Resumo:
: Tomando por fio condutor o ensaio de Jean-Paul Sartre sobre Francis Ponge, “O homem e as coisas”, publicado em Situações I, este artigo visa problematizar o lugar da poesia como “voz das coisas”, isto é, a tentativa de neutralização do para si em benefício do ser em si. Fundado na metáfora da “petrificação” poética, o efeito das imagens visa a renovação da linguagem a partir do contato originário entre as palavras e as coisas. Entre as iniciativas poéticas que merecem maior relevo, destaca-se a valorização da antilírica e a substantivação poética centrada no poder nominativo da linguagem. O exercício poético, porém, apesar de visar “as coisas mesmas” e o que Sartre chamou de “fenomenologia materialista”, tem seus limites na própria condição humana. Pela ação de projetar-se sobre as coisas o homem visa libertar a linguagem de uso pragmático e, ao mesmo tempo, pensar o objeto sem parti pris idealista.
Palavras-chave:FenomenologiaFenomenologia,PoesiaPoesia,Sartre, Francis PongeSartre, Francis Ponge.
Abstract:
: Taking by guiding the essay of Jean-Paul Sartre about Francis Ponge “Man and Things”, published in “Situations I”, this article aims to discuss the place of poetry as "voice of things", as an attempt to neutralize the Being-for-itself in favor of the benefit of the Being-in-itself. Founded in the metaphor of "petrifaction" poetic, the effect of images aims at the renewal of the language from the original contact between words and things. Among the poetic initiatives that deserve relief, there is the valuation of the antilírical and the poetic substantiation centered in the nominative power of language. The poetic exercise, however, although the .return to things themselves" and the "materialistic phenomenology", has its limits in the human condition. By the action of projecting on the things, man aims to liberate the language of pragmatic use and at the same time think the objects without parti pris idealist.
Keywords: Phenomenology, Poetry, Sartre, Francis Ponge.
Artigos
O ser em si e a poesia: Sartre leitor de Francis Ponge
The being-in-itself and the poetry: Sartre reader of Francis Ponge
Recepção: 14 Outubro 2018
Aprovação: 25 Novembro 2018
O ensaio de Sartre, intitulado “O homem e as coisas”, é seminal para compreender a natureza da linguagem que ocupa um lugar de interseção entre o ser em si e o ser para si. Neste ensaio – que toma por objeto a poesia de Francis Ponge –, o ser para si é como que neutralizado. Trata-se de uma dialética entre as palavras e as coisas, pois, de um lado, são as coisas que aparecem na linguagem, de outro, é a linguagem que as denomina, isto é, evoca o ser das coisas pelo nome. Por essa razão, segundo Sartre (2005, p.231), “o primeiro interesse de Ponge é o da nomeação.” Não se trata, contudo, de qualquer nome. O interesse do poeta é a adequação perfeita entre as palavras e as coisas. Mais ainda, ele deseja que o recurso nominativo de suas palavras não seja o início errático e arbitrário do mundo, mas algo sólido e profundo: “O ideal de Ponge é que suas obras, compostas por palavras-coisas, que sobreviverão à sua época e talvez à sua espécie, por sua vez se tornem coisas. E escapando assim ao homem que a produziu, a palavra torne-se um absoluto.” (SARTRE: 2005, p.237) Ora, o que permite a figuração do absoluto é a atividade de mineração poética. Por mineração poética entende-se o trabalho de substancialização lingüística. “Ponge vê a fala como uma verdadeira concha que nos envolve e que protege de nossa nudez, uma concha que secretamos à medida de nossos corpos tão moles.” (SARTRE: 2005, p.233) Há aqui presente uma nuance nas imagens que estabelecem um jogo metafórico entre o molusco homem e a concha da linguagem. O ser em si é positivo, maciço, duro como pedra. Como a concha, o ser em si não tem interior, isto é, não tem subjetividade, consciência de si, negatividade, liberdade. Por outro lado, o ser para si é negativo, mais do que poroso, é mole, sob a forma de não-ser. Como o molusco, o ser para si não tem forma. Seu limite epidérmico é a concha. Pura interioridade, o ser para si é possibilidade. Ora, o que permite esta diferença entre a solidez das coisas e a vacuidade humana? A duplicidade de “substâncias”, uma mole e outra dura, está na diferença ontológica entre o ser em si e o ser para si. Para Sartre, é interesse poético dar à linguagem a solidez do ser em si. Ao fazer as coisas das palavras e tratar as palavras como coisas, “não se sabe exatamente, ao fim e ao cabo, se é a palavra que é a coisa ou se é a coisa que é a palavra”. (SARTRE: 2005, p.231) Unidos, nome e coisa fazem da prosa do mundo um texto único. O poeta visa unir substâncias, isto é, o complexo formado por palavras/coisas. O exercício de mineração poética visa a materialidade da palavra, isto é, a atividade de fazer, das coisas, monumentos:
Não se trata de insistir, como Valéry, no sentido etimológico, para refrescá-lo; tampouco de descobrir, como Michel Leiris, uma face subjetiva aos termos. [..]. Trata-se de surpreendê-los e dominá-los no momento em que estão em vias de se tornar coisas. Ou antes – pois a mais humana, a mais constantemente manipulada das palavras é sempre uma coisa sob um certo aspecto –, esforçar-se para apreender todas as palavras – com seu sentido – em sua estranha materialidade, com o húmus significante, rebotalho, resíduo, que as atulha. Essa noção da “palavra-coisa” me parece essencial em Ponge. Até hoje ele continua assombrando pela materialidade da palavra. (SARTRE: 2005, p.236).
A materialidade da linguagem não está apenas no desenho morfológico que embasa o formato das palavras. A metáfora da concha, como invólucro formal, não é apenas epidérmico, isto é, relativo à forma, isenta de um suposto conteúdo. É mais profunda. Trata-se da identidade entre ser e linguagem que, seja na filosofia analítica, seja na fenomenologia, marca a passagem da metafísica (temática do ser) para a linguagem. Este movimento [do ser para a linguagem] é visível em vários autores. Mencionemos alguns. Heidegger é explícito ao citar Stefan George que diz: “Nenhuma coisa existe onde falta a palavra”. (HEIDEGGER, 2003, p. 62) A intenção de Heidegger é identificar a instituição do ser pela linguagem cujo ato de reunir (do grego: légein) representa a ceifa da linguagem no interior da fala que origina o mundo. A palavra lógos vem de leg, raiz da palavra lego, que significa reunir, recolher, presente também no verbo légein, que significa dizer, falar, anunciar. Ora, não é diferente a concepção de Merleau-Ponty, na “Fenomenologia da Percepção”, ao considerar que a linguagem e o pensamento, como puros relevos, são indiscerníveis. A intenção do filósofo é reconhecer que, de forma semelhante a Heidegger, não há dois planos, não há duas cartas, uma para o ser, outra para os nomes. Ao contrário, Merleau-Ponty é suficientemente claro ao entender que aonde um vai, o outro vai também. Wittgenstein (1994, p.245), no aforismo 5.6 do “Tractatus”, afirma que “os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo”. Nos três filósofos encontramos a configuração teórica segundo a qual a linguagem não é um acessório à possibilidade de compreensão do mundo. Em outras palavras, a linguagem não é “vestimenta” para o pensamento, como se o pensamento, situado ao fundo, viesse a corresponder a representações lingüísticas, na superfície. A materialidade da linguagem não é aparente, isto é, marcada pelo corpo sutil de palavras formadas por vogais e consoantes. Dito de outro modo, a ordenação alfabética das palavras não é arbitrária, no sentido de optativa, subjetiva, desencarnada, pelo contrário, é estabelecida por uma lógica gramatical que deve ser posta às claras. Bem antes de Wittgenstein, Saussure define a língua como um fenômeno social, de forma que o argumento contra a linguagem privada, obscura e inacessível já estava posto no famoso “Curso de Lingüística Geral”. Enfim, a materialidade das palavras é profunda, pois representa a encarnação do sentido como um duplo (corporal e lingüístico). Como aponta Sartre (2005, p.247):
Num certo sentido, com efeito, tudo é expressão, uma vez que as coisas tendem em si mesmas ao Verbo, assim como a Natureza aristotélica tende a Deus; tudo exprime, exprime-se ou busca se exprimir, e a nomeação, que é o ato mais humano, é também a comunhão do homem com o universo. Mas num outro sentido tudo é coisa, pois a própria nomeação se petrificou. No mundo de Ponge tudo se passa como se uma materialização sutil se apossasse das próprias significações pelas costas, ou antes, como se coisas e pensamentos chegassem ao ponto de liga, como se diz de um creme. Assim é que o universo, por um instante verrumado pelo pensamento, volta a se fechar, enclausurando em si o pensamento-coisa com as coisas-pensamentos. Tudo é pleno: o Verbo se encarnou e só há Verbo.
