Resumo: Trata-se de uma investigação acerca dos limites deontológicos presentes no pensamento de Ronald Dworkin e que foram fortemente criticados por Michael Sandel. Através das análises críticas será possível avaliar se Dworkin foi ou não incoerente em sua proposta igualitária. Em outras palavras, será possível averiguar se Dworkin, um deontologista declarado, acaba decaindo em argumentos utilitaristas para sustentar sua própria teoria igualitária. Caso essa afirmação seja verdadeira, avaliaremos quais as consequências filosóficas dessa incoerência. Para tanto, empregaremos, como exemplo paradigmático, o argumento de justiça distributiva dworkiniano, mais especificamente, a questão das ações afirmativas nos Estados Unidos. Nesse sentido, utilizaremos como fios condutores as obras Liberalism and the limits of justice de Michael Sandel e A matter of Principles de Ronald Dworkin.
Palavras-chave:DeontologiaDeontologia,UtilitarismoUtilitarismo,Teorias da justiçaTeorias da justiça,Ação afirmativaAção afirmativa.
Abstract: This is an investigation of Michael Sandel’s critique of Ronald Dworkin’s thought. Through this analysis it will be possible to evaluate whether or not Dworkin was inconsistent in his egalitarian proposal. In other words, it will be possible to ascertain whether Dworkin, an avowed deontologist, ends up falling into utilitarian arguments to support his own theory. If this statement is true, we will assess the philosophical consequences of this incoherence. To do so, we will use, as a paradigmatic example, the distributive justice argument of Dworkin, more specifically, the question of affirmative action in the United States. In this sense, we will use as conducting threads the works Liberalism and the limits of justice of Michael Sandel and A matter of principles of Ronald Dworkin.
Keywords: Deontology, Utilitarianism, Theories of justice, Affirmative action.
Artigos
A incoerência deontológica do modelo igualitário dworkiniano
The deontological incoherence of dworkin's egalitarian model
Recepção: 14 Outubro 2018
Aprovação: 24 Novembro 2018
Desde que Platão escreveu a República, a questão da justiça social tornou-se um problema comum de todas as sociedades. Não é à toa que, para sua discussão, diferentes foram os modelos sugeridos para dar conta do que consideramos como sendo o justo, o bom ou o correto em termos de função do Estado para com seus cidadãos. Tais modelos, sejam eles utilitaristas, liberais, igualitaristas, teóricos das virtudes ou comunitaristas tentam tratar do problema de justiça sugerindo diferentes pontos de partida, e esses pontos são tão diversos quanto seus modelos teóricos. Dentro dessa dinâmica social, o problema da igualdade ergue-se como a pedra de toque de muitas teorias, muitas das quais lançaram mão de diferentes expedientes para sua resolução. Uma das tentativas de resolver o desequilíbrio social é dado por Ronald Dworkin, que defende a existência de princípios de justiça que devem ser garantidos a todos.
Todavia, o fato de Dworkin tecer importantes contribuições teóricas para a aplicação dessa política, não faz com que a sua teoria seja coerente e muito menos que as suas bases teóricas tenham lógica filosófica. É diante da possibilidade de alguma incongruência que Michael Sandel irá tecer duras críticas ao pensamento dworkiniano. Procuraremos analisar essas críticas e avaliar se elas possuem ou não embasamento, isto é, se Dworkin é mesmo incoerente em sua proposta e quais seriam as consequências desse fato.
II
Grande expoente comunitarista, Michael Sandel é responsável por realizar inúmeras críticas acerca da teoria liberal igualitarista. Em sua obra Liberalism and the limits of justice, Sandel argumenta que a concepção de justiça dessas teorias é pautada em um falso procedimentalismo e que, apesar de se autodeclararem deontologistas, se valem de argumentos utilitaristas para o seu embasamento. Nesse sentido, princípios de justiça como defende Dworkin podem ser considerados utilitaristas em sua essência.
Nesse sentido, a crítica de Sandel ao Dworkin seria “a concrete illustration of what goes wrong with the liberal position when it tries to do without one” (SANDEL, 1998, p. 135). Com esse intuito Sandel irá rechaçar o modelo de ação afirmativa defendido por Dworkin. Para compreendermos a crítica de Sandel, iniciaremos apresentando o ponto de vista de Dworkin.
