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América latina, o discurso filosófico-sociológico da modernidade, a ce-gueira histórico-sociológica das teorias da modernidade: notas programá-ticas para uma práxis decolonial latino-americana
Latin-america, the philosophical-sociological discourse of modernity, the historical-sociological blindness of the theories of modernity: programmatic notes for a latin-american decolonial praxis
Griot: Revista de Filosofia, vol. 18, núm. 2, pp. 295-324, 2018
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepção: 13 Maio 2018

Aprovação: 07 Setembro 2018

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v18i2.982

Resumo: :

Neste artigo, defendemos que as teorias euronorcêntricas da modernidade, cujo mote é a reconstrução filosófico-sociológica do processo de modernização ocidental (ou europeia, ou o padrão evolutivo-constitutivo das sociedades industrializadas desenvolvidas contemporâneas) sofrem de uma cegueira histórico-sociológica que é caracterizada por três pontos básicos: (a) o desenvolvimento dessa mesma modernização ocidental como um processo autorreferencial, auto-subsistente, auto-suficiente, endógeno e autônomo, de modo que haveria a modernidade enquanto racionalização e todo o resto enquanto tradicionalismo, o que, por outro lado, não impede as teorias da modernidade de correlacionarem modernidade-modernização, racionalização, universalismo e gênero humano; (b) a separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, a primeira enquanto esfera puramente normativa e a segunda enquanto esfera basicamente instrumental, lógico-técnica, com o objetivo de salvar-se um conceito normativo de universalismo epistemológico-moral que se confunde com a própria modernidade cultural; e (c), como condição de tudo isso, o apagamento do e o silenciamento sobre o colonialismo enquanto uma consequência do desenvolvimento da modernização ocidental como um todo. Argumentamos que uma práxisdecolonial latino-americana tem na denúncia, no desvelamento e na desconstrução dessa cegueira histórico-sociológica das teorias euronorcêntricas da modernidade em sua estilização do processo de modernização ocidental o ponto de partida epistemológico-político fundamental para constituir-se como alternativa ao paradigma normativo da modernidade, para fundar o seu (latino-americano) discurso filosófico-sociológico da modernização ocidental em sua correlação com o colonialismo.

Palavras-chave: Modernidade, Colonialismo, Cegueira Histórico-Sociológica, América Latina, Decolonialidade.

Abstract: :

In this paper, we defend that euronorcentric theories of modernity which pursuit the philosophical-sociological reconstruction of the process of the Western modernization (or European, or the evolutionary-constitutive pattern of development of the contemporary industrialized societies) are characterized for a historical-sociological blindness which is marked by three basic points: (a) the understanding of the Western modernization as a self-referential, self-subsistent, self-sufficient, endogenous and autonomous process of development, so that there would be modernity as rationalization and all the rest as traditionalism, position that, on the other hand, does not prevent the theories of modernity of correlating modernity-modernization, rationalization, universalism and human evolution; (b) the separation between cultural modernity and social-economic modernization, the first as a sphere purely normative, and the second as a sphere basically instrumental, logical-technical, with the purpose of saving a normative concept of epistemological-moral universalism which is the cultural modernity itself; and (c), as condition of that philosophical-sociological reconstruction, the erasing, the deletion and the silencing about the colonialism as a consequence of the development of the Western modernization as a whole. We argue that a Latin-American decolonial praxis has in the denounce, unveiling and deconstruction of this historical-sociological blindness assumed by euronorcentric theories of modernity in their reconstruction of the process of the Western modernization its fundamental epistemological-political starting point to become itself an alternative to the modernity’s normative paradigm, to ground its (Latin-American) philosophical-sociological discourse about Western modernization and its correlation with colonialism.

Keywords: Modernity, Colonialism, Historical-Sociological Blindness, Latin America, Decoloniality.

Considerações iniciais

Neste artigo, realizamos uma crítica à cegueira histórico-sociológica e à romantização filosófico-política do racionalismo ocidental assumidas e dinamizadas pelas teorias euronorcêntricas da modernidade e, em nosso caso aqui, pela teoria da modernidade de Jürgen Habermas como base para a sua reconstrução filosófico-sociológica do processo de modernidade-modernização ocidental e sua (da modernidade europeia) correlação com uma perspectiva epistemológico-moral universalista que é pós-metafísica, a única apta ao mundo pluralista contemporâneo em termos de gerar justificação e validade intersubjetivas. Argumentaremos que a reconstrução do processo de modernidade-modernização europeia como universalismo-globalismo pós-metafísico via racionalização somente pode ser feita por meio de uma série de estilizações problemáticas, a saber: (a) a separação e a contraposição puristas e simplistas entre a modernidade europeia como racionalização e universalismo versus todo o resto das sociedades-culturas como tradicionalismo em geral, essencialista, naturalizado e contextualista; (b) a singularidade, a endogenia e a independência absolutas em termos civilizacionais, societais e culturais entre a modernidade europeia e todo o resto das sociedades-culturas como tradicionalismo em geral; (c) a correlação de modernidade europeia, racionalização, universalismo, crítica, reflexividade e emancipação, e de tradicionalismo em geral, essencialismo-naturalismo, contextualismo, dogmatismo, fanatismo e fundamentalismo, bem como a correlação de modernidade, racionalização, universalismo e/como gênero humano, em que a modernidade europeia aparece não apenas como a condição da crítica, da reflexividade e da emancipação, mas também como ápice do gênero humano e este como um grande e gradativo processo de modernização, ao passo que cada sociedade-cultura em particular apareceria como uma protomodernidade; (d) a separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, com a purificação e a santificação da primeira enquanto esfera puramente normativa (e como autêntico, reto e direto universalismo epistemológico-moral pós-metafísico) e a condenação exclusiva da segunda, concebida como âmbito basicamente lógico-técnico, não-político, não-normativo, instrumental, pelas patologias psicossociais da modernização ocidental; e, finalmente, (e) o apagamento do e o silenciamento sobre o colonialismo na e por parte da teoria da modernidade, de modo que a modernidade europeia tem como caminho constitutivo reto, direto e linear o primeiro mundo, excluindo-se qualquer correlação entre a modernidade e o outro da modernidade, a modernidade e o colonialismo, o primeiro mundo e o terceiro mundo, a modernização central e a modernização periférica. A partir dessa constatação, argumentaremos que uma práxis decolonial latino-americana (e africana) tem condições de afirmar o colonialismo como efetiva teoria da modernidade que desvela, critica e desconstrói a cegueira histórico-sociológica e a romantização filosófico-política das teorias da modernidade euronorcêntricas, religando modernidade e colonialismo e colocando o outro da modernidade como a condição para o esclarecimento da modernidade, para o esclarecimento do próprio Esclarecimento. Nesse caso, é exatamente o fenômeno do colonialismo que permite a reconstrução do discurso filosófico-sociológico da e sobre a modernização ocidental, o repensar de seu presente e o projetar de seu futuro, bem como a perspectiva crítica, normativa e reparatória em termos de universalismo epistemológico-moral, diante do cenário de crise instaurado pela globalização econômico-cultural como fenômeno atual da modernização ocidental totalizante, unidimensional e massificadora.

A cegueira histórico-sociológica das teorias européias da modernidade

O pensamento filosófico-sociológico europeu, desde o século XVIII (no caso da filosofia), passando pelo século XIX (ainda no caso da filosofia e, agora, da própria sociologia clássica) e chegando ao século XX (filosofia e sociologia contemporâneas), tem na categoria de modernidade ou de modernização ocidental sua base normativo-metodológica fundamental no que diz respeito tanto à fundamentação de um conceito crítico de ciência social, capaz de análises objetivas acerca das instituições sociais e das práticas culturais próprias da Europa moderna (ou, no caso contemporâneo, próprias ao padrão de evolutivo-constitutivo das sociedades industrializadas desenvolvidas – em particular Estados Unidos e Europa ocidental), quanto na realização de uma práxis política emancipatória pelos sujeitos políticos exemplares dessa mesma modernização ocidental (pense-se, por exemplo, no proletariado, na perspectiva do marxismo, bem como nos novos movimentos de protesto tematizados pela sociologia europeia contemporânea etc.), ambas em correlação intrínseca e mutuamente dependentes. Ou seja, o pensamento filosófico-sociológico europeu concebe a categoria de modernidade ou de modernização ocidental em um duplo sentido: enquanto normatividade social ou universalismo epistemológico-moral, o que torna a modernidade o guarda-chuva normativo de toda e qualquer forma de particularidade e de contextualismo, garantindo-lhe a capacidade de crítica e de enquadramento práticos – a modernidade (europeia) como categoria epistemológico-política crítica, primeiramente para si e, depois, para o que está fora da própria modernidade (europeia); e enquanto categoria propriamente sociológica, isto é, enquanto um conceito institucional de estrutura ou sistema social gerador, determinador de processos de socialização e de subjetivação, de modo que, nesse caso, a categoria sociológica de modernidade ou de modernização ocidental permitiria a pesquisa quantitativa em ciências sociais, passível de objetividade desde os, a partir dos procedimentos de pesquisa próprios a essas ciências. Aqui adviria a especificidade da filosofia europeia (fundamentação desse conceito normativo de modernidade enquanto universalismo epistemológico-moral, fundamentação da modernidade enquanto conceito crítico) e da sociologia clássica e, depois, contemporânea (fundamentação de uma categoria institucional de modernização ocidental possibilitadora de pesquisas quantitativas). Daqui também adviria a possibilidade de correlação e de intersecção entre filosofia e sociologia – a ideia de uma ciência social crítica e de uma práxis política emancipatória calcadas neste conceito normativo-institucional, filosófico-sociológico de modernidade.

