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Descartes e a criação das verdades eternas
Albertinho Luiz Gallina
Albertinho Luiz Gallina
Descartes e a criação das verdades eternas
Descartes and the creation of eternal truths
Griot: Revista de Filosofia, vol. 16, núm. 2, pp. 303-321, 2017
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: :

Em 1630 Descartes declarou que os seus estudos estavam voltados para o estabelecimento dos fundamentos do conhecimento. Várias questões discutidas nas cartas são significativas, mas uma em particular é de grande importância para a compreensão da sua filosofia, a saber, a afirmação do fundamento metafísico das verdades eternas.

Palavras-chave:ConhecimentoConhecimento,Verdades eternasVerdades eternas,MetafísicaMetafísica.

Abstract: In 1630, Descartes declared that his studies were focused on the establishment of the foundations of knowledge. Several issues discussed in the letters are significant, but one in particular is of great importance for the understanding of his philosophy, namely, the affirmation of the metaphysical foundation of eternal truths.

Keywords: Knowledge, Eternal Truths, metaphysics.

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Descartes e a criação das verdades eternas

Descartes and the creation of eternal truths

Albertinho Luiz Gallina
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 16, núm. 2, pp. 303-321, 2017
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 26 Outubro 2017

Aprovação: 24 Novembro 2017

Desde o tratado de Émile Boutroux (1927), várias são as interpretações acerca do estatuto filosófico da criação das verdades eternas e da sua implicação para o projeto científico cartesiano. Dentre elas, destacamos a interpretação de Ferdinand Alquié, apresentada inicialmente na forma de um o curso proferido na Sorbonne no ano de 1968 sob o título de Science et Métaphysique chez Descartes e, posteriormente, também encontrada noutras publicações. Nos interessa a sua interpretação porque nela é apresentada a tese de que a doutrina da criação das verdades eternas divide o real em dois domínios, a saber, o domínio do objeto, daquilo que pode ser compreendido pelo espírito, e o domínio do ser, de Deus como o fundamento incompreensível daquilo que pode ser compreendido. Em relação a essa posição de Alquié, interessa-nos em particular a sua interpretação da concepção cartesiana contida nas cartas de 1630 como sendo uma concepção antinaturalista, que teria sido expressa por Descartes mediante o abandono da ontologia e, posteriormente, com a afirmação do mundo da Física. como uma fábula.

A criação das verdades eternas como “desrealização” da natureza

Para Alquié as verdades eternas, criadas livremente, são as definições das figuras geométricas, das coisas físicas, as evidências lógicas, os teoremas da matemática, as leis da Física, as verdades metafísicas, enfim, todas as propriedades que pertencem necessariamente às essências. Contudo, o problema com essa criação é que, ao reportar essas verdades à vontade divina, Descartes teria retirado das mesmas a sua realidade, ou seja, a doutrina da criação das verdades eternas “desrealiza a natureza, privando-a de toda verdadeira profundidade ontológica” (ALQUIÉ, 1968, p. 36). Mas Alquié vai além, mostrando que há uma significativa diferença entre as concepções tomista e cartesiana da criação. Segundo ele, na concepção tomista, Deus conserva as criaturas no Ser, não imediatamente, mas de forma mediata, pois na ordem da criação algumas coisas dependem das outras para a sua conservação. Deus é a causa do Ser, das formas substanciais ou das essências, conservando-as no tempo ou na duração contínua e real, mas estas, por sua vez, são causa da conservação das demais coisas, do devir, como é o caso do corpo que depende da alma para perseverar no Ser (cf. ALQUIÉ, 1968, p. 41).

Ao contrário de Descartes, segundo Alquié, “a teoria de São Tomás mantém na natureza uma certa realidade, uma certa densidade, uma certa profundidade” (ALQUIÉ, 1968, p. 41). Ou seja, na teoria cartesiana a natureza “não tem poder próprio, não tem profundidade ontológica” (ALQUIÉ, 1968, p. 41). Se, no caso da teoria tomista da criação, a profundidade ontológica se deve a realidade das essências e ao seu papel na conservação das coisas na duração, então a ausência de uma tal profundidade na teoria cartesiana se deve justamente pela ausência de realidade das essências. Ao afirmar que a natureza cartesiana não porta nenhuma profundidade ontológica, nenhum Ser, Alquié pensa que as verdades criadas livremente por Deus são ideias, objetos que se apresentam para o entendimento.