O modelo igualitário de Dworkin, declaradamente deontologista, possui como alternativa a igualdade de recursos. De acordo com seu pensamento, no contexto de um Estado Democrático de Direito, a igualdade deve sempre prevalecer em relação à liberdade uma vez que é a virtude cardinal presente na comunidade política. Dada sua importância, a igualdade de recurso surge como faceta para a justiça distributiva compatível com uma sociedade baseada em um princípio político de igual consideração de todos os seus membros. Para o filósofo, a igualdade será garantida apenas na medida em que os recursos forem distribuídos de forma igualitária, sem que haja dependência de critérios subjetivos de bem-estar.
Caberá ao Estado a função da igualdade no tratamento de seus cidadãos, sendo que há duas formas de entender o direito à igualdade. A saber, i.o direito a um tratamento igual ou ii. o direito ao tratamento como igual. O tratamento igual i. consiste no direito a uma distribuição igualitária de oportunidade, recursos e encargo (e.g., o direito ao voto ou à educação básica), ao passo que o segundo ii. se configura pelo direito de todos os cidadãos serem tratados com igual consideração e atenção, sendo este um direito inalienável e fundamental. É pautado neste sentido de igualdade que irá emergir a concepção de justiça distributiva em Dworkin. Para tanto, uma sociedade justa deve garantir a maior igualdade possível de recursos impessoais e pessoais, ou seja, os recursos passíveis de apropriação e transferência e as qualidades da mente e do corpo que são preponderantes para o êxito da realização dos projetos individuais. Esse será um direito fundamental para garantir a igualdade, mesmo que possa significar um tratamento diferenciado a alguns. Para Dworkin, o tratamento como igual fundamentará a adoção das políticas (policies) de ações afirmativas e sua eficiência proporcionará a consequência da justiça social, não como uma compensação do passado, mas com vistas a concretizar a igualdade de oportunidade e induzir transformações que visam diminuir os problemas sociais aos quais as minorias estão sujeitas.
A ação afirmativa, tal qual proposta por Dworkin, tem por finalidade subtrair a discriminação por meio de um tratamento diferencial a um grupo minoritário, mediante um sistema de igualdade fática pautado no contexto social no qual o indivíduo esta inserido. Para Dworkin, é impossível reformar a consciência racial da sociedade por meios racialmente neutros. Nessa medida, a escolha da raça como fator de inclusão dos negros nas universidades é uma questão de critério. Neste cenário, usar o programa de ação afirmativa é uma estratégia para atacar um problema existente a nível nacional, e a sua utilização seria justa e necessária porque ainda hoje a consciência racial da sociedade norte-americana se revela muito forte. Ademais, Dworkin defende a instituição dos programas de ação afirmativa, pois ele não reconhece a inconstitucionalidade da utilização da raça como um critério de admissão nas universidades.
Dessa forma, tratando as vagas em universidades como recursos que devem ser distribuídos à sociedade, a política de ação afirmativa seria uma maneira de promover a distribuição igualitária desses recursos, reconhecendo as diferenças de caráter social que marcam os negros nos Estados Unidos da América. Ademais, o propósito da ação afirmativa seria o enriquecimento da educação, garantindo um ambiente de ensino pluralista que fosse capaz de preparar os estudantes para viverem em uma sociedade de diversidade..
III
No capítulo The case of affirmative action da obra Liberalism and the limits of justice, Sandel analisa se é justo ou não que uma universidade tenha a meta de aumentar a diversidade de seus campi e que, para isso, se utilize do critério de raça na seleção de seus alunos. Ora, e porque esse critério vale hoje e não valia em algum tempo atrás? Aliás, e se uma universidade decidir escolher apenas brancos.? Qual o problema moral? E se, por representarem uma minoria, uma universidade optar por reservar vagas para candidatos ruivos? Há algum impedimento? Como ele mesmo questiona: “as faculdades e universidades podem definir suas missões como bem lhes aprouver?” (SANDEL, 2011, p. 224).. Caso uma instituição escolhesse como critério de seleção de seus alunos a raça, isso não poderia criar problemas futuros, por exemplo, um estado extremamente paternalista? Sandel aponta que lançar mão desse tipo de argumento para defender ações afirmativas pode gerar uma volta ao passado nada agradável, na medida em que podemos retroceder, de modo inverso, às mesmas práticas discriminatórias de outrora. Isso engendraria o problema da ladeira escorregadia (slippery slope): se aceitarmos práticas discriminatórias de certo aspecto, talvez não tenhamos argumentos racionais para rejeitar práticas discriminatórias indesejáveis no futuro. E parece que Dworkin, sem dimensionar o perigo de sua argumentação, estaria na ladeira pronto a desandar.