Na teoria crítica desenvolvida em termos da Escola de Frankfurt, essa correlação é a plataforma epistemológico-política a partir da qual a modernidade ou modernização ocidental é concebida, enquadrada e criticada, assim como a base para se pensar sua própria transformação desde dentro. De todo modo, embora não entremos em maiores detalhes aqui, acreditamos que essa correlação, fundada no duplo significado do conceito de modernidade europeia ou de modernização ocidental, pode ser percebida em diferentes teóricos da filosofia e da sociologia desde meados do século XIX em diante, com especial ênfase desde o século XX, não sendo, portanto, uma característica apenas da Escola de Frankfurt: a ideia de que a Europa moderna e, depois, o padrão evolutivo-constitutivo das sociedades industrializadas desenvolvidas contemporâneas (EUA e Europa Ocidental), enquanto conceito normativo-institucional, dinamizam o pensamento e as proposições epistemológico-políticas de diferentes intelectuais e teorias euronorcêntricas, sendo assimilados, em muitos aspectos, pelas próprias periferias epistemológico-políticas desse mesmo horizonte euronorcêntrico – pensemos aqui, por exemplo, acerca das categorias de primeiro mundo, segundo mundo e terceiro mundo, ou na reflexão em torno ao capitalismo dependente feitas por teóricos brasileiros. Todos eles partem desse conceito modelar de modernidade-modernização ocidental sintetizada pelo padrão evolutivo e constitutivo da Europa moderna e de sua consequência direta, o primeiro mundo, na maior parte das vezes ignorando ou silenciando sobre a relação entre modernidade-modernização e colonialismo. Ora, em que sentido o conceito de modernidade ou de modernização ocidental apresenta esse duplo significado enquanto conceito normativo e enquanto noção institucional? Como é possível a correlação entre eles? E, nesse sentido, como as periferias epistemológico-políticas à modernidade ou à modernização ocidental aparecem, como elas se situam no discurso filosófico-sociológico da modernidade ou da modernização ocidental? Melhor: como elas são situadas pelo discurso filosófico-sociológico da modernidade levado a efeito pelas teorias euronorcêntricas canônicas? No que se segue, queremos reconstruir em linhas gerais o sentido desse discurso filosófico-sociológico da modernidade que é homogêneo e comum às teorias euronorcêntricas acerca da modernização ocidental ou do padrão de desenvolvimento das sociedades industrializadas contemporâneas (o “antigo”, mas atual, primeiro mundo), de modo a mostrar que, direta ou indiretamente, esse entendimento acerca da modernidade revela muito mais do que um simples, neutro e ingênuo conceito epistemológico possibilitador da pesquisa em ciências sociais ou de análises normativas pela filosofia acerca das diferentes formas de vida, da fundamentação de seus valores e da possibilidade de um diálogo intercultural e de uma ética cognitivista universal-intersubjetiva. Esse entendimento revela uma cegueira histórico-sociológica, pelas teorias filosófico-sociológicas euronorcêntricas acerca da modernidade, que (a) concebe a modernização ocidental como um processo de desenvolvimento endógeno e autônomo, autorreferencial, auto-suficiente e auto-subsistente em relação ao colonialismo, bem como (b) separa modernidade cultural e modernização econômico-social enquanto momentos não-dependentes, de modo a purificar a modernidade cultural em relação tanto às patologias psicossociais modernas (que são causadas pela modernização econômico-social, e não pela modernidade cultural) e ao próprio fenômeno do colonialismo (que no máximo pode ser atribuído à modernização econômico-social, mas não à modernidade cultural – de todo modo, o colonialismo aparece como um fenômeno alheio e externo à reconstrução normativo-epistemológica da modernidade ocidental pelas teorias filosófico-sociológicas euronorcêntricas). Nesse sentido, nessas teorias, há uma correlação intrínseca entre modernização ocidental, racionalização, universalismo e evolução humana, assim como uma associação direta entre modernização, racionalização, crítica, emancipação e universalismo, de modo que a modernização ocidental torna-se o apogeu do desenvolvimento humano, em termos normativos e institucionais, tornando-se o guarda-chuva normativo, epistemológico-político de todos os contextos particulares – esse é o fecho de abóboda da cegueira histórico-sociológica das teorias da modernização ocidental, dado tanto pela filosofia quanto pela sociologia euronorcêntricas.

Autores tão diferentes quanto G. W. F. Hegel, Karl Marx, Max Weber, Jürgen Habermas e Anthony Giddens, apenas para citar alguns, partem do pressuposto – que eles se propõem a investigar e a provar em suas teorias – de que a Europa moderna constitui-se em uma forma de sociedade, de cultura, de consciência e, assim, também de paradigma epistemológico-moral que é totalmente diferente e ao mesmo tempo totalmente nova em relação a outras formas de sociedade, de cultura, de consciência e de paradigma epistemológico-moral.. Se, em Hegel, na Europa moderna haveria a correlação entre universalismo e liberdade individual (cf.: HEGEL, 2001); se em Marx a Europa moderna seria caracterizada pelo capitalismo, pelo universalismo moral e pela emergência da democracia (cf.: MARX, 2013); se em Weber a Europa moderna seria caracterizada pela racionalização das imagens culturais de mundo, o que faria com que o filho dessa mesma Europa tratasse todos os problemas epistemológico-políticos desde uma perspectiva histórica e universal (cf.: WEBER, 1984); e se em Habermas e em Giddens a Europa moderna apareceria enquanto correlação entre, por um lado, secularismo institucional-cultural e uma forte noção de subjetividade reflexiva que levariam ao universalismo epistemológico-moral, bem como, por outro, pela consolidação dos sistemas sociais modernos (Estado burocrático-administrativo e mercado capitalista) (cf.: HABERMAS, 2012a, 2012b; GIDDENS, 1996, 2000, 2001); em todos eles, como síntese de sua pertença ao paradigma normativo da modernidade, aparece a afirmação de que há a modernidade europeia e todo o resto, a modernidade europeia como racionalização e todo o resto das sociedades, das culturas, das consciências epistemológico-morais e dos paradigmas como tradicionalismo. Como consequência, também aparece a afirmação de que a modernização confunde-se com o próprio apogeu da evolução humana a partir da correlação entre modernização, racionalização, universalismo, crítica e emancipação, de modo que a modernidade torna-se o paradigma de todos os paradigmas, o guarda-chuva normativo universal de todas as outras formas de vida particulares. Nesse sentido, a modernidade, enquanto conceito normativo-institucional, serve como base de qualquer forma de ciência social crítica e de práxis política emancipatória, dentro dela mesma e fora dela mesma, ainda que esse fora dela mesma não seja parte constituinte explícita do próprio processo evolutivo e constitutivo da modernização ocidental, tal como ele é concebido pelas teorias filosófico-sociológicas européias canônicas.

Para que não necessitemos recontar ou voltar a analisar toda a história do pensamento filosófico-sociológico euronorcêntrico acerca da categoria normativo-institucional de modernidade ou de modernização ocidental, trabalho que já foi feito, por exemplo, de modo muito consistente por Enrique Dussel (1993), por Walter Mignolo (2007) e por Aníbal Quijano (1992), entre outros, queremos focar na análise direta da teoria da modernidade de Jürgen Habermas, tematizando também, mas agora de modo indireto, as teorias da modernidade de Max Weber e de Anthony Giddens acerca da especificidade da modernidade ocidental e, no mesmo diapasão, de sua total diferenciação em relação ao tradicionalismo em geral (ponto de partida epistemológico-político das teorias euronorcêntricas que reconstroem o processo de modernização ocidental). Pois bem, o que é a modernidade ocidental, na teoria da modernidade de Habermas? E em que sentido ela pode ser afirmada como um conceito normativo-sociológico para uma teoria social crítica e para uma práxis política emancipatória tanto dentro de si mesma, em relação às suas próprias patologias, quanto fora de si mesma, por parte do não-moderno? Afinal, enquanto paradigma epistemológico-moral universalista, a modernidade – essa é a intenção de Habermas – serve como guarda-chuva normativo também para o não-moderno (cf.: HABERMAS, 2012a; 1997; 2002a). Note-se, em relação a isso, que um dos motes centrais do pensamento de Habermas, que está na base da construção de sua teoria da modernidade, consiste na contraposição ao conservadorismo político-cultural e ao pós-modernismo epistemológico-moral (cf.: HABERMAS; 1991, p. 166; 1997, p. 09-29; 2002a, p. 01-25). De um lado, o apelo ao tradicionalismo não resolveria os problemas da modernização ocidental postos em evidência ao longo do século XX e assumidos em cheio no núcleo epistemológico-político na teoria crítica da Escola de Frankfurt; de outro lado, a crítica total à modernidade, que leva exatamente, no entender de Habermas, à deslegitimação de toda a modernidade, não pode ser aceita sem mais, por jogar fora apressada e acriticamente todos os instrumentos normativos, epistemológico-políticos possibilitados por essa mesma modernidade ocidental. Ora, o que merece ser criticado e o que merece ser salvo acerca da modernidade ocidental? Aqui aparece o discurso filosófico-sociológico da modernidade elaborado por Habermas – note-se que é um discurso filosófico e sociológico, uma correlação entre ambas as disciplinas científicas. Note-se também que ele se situa na vasta e multiforme tradição inaugurada por Hegel e pela sociologia clássica (Comte, Marx e Durkheim), chegando até Max Weber, para os quais a reconstrução do processo ontogenético de constituição da modernidade ocidental era a chave de leitura fundamental, seja para entender como nos tornamos modernos, seja para pensar estratégias metodológico-políticas para enfrentarmos os desafios da modernização.

Primeiramente, respondamos à pergunta feita acima, a saber, sobre o conceito de modernidade-modernização ocidental utilizado por Habermas (e por Weber, por Giddens, mas também, antes deles, por Hegel, Marx, Comte e Durkheim). Por modernidade-modernização ocidental, Habermas está entendendo o processo constitutivo-evolutivo da Europa moderna, cuja linha evolutiva descamba direta e linearmente no padrão constitutivo-evolutivo do primeiro mundo, isto é, da Europa ocidental e da América do Norte – por isso, inclusive, utilizamos o qualificativo de euronorcêntrica/o para definirmos as teorias filosófico-sociológicas localizadas neste contexto histórico, temporal, cultural. Para Habermas, assim como para os pensadores que lhe associamos, a modernidade é a Europa e seu desenvolvimento leva a dois caminhos apenas, o primeiro mundo (capitalismo de bem-estar social) e o segundo mundo (socialismo de Estado), este como um caminho fracassado, aquele como o caminho que restou do processo de evolução da modernidade europeia. Como se pode perceber, o colonialismo, o terceiro mundo, a relação entre modernidade e colonialismo, assim como a relação entre centros e periferias, entre capitalismo central e capitalismo periférico, tudo isso é deixado em segundo plano, em muitos casos sequer mencionado – por exemplo, na sua Teoria do agir comunicativo, Habermas não fala uma única vez sequer sobre o colonialismo, sobre a relação entre centros e periferias, sobre a relação entre primeiro e terceiro mundo. Repetimos: ele elabora uma teoria da modernidade-modernização ocidental como universalismo-globalismo e não fala, não menciona uma vez sequer o colonialismo, a modernização periférica, a relação entre modernidade e colonialismo, entre primeiro mundo e terceiro mundo. Nesse sentido, em Habermas, como desenvolveremos mais adiante, a modernidade-modernização ocidental restringe-se ao contexto europeu e, depois, enquanto conseqüência direta e linear, ao primeiro mundo. Isso significa que a modernidade-modernização europeia e, depois, o padrão constitutivo-evolutivo do primeiro mundo são percebidos como um movimento autorreferencial, auto-subsistente, auto-suficiente, endógeno e autônomo da Europa sobre si mesma e por si mesma, que levaria diretamente ao primeiro mundo. E isso também significa duas coisas: (a) a modernidade é totalmente singular em relação ao outro da modernidade, representando um estágio radicalmente novo e mais evoluído relativamente a esse outro da modernidade, ao ponto de ela e somente ela servir como base paradigmática para o enquadramento da evolução humana como um todo e, com isso, sustentar uma forma de universalismo epistemológico-moral tanto para si quanto para o outro da modernidade; (b) a modernidade europeia e o padrão constitutivo-evolutivo do primeiro mundo podem ser entendidos, estudados e transformados desde dentro de si mesmos, somente por meio da referência a sujeitos, processos, instituições, práticas e valores internos à própria Europa, ao próprio primeiro mundo, não necessitando do outro da modernidade e, principalmente, sequer afirmando a ligação entre modernidade e colonialismo, primeiro mundo e terceiro mundo, centros e periferias econômico-culturais e epistemológico-políticos. Desse modo, esse conceito autorreferencial, auto-subsistente, auto-suficiente, endógeno e autônomo de modernidade-modernização ocidental – Europa moderna e primeiro mundo – pode ser compreendido e dinamizado, na teoria da modernidade de Habermas, exclusivamente como correlação, separação e tensão-contradição entre mundo da vida (modernidade cultural, sociedade civil moderna) e sistemas sociais (modernização econômico-social, Estado burocrático-administrativo e mercado capitalista), sem qualquer referência ao colonialismo, ao terceiro mundo, como estamos argumentando. O cerne do conceito de modernidade-modernização ocidental, no caso de Habermas (mas também de Max Weber e de Anthony Giddens) envolve os conceitos de mundo da vida ou sociedade civil ou modernidade cultural e de sistemas sociais ou Estado burocrático-administrativo e mercado capitalista ou modernização econômico-social, que são todos específicos e muito próprios à Europa moderna e que descambam exatamente no capitalismo tardio, no capitalismo de bem-estar social como a realidade consequente do desenvolvimento da modernidade europeia, descambando, agora, no conceito do primeiro mundo.

