atributo da beleza depende mais da impressão provocada no seu observador do que daquilo que se apresenta na obra. Logo, o ponto de referência da avaliação não é a obra ou o objeto, mas o sujeito dotado de sensações de prazer e desprazer, de um gosto, de uma capacidade criativa e de fruição da obra. Por esse motivo, as questões da estética não investigam apenas as obras de arte em si e suas propriedades, como também fazem perguntas sobre a imaginação, o sentimento, padrão de gosto, se a beleza é relativa ou absoluta. A pergunta pela existência de um padrão ao qual o gosto e as emoções estejam adequados, por exemplo, tornou-se comum no cenário filosófico de alguns pensadores que caminhavam nesse terreno especulativo.
É o caso do filósofo inglês David Hume. De acordo com Hume, a separação entre juízo e sentimento impediria a possibilidade de se estabelecer um padrão de gosto. O sentimento nunca erra para quem está na sua posse, enquanto o conhecimento, ao se referir a algo que não está no interior do sujeito, não está necessariamente em concordância com a exigência do sujeito. É preciso haver uma conformidade entre o objeto e aquilo que o sujeito considera belo para que se possa determinar se há beleza na obra de arte. Não há erro no gosto de um sujeito quando não é o mesmo gosto dos outros homens. Assim, ele afirma:
A beleza não é uma qualidade das próprias coisas; ela existe apenas no espírito que as contempla, e cada espírito percebe uma beleza diferente. É possível mesmo que um indivíduo encontre conformidade onde outro só vê beleza, e cada um deve ceder a seu próprio sentimento, sem ter a pretensão de controlar o dos outros. (HUME, 2012, p.95)
No entanto, Hume reconhece que alguns objetos são inclinados a produzir sensações específicas, tal como a doçura de uma fruta ou o aroma de uma flor. Como seria possível chegar a um acordo acerca da beleza de uma obra de arte, se os homens são tão singulares e dotados de diferentes disposições? Nesse sentido, o papel das experiências culturais, da influência da história e dos costumes, tanto na percepção dos fenômenos como na determinação da beleza, ficou à margem da investigação do empirista. Em contraposição ao domínio dos critérios da racionalidade, a percepção e a emoção do sujeito são elevadas a um lugar de destaque nas normas de avaliação estética. A resposta do contato imediato com a obra vem do sentimento do sujeito particular, ao invés de despontar do pensamento do homem como um todo. Essa reivindicação de uma validade universal faz parte da formulação dos juízos de gosto, os quais encontram suporte na sensibilidade, à diferença do que acontece com os juízos de conhecimento apoiados na razão.
Immanuel Kant formulou os juízos de gosto ao promover uma analítica do belo na sua terceira crítica, tarefa reflexiva do conhecimento e das possibilidades da razão. Porém, nessa terceira crítica, sua intenção não consiste em desenvolver uma análise dos juízos teleológicos, os quais são projetados no objeto para estabelecer fins específicos. Se antes as considerações estavam voltadas para o objeto, os juízos estéticos são voltados para o sujeito, referindo-se às representações e considerando as impressões provocadas em nós. Sobre isso, ele traz a seguinte definição: “O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico, e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo.” (KANT, 2012, p.119) A intenção de Kant teria sido descobrir através de quais pressupostos um objeto é classificado como belo.
No entanto, vale ressaltar que a faculdade do juízo estético concorda, até certo ponto, com o entendimento (Verstand). Deixar a investigação ser guiada unicamente pelo sentimento não contribui para qualquer tipo de conhecimento, do mesmo modo que se referir somente ao objeto impede a formulação de qualquer juízo estético. Além disso, para que possamos compreender o mundo, necessitamos da razão e da experiência caminhando lado a lado. Ao especular sobre os fenômenos e as representações dos objetos, Kant direciona as reflexões estéticas para as sensações provocadas no sujeito. O filósofo recorre à ligação entre sujeito e objeto, conforme explica: “A cor verde dos prados pertence à sensação objetiva, como percepção de um objeto do sentido; o seu agrado, porém, pertence à sensação subjetiva, pela qual nenhum objeto é representado”. (KANT, 2012, p.122)
A posição que o sujeito ocupa em relação ao ente é colocada em primeiro plano na garantia de como o objeto será experimentado, determinando as características e sensações que dele são percebidas. Cada um descobre as coisas depois de descobrir a si mesmo, seus estados sentimentais e disposições de ânimo. Portanto, o julgamento de uma obra de arte, com a intenção de dizer se agrada à nossa sensibilidade, é realizado pelo juízo de gosto e, para que este se torne válido, o objeto de contemplação deve permanecer desprovido de qualquer interesse11. De acordo com a leitura heideggeriana de Kant:
O que o juízo “isso é belo” exige de nós jamais pode ser um interesse. Quer dizer: para acharmos algo belo precisamos deixar aquilo mesmo que vem ao nosso encontro vir até diante de nós puramente como ele mesmo, em sua própria estatura e dignidade. [...] precisamos liberar o que vem ao encontro como tal no que ele é, deixar e permitir-lhe alcançar o que pertence a ele mesmo e o que ele pode trazer para nós. (HEIDEGGER, 2010b, p.100)
E para Heidegger interesse significa aquilo que, uma vez despertado em nós, também nos faz querer tomar algo para nós. Isento de interesse, o prazer decorrente do contato com a obra adquire validade universal. Estar livre de qualquer condição particular não quer dizer que a complacência se sustente exclusivamente no objeto. Caso contrário, não só a universalidade despontaria através desses conceitos, como a beleza seria uma propriedade exclusiva do objeto, resultando numa formulação de juízos lógicos e, em consequência, todos concordariam e sentiriam uma satisfação similar diante da mesma obra de arte. Por outro lado, se o prazer suscitado pela obra estiver fundamentado em um sentimento particular e interessado, não seria algo comunicável entre seres humanos. Logo, suspender o interesse não implica exatamente se concentrar no objeto.