Como vimos, Dworkin defende que as medidas favoráveis às minorias em universidades pautam-se na ideia de que devemos aceitá-la por força de um objetivo socialmente valioso, qual seja, o de reduzir o grau de consciência das pessoas quanto à sua própria raça. Em outras palavras, ele afirma que podemos aceitar o sacrifício de um indivíduo (no caso um estudante branco) em prol da humanidade com base no argumento de utilidade social.. Entretanto, para Sandel., o argumento é totalmente utilitarista na medida em que se vale do princípio da máxima felicidade em ação.. É o que vemos quando Dworkin, ao analisar o caso DeFunis na obra Levando os Direitos a Sério, afirma:
Qualquer critério adotado colocará alguns candidatos em desvantagem diante dos outros, mas uma política de admissão pode, não obstante isso, justificar-se, caso pareça razoável esperar que o ganho geral da comunidade ultrapasse a perda global e caso não exista uma outra política que, não contendo uma desvantagem comparável, produza, ainda que aproximadamente, o mesmo ganho (...) o direito de um indivíduo de ser tratado como igual significa que sua perda potencial deve ser tratada como uma questão que merece consideração. Mas essa perda pode, não obstante isso, ser compensada pelo ganho da sociedade em geral. (DWORKIN, 2002, p. 350).
Essa afirmação nos parece um argumento de natureza utilitarista, embora tal posição seja rechaçada por Dworkin. É possível perceber que o fato de Dworkin considerar que certos indivíduos fossem tratados como meios para a satisfação de um fim alheio é uma máxima utilitarista. Porém, Dworkin ao se intitular um deontologista, o faz sobre uma base kantiana para defender as ações afirmativas. Nesse sentido, parece ser contraditório que ele se valha de uma argumentação utilitarista e antiliberal para endossar a sua posição em prol de um modelo de ação afirmativa.
Ademais, não há qualquer demonstração de que o princípio da máxima felicidade em ação garanta o que Dworkin pretende. Garantir cadeira cativa em uma faculdade de medicina para alguém em virtude de sua cor não garantirá, necessariamente, um benefício à comunidade estudantil, assim como não garante a preparação adequada deste indivíduo para viver em um mundo plural ou mesmo oferecer o retorno desejado à sociedade. Em outras palavras, as chances de um cidadão ascender a determinado posto variam de acordo com o talento de cada um, e nenhuma medida é capaz de abolir os efeitos da “distribuição” natural de talentos. Por isso, a ação afirmativa forte, não parece ser plausível a menos que também sejamos utilitaristas o que não é o caso de Dworkin. Pelo contrário, a ação afirmativa é injusta, pois é apenas um meio para garantir maior bem-estar geral, seja esse bem-estar no sentido psicológico de proporcionar maior prazer, seja no sentido preferencial de agradar a um maior número de cidadãos. Logo, são feridos os direitos individuais do estudante (que não é negro) que decidiu participar de um processo seletivo para a universidade, na medida em que a admissão é negada em nome do “bem comum” e da missão social da universidade. E por que um indivíduo, no caso um branco, não pode ser analisado, exclusivamente, por seus esforços e realizações, ao invés de um meio de promoção do “bem comum”? A lógica do indivíduo como meio não parece ser benéfica para a promoção de justiça em uma sociedade não utilitarista.
I.