Ora, a categoria epistemológica chave para entender-se o processo de constituição da modernidade europeia (e somente haveria ela, a Europa como modernidade) é a categoria de racionalização, no sentido de que a Europa moderna gesta-se gradativamente como um processo de racionalização das imagens mítico-religiosas, metafísico-teológicas de mundo, o que leva à superação do tradicionalismo pela moderna visão de mundo. Essa moderna visão de mundo é, portanto, em primeiro lugar, modernidade cultural, caracterizada pela secularização institucional-cultural e pela emergência e consolidação de uma noção forte e fundante de subjetividade reflexiva, que levam ao desencantamento do mundo. Não por acaso, nas teorias da modernidade de Weber, de Habermas e de Giddens, o discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia, sobre ela, começa com a contraposição entre a visão de mundo moderna e a visão de mundo tradicional (cf.: WEBER, 1984, p. 11-24; HABERMAS, 2012a, p. 94-141; GIDDENS, 1996, p. 95, p. 75; 2000, p. 142-149). Sobre isso, é interessante a afirmação, por Weber, de que o filho da moderna civilização ocidental não pode deixar de se impressionar com o caráter absolutamente singular da Europa moderna quando ela é comparada a todas as outras sociedades, na medida em que as perguntas e os posicionamentos epistemológico-políticos dessa mesma modernidade europeia e de seus filhos têm como característica fundamental o fato de serem perguntas e posicionamentos de caráter histórico-universal, calcados na racionalização, quando todas as outras sociedades, culturas e epistemologias, que são todas tradicionais, estão presas ao seu contexto de emergência, basicamente particularizadas em suas perguntas e em seus posicionamentos (cf.: WEBER, 1981, p. 11).

O mesmo acontece com Habermas. Em Teoria do agir comunicativo, seu objetivo central, a reconstrução de um conceito filosófico-sociológico de modernidade capaz de fazer frente ao conservadorismo e ao pós-modernismo, capaz de explicar as patologias psicossociais modernas e ao mesmo tempo de poder oferecer orientação epistemológico-normativa para sua transformação, tudo isso sem jogar fora a modernidade, é realizado por meio da afirmação de que a Europa moderna é racional e geradora de racionalidade, contrariamente ao mito, à tradição, que dificilmente é racional e dificilmente gera racionalização social (cf.: HABERMAS, 2012a, p. 94-96). Pois bem, aqui como em Weber, o discurso filosófico-sociológico da modernidade parte da contraposição entre Europa moderna enquanto razão-racionalização e todo o resto como tradicionalismo (cf.: HABERMAS, 2012a, p. 94-141). Essa seria a chave metodológica, mas também a autocompreensão normativa, para entender-se a constituição da própria Europa enquanto modernidade. As sociedades tradicionais são marcadas pela férrea imbricação entre natureza ou mundo objetivo, cultura ou sociedade e individualidade, no sentido de que a natureza é antropomorfizada e a sociedade, naturalizada e, portanto, despolitizada; aqui, não existe subjetividade reflexiva em sentido estrito, enquanto independente seja da natureza, seja da sociedade, o que significa, como consequência, que não existe criticismo social e mobilidade política em tais sociedades – afinal, a natureza possui forma humano-espiritual, e a sociedade possui relações basicamente naturalizadas, que impedem o desenvolvimento de uma perspectiva histórico-política acerca delas (para Habermas, a naturalização leva à despolitização), além de não existir o sujeito epistemológico-político da crítica e da ação política, que é o indivíduo reflexivo e/ou o movimento social. Não há historicidade e politicidade nas sociedades tradicionais, posto que tudo está naturalizado, e a magia e a religião são os únicos instrumentos e caminhos para a justificação da evolução social (cf.: HABERMAS, 2012a, p. 106-109). Contrariamente a elas, a modernidade europeia, marcada pela secularização institucional-cultural e pela emergência e consolidação de uma noção forte e fundante de subjetividade reflexiva, é caracterizada justamente pela separação entre natureza, sociedade ou cultura e subjetividade, de modo que a natureza torna-se pura materialidade, basicamente uma res extensa, a sociedade torna-se historicizada, profana e politizada, e a individualidade fundante e reflexiva assume o posto de sujeito epistemológico-político que valida as instituições, a cultura e as normas socialmente vinculantes. A modernidade cultural, portanto, ao tornar tudo profano e político, instaura a racionalização como a única base de sua autoconstituição, como o único fundamento para suas relações intersubjetivas e para a justificação de suas instituições, de seus processos culturais e de sua evolução ao longo do tempo (cf.: HABERMAS, 2012a, p. 383).

Ora, o que é racionalização ou racionalidade, nessa percepção de Habermas? Em primeiro lugar, note-se esse fato da completa historicização, politização e profanização da sociedade europeia moderna: isso significa que ela já não possui fundamentos epistemológico-políticos prévios, essencialistas e naturalizados, para suas instituições, seus processos culturais e suas formas de socialização e de subjetivação. Em segundo lugar, mas correlatamente, é importante mencionar-se a noção de subjetividade reflexiva enquanto o sujeito epistemológico-político fundante da legitimidade das instituições modernas, de seus processos de socialização, de sua dinâmica cultural: essa politização das instituições e da cultura moderna é levada a efeito e dinamizada exatamente pela subjetividade fundante, ativa, propositiva, criadora de sentido. Assim, na medida em que existem sujeitos epistemológico-políticos construtores de sentido por meio de suas relações sociais e a politização-profanização das instituições e das práticas culturais modernas, que perdem seu fundamento prévio, essencialista e naturalizado, somente o processo intersubjetivo de diálogo e de interação, talvez mesmo de disputa, é que tem condições de instaurar normas, práticas, procedimentos e instituições socialmente vinculantes. Aqui começamos a falar em racionalização, isto é, o diálogo, a interação e a discussão entre indivíduos e grupos constituintes da modernidade colocam-se como as bases procedimentais, programáticas para a instauração das normas, das práticas, dos processos e dos valores próprios à sociedade europeia moderna. Ora, para alcançar-se um acordo socialmente vinculante e universalmente aceito, os indivíduos e grupos modernos já não podem lançar mão de fundamentações essencialistas e naturalizadas, posto que elas foram colocadas por terra pela secularização institucional-cultural e pela centralidade da subjetividade reflexiva, pelo desencantamento do mundo. Nesse sentido, os indivíduos e grupos modernos precisam lançar mão de argumentos formais, imparciais, neutros, genéricos e abstratos, que não estejam diretamente ligados a conteúdos de formas de vida particulares, especialmente formas de vida calcadas em fundamentações essencialistas e naturalizadas. A modernidade europeia, portanto, é racional e geradora de racionalidade porque leva os indivíduos a pensarem e a agirem, quando se trata da fundamentação das normas socialmente vinculantes, desde um procedimentalismo neutro, formal, impessoal e imparcial em relação a conteúdos particulares das formas de vida – a linguistificação do sagrado e a razão comunicativa, de que fala Habermas (cf.: HABERMAS, 2012a, p. 249; 2012b, p. 87-196). Os sujeitos epistemológico-políticos modernos, portanto, devem pensar a partir de conceitos gerais, em nome da humanidade como um todo, o que significa que a modernidade cultural europeia instaura uma consciência epistemológico-moral pós-convencional que é não-egocêntrica e não-etnocêntrica, e que se constitui e dinamiza exatamente sob a forma desse procedimentalismo neutro, imparcial, impessoal e formal – que Habermas coloca como a base de um universalismo epistemológico-moral não-fundamentalista e pós-metafísico adaptado à contemporaneidade e consolidado pela sua releitura em termos de razão comunicativa e modernidade dual (modernidade cultural e modernização econômico-social) acerca da modernização ocidental (cf.: HABERMAS, 1989; 1990; 2002b). Isso é racionalização, ou seja, os indivíduos e grupos modernos devem pensar, argumentar e agir a partir de princípios e regras formais, desligadas, em um primeiro momento, de conteúdos materiais imediatos, independentes das visões essencialistas e naturalizadas de mundo, assumindo o universalismo e, portanto, a crítica e a libertação como motes centrais da práxis cotidiana. Aqui, na modernidade, como consequência, há evolução social e aprendizado moral por causa disso (por causa da libertação em relação ao tradicionalismo possibilitada pelo desencantamento do mundo levado a efeito pela racionalização), ao passo que no tradicionalismo, por ele não ser baseado na racionalização dos valores, das práticas e dos processos de fundamentação, não haveria evolução social, aprendizado moral e emancipação política. A racionalização leva à secularização, à historicização, à politização e à subjetivação reflexiva, gerando uma perspectiva radicalmente crítica do presente, que se processa sob a forma de um universalismo epistemológico-moral não-egocêntrico e não-etnocêntrico; o tradicionalismo leva ao contextualismo estrito, ao fundamentalismo, ao dogmatismo e ao fanatismo, dada suas bases essencialistas e naturalizadas, gerando uma perspectiva basicamente etnocêntrica e egocêntrica.