Por mais relativo ou arbitrário que pareça, o fenômeno de nomeação é absoluto, uma vez que estabelece, pelo arranjo material do verbo lingüístico, o fundamento ou a base para o mundo a ser inscrito sobre pedra da linguagem.
Não pensemos, entretanto, que a tarefa do poeta é sancionar a prosa do mundo. Após reconhecer o protagonismo da linguagem poética enquanto recurso nominativo, Sartre (2005, p.247) acrescenta uma advertência: “E no entanto ele está entre aqueles cuja vocação literária foi marcada por uma furiosa luta contra a linguagem.” [grifado nosso] Trata-se de pensar a nomeação como a “virtude helênica da medida”, não porque as coisas pressupõem uma linguagem adamantina, messiânica, falada pelos anjos, mas, ao contrário, porque o signo é arbitrário e segue uma lógica própria. Isso é assim porque, segundo o “Monólogo” de Novalis (1988, p.195): “Com a linguagem dá-se o mesmo que com as fórmulas matemáticas. Elas constituem um mundo por si. Jogam apenas consigo mesmas, nada exprimem a não ser sua prodigiosa natureza e justamente por isso são tão expressivas, justamente por isso espelha-se nelas o estranho jogo de proporção das coisas.” Há uma intransitividade rigorosa no texto da linguagem, que nos impede de passar a uma realidade que não lhe seja auto-referente. Não é possível sair da linguagem para comprovar o que ela diz.
A fim de reforçar essa exigência metalingüística, Francis Ponge considera a atividade poética semelhante a do revolucionário. Uma vez que a sociedade existe, só podemos modificá-la de dentro. Trata-se de sublinhar o inconformismo e a luta contra o que somos obrigados a pensar e a dizer no contexto de significações pré-estabelecidas. O poeta é comparado ao revolucionário pelo teor subversivo e transformador das ordenações já conhecidas. Segundo Francis Ponge (1999, p.192):
Esses atropelos de caminhões e de autos, esses bairros que não alojam mais ninguém, mas apenas mercadorias, ou os dossiês das companhias que as transportam (...), esses governos de especuladores e de comerciantes, tudo isso ainda passaria se não nos obrigassem a tomar parte, se não estivéssemos aí mergulhados, se não falasse tão forte, se não fosse o único a falar. Infelizmente, para cúmulo do horror, no interior de nós mesmos fala a mesma ordem sórdida porque não temos à nossa disposição outras palavras nem outras grandes palavras (ou frases, isto é, outras idéias) senão aquelas que um uso diário nesse mundo grosseiro prostitui desde muitos séculos.
Em outras palavras, de nada adianta combater em outrem uma ordem que nos é intrínseca. Cristalizada, é uma prática que está em toda parte. As palavras que usamos já têm vícios. Por essa razão, não é exatamente contra a linguagem que o poeta se levanta, mas contra a linguagem irrefletida, isto é, aquela que decorre do trator do pragmatismo. Isso significa que o poeta é, antes de tudo, um descobridor, isto é, desvelador de possibilidades do mundo, pois não se trata de algo dito, mas inscrito em filigrana na percepção do invisível. Atitude paradoxal, visa anular a linguagem entrando nela a fim de ir contra ela, a partir dela. Libertos dos grilhões do prosaísmo: “O que ele censura à linguagem é antes de tudo ser um reflexo de uma organização social que ele execra: nossa aversão a isso que somos obrigados a pensar e a dizer”. (SARTRE, 2005, p.234) Neutralizando a prosa do mundo, isto é, apagando as coisas ditas, o poeta visa re-lançar a relação originária entre a linguagem e o ser.