Outro ponto problemático identificado por Sandel na teoria de Dworkin diz respeito ao mérito. Para explicar tal situação, Sandel se vale do caso Cheryl J. Hopwood versus State of Texas.. Cherryl Hopwood era uma garota branca, criada apenas por sua mãe e enfrentou grandes dificuldades financeiras para conseguir concluir o ensino médio. Hopwood conseguiu entrar para a Universidade da Califórnia, em Sacramento e, após algum tempo, tentou ingressar na Faculdade de Direito da Universidade do Texas, que era considerada uma das melhores do país. Embora tenha alcançado uma nota consideravelmente alta para entrar no curso, Hopwood teve o seu ingresso negado, tendo em vista que a universidade utilizava-se de um programa de ação afirmativa que privilegiava minorias negras e descendentes de mexicanos nascidos nos Estados Unidos. Assim sendo, pertencentes desses grupos conseguiram ingressar no curso com médias escolares mais baixas e alcançaram um menor aproveitamento nos exames de admissão. Hopwood levou seu caso à justiça federal alegando ter sido discriminada. Semelhante aos casos Defunis e Bakke, o que esta em questão nesse caso é se “é injusto considerar raça e etnia fatores prioritários no mercado de trabalho e na admissão à universidade?” (SANDEL, 2011, p. 210).
Ao analisar essa situação, Sandel apresenta dois argumentos comumente utilizados pelos defensores das ações afirmativas: o argumento da compensação histórica e o argumento da diversidade racial. Partindo desses dois argumentos, o filósofo afirma que se a questão é ajudar aqueles que estão em desvantagens, essa política deveria ter como fator diferencial a classe social e não a raça como vem acontecendo. Além disso, “se o critério racial tiver como objetivo compensar a injustiça histórica da escravidão e da segregação, qual seria o motivo para que se imputasse o ônus a pessoas como Hopwood, que enfrentou luta muito mais árdua para superar dificuldades econômicas?” (SANDEL, 2011, p. 212.). Em outras palavras, até quando devemos responsabilizar coletivamente? Nós realmente temos a obrigação moral de corrigir erros de gerações anteriores? As obrigações são apenas qua indivíduos ou enquanto membros de um determinado grupo? Responder a essas questões é de suma importância para compreendermos até quando devemos retroceder nessa lógica de compensação histórica.
No tocante ao argumento da diversidade, Sandel afirma que excluir Hopwood da vaga é ferir seus direitos. Além disso, os motivos pelos quais ela não foi aceita estão fora de seu controle. Logo,
o uso do favorecimento racial não tornará uma sociedade mais diversificada ou reduzirá os preconceitos e as desigualdades, mas afetará a autoestima dos estudantes de grupos minoritários, aumentará a conscientização racial em todos os lados, intensificará as tensões raciais e provocará a indignação entre os grupos étnicos brancos que acham que também eles deveriam merecer oportunidades. A objeção prática não diz que ela é injusta, mas que é provável que ela não atinja seus objetivos e resulte em mais problemas do que benefícios (SANDEL, 2011,p. 214.).
Verificamos na crítica de Sandel, que o direito de Hopwood não pode ser violado tendo em vista um bem maior para a sociedade. Como já foi dito, essa é a defesa da teoria de Dworkin, que afirma que outros fatores também são alheios ao controle individual e nem por isso são injustos, como é o caso de ser mais ou menos inteligente, melhor ou pior jogador de basquete.. Nesse sentido, a universidade poderia escolher, de antemão qual critério considera mais justo para o sistema de admissão da universidade, seja aptidão atlética, capacidade acadêmica ou a diversidade do corpo estudantil.