Ora, a base ontogenética da modernidade europeia é a racionalização cultural. A partir daqui, surgem gradativamente os sistemas sociais modernos, tais como o Estado burocrático-administrativo e o mercado capitalista. O surgimento desses sistemas sociais modernos, portanto, é consequência da modernidade cultural, é o segundo passo no processo de desenvolvimento da modernização ocidental. Note-se que eles surgem desse processo de modernização cultural, que diferencia e singulariza várias esferas de valor próprias à modernidade, que permite a descentralização da sociedade (no sentido de que passariam a existir várias esferas de valor, vários campos da reprodução social, e não mais, como no tradicionalismo, um único princípio de integração social, no caso a religião ou o mito), várias formas de fundamentação nela e por parte dela, algo que o tradicionalismo em geral não possuiria, posto ser caracterizado como uma totalidade social absolutamente imbricada em um sentido normativo. Isso significa que o processo de modernização possui como marca fundamental a consolidação de diferentes e particularizadas instituições ousistemas sociais, cada uma delas centralizando e monopolizando desde uma perspectiva autorreferencial, auto-subsistente, auto-suficiente e lógico-técnica campos específicos da reprodução social – ao lado do mundo da vida ou da modernidade cultural enquanto esfera fundamentalmente normativa, temos, como representantes por excelência da modernização econômico-social, o mercado capitalista fundado na lógica do dinheiro e o Estado burocrático-administrativo moderno fundado na dinâmica da burocracia, e ambos baseados e dinamizados em termos de racionalidade instrumental (cf.: HABERMAS, 2012a, p. 384-385; 2012b, p. 278-280). O desencantamento do mundo levado a efeito pela modernidade cultural, portanto, instaura diferentes princípios-instituições garantidores da organização e da evolução social, como a normatividade social ou universalismo epistemológico-moral (mundo da vida), o dinheiro (mercado capitalista) e o poder burocrático (Estado moderno). Importante mencionar-se que, se os sistemas sociais ou instituições modernos são gerados a partir do processo de racionalização cultural dinamizado em termos de modernidade cultural, seu processo evolutivo os transforma gradativamente em estruturas fundamentalmente lógico-técnicas, de cunho autorreferencial, auto-subsistente, auto-suficiente e autônomo em relação ao mundo da vida, e em contraposição a ele. Com o tempo, essa é a tese de Habermas, os sistemas sociais separam-se da modernidade cultural, singularizando-se e, aqui, tornando-se auto-subsistentes tanto em relação à modernidade cultural quanto aos demais sistemas sociais concorrentes. Aqui estaria a especificidade da modernização ocidental – visão dual dessa modernização, enquanto modernização cultural e modernização econômico-social; modernidade cultural como base ontogenética primigênia, geradora da modernização econômico-social, que depois se emancipa dela, tornando-se autorreferencial e auto-subsistente e sendo marcada por uma dinâmica lógico-técnico, basicamente instrumental. Daqui também emergiriam as contradições, as patologias psicossociais do processo de modernização ocidental, que seriam caracterizadas como colonização sistêmica, isto é, lógico-técnica, instrumental do mundo da vida normativo por parte das instituições mercado capitalista e Estado burocrático-administrativo. Ou seja, no caso de Habermas, o conceito de modernidade-modernização ocidental é marcado por uma perspectiva dual, na qual a modernidade-modernização ocidental começa como modernidade cultural, isto é, racionalização das imagens metafísico-teológicas de mundo, gerando uma sociedade-cultura e uma consciência cognitivo-moral não-egocêntricas e não-etnocêntricas (universalismo epistemológico-moral pós-metafísico) e, a partir disso, leva à gradativa consolidação dos sistemas sociais modernos, da modernização econômico-social, sob a forma de descentralização da sociedade e de diferenciação das esferas de valor modernas, que possibilitam a consolidação e o desenvolvimento do mercado capitalista e do Estado burocrático-administrativo. A modernidade cultural, aqui, seria percebida como uma esfera normativa, como racionalidade cultural-comunicativa (que é basicamente normativa), ao passo que a modernização econômico-social seria compreendida como um horizonte fundamentalmente lógico-técnico, instrumental, não-político e não-normativo. A modernidade cultural gera a modernização econômico-social e esta se emancipa daquela, diferenciando-se e contrapondo-se normatividade ou racionalidade cultural-comunicativa (modernidade cultural, mundo da vida, sociedade civil) e racionalidade instrumental ou dinheiro e poder administrativo, de caráter lógico-técnico. Daqui adviriam o sentido, a especificidade e também as tensões próprias à modernidade-modernização ocidental, sob a forma de colonização do mundo da vida pelos sistemas sociais modernos. Sobre isso, uma breve passagem da Teoria do agir comunicativo, por Habermas:

[...] a racionalização do mundo da vida torna possível uma espécie de integração sistêmica que entra em concorrência com o princípio integrativo do entendimento e, de sua parte e sob determinadas condições, retroage no mundo da vida, de modo desintegrador (HABERMAS, 2012a, p. 590-591. Cf., ainda: 2012a, p. 384-385, p. 588).

A visão dual do processo de modernização ocidental, ao dividir essa mesma modernização ocidental em modernidade cultural, enquanto esfera fundamentalmente normativa, e modernização econômico-social, enquanto esfera constituída por sistemas sociais basicamente lógico-técnicos, instrumentais, permite, primeiro, no caso da modernidade cultural, fundar-se um conceito de normatividade social que possa servir de base para a avaliação dos impactos negativos causados pelos sistemas sociais modernos ao mundo da vida; em segundo lugar, no caso dos sistemas sociais, sua constituição eminentemente lógico-técnica permite à teoria social crítica e a uma práxis política emancipatória, ambas baseadas na modernidade cultural, apontarem um culpado para as patologias psicossociais modernas, a saber, as instituições ou sistemas sociais da modernização econômico-social. Isso prova a independência entre ambas; prova também que a modernidade cultural não pode ser culpada pelas patologias psicossociais geradas pelos sistemas sociais modernos, senão que, ao contrário, ela coloca-se como paradigma normativo-crítico para a mensuração dessas patologias e para o enquadramento desses sistemas sociais; possibilita-se, por fim, aqui, a afirmação de que as patologias psicossociais modernas são causadas pelos sistemas sociais e possuem cunho lógico-técnico, instrumental, e não normativo (cf.: HABERMAS, 2012b, p. 335-336; 2003a, p. 83-84). Note-se que, como contraposição ao conservadorismo, a modernidade cultural é emancipatória em um sentido positivo e permite o controle da modernização econômico-social, de modo que não seria necessária uma volta ao tradicionalismo como forma de superação dos problemas da modernização, mas sim uma radicalização da modernidade cultural (cf.: HABERMAS, 2012a, p. 142, p. 227; 2012b, p. 355). Como contraposição ao pós-modernismo filosófico-estético, não se pode acusar toda a modernidade de completa barbárie e terror, senão que apenas à modernização econômico-social, de modo que a modernidade cultural, desligada da modernização econômico-social, mantém um papel puro, basicamente normativo e crítico em relação aos sistemas sociais lógico-técnicos. Isso permite a autorreflexividade e a autocorreção da modernidade por si mesma e sobre si mesma, a partir dos fundamentos normativos, epistemológico-políticos fornecidos pela modernidade cultural. De fato, com a separação entre modernidade cultural ou racionalidade cultural-comunicativa e modernização econômico-social ou racionalidade instrumental, tem-se um culpado pelos problemas da modernização ocidental, que consiste que consiste na racionalidade instrumental, e tem-se também um ponto de vista crítico, normativo e emancipatório, representado pela modernidade cultural, que é associada por Habermas, como veremos mais adiante, com-como uma forma de universalismo epistemológico-moral, de sociedade-cultura e de consciência cognitivo-moral não-etnocêntricos e não-etnocêntricos, dinamizados em termos de um procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal. Como consequência dessa separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, purifica-se e santifica-se a modernidade cultural e condena-se apenas à modernização econômico-social. Daí a afirmação de Habermas de que não podemos condenar a modernidade-modernização ocidental (leia-se: europeia) como um todo; daí sua invectiva de que não podemos jogar fora a modernidade-modernização ocidental ou europeia como um todo. Na verdade, para Habermas, a solução para os problemas da modernidade-modernização ocidental é sempre mais modernidade:

As forças religiosas de integração social debilitaram-se em virtude de um processo de esclarecimento que, na medida em que não foi produzido arbitrariamente, tampouco pode ser cancelado. É próprio ao esclarecimento a irreversibilidade de processos de aprendizado que se fundam no fato de que os discernimentos não podem ser esquecidos a bel-prazer, mas só reprimidos ou corrigidos por discernimentos melhores. Por isso, o esclarecimento só pode compensar seus déficits mediante um esclarecimento radicalizado [...] (Habermas, 2002a, p. 122).

Um ponto de partida para uma práxis decolonial latino-americana

Ora, seja nessa idealização de um discurso filosófico-sociológico da, pela, sobre a modernidade, assim como nessa estrutura metodológica assumida pelas teorias européias da modernidade de um modo geral e pela teoria da modernidade de Habermas em particular, o que pode ser percebido efetivamente como condição da possibilidade de um tal discurso, de uma tal contraposição entre Europa e todo o resto e, finalmente, da própria afirmação da modernidade europeia como paradigma epistemológico-moral universalista totalmente adaptado ao contexto pós-metafísico (pluralismo, individualismo e enfraquecimento das perspectivas essencialistas e naturalizadas) contemporâneo? Que características muito específicas e extremamente seletivas e que tipo de abordagem programática conseguem dar conta de uma autocompreensão tão inflada sem cair no exagero ou mesmo no ridículo (ou no eurocentrismo)? Argumentamos que somente sustentando – direta ou indiretamente – uma cegueira histórico-sociológica as teorias filosófico-sociológicas euronorcêntricas acerca da modernidade (aquelas de que chamamos a atenção acima etc.) podem efetivamente assumir a modernização ocidental como ápice evolutivo em termos institucionais e como universalismo epistemológico-moral em termos normativos. Essa cegueira histórico-sociológica leva à, orienta a, perpassa a reconstrução do processo de modernização ocidental a partir de um duplo viés metodológico-político. Primeiro deles, como já dissemos acima a partir do caso de Habermas, tem-se a separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, a modernidade cultural como esfera puramente normativa e a modernização econômico-social como esfera basicamente lógico-técnica, a modernidade cultural como racionalidade cultural-comunicativa (que é normativa e política) e a modernização econômico-social como racionalidade instrumental (que é lógico-técnica, não-normativa e não-política). Aqui, como fizemos ver acima, essa separação permite a Habermas, por um lado, afirmar que a modernização econômico-social proveio da modernidade cultural, tendo de prestar contas a essa, embora a modernização econômico-social seja a única culpada pelas patologias que ela gera (tais patologias se devem a um déficit de normatividade assumido pelos sistemas sociais em sua constituição e em seu desenvolvimento), o que leva o referido pensador a defender que a modernidade cultural, fundada na racionalidade cultural-comunicativa, sustenta e detona uma perspectiva autocrítica, autorreflexiva e autocorretiva que conduz ao controle da modernização econômico-social. De fato, por ter gerado a modernização econômico-social, mas também por estar separada dela, a modernidade cultural enquanto pura normatividade é o verdadeiro núcleo emancipatório do racionalismo ocidental, se colocando como a condição da crítica, da reflexividade e da emancipação relativamente à modernização econômico-social e, como veremos adiante, do próprio diálogo-práxis intercultural, do próprio enquadramento do outro da modernidade (uma vez que somente a modernidade cultural representaria uma estrutura societal-cultural e uma forma de consciência cognitivo-moral realmente pós-metafísica, enquanto um modelo de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal marcado e dinamizado por uma perspectiva societal-cultural-cognitiva-axiológica não-etnocêntrica e não-egocêntrica) (cf.: HABERMAS, 2012a, pp. 383-385). O segundo deles diz respeito à reconstrução do processo de constituição e de desenvolvimento da modernização ocidental enquanto um processo endógeno, auto-subsistente, interno, exclusivista, auto-suficiente e autorreferencial da Europa sobre si mesma e por si mesma, enquanto um esforço de si por si mesma em termos de superação do tradicionalismo como menoridade e consolidação da modernidade-modernização como maioridade via razão-racionalização. Aqui, a modernidade-modernização europeia é um processo-movimento da Europa, exclusivamente dela, que ainda não teria sido alcançado por nenhuma sociedade-cultura humana, o que significa que somente ela teria alcançado esse nível pós-tradicional ou pós-metafísico em termos socioculturais e de consciência cognitivo-moral, posto que somente ela seria efetivamente marcada pela razão-racionalização, ao passo que o restante das sociedades-culturas seriam caracterizadas exatamente pela centralidade das fundamentações essencialistas e naturalizadas, tornando-se basicamente contextualistas e dogmáticas (cf.: HABERMAS, 2012a, p. 355; HABERMAS, 2012a, pp. 484-486; HABERMAS, 2002b, pp. 07-09). Tanto no primeiro quanto no segundo casos, o colonialismo enquanto uma consequência do desenvolvimento civilizacional e paradigmático dessa modernização ocidental simplesmente não é mencionado, ao ponto de Habermas, para o nosso caso sintomático nesse artigo, não citar uma vez sequer em Teoria do agir comunicativo o fenômeno do colonialismo e sua correlação com a modernização ocidental – aliás, ainda no caso de Habermas, se não estamos enganados, o colonialismo somente é citado em textos de fins dos anos 1990 para cá, e de modo fugaz e muito genérico, tornando-o bastante alheio e externo à própria modernização ocidental, o que soa um pouco estranho, mas ao mesmo tempo inteligível, para uma teoria filosófico-sociológica da modernização ocidental que quer, ao mesmo tempo, reconstruí-la sociologicamente e pô-la, em termos filosóficos, como universalismo epistemológico-moral, como paradigma epistemológico-político e guarda-chuva normativo de todos os contextos, práticas e sujeitos particulares (o universalismo epistemológico-moral da modernidade reconstruído em termos de racionalidade cultural-comunicativa e adaptado ao mundo pós-metafísico contemporâneo seria caracterizado como procedimentalismo neutro, impessoal, imparcial e formal, como consciência moral pós-convencional, pós-tradicional, isto é, totalmente independente das e sobreposto às fundamentações essencialistas e naturalizadas – ela que permitiria o diálogo-práxis intercultural, ela que geraria a democracia e os direitos humanos como seus herdeiros, como suas consequências mais fundamentais – cf.: HABERMAS, 2003a; HABERMAS, 2003b; HABERMAS, 2002a; HABERMAS, 2002b; FORST, 2010; HONNETH, 2003).