*
“Assim, para que a revolução da linguagem seja completa, deve ser acompanhada de uma conversão da atenção: cabe arrancar o discurso de seu uso banal, fazer nosso olhar se voltar para novos objetos e resitituir ´os infinitos recursos da espessura das coisas pelos infinitos recursos da espessura semântica das palavras`.” (SARTRE, 2005, p.237.) Eis-nos conduzidos ao problema do paralelismo. A linguagem é autônoma, isto é, desdobra-se do para si, mas há um conjunto imenso de coisas que ele visa, senão deixá-las de lado, isto é, ao lado do complexo nome/coisa, há sempre o inominado. O paralelismo consiste em revelar o ser em si pelas palavras que o nomeia e o edifica segundo os mais variados interesses. O ser em si contorna o ser para si como um aliado/estranho: se podemos vê-lo, podemos também ignorá-lo. Como um espelho, a linguagem representa espontaneamente o que estamos vendo. Importa perceber este fenômeno dialético. A liberdade do ser para si alcança sempre o outro lado, isto é, “a natureza”, mais velha do que nós. O ser em si, por outro lado, não comprova nem recusa, na ambigüidade perfeita de algo que nos pertence e ao mesmo tempo volta às costas, sem tomar partido. Mas esta estrada de mão única – o ser invocado pelo para si – é de mão dupla, pois as coisas existem muito antes de serem instrumentos do convite humano. O que quer que a linguagem seja e aonde quer que vá, uma coisa é certa: o teor da fala estabelece uma dialética entre o “homem e as coisas”., além dos homens entre si. Falar, então, é a referência ao jogo de vai-e-vem que satisfaz a dois conceitos [conceito de homem e conceito de coisa]. Trata-se de uma tensão entre pólos antitéticos, pois a fala é sempre humana, primeiro pólo, ao mesmo tempo em que visa as coisas, segundo pólo.
O núcleo intencional de Francis Ponge, no entanto, apesar de dialético, visa o outro lado: ser a voz das coisas. Para o poeta, importa desumanizá-las, retirando-as de todo apelo utilitário. “As coisas existem. Há que tomar parte nelas, há que tomar o partido delas. Abandonaremos pois os discursos, demasiado humanos, para nos pôr a falar das coisas, de partido tomado.” (SARTRE, 2005, p.238.) Sartre reconhece que, em “O Partido das Coisas”, até mesmo o homem está destituído de suas faculdades de julgar e de atribuir valores:
Eis então uma mãe de família e um trapezista petrificados. São coisas. Para obter esse resultado, bastou considerá-los sem o parti pris do humano, que carrega de signos os semblantes e os gestos dos homens. [...] Agora compreendemos que um objeto qualquer irá aparecer como uma coisa assim que se tiver o cuidado de desnudá-lo das significações demasiadamente humanas com as quais se começou por ordená-lo. A bem dizer, o projeto pode parecer ambicioso: sendo eu um homem, como posso surpreender a Natureza sem os homens? Conheci um menininha que deixava seu jardim ruidosamente e voltava pé ante pé para ver como ele era quando ela não estava lá.” (SARTRE, 2005, p.238.).
Trata-se do paradoxo ou do “suicídio” de Francis Ponge, a saber, a transformação da voz dos homens em voz das coisas. Falar, agora, não pode ser o partido do humano. Estranho movimento que descobre, no interior do para si, o ser em si. Não de si, mas do outro, das coisas, quando até os ser para si é petrificado. Mas qual é o talismã da poesia que transforma tudo em pedra? Este poder de Medusa é a dimensão poética do olhar sensível que descarta o paradigma do entendimento. Semelhante à redução fenomenológica, que procura descrever o dado sem colar-lhe a etiqueta da representação “que só encontra nele o que lá colocou” (MERLEAU-PONTY: 1960, p.45), a expressão poética nada pensa, apenas vê. Não interpreta, apenas mostra. Trata-se de opor, como seria necessário, a atividade da consciência constituinte à passividade da consciência espontânea, esquecida de si mesma: “As coisas estão aí, elas esperam. Elas reivindicam uma expressão, são ´as mudas solicitações que elas fazem para que nós as falemos, por seu valor e por elas mesmas – para além de seu valor habitual de significação –, sem escolha e no entanto com medida, mas qual medida: a delas próprias`.” (SARTRE, 2005, p.242) Completado o círculo da ipseidade [do latim ipseìtas,átis: a propriedade essencial de algo] percebe-se o que é necessário para a expressão das coisas: falar delas somente se falar por elas. Semelhante a Cézanne que, ao transformar o visível em pintura, “atacava então seu quadro por todos os lados ao mesmo tempo, cercava de manchas coloridas o primeiro traço de carvão, o esqueleto geológico. A imagem saturava-se, ligava-se, desenhava-se, equilibrava-se, tudo ao mesmo tempo se maturava. A paisagem, dizia, pensa-se em mim e sou sua consciência.” (MERLEAU-PONTY, 1984, p.119) O exercício de ser a “paisagem”, isto é, de ser olhado pelas coisas, no caso do pintor, ou, no caso do poeta, o exercício de falar em nome da coisas, é possível? Esta dificuldade de princípio é, na verdade, um problema filosófico ardiloso. Sartre o descreve da seguinte maneira:
A afirmação, com efeito, é sempre afirmação de algo, o que significa que o ato afirmativo se distingue da coisa afirmada. Mas se supomos uma afirmação na qual o afirmado vem preencher o afirmante e se confunde com ele, essa afirmação não pode ser afirmada, por excesso de plenitude e por inerência imediata do continente ao conteúdo. Assim, o ser é opaco a si mesmo, precisamente porque é preenchido por si mesmo. Se ele quer obter de si uma visão reflexiva, eis que essa visão, folha ou ramo, se espessa por sua vez, ela é coisa. Tal é o aspecto da Natureza que apreendemos quando a contemplamos em silêncio: é uma linguagem petrificada. (SARTRE: 2005, p.243).
Compreendamos bem este fenômeno de petrificação. Ao afirmar algo, o conteúdo afirmado não coincide com a afirmação. Por uma questão de princípio, aquele que afirma e o objeto da afirmação não são o mesmo. Dito de outro modo, é necessário à natureza, para que apareça como fundante, converter-se em fundada, isto é, que ela se torne a imaginação de algo anterior ao imaginário. A afirmação de algo pressupõe a posição de uma consciência transcendente. Sem esta consciência, nada pode ser dito. Duas conseqüências podem ser retiradas deste ponto. Ou projeta-se sobre as coisas uma fala segunda e equivocada, que nem sequer se quer, ou o silêncio absoluto de algo não fala. Ora, a afirmação poética não quer o equívoco, ao contrário, fundida na coisa, visa-a em si mesma. Mas o ser em si é afirmado como algo que nega toda e qualquer tentativa de afirmação. O que é afirmado, assim, é o ser da coisa, sua presença iminente sem aderência ou predicação humana. “Se consideramos a Natureza do ponto de vista da Idéia, não podemos escapar a esta obsessão que é a indistinção do possível e do real, que reencontramos num grau menor do sonho do adormecido e que é a característica do Ser em si.” (SARTRE: 2005, p.243) Eis-nos de volta ao ser em si, sonho poético da forma absoluta, cujo grau de distância é zero entre o real e o possível... Eis a pedra. Eis o ser que não fala, não pensa, não existe. Apenas é. Na opacidade profunda do ser maciço o poeta encontra o motivo de sua fundamentação poética.
O trabalho de petrificação é o fundamento da poesia que nada tem de abstrato, retórico ou especulativo. E quais as conseqüências disso para a forma lírica? O que importa é pesar o substantivo, pois o adjetivo é assessório, isto é, só existe em função do substantivo. Este caráter derivado é deletério, pois lhe falta substância, solidez, profundidade, entre outras atribuições da pedra. Ora, a mineração poética troca intencionalmente o adjetivo pelo substantivo. O dizer poético necessita este cimento armado, sem o qual não tem substância. Dito melhor, apenas substantivado o adjetivo tem valor. Apenas quanto genitivo objetivo. Ou seja, o poeta visa a natureza objetiva das coisas a partir da qual o adjetivo é qualificado. Substantivado, o adjetivo exprime a natureza da coisa. Isto significa dizer que a concreção da pedra é antilírica na medida em que representa uma diferença em relação à perspectiva clássica, de teor subjetivista, habituada a florear os sentimentos. A forma poética não é intimista, mas inscrita nas coisas em seu caráter objetivo. Por essa razão, segundo Sartre, não há espaço ao lirismo. Tudo é substantivo. Como o “Fiat” divino, o poeta faz o mundo:
“O Verbo é Deus; só há Verbo; eu sou o Verbo.” Em consequência, a imposição do nome assume o valor de uma cerimônia religiosa. Primeiro porque corresponde ao momento da retomada: pela nomeação, o homem, diluído na coisa, se retira, se recompõe e retoma sua função humana. Segundo e sobretudo porque a coisa, como vimos, espera seu nome com todo o seu zelo de expressão abortada. Dessa forma, a nomeação é um ato metafísico com um valor absoluto; é a união sólida e definitiva do homem e da coisa, pois a razão de ser da coisa está em requerer um nome e a função do homem é falar para lhe dar um nome. (SARTRE: 2005, p.245).