Isso enquadra a teoria de Dworkin no chamado por Sandel de noção de “mérito moral”. De acordo com Sandel, na concepção de Dworkin o mérito moral é determinado a partir da escolha de determinado princípio, o que nesse caso seria a escolha da missão da universidade. Em outras palavras, o mérito do candidato não pode ser mensurado apenas por seu esforço, desconsiderando as capacidades naturais que são frutos da sorte e não da virtude. Nesse sentido, Sandel inicialmente concorda com Dworkin de que a entrada na Universidade não pode ser tomada como uma espécie de coroação de uma hipotética virtude ou competência, mas discorda da total dissociação da justiça em relação ao mérito. Primeiramente, porque a justiça muitas vezes é um aspecto desenvolvido para conceber honra, ou seja, não é apenas “de quem merece o quê, mas também de que qualidades são merecedoras de honrarias e prêmios” (SANDEL, 2011, p. 221). Além disso, as universidades não podem escolher suas missões livremente como bem decidirem, haja vista que nem toda ação parece ser válida. Nesse contexto, a ideia seria de que, contando que não venha a ferir os direitos humanos10, a universidade poderia escolher quais critérios são considerados válidos para a sua admissão, podendo ser inclusive o critério de preferências hereditárias (preferências aos filhos de ex-alunos)11 ou o critério de ser um ex – combatentes de guerra.
Para exemplificar essa relação entre o mérito moral e quem deverá ser admitido, Sandel propõe uma carta12 que deverá ser enviada para Hopwood, como recusa de sua solicitação de ingresso na Universidade:
Dear Ms. Hopwood,
We regret to inform you that your application for admission has been rejected. Please understand that we intend no offense by our decision. We do not hold you in contempt. In fact, we don’t even regard you as less deserving than those who were admitted. It is not your fault that when you came along society happened not to need the qualities you had to offer. Those admitted instead of you are not deserving of a place, nor worthy of praise for the factors that led to their admission. We are only using them - and you - as instruments of a wider social purpose. We realize you will find this news disappointing. But your disappointment should not be exaggerated by the thought that this rejection reflects in any way on your intrinsic moral worth. You have our sympathy in the sense that it is too bad you did not happen to have the traits society happened to want when you applied.
Better luck next time.
Sincerely yours . . .13
Sandel também, ironicamente, indica como deveria ser enviada a carta para aqueles que conseguiram ter a sua solicitação aceita, mas que não possuíam mérito para tal, ou seja, tiveram pouco aproveitamento no teste de aptidão. Esta segunda carta deveria ser assim:
Dear successful applicant,
We are pleased to inform you that your application for admission has been accepted. It turns out that you happen to have the traits that society needs at the moment, so we propose to exploit your assets for society’s advantage by admitting you to the study of law. You are to be congratulated, not in the sense that you deserve credit for having the qualities that led to your admission - you do not - but only in the sense that the winner of a lottery is to be congratulated. You are lucky to have come along with the right traits at the right moment. If you choose to accept our offer, you will ultimately be entitled to the benefits that attach to being used in this way. For this, you may properly celebrate. You, or more likely your parents, may be tempted to celebrate in the further sense that you take this admission to reflect favorably, if not on your native endowments, then at least on the conscientious effort you have made to cultivate your abilities. But the notion that you deserve even the superior character necessary to your effort is equally problematic, for your character depends on fortunate circumstances of various kinds for which you can claim no credit. The notion of desert does not apply here.
We look forward nonetheless to seeing you in the fall.
Sincerely yours . . .14
Outro ponto problemático apontado por Sandel é o fato de Dworkin, partindo da ideia de que o candidato não pode ser avaliado somente em abstrato, ou seja, por meio de testes de inteligência, deve apresentar algum talento que trouxesse uma proposta social relevante para a comunidade. E, dentro dessa lógica, a questão racial é encarada por Dworkin como um fator relevante, ou seja, digno de tornar-se uma missão da universidade. Sendo assim, da mesma forma que um cirurgião que tem as mãos ágeis será capaz de servir melhor sua comunidade do que um que não as tenham, ser negro seria uma característica relevante para que o indivíduo seja um bom médico, dependendo da missão escolhida pela universidade. Além disso, não há garantias de que aquele sujeito beneficiado terá maiores ganhos do que aquele que foi impedido de entrar na universidade, pois a missão por ela aplacada era diferente de apenas testes de inteligência. Dworkin ao considerar essa argumentação válida, recai em uma série de erros, segundo Sandel. Um deles é saber quais são os requisitos relevantes para a sociedade, seria a raça, ou algum outro critério relevante? Esses limites não podem ser claramente decididos uma vez que não consideram o indivíduo como possuidor de valor intrínseco e tal afirmação acaba engendrando, novamente, uma propositiva utilitarista. Como nos afirma Sandel:
Once admission or exclusion cannot plausibly be seen to depend on a notion of “merit” in the abstract or on an antecedent individual claim, the alternative is to assume that the collective ends of the society as a whole should automatically prevail. But the bounds of the relevant society are never established, its status as the appropriate subject of possession never confirmed. Once the self, qua individual self, is dispossessed, the claims of the individual fade to betray an underlying utilitarianism which is never justified. (SANDEL, 1998, p. 140.).