Nesse sentido, por que é necessária a separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social e, com isso, a diferenciação entre racionalidade cultural-comunicativa e racionalidade instrumental? O próprio Habermas nos dá várias indicações ao longo de Teoria do agir comunicativo, assim como em textos anteriores e preparatórios a ela, assim como em textos posteriores e consequentes àquele: o objetivo consiste em evitar o tipo de análise feito por Weber e seguido por Adorno & Horkheimer, que percebiam, ainda no entender de Habermas, o processo de modernização ocidental como sendo marcado por uma única forma de racionalização, por um modelo de racionalização totalizante, unidimensional e massificador, a racionalidade instrumental, o que perderia de vista e ignoraria o sentido múltiplo – ou pelo menos dual – desse mesmo processo de modernização ocidental, levando a um completo ceticismo e desânimo acerca das potencialidades geradas pela modernização ocidental (ela não teria somente déficits, mas também muitos pontos positivos) (cf.: HABERMAS, 2012a, p. 267-268; 2012b, p. 216-217; HABERMAS, 1997, pp. 140-154). A separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, mundo da vida versussistemas sociais, portanto, quer salvar um conceito crítico e universalista de modernidade, dando uma resposta, como consequência, também aos conservadores e aos pós-modernos – se os conservadores apontariam para uma retomada de práticas, de valores, de sujeitos e de instituições pré-modernos como condição para a correção da modernidade, e se os pós-modernos, no entender de Habermas, defenderiam uma superação da modernidade como ponto fundamental para se repensar a condição humana, Habermas, ao contrário, defende exatamente uma radicalização da modernidade cultural enquanto a alternativa para os problemas da modernização, como pudemos ver em sua passagem acima. Ora, aqui, de todo modo, começa o problema. Há um problema epistemológico-político sério no sentido de que não há correlação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, por mais que Habermas se esforce em afirmá-la. Se, por um lado, o processo de modernização cultural gerou a modernização econômico-social, por outro gradativamente esta separa-se daquela de um modo tal que já não haveria mais correlação e dependência diretas entre elas. Isso significa, por uma parte, que a modernidade cultural ou o mundo da vida continua servindo com paradigma normativo para a mensuração e avaliação da atuação e dos impactos causados pelos sistemas sociais em relação ao mundo da vida em termos de colonização lógico-técnica, sistêmica. Por outra parte, entretanto, aqui termina toda correlação possível, posto que a modernidade cultural aparece como pura normatividade, não podendo ser acusada pelas patologias psicossociais e pela irracionalidade geradas pelos sistemas sociais modernos. Esse é o primeiro ponto importante de tal separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social: há uma separação radical entre normatividade e instrumentalidade, entre modernidade cultural e modernização econômico-social, entre mundo da vida e sistemas sociais, de modo que, por meio desse purismo e dessa simplificação, por meio dessa dicotomia, a culpa está com a modernização econômico-social, a modernidade cultural não é responsável por e nem legitima tais patologias psicossociais próprias à, geradas pela modernização econômico-social, o que implica na impossibilidade de uma mensuração realista do impacto da racionalidade instrumental no mundo da vida, assim como na impossibilidade de se pensar o próprio sentido da correção normativa relativamente à racionalidade instrumental (muita normatividade? Pouca? Intervenção direta? Intervenção indireta?) – se os sistemas sociais são lógico-técnicos pura e simplesmente, então não podem ser enquadrados normativamente, e vice-versa. Mas por que o referido pensador sustenta essa separação, essa dicotomia? Exatamente porque, no caso de Habermas, é necessária uma noção de modernidade cultural sem manchas e sem pecados, uma noção pura e santa de modernidade incapaz – pelo menos diretamente – de qualquer crime, de qualquer legitimação da modernização econômico-social, se nós quisermos pensar em universalismo epistemológico-moral, posto que apenas uma noção pura, santa e casta, totalmente crítica, reflexiva e emancipatória de universalismo, pode servir para o intento salvacionista que está por trás do paradigma normativo da modernidade em sua estilização da modernidade cultural como autêntico, reto e direto universalismo pós-metafísico via racionalização. Essa separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, portanto, permite a afirmação de que a modernidade cultural é autorreflexiva em relação à modernização econômico-social, com capacidade de crítica e de autocorreção internas, o que lhe possibilita continuar a sustentar-se como paradigma epistemológico-moral universalista, posto que não é a razão cultural-comunicativa que gera as patologias da modernização (e nem o colonialismo), mas tão somente a modernização econômico-social, o mercado e o Estado (cf.: HABERMAS, 2012a, pp. 142-168; HABERMAS, 2002a, pp. 476-483). Afinal, ninguém – pelo menos não o asséptico filho da modernidade – encaparia um paradigma epistemológico-moral universalista que fosse pecador, sujo, no sentido de que legitimaria normativamente irracionalidades materiais. A modernidade cultural é pura e santa, não está diretamente ligada à modernização econômico-social, nem a legitima diretamente em termos normativos – como consequência, quem critica a modernização ocidental não pode esquecer-se de que ela não é homogênea, monista, mas dual, plural, o que significa que, não obstante todas as críticas dirigidas a ela indistintamente, algo dela – a modernidade cultural – mantém-se em sua pretensão de universalidade, de paradigma de todos os paradigmas, algo dela – ainda a modernidade cultural – mantém-se intocado político-normativamente e plenamente universal em termos epistemológicos (cf.: HABERMAS, 2002a, pp. 01-63; HABERMAS, 2002b, pp. 07-53).

É nesse sentido, da mesma forma, que explica-se a escolha, por Habermas, em conceber-se a modernização ocidental (a) como modernidade cultural enquanto esfera puramente normativa e (b) como modernização econômico-social enquanto esfera puramente lógico-técnica: as patologias psicossociais modernas são lógico-técnicas, instrumentais, não-normativas, não-políticas (cf.: HABERMAS, 2012b, pp. 278, p. 355; HABERMAS, 2002a, pp. 484-505. Ora, o que queremos dizer com isso? Queremos significar, com essa afirmação, de que também faz sentido o fato de que o colonialismo não aparece na reconstrução filosófico-sociológica do processo de modernização ocidental por parte das teorias da modernidade euronorcêntricas. Por que ele não aparece? Exatamente pelo fato de que o colonialismo não é somente técnico; ele é, em primeira mão, normativo, ele pressupõe a superioridade da cultura, da sociedade e do paradigma colonizadores em relação ao sujeito colonizado – o colonialismo está baseado em justificações morais, epistemológicas, políticas, culturais, e isso não pode ser apagado quando se o estuda (cf.: MBEMBE, 2014; MIGNOLO, 2007; SPIVAK, 2010). Em verdade, sem esse elemento normativo, moral, cultural, simbólico, não seria possível o colonialismo, o que significa que este é, em primeira mão, normativo, moral, cultural, simbólico, e somente depois material, enquanto assimilação, deslegitimação e até destruição da alteridade, no caso do outro da modernidade. Nesse sentido, a estratégia das teorias da modernidade, direta ou indiretamente, é assaz interessante, mas ao mesmo tempo problemática e inaceitável por nós, que fazemos parte da periferia da modernização central: não se coloca o colonialismo como fenômeno direto da modernização ocidental, do desenvolvimento da Europa moderna e de seu caminho ao primeiro mundo, porque ele destrói a separação entre modernidade cultural enquanto esfera puramente normativa e modernização econômico-social enquanto esfera puramente lógico-técnica, pondo por terra, além disso, esse discurso filosófico-sociológico que concebe o processo de modernidade-modernização europeia como um movimento autorreferencial, auto-subsistente, auto-suficiente, endógeno e autônomo da Europa sobre si mesma e por si mesma, recusando, ainda, que o caminho da modernização vá da Europa moderna ao primeiro mundo, de modo a excluir-se o outro da modernidade, o colonialismo, o terceiro mundo. O colonialismo religa modernidade cultural, modernização econômico-social e evidentemente o próprio colonialismo enquanto momentos interdependentes e mutuamente legitimados de um mesmo processo de modernização ocidental, não mais dual, mas homogêneo, imbricado. Esse é o cerne, portanto, da cegueira histórico-sociológica das teorias filosófico-sociológicas da modernidade euronorcêntricas de um modo geral (nós citamos Weber, Giddens e Habermas, mas também é possível ver-se isso em Forst e Honneth, a partir da ideia de que a eticidade tradicional se confunde com o paradigma normativo da modernidade-modernização europeia etc. – cf.: HONNETH, 2003, pp. 265-275; FORST, 2010, pp. 335-345) e em Habermas em particular: separação entre modernidade cultural enquanto pura normatividade e modernização econômico-social enquanto pura estrutura lógico-técnica; afirmação de que o processo de modernização ocidental é um processo endógeno e autônomo, autorreferencial, auto-suficiente e auto-subsistente, sem correlações seja com o colonialismo, seja com outros contextos, independente em relação ao outro da modernidade, e marcado por aquela dualidade entre cultura e civilização material, modernidade cultural e modernização econômico-social; e apagamento do colonialismo enquanto fenômeno gerado pela correlação de modernização cultural e de modernização econômico-social, o que legitima a ideia habermasiana de que o caminho da modernidade-modernização europeia vai direta e linearmente ao primeiro mundo, não ao terceiro mundo, excluindo-se a relação entre modernidade e colonialismo, entre primeiro mundo e terceiro mundo – legitimando também a singularidade, a endogenia, a independência e o purismo absolutos da modernidade em relação ao outro da modernidade. O colonialismo não entra porque, mais uma vez, desvela a cegueira histórico-sociológica das teorias da modernidade, seu grave problema, sua problemática escolha metodológico-política (a separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social) e sua associação direta, nessas teorias da modernidade euronorcêntricas, da modernização ocidental como o ápice do desenvolvimento humano, como superação do tradicionalismo de um modo geral.