Através do juízo de gosto, ou seja, baseando-se em sentimentos e estados de ânimo, é possível declarar se aquele objeto dado pela representação é ou não é belo. Esse comportamento atribui ao juízo um caráter estético diferente de um aspecto de conhecimento e ainda proporciona ao contemplador da obra uma satisfação desinteressada. Foi a Revolução Copernicana12 que provocou a virada da posição do homem no mundo, colocando-o como ponto de referência e, dentro desse contexto, ocorreu outra mudança igualmente significativa. O que marca a entrada da arte no horizonte da estética – evento que ocorre nos anos finais do século XVII e ganha forças no século XVIII13 – é justamente esse deslocamento dos meios de julgar a arte da razão para a sensibilidade. Essa certeza fundamentada no sujeito desvinculado do mundo provocou em Heidegger a necessidade de questionar o modo de ser da própria arte, cujo acesso se poderia alcançar superando a noção de que o existente humano resguarda em si a verdade da obra e de qualquer evento.
De fato, existe uma experiência de relação sensível com a obra. A arte é associada a uma atividade subordinada ao belo e seu deleite, sustentada na vivência de um sujeito receptor. Mas se o homem era a medida de toda a realidade, a pergunta pela obra não seria o critério de verdade na estética e não nos garantiria qualquer acesso à essência da arte. Por esse motivo, segundo Heidegger indica: “Até mesmo Kant, que, por meio de seu método transcendental, possuía possibilidades maiores e mais determinadas de interpretação da estética, permaneceu preso às barreiras do conceito moderno de sujeito.” (HEIDEGGER, 2010b, p.112) E ainda admite que, de certo modo, as reflexões estéticas podem se voltar para a ligação entre a arte e a disposição sentimental do sujeito:
Eu mesmo e meus estados somos o ente primeiro e propriamente dito; tudo o que de outro modo possa ser interpelado como ente é medido a partir de e de acordo com esse ente assim certo. Meu estado e minha condição, o modo como me encontro junto a algo, são essencialmente co-normativos para o modo como eu descubro as coisas e tudo o que vem ao meu encontro. (HEIDEGGER, 2010b, p.77)
A afetividade (Befindlichkeit) é uma estrutura inseparável da existência, traduzindo o modo como o Dasein se encontra no mundo e é afetado pelas situações e pelos entes aí circunscritos. A dificuldade surge quando o sensível prevalece sobre o inteligível, fazendo com que todas as atenções da estética se voltem para o comportamento humano mediante as sensações provocadas pela arte. Essas teorias nos remetem à ideia de que a arte permanece na esfera da expressão e da geração das vivências. Heidegger retorna às teorias da modernidade para explicar como a arte passou a ser investigada por uma ciência que a entende como vivência, porém, ele se dirige a esse termo com um olhar crítico. É certo que o ser humano possui um lugar indispensável para a criação da obra, assim como aquele que a contempla é capaz de interferir em sua classificação14. Todavia, não é dele que depende o desvelamento da verdade da arte, pois o desvelamento acontece através da própria obra.
A obra de arte não se reduz às experiências sensíveis e não cumpre o papel de provocadora de vivências. Tampouco se resigna a uma simples aparência, uma imitação distante do nosso mundo concreto. Se o desvelamento fosse pensado sob essa perspectiva, a arte nunca nos permitiria um salto em direção à verdade. Para Heidegger, “O desvelo da obra não isola os homens em suas vivências, mas o introduz na pertença da verdade que acontece na obra” (HEIDEGGER, 2010a, p.173). Portanto, a obra de arte é capaz de comportar em si uma época e um mundo, a história e a verdade. Foi esse desvelamento que ficou de fora dos limites da modernidade e levou o filósofo alemão a questionar a validade das teorias estéticas, com a intenção de ir muito além dos nossos estados sentimentais e tentar encontrar, em meio ao cotidiano de um mundo permeado de representações, a manifestação da verdade do Ser.