O erro de Dworkin, pela ótica de Sandel, seria não considerar os indivíduos como tais, tomando-os apenas como produtos das preferências da comunidade, “occurs whenever an individual’s preferences must give way to society’s preferences, and should not be exaggerated by the thought that your rejection reflects in any way on your intrinsic moral Worth” (SANDEL, 2009, p. 142.). Para Sandel, esse entendimento de ser preterido em detrimento do outro em prol da coletividade enfraquece a concepção de “self” da teoria de Dworkin, na medida em que fortalece a ideia de comunidade, não passando de uma formula sobre como usar alguns como meios para que os fins dos outros fossem alcançados. Isso é exatamente o que os liberais deontológicos estariam empenhados em rejeitar15. Dessa forma, ao defender a sua teoria, Dworkin se distanciaria do liberalismo por ele proposto e se aproximaria do comunitarismo ontológico16.
Nesse sentido, devo compartilhar os meus benefícios com a sociedade, não por que ela me fez ser quem eu sou e, por isso, é responsável por mim, mas por uma suposição duvidosa de que a “sociedade” tem o poder de me instrumentalizar em prol de um bem socialmente útil, ficando o sujeito impedido de servir seus próprios fins. Além disso, quando Dworkin afirma que a sociedade norte-americana é racialmente consciente e que a intenção das ações afirmativas é exatamente o de desconstruir esse preconceito, Sandel afirma que Dworkin não explica o porque de ter de ser assim, para lidar com o problema da discriminação. De acordo com Sandel, Dworkin não dá provas de que essa é a melhor maneira de lidar com esse problema nem simplesmente explica o porquê da necessidade dessa responsabilidade coletiva.
Além disso, quando Dworkin se vale de expressões como “sociedade como um todo” ou “sociedade em geral”, o que pressupõe uma noção de sociedade “completa” que não é explicada. Cada sujeito se move em um número indefinido de sociedades, umas que abrangem um maior número de pessoas, e outras que abrangem outros grupos, cada qual com disposições e atribuições particulares. Segundo, se não existe essa sociedade tomada em abstrato, então, parece improvável que qualquer sociedade particular possa fazer qualquer tipo de reivindicação especial a partir de um conjunto de indivíduos que lá residem, de um ponto de vista moral.
V
Por tudo o que vimos, é possível concluir que o maior problema da ação afirmativa dworkiniana encontra-se na sua argumentação quanto à diversidade e promoção social e, principalmente, na incoerência da base teórica de seu argumento, uma vez que, sendo um deontologista, Dworkin não poderia fazer uma defesa utilitarista de políticas públicas. Ao apresentarmos a oposição de Michael Sandel, percebemos que a pressuposição básica de Dworkin era defender sua teoria como liberal igualitária com cunho deontológico, de onde as políticas públicas extrairiam sua justificação. Porém, Sandel demonstrou que essa proposta dworkiniana possui questões utilitaristas escondidas ou que entram pela “porta de fundo”. Logo, o âmbito justificacional dessa estaria comprometido.
Diante disso, a defesa de ações afirmativas de Dworkin não se sustenta em sua teoria normativa. O que demonstrou que sua proposta possui falhas que desqualifica a sua defesa enquanto base teórica. Nesse sentido, podemos até imaginar que essa política social possa, na prática, trazer algum tipo de benefício para o grupo almejado. Todavia, o fato de sua base teórica ser pautada numa incoerência filosófica, faz com que tanto a argumentação como todo o corpus filosófico do pensamento de Dworkin seja insuficiente. Por sua vez, Sandel ao apresentar as fragilidades dessas teorias da justiça, revela o quanto essas estão munidas de um falso procedimentalismo.