Recapitulemos a ideia discutida aqui. Habermas buscou retomar o conceito de modernidade tanto como universalismo epistemológico-moral quanto como conceito normativo crítico, enquanto tentativa de superar perspectivas conservadoras e pós-modernas, bem como enquanto busca por correção de teorias da modernidade unidimensionais, como o são, para Habermas, as de Marx, Weber e, hodiernamente, Adorno & Horkheimer, as quais teriam dado atenção exclusiva à racionalidade instrumental, ignorando a racionalidade cultural-comunicativa, quando de sua compreensão da modernidade europeia. Para Habermas retomar aquele duplo sentido do conceito de modernidade – universalismo epistemológico-moral e normatividade social – ele precisou assumir uma série de pontos problemáticos, que denominamos nesse texto de cegueira histórico-sociológica, que o levaram a isso que também chamaremos a partir de agora de romantização filosófico-política do racionalismo ocidental enquanto puro, santo, autêntico, reto e direto universalismo epistemológico-moral, condição fundante e exclusiva da crítica, da reflexividade e da emancipação. Note-se que a reformulação do conceito de modernidade como contraponto às análises unidimensionais dela exige muito mais do que uma noção dual e imbricada de modernidade-modernização ocidental. No caso, não basta a Habermas afirmar e desenvolver a ideia de que a modernidade europeia é correlação, separação e tensão-contradição entre modernidade cultural e modernização econômico-social, racionalidade cultural-comunicativa e racionalidade instrumental, mundo da vida e sistemas sociais. Em primeiro lugar, na verdade, Habermas tem de assumir que a Europa moderna é um processo civilizacional-societal-cultural exclusivo e singular na história do gênero humano, quando comparada a todo o resto das sociedades-culturas, o que implica em que, em segundo lugar, se separe radicalmente, a partir de uma perspectiva altamente simplista e purista, modernidade como racionalização e universalismo e todo o resto das sociedades-culturas em geral como tradicionalismo em geral, contextualista, essencialista e naturalizado. Esses são os dois pontos definidores do discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia como universalismo-globalismo de Habermas, isto é, para mostrar que a modernidade europeia é autêntico, reto e direto universalismo epistemológico-moral, Habermas tem de defender que ela e somente ela é universalista por meio da racionalização e de que, em consequência, as outras sociedades-culturas, por não serem marcadas por um processo forte de racionalização sociocultural, permanecem pré-modernas, isto é, tradicionais, marcadas e definidas por uma base essencialista e naturalizada que determina seu irremediável contextualismo, sua incapacidade de sustentarem racionalização sociocultural e, assim, de politizarem e historicizarem as suas relações, as suas instituições, as suas práticas e aos seus valores (cf.: HABERMAS, 2012a, pp. 90-142; HABERMAS, 1999, pp. 31-52). Como vimos na citação acima, em nota de rodapé, Habermas parte do pressuposto de que a modernidade europeia é universal por causa da racionalização, ao passo que o resto das sociedades-culturas é tradicional ou pré-moderno por causa da ausência de racionalização, por causa do fraco grau de racionalização que ele possui. Na cegueira histórico-sociológica da teoria da modernidade europeia de Habermas, por conseguinte, os três pontos mais fundamentais são (a) a separação purista e simplista entre modernidade europeia como racionalização e universalismo versus todo o resto das sociedades-culturas como tradicionalismo em geral, essencialista, naturalizado, contextualista; (b) a correlação de modernidade-modernização, racionalização, universalismo, crítica, reflexividade, emancipação versus tradicionalismo em geral, essencialismo-naturalismo, contextualismo, dogmatismo, fundamentalismo, fanatismo; e (c) a singularidade absoluta da modernidade-modernização europeia enquanto processo civilizacional-societal-cultural em relação ao resto das sociedades-culturas, o que significa tanto que a modernidade europeia é ápice do gênero humano, tendo alcançado pela primeira vez o estágio verdadeiramente universal, pós-tradicional, pós-metafísico da consciência cognitivo-moral quanto que a reconstrução, o entendimento e o caminho do processo de modernidade-modernização europeia é autorreferencial, auto-subsistente, auto-suficiente, endógeno e autônomo, podendo ser explicado apenas a partir de sujeitos, instituições, processos, relações e princípios internos à própria Europa, sem necessidade de correlação com o outro da modernidade, que é apenas o antípoda da modernidade. É por isso, nesse caso, que Habermas pode defender, como seu argumento mais fundamental, que “[...] o nível pós-tradicional da consciência moral se torna acessível em uma cultura, e mais precisamente na cultura europeia [...]” (HABERMAS, 2012ª, p. 355; os destaques são de Habermas). É por causa da luz da Europa moderna como racionalização que alcançamos o universalismo, que a crítica, a reflexividade e a emancipação da modernidade por si mesma e do outro da modernidade pela própria modernidade são possíveis.

Mas, atentemos bem, Habermas não está defendendo que o processo de modernidade-modernização europeu é marcado por um movimento autorreferencial, auto-subsistente, auto-suficiente, endógeno e autônomo, totalmente exclusivo e exclusivista da Europa sobre si mesma e por si mesma, sem qualquer correlação e dependência para com o outro da modernidade? Ora, se Habermas está defendendo a singularidade absoluta da Europa moderna enquanto processo civilizacional, societal e cultural quando comparada com o resto das sociedades-culturas, e se ele está separando radicalmente, como ponto de partida de seu discurso filosófico-sociológico da modernidade-modernização europeia, modernidade europeia versus todo o resto como tradicionalismo em geral, como diabos, então, ele pode correlacionar modernidade-modernização, racionalização, universalismo e/como gênero humano? Porque, ao longo do discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia construído por Habermas nós percebemos que não se trata apenas da estilização do processo de modernidade-modernização europeia, mas também da correlação de modernidade-modernização europeia, racionalização, universalismo e/como gênero humano, no sentido de que o universalismo epistemológico-moral moderno serve para a modernidade e para o próprio diálogo-práxis intercultural, para o próprio enquadramento do outro da modernidade. Como isso é possível? Utilizando-se de noções antropológicas clássicas (Ernst Cassirer e Emmanuel Lévinas) e de desenvolvimentos em psicologia moral (Jean Piaget e Lawrence Kohlberg), Habermas afirma que o que constitui o gênero humano é a linguagem, isto é, a racionalidade cultural-comunicativa, o que lhe permite a primeira afirmação contundente: a racionalidade cultural-comunicativa faz parte não apenas do horizonte civilizacional-societal-cultural europeu, mas de todas as sociedades-culturas humanas, ainda que ela esteja totalmente desenvolvida naquele, estando apenas em estágio inicial nestas. No mesmo diapasão, utilizando-se das pesquisas em psicologia genética acerca da formação da consciência moral, Habermas correlaciona o nível universal da consciência cognitivo-moral à capacidade de pensar e de agir de modo formal, descentrado, isto é, sem o apelo às fundamentações essencialistas e naturalizadas, sem o apelo aos constrangimentos cotidianos, próprios à autoridade institucionalizada, o que lhe permite sustentar que o nível maduro em termos da consciência cognitivo-moral, que é o estágio efetivamente universalista dela, se caracteriza por uma perspectiva procedimentalista impessoal, imparcial, neutra e formal relativamente à ação cotidiana, o que significa que indivíduos maduros assumem uma atitude não-etnocêntrica e não-egocêntrica no que diz respeito à ação cotidiana sobre si mesmos e sobre a alteridade (cf.: HABERMAS, 1989; HABERMAS, 1990; HABERMAS, 2003a). E Habermas identifica o nível universalista ou pós-tradicional ou descentrado da consciência cognitivo-moral como uma consequência da modernidade-modernização europeia, em termos socioculturais, nos termos que definimos no primeiro capítulo deste artigo: com a racionalização das imagens metafísico-teológicas de mundo, que leva à desnaturalização, à historicização e à politização da sociedade-cultura, os indivíduos e grupos modernos têm na argumentação cotidiana, aberta e inclusiva a única base para a fundamentação das normas, das práticas e das autoridades socialmente vinculantes, um tipo de racionalização que somente é possível de validar normas e práticas no momento em que for caracterizada e dinamizada como esse procedimentalismo imparcial, impessoal, neutro e formal de que estamos falando, o que significa exatamente que a queda das fundamentações essencialistas e naturalizadas e a centralidade da racionalidade cultural-comunicativa contribuem para que a modernidade se desenvolva enquanto uma estrutura societal-cultural e uma forma de consciência cognitivo-moral que é não-etnocêntrica e não-etnocêntrica, se constituindo na única forma de universalismo epistemológico-moral possível para o mundo contemporâneo, pluralista, que é um universalismo epistemológico-moral pós-metafísico, pós-tradicional, isto é, independente das fundamentações essencialistas, naturalizadas e contextualistas, de caráter dogmático (cf.: HABERMAS, 2012a; HABERMAS, 2002a; HABERMAS, 2002b; HABERMAS, 1997). Nesse caso, portanto, de um discurso da Europa sobre si mesma e por si mesma, Habermas descobre que, em verdade, a modernidade-modernização europeia representa o próprio ápice evolutivo do gênero humano como um todo, sob a forma dessa estrutura societal-cultural e dessa consciência cognitivo-moral não-etnocêntrica e não-egocêntrica, marcada pela centralidade da racionalidade-cultural comunicativa enquanto base ontogenética do gênero humano de uma maneira geral, da modernidade europeia em particular. Ele diz:

Se não delineamos o racionalismo ocidental a partir da perspectiva conceitual da racionalidade propositada e da dominação do mundo e, mais que isso, se tomamos como ponto de partida a racionalização de mundo descentralizada, impõem-se as seguintes perguntas: onde se expressa um acervo formal de estruturas universais da consciência? Não é, afinal, nas esferas de valor culturais desenvolvidas de maneira obstinada sob os parâmetros valorativos abstratos de verdade, correção normativa e autenticidade? O que constitui, afinal, o patrimônio da “comunidade dos homens de cultura”, presente como ideia reguladora? Não são as estruturas do pensamento científico, das noções jurídicas e morais pós-tradicionais e da arte autônoma – tal como formadas no âmbito da cultura ocidental? A posição universalista não precisa negar o pluralismo e a incompatibilidade das marcas históricas da “condição cultural própria ao ser humano”, mas percebe que essa multiplicidade das formas de vida está restrita aos conteúdos culturais e afirma que toda cultura, se fosse o caso de alcançar um certo grau de “conscientização” ou de “sublimação”, teria de compartilhar certas qualidades formais da compreensão de mundo moderna. A assunção universalista refere-se, portanto, a algumas características estruturais e necessárias próprias a mundos da vida modernos. Por outro lado, quando tomamos essa concepção universalista como coerciva somente para nós, o relativismo que se refuta no plano teórico acaba retornando no plano metateórico. Não creio que um relativismo de primeiro ou de segundo grau possa conciliar-se com o âmbito conceitual em que Weber situa a problemática da racionalização. No entanto, Weber faz restrições relativistas. Elas se devem a um motivo que só teria deixado de existir se Weber não tivesse atribuído o que há de especial no racionalismo ocidental a uma peculiaridade cultural, e sim ao modelo seletivo que os processos de racionalização assumiram sob as condições do capitalismo moderno (HABERMAS, 2012a, p. 325-326; os destaques são de Habermas).