Ao deixar de lado a efusão lírica, a expressão poética não gira em torno de um ideal retórico de linguagem. Ao contrário, ao negar o princípio de composição romântico, fundado na profusão dos sentimentos, vai direto ao fundo. A forma poética, assim, ocupa-se com o trabalho de mineração. A necessidade de ir ao fundo da coisa até petrificá-la, isto é, até encontrar seu fundamento objetivo, não é a única tarefa do poeta. Segundo Sartre (2005, p.246): “Isto significa que, pelo ato mesmo que dá à coisa o seu nome, a ideia se torna coisa e faz sua entrada no domínio do espírito objetivo. Pois não se trata apenas de nomear, mas de fazer o poema.” (SARTRE: 2005, p.246) Depois de nomear é preciso fazer o poema, isto é, encontrar o lugar das coisas na lógica interna do mundo. Por essa razão “quando o poema chega a termo, a unidade do mundo é restabelecida.” (SARTRE: 2005, p.246) A escolha das palavras que nomeiam as coisas e seu lugar em relação ao todo transforma-se na descrição das leis que regem o mundo. O sucesso da expressão carrega em si mesmo a consagração desta mão de engenheiro. Arquitetar o poema é, assim, fazer como Deus e estabelecer a gênese do mundo. Como no princípio do Evangelho de João, o poeta é divino na medida em que estabelece, em palavras, a lógica do mundo. Servo da linguagem, o poeta é, na verdade, escravo da atividade de união sagrada entre a coisa e o nome, no primeiro momento, e entre a linguagem e o mundo, no segundo. Por isso é preciso fazer o poema, isto é, depois de nomear, a engenharia poética deverá estabelecer as relações necessárias entre a arquitetura do poema e a ordenação do mundo.
*
Após petrificar o mundo em uma tábua de valores absoluto, sonho humano de ser Deus, como voltar ao homem e a suas eternas contingências? Corruptível, o ser humano é instável, não tem as propriedades da pedra. Segundo Sartre, Francis Ponge é um “pensador materialista”. Compreendamos este movimento filosófico em direção à matéria. O princípio materialista do poeta parece, aparentemente, aniquilar o para si: “Eis um universo povoado por homens e no entanto sem os homens. (...) Ser inteiramente consciência e ao mesmo tempo inteiramente pedra.” (SARTRE: 2005, p.262) Apresentamos em detalhes esta iniciativa de fazer equivalentes consciência e coisa:
Ele [Francis Ponge] parece mesmo, à primeira vista, amar os homens. E sem dúvida os ama. Muito. Mas à condição de petrificá-los. Ele tem paixão, o vício da coisa inanimada, material. Do sólido. Tudo é sólido nele: desde sua frase até os alicerces profundos de seu universo. Se ele empresta aos minerais condutas humanas, é com o intuito de mineralizar os homens. Se toma de empréstimo modos de ser às coisas, é com o intuito de mineralizar-se. Talvez seja permitido entrever por trás de sua empresa revolucionária um grande sonho necrológico: o de enterrar tudo o que vive, o homem sobretudo, com o sudário da matéria. Tudo o que sai de suas mãos é coisa, inclusive e sobretudo seus poemas. E seu desejo último é que essa civilização inteira se apresente um dia, com seus livros, como uma imensa necrópole de conchas aos olhos de um macaco superior, ele próprio coisa, que folheará distraidamente esses resíduos de glória. Ele pressente o olhar desse macaco, já o percebe pousado sobre ele: sob esses olhos medusantes, sente seus humores se solidificarem, transforma-se em estátua; tudo se acabou, ele é da natureza da rocha e do seixo, a esputefação da pedra paralisa seus braços e pernas. É essa inofensiva e radical catástrofe que seus escritos visam preparar. É para ela que ele requisita os serviços da ciência e de uma filosofia materialista. (SARTRE: 2005, p.262).