Assim, o discurso filosófico-sociológico da modernidade-modernização europeia partiu (a) da separação purista e simplista da Europa moderna como racionalização e universalismo em relação a todo o resto das sociedades-culturas como tradicionalismo em geral, essencialista, naturalizado e contextualista; (b) da ideia de singularidade, da endogenia e do exclusivismo absolutos da Europa moderna em relação ao tradicionalismo em geral, enquanto um processo-movimento-dinâmica autorreferencial, auto-subsistente, auto-suficiente, endógeno e autônomo da Europa por si mesma e desde si mesma, em termos de racionalização; (c) da correlação de modernidade-modernização, crítica, reflexividade e emancipação versus tradicionalismo em geral como essencialismo, naturalismo, contextualismo, dogmatismo e fanatismo; e, incrivelmente, (d) chegou à correlação de modernidade-modernização, racionalização, universalismo e/como gênero humano, em que a modernidade europeia é ápice do gênero humano e este é um grande e gradativo processo de modernidade-modernização, ao passo que cada sociedade-cultura em particular é uma protomodernidade. A partir de agora, o exclusivismo e a singularidade absoluta da Europa moderna em relação ao tradicionalismo em geral e a separação-oposição purista-simplista entre Europa como racionalização e universalismo versus todo o resto das sociedades-culturas como tradicionalismo em geral dá lugar ao discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia como universalismo-globalismo, isto é, passa-se à associação da modernidade-modernização, racionalização, universalismo e/como gênero humano, de modo que o conceito de modernidade assume um sentido vinculante não apenas para o processo de modernidade-modernização europeu, mas também para a compreensão, a crítica e o enquadramento do outro da modernidade. A modernidade chegou antes ao universalismo epistemológico-moral pós-metafísico por causa da centralidade da racionalidade cultural-comunicativa enquanto seu núcleo civilizacional, societal e cultural, mas as outras sociedades-culturas estão a caminho desse mesmo estágio – a modernidade europeia pode falar sobre isso exatamente porque, como alcançou o ápice constitutivo e evolutivo do gênero humano, pode olhar para trás e avaliar crítica e realisticamente o tradicionalismo enquanto um caminho, um estágio a ser superado pela modernidade-modernização. Esta é a conclusão final da Teoria do agir comunicativo de Habermas:

Quando partimos de que o gênero humano se mantém por meio das atividades socialmente coordenadas de seus integrantes, e de que essa coordenação precisa ser gestada por meio da comunicação, e em algumas áreas centrais por uma comunicação que almeja o comum acordo, então a reprodução do gênero humano também exige que se cumpram as condições de uma racionalidade inerente ao agir comunicativo. Na modernidade – com a descentração da compreensão de mundo e a diferenciação e a autonomização de diversas pretensões universais –, essas condições tornaram-se palpáveis (HABERMAS, 2012a, p. 683; o grifo é de Habermas).

Note-se, em tudo isso, que, para Habermas, a modernidade europeia, por causa da racionalização, é universal, gera e sustenta o universalismo epistemológico-moral. Entretanto, somos levados a perguntar mais uma vez: como é possível que a modernidade europeia possa ser afirmada como universalismo epistemológico-moral pós-metafísico, como o autêntico e efetivo guarda-chuva normativo de todas as diferenças, para todas as diferenças, por todas as diferenças (cf.: HABERMAS, 2002b, pp. 07-08), se ela é marcada por contradições tão gritantes dentro de si mesma e em sua relação com o outro da modernidade? Aqui, Habermas pode utilizar sua noção autorreferencial, auto-suficiente, auto-suficiente, endógena, exclusivista e autônoma de modernidade-modernização europeia como correlação, separação e tensão-contradição entre mundo da vida e sistemas sociais, entre modernidade cultural e modernização econômico-social, entre racionalidade cultural-comunicativa e racionalidade instrumental. Ou seja, ao argumentar que a modernidade possui um sentido dual – racionalidade cultural-comunicativa ou modernidade cultural versus racionalidade instrumental ou modernização econômico-social – Habermas pode defender que temos toda razão em culpar ao mercado capitalista e ao Estado burocrático-administrativo, de racionalidade instrumental, pelas patologias da modernidade ocidental, mas que não temos nenhuma razão em culpar a modernidade cultural ou a racionalidade cultural-comunicativa por essas mesmas patologias. Muito pelo contrário, a modernidade cultural, com base na racionalidade cultural-comunicativa, é o que permite a crítica, a reflexividade e a emancipação frente ao mercado capitalista e ao Estado burocrático-administrativo; de mais a mais, a racionalidade cultural-comunicativa é a base ontogenética da constituição e da evolução do gênero humano, o princípio que lhe permitiu evoluir do barbarismo contextualista, mítico-tradicional, ao universalismo esclarecido, racionalizado. Logo, no argumento de Habermas, as críticas à modernização ocidental somente atingem e apenas podem deslegitimar a modernização econômico-social; elas nunca atingem e nem deslegitimam a modernidade cultural, a racionalidade cultural-comunicativa. Em verdade, qualquer possibilidade de crítica, de reflexividade e de emancipação precisa utilizar-se dos fundamentos normativos possibilitados, oferecidos pela modernidade cultural (individuação reflexiva, diferenciação das esferas de valor, desnaturalização, historicização e politização da sociedade-cultural, diálogo universal, aberto, inclusivo e participativo, racionalização axiológica). A modernidade cultural, com isso, é pura, santa, casta e imaculada, servindo como fundamento normativo para a modernidade mesma e para o outro da modernidade; e a modernização econômico-social é marcada por irracionalidades, gerando patologias que precisam ser corrigidas via racionalidade cultural-comunicativa, via modernidade cultural.

Desse modo, se por um lado a modernidade-modernização europeia é autêntico, reto e direto universalismo epistemológico-moral pós-metafísico, base e caminho constitutivo-evolutivo do gênero humano como um todo e rota e fim de cada sociedade-cultura em particular, por outro sua explicação continua sendo, paradoxalmente, marcada e dinamizada pela separação purista e simplista e pela singularidade, pela endogenia e pelo exclusivismo absolutos da modernidade-modernização europeia em relação a todo o resto das sociedades-culturas, ensacadas nesse e deslegitimadas por esse conceito genérico e mal-delimitado de tradicionalismo em geral. Desse modo, se queremos entender o sentido, o desenvolvimento e a roda da modernidade-modernização europeia, temos apenas e fundamentalmente de acessar os sujeitos, as instituições, as relações, os processos, as práticas, os valores e os princípios internos a ela, sem necessidade de apelar ao outro da modernidade, inclusive sem qualquer necessidade de assumir a relação entre modernidade e o outro da modernidade como condição para a constituição, para o desenvolvimento, para a evolução e, assim, para a compreensão da modernidade-modernização europeia. O outro da modernidade possui apenas um papel retórico, no discurso filosófico-sociológico da modernidade de Habermas, no sentido de servir como o antípoda da modernidade europeia, legitimando-a em sua superioridade, em sua grandiosidade, em seu aspecto messiânico e salvacionista. Ele não é considerado seriamente e, em verdade, sobre ele apenas se fazem elucubrações genéricas e simplificações tolas, com o único objetivo de deslegitimá-lo enquanto sujeito, prática e valor digno e gerador do universalismo, da crítica, da reflexividade e da emancipação desde o outro da modernidade, desde o tradicionalismo, de modo a pôr-se toda essa dignidade na própria modernidade europeia, que é a única, como Habermas deixou bem claro em Teoria do agir comunicativo, a possuir uma constituição universalista-globalista via racionalização cultural-comunicativa (ao passo que o outro da modernidade é basicamente contextualista), a única a gerar crítica, reflexividade e emancipação, justificação e validade universalistas. Nesse sentido, o colonialismo é apagado da teoria da modernidade, sobre ele se silencia em termos de reconstrução do processo de constituição e de evolução da modernidade europeia. Como dissemos acima, se o colonialismo fosse afirmado como parte constitutiva, dinâmica e consequência do processo de modernidade-modernização europeia, de seu movimento universalista-globalista, ela não seria emancipatória, crítica e reflexiva, mas exatamente acrítica, irreflexiva, colonialista. Para negar que a modernidade europeia assuma esse sentido, Habermas concebe o processo de modernidade-modernização europeu desde uma perspectiva endógena, exclusiva-exclusivista, interna, autônoma, autorreferencial, auto-subsistente e auto-suficiente, de modo a prescindir do outro da modernidade e, assim, a apagar-se o colonialismo na e da teoria da modernidade, como parte constitutiva, dinâmica e consequência da modernidade-modernização ocidental como um todo, afirmando que a modernidade-modernização europeia se caracteriza fundamentalmente como correlação, separação e tensão-contradição entre mundo da vida e sistemas sociais. Com isso, a modernidade cultural europeia possui, como caminho-rota e consequência retos, diretos e lineares, o primeiro mundo, o padrão constitutivo-evolutivo das sociedades industrializadas desenvolvidas da Europa ocidental e da América do Norte, que são, para Habermas, sociedades-culturas pós-tradicionais (em termos normativos) e marcadas por um processo de modernização definido como capitalismo de bem-estar social, como capitalismo tardio, novamente sem qualquer referência relativamente às periferias capitalistas, ao colonialismo, de modo que a teoria da modernidade apaga qualquer referência e qualquer correlação entre modernidade e o outro da modernidade, modernidade-modernização e colonialismo, primeiro mundo e terceiro mundo, capitalismo central e capitalismo periférico (cf.: HABERMAS, 2012b, pp. 515-590, pp. 617-639; HABERMAS, 1999, pp. 55-107).

Assim, o fecho de abóboda dessa cegueira histórico-sociológica consiste exatamente na correlação entre modernização, racionalização, universalismo, crítica e emancipação como o apogeu da evolução humana, com o silenciamento sobre e o apagamento do colonialismo na e por parte da teoria da modernidade euronorcêntrica, o que também significa a deslegitimação do outro da modernidade como alternativa e como sujeito crítico em relação à modernidade-modernização central. Primeiro, portanto, há a evolução humana como um todo, com a qual se confunde essa mesma modernização – ela é superação do tradicionalismo por uma sociedade-cultura-consciência-paradigma moderno e modernizante. Há uma continuidade e uma unidade evolutiva ao gênero humano que torna possível pensar-se na, em termos da e pela modernidade cultural como cultura-consciência-paradigma universal de todos os contextos particulares. Segundo, modernidade implica racionalização como uma forma superior de cultura-consciência-paradigma, em termos de procedimentalismo imparcial, neutro, impessoal e formal, de consciência moral pós-convencional, pós-tradicional. Por isso, a modernidade cultural serve como esse paradigma epistemológico-moral universal, mas não o tradicionalismo. Em verdade, essa formalidade, que o tradicionalismo não possui, dá à modernidade cultural a capacidade de servir como guarda-chuva normativo-institucional de todos os contextos (aliás, a modernidade superou evolutivamente o tradicionalismo, ela o contém enquanto um momento superado e guardado, para utilizar termos hegelianos, o que significa que ela pode guiá-lo e julgá-lo, mas não o contrário). Nesse sentido, somente haveria crítica e emancipação como modernização, como racionalização permanente, tanto dentro da modernidade quanto fora dela. Essa é a romantização filosófico-política do racionalismo ocidental de que falamos acima como consequência da cegueira histórico-sociológica das e assumida pelas teorias da modernidade europeia, isto é, ele é colocado como a única condição da crítica, da reflexividade e da emancipação, como a única base para a justificação e a validade das práticas e dos valores universais, como o único fundamento do diálogo-práxis intercultural, dentro e fora da modernidade. Isso significa, por exemplo, que mesmo em termos de política internacional o paradigma normativo da modernidade coloca a possibilidade de fundamentações interculturais, de práticas e de valores válidos para todos como somente sendo possível desde esse mesmo paradigma normativo da modernidade, mas de um paradigma que apenas pode ser sustentado pela utilização direta da cegueira histórico-sociológica de que estamos falando, o que significa que a crítica e a emancipação e o universalismo possibilitados pela modernidade cultural somente podem ser sustentados utilizando-se de um ponto de partida epistemológico-político acrítico, cego, euronorcêntrico, que separa modernidade cultural e modernização econômico-social, que concebe o processo de modernização ocidental como um processo interno, endógeno, exclusivo e singular à Europa e por parte dela (ou interno às sociedades industrializadas desenvolvidas contemporâneas e por parte delas), e que apaga completamente o colonialismo em relação ao discurso filosófico-sociológico dessa mesma modernização ocidental. É um discurso filosófico-sociológico que não é fiel ao desenvolvimento histórico-político da modernidade europeia e do primeiro mundo como universalismo-globalismo via colonialismo.

É nesse sentido que uma práxis decolonial latino-americana precisa romper direta e fortemente com o paradigma normativo da modernidade baseado na cegueira histórico-sociológica acerca do processo de modernização ocidental como condição da universalidade desse mesmo paradigma normativo moderno, desconstruindo também, por conseguinte, a romantização filosófico-política do racionalismo ocidental como o fundamento exclusivo da crítica, da reflexividade e da emancipação dentro e fora da modernidade. Na verdade, a denúncia dessa cegueira histórico-sociológica seria o ponto de partida epistemológico-político fundamental para uma práxis decolonial latino-americana – e mesmo africana, se se quiser (cf.: MIGNOLO, 2007; DUSSEL, 1993; QUIJANO, 1992; FANON, 1968; MBEMBE, 2001, 2014; SPIVAK, 2010; CHAKRABARTY, 2000, 2002) – que possa encontrar alternativas teórico-políticas, primeiro, para seu (da América Latina) discurso filosófico-sociológico acerca da modernização ocidental de um modo geral e da situação passada e presente da colonização em particular; segundo, para se pensar práticas culturais, posições epistemológicas e alternativas político-econômicas de autoconstituição e de desenvolvimento desde nossa situação como periferias econômico-culturais atreladas e subordinadas aos centros econômicos e culturais, como colônias de exploração e como culturas decaídas, da Europa ocidental e da América do Norte. Daremos um exemplo como forma de justificação de por que a cegueira histórico-sociológica das teorias da modernidade (a) torna as teorias filosófico-sociológicas eurnocêntricas acríticas em relação ao atual estágio do processo de modernização ocidental enquanto globalização econômico-política avassaladora e (b) torna-se nefasta epistemológica e politicamente se assumida pelas posições teórico-políticas latino-americanas no que diz respeito a pensarem o seu lugar e de projetar os seus passos e as suas estratégias no atual contexto dessa globalização econômico-cultural. Vamos a ele. As discussões de Habermas e de Giddens sobre a atual situação da globalização econômica caracterizam-na como internacionalização do capital produtivo-financeiro sob a égide dos monopólios ou oligopólios econômicos, que poriam em xeque a auto-suficiência política e econômica de todos os Estados-nação, levando à desindustrialização e à desnacionalização da economia, assim como à precarização do trabalho, em todos os países e para todos eles, e no mesmo grau para todos. Pois bem, nesse sentido, esses capitais transnacionais anônimos, sem países, sem contexto, colocam todos os países no mesmo barco, na mesma situação, enquanto igualmente afetados pela trasnacionalização do capital e do trabalho, enquanto vítimas dela (cf.: HABERMAS, 2003b, p. 24; HABERMAS, 2009, p. 190-196; GIDDENS, 2000, p. 38-43; GIDDENS, 2001, p. 123-124, p. 144-154). Note-se, aqui, a cegueira histórico-sociológica em funcionamento: todos os países, desenvolvidos e subdesenvolvidos, estão no mesmo barco, são igualmente vítimas da transnacionalização do capital, que não possui país, que não possui raízes em qualquer país; são necessárias, portanto, instituições políticas supranacionais que possam equilibrar, controlar o fluxo transnacional de capitais, e pensar e realizar projetos de desenvolvimento socioeconômico homogêneo, paritário. Aqui, em nenhum momento apareceu a divisão e a correlação entre centros e periferias, entre modernidade e colonialismo, entre capitalismo central e capitalismo periférico, tão importante para pensar-se hoje não apenas a política internacional, mas também a estrutura pseudo-anárquica da globalização: ela não afeta igualmente a todos; há uma clara divisão entre nações desenvolvidas e nações subdesenvolvidas e seus blocos regionais ou mesmo internacionais que liga inevitavelmente desenvolvimento e subdesenvolvimento, modernização e colonialismo, modernização central e modernização periférica; da mesma forma, os capitais transnacionais possuem efetivamente raiz, nacionalidade, e precisariam de ser vistos e enquadrados desse modo, o que significa que não existem apenas capitais transnacionais, mas também Estados transnacionais, dotados de uma perspectiva política colonialista-militarista, que legitimam e sustentam política, militar e normativamente o movimento transnacional de seus capitais econômicos – sem Estados dinamizadores de uma política colonial transnacionalizada e militarista, não haveria a possibilidade e nem a efetividade de capitais transnacionais. De todo modo, instituições políticas supranacionais deveriam tematizar a correlação centro-periferia, modernidade-colonialismo como base para o repensar da globalização, mas, mais uma vez, a cegueira histórico-sociológica das teorias da modernidade acerca do processo de modernização ocidental e, agora, acerca da atual globalização econômica impede que essa abordagem teórico-política leve em conta a situação real das periferias culturais, epistemológicas, políticas e econômicas. Porque, nessa noção de globalização econômica que homogeneíza e equaliza todos os países, pondo-os no mesmo barco da transnacionalização do capital, de crise do trabalho e do Estado-nação, continua a ser negada a correlação de modernidade-modernização e colonialismo, capitalismo central e capitalismo periférico, assim como continua a ser afirmado a linearidade entre Europa moderna, primeiro mundo e globalização, sem qualquer referência, mais uma vez, ao colonialismo, à dependência e à correlação de modernização central e modernização periférica. Por isso, precisamos romper com o paradigma normativo da modernidade sustentado e defendido por essas teorias euronorcêntricas acerca da modernização ocidental, e a denúncia, o desvelamento, a crítica e a desconstrução da cegueira histórico-sociológica por elas apresentada representam, como vimos dizendo, um ponto de partida epistemológico-político muito profícuo para uma práxis decolonial latino-americana.

Considerações finais

Nesse sentido, à guisa de uma conclusão breve, dado o tamanho de nosso texto, acreditamos que o colonialismo como teoria da modernidade seja a forma por excelência de uma práxis decolonial latino-americana (e africana) marcada pela crítica, pelo desvelamento e pela desconstrução desse discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia como universalismo-globalismo feito pelas teorias euronorcêntricas da modernidade, das quais a teoria da modernidade de Habermas é seu exemplar mais destacado. O colonialismo como teoria da modernidade religa modernidade e o outro da modernidade, modernidade e colonialismo, primeiro mundo e terceiro mundo como condição fundamental para a construção, para a compreensão e para o repensar do processo de modernidade-modernização ocidental como universalismo-globalismo via colonialismo. Note-se, aqui, ao contrário do que argumenta Habermas, que não é a racionalidade cultural-comunicativa que, enquanto núcleo ontogenético formal e estilizado do gênero humano, torna possível o discurso-práxis universalista, mas sim o colonialismo como fenômeno histórico-político-normativo datável, mensurável, que enseja, inclusive, reparações normativas, políticas, culturais e econômicas. Com isso, é o outro da modernidade, o colonizado, periferizado, excluído, marginalizado e deslegitimado, que tem condições de esclarecer o Esclarecimento acerca de seus problemas, de suas patologias e de suas irracionalidades. Doravante, a reconstrução das relações entre modernidade e colonialismo, primeiro mundo e terceiro mundo, capitalismo central e capitalismo periférico será a base para a compreensão do que somos, para o entendimento e para o enquadramento da globalização econômico-cultural, o que significa que o outro da modernidade necessita formular o seu discurso filosófico-sociológico da modernidade, a partir de seu relato como vítima da modernidade-modernização europeia e de seu movimento universalista-globalista em termos de colonialismo. Como se percebe, é um trabalho – o de que as vítimas falem e ajam – que está ainda todo por fazer, um trabalho que pode ser promovido por uma filosofia brasileira, latino-americana e africana que, sem desmerecer todo o esforço estilístico da filosofia euronorcêntrica, reconhece também que tem algo de seu e de crítico a dizer, fazer e propor às posições euronorcêntricas acerca da modernidade-modernização europeia como universalismo-globalismo. Afinal, a superação do atraso socioeconômico que somos, ao qual estamos condicionados, somente é feita com a superação do atraso mental, com a libertação relativamente à subordinação epistemológica, política e normativa, atraso e subordinação que também são herança do colonialismo.

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Contribuição dos autores

Leno Francisco Danner preparou o primeiro esboço. Agemir Bavaresco e Fernando Danner leram, problematizaram e propuseram ideias relativamente ao tema. Leno Francisco Danner realizou a adequação do texto de acordo com as observações feitas. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo.

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Autor(a) para correspondência: Agemir Bavaresco, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Escola de Humanidades, Av. Ipiranga, 6681, Partenon, CEP 90619-900, Porto Alegre – RS, Brasil. abavaresco@pucrs.br



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