A citação descreve uma cena curiosa onde não há homens, apenas coisas. Nenhuma alma viva sobre a Terra, tudo está morto e enterrado em cemitérios de palavras-conchas, folheadas por um macaco, ele mesmo coisa, isto é, esvaziado de espírito. Ora, o poeta é este símio indiferente igual Medusa que, ao olhar o homem, paralisa-o, sem tomar partido. A imobilidade pétrea, que lhe paralisou os membros, representa o processo de conversão do para si em ser em si. A humanidade inteira repousa sobre este livro que o descreve do ponto de vista material e estático. Ora, quisera válida a quimera de uma história pétrea, escrita por Deus. Ciência régia, de valor incontestável, sonho de uma visão objetiva e absoluta. Na realidade, a intencionalidade do poeta tem os seus limites. Sublinhemos, na citação, a expressão “à primeira vista” (linha 1). Sublinhemos também a palavra “catástrofe” (penúltima linha). Trata-se de um engodo, de uma miragem? Nem mentira, nem miragem. O movimento poético visa a iniciativa “de realizar simbolicamente nosso desejo de existir ao modo do em-si.” (SARTRE: 2005, p.262) A bíblia das coisas, então, assim como Deus, é uma ficção humana. Não somos entes causa sui, intellectus arquetipus ou deuses infalíveis que procedem por intuições intelectuais. Somos intellectus ectipus, isto é, nossas intuições são sensíveis e condicionadas aos perfis da experiência. Isto quer dizer que a visão de Deus, no entender de Sartre, é sempre humana, pois não se pode transgredir os limites da condição humana. Este desejo metafísico, descrito por Kant, configura um saber impossível de ser realizado e por isso mesmo exterior à finitude humana.
Apesar das semelhanças com Kant, Sartre pensa de outra maneira o tema da natureza humana. Em primeiro lugar, o Deus de Kant não é o de Sartre: agnóstico, senão ateu, não há nada além do homem. Em segundo lugar, o ser em si de Sartre não é o kantiano. Kant opera uma clivagem epistemológica entre o ser em si e os fenômenos. Para Sartre, trata-se de uma clivagem ontológica entre o ser em si e o ser para si, instaurada pela consciência reflexiva. É esta consciência, tipicamente humana, que reivindica para si uma descrição materialista. O partido das coisas não é das coisas, mas dos homens que projetam sobre si mesmos seus atributos. Habilidoso ser, portanto, fundado sobre a ação de projetar-se. Ser projeto. Eis aí a conseqüência de buscar um fundamento entre as coisas “projetando, para falar da linguagem de Hegel, a interioridade na exterioridade”. (SARTRE: 2005, p.259) A conclusão de Sartre é a seguinte:
Não creio que ao “nos transferirmos para as coisas”, como quer Ponge, encontremos modos de sentir inéditos, nem que devamos tomá-los de empréstimo para nos enriquecer. O que encontramos por toda parte somos nós mesmos, sempre nós. E essa gama de sentimentos surdos e obscuros que trazemos à luz, nós já a possuíamos – ou melhor, éramos esses sentimentos. Só que eles não se deixavam ver, escondiam-se nas moitas, entre as pedras, quase inúteis. Pois o homem não está recolhido em si mesmo, mas fora, sempre fora, do céu à terra. O seixo tem um interior, o homem não; mas ele se perde para que o seixo exista. E todos esses homens “infectos” que Ponge quer eludir ou suprimir “são-no-mundo”. Só que não o percebem. É preciso que isso lhes seja revelado. Desse modo, trata-se menos, a meu ver, de adquirir sentimentos novos do que de aprofundar nossa condição humana. (SARTRE: 2005, p.265).
O lugar das coisas esfumou. O homem está ocupado demais entre as coisas. Por esta razão, para que possa vê-las sem o véu da banalidade, faz delas estátuas colossais a fim de contemplá-las. Reverbera sobre si este desejo de ver algo rigorosamente opaco e fechado sobre si. A intenção de anular o para si cristalizou-se. Leitor confesso de Francis Ponge, diz, somático e verbalmente, João Cabral de Melo Neto (1994, p.46):