Segundo essa interpretação, Descartes teria apresentado uma nova concepção acerca do conhecimento. Ao distinguir Deus das criaturas, entre as quais se encontram as essências, Descartes teria liberado a Física da teologia, isto é, a Física se torna uma ciência independente e apta a conhecer as essências em si mesmas. Se as essências são postas por Deus fora de si, e se elas se constituem enquanto verdades para o espírito, para o qual elas se tornam acessíveis, então a verdade obtida por intermédio do seu conhecimento não depende mais daquele que as criou. Uma vez criadas, as essências se tornam objetos que espírito finito conhece e, consequentemente, objetos aos quais ele não pode deixar de afirmar como verdadeiros, isto é, a verdade do conhecido depende tão somente da natureza intelectual do espírito humano e do conhecimento que ele é capaz (cf. ALQUIÉ, 1968, p. 36).

Mesmo que a essência não seja real, como são as demais criaturas, enquanto objeto do conhecimento ela porta uma certa necessidade, através da qual o sujeito se submete a ela na medida em que ele não pode deduzir livremente as suas propriedades, isto é, o conhecimento dessas propriedades é marcado pela necessidade. Neste sentido, a essência “é o suporte destas leis universais, eternas, as quais o espírito deve se submeter” (ALQUIÉ, 1968, p. 38). A garantia divina somente recai na criação das essências e na criação daquele que as conhece, pois o conhecimento das verdades independe de Deus, ele “é uma relação entre criaturas” e, por ser um conhecimento intuitivo, continua Alquié, “podemos conhecer integralmente, absolutamente, uma verdade sem conhecer as outras” (ALQUIÉ, 1968, p. 37). O conhecimento da verdade somente depende do acesso que o sujeito tem da mesma, depende em última instância de uma intuição clara e distinta, razão pela qual a experiência metafísica fundamental é a “experiência cartesiana do objeto conhecido” (ALQUIÉ, 1968, p. 37). Ocorre que, para Alquié, essa necessidade relativa às leis da natureza, deduzidas a partir das essências criadas, é uma “necessidade contingente” (ALQUIÉ, 1968, p. 38). A questão consiste em saber como algo pode ser necessário e contingente?

Alquié afirma que “o espírito, no momento em que se submete às leis das coisas, percebe que elas poderiam ser outras que isso que elas são. Percebe então o caráter não totalmente ontológico, não totalmente satisfatório para a razão, dessas leis” (ALQUIÉ, 1968, p. 38). Essa percepção leva o espírito a procurar nessas leis um fundamento para o constrangimento a que ele está submetido. Fundamento que ele encontra no “infinito criador, nessa liberdade absoluta que se torna então a razão da passividade de meu conhecimento intuitivo (...) que se caracteriza essencialmente pelo fato de que meu espírito é passivo, se submete às coisas, contempla as coisas, as recebe como que de fora” (ALQUIÉ, 1968, p. 39).

Ora, o que está sendo enfatizado por Alquié é o fato de haver um duplo aspecto da não realidade ontológica das essências, isto é, em si mesmas as essências são contingentes, por terem sido criadas e, além disso, a necessidade implicada no seu conhecimento não se deve a elas, mas ao fato do espírito ser passivo em relação àquilo que conhece. Deus poderia ter criado outras leis, contrárias as que o espírito conhece, como também poderia ter criado o espírito com uma natureza que lhe permitisse conceber como possível, aquilo que até então lhe parece impossível. Portanto, além da essência não ser real, a sua verdade depende da natureza do espírito que as conhece.

A doutrina da criação das verdades eternas, apresentada nas cartas de 1630, e mantida por Descartes até seus últimos escritos, “é essencial para a compreensão do seu pensamento” (ALQUIÉ, 1968, p. 33). Mesmo que ela não figure nas obras onde predomina a exposição sistemática, a posição de Alquié é de que ela “aparece como a origem, e como o berço, da metafísica de Descartes” (ALQUIÉ, 1987, p. 33). A doutrina da criação das verdades eternas marca uma nova etapa na filosofia cartesiana, na qual a discussão sobre o ser do mundo não possui mais nenhum sentido.

É inegável que a teoria da criação das verdades eternas está ligada, em Descartes, à doutrina da distinção das ideias. Se toda essência fosse ao encontro da essência divina, nada poderia ser verdadeiro e integralmente conhecido pelo homem. Para que uma ideia possa ser totalmente oferecida à nossa intuição é preciso que ela esteja acabada, separada das outras. É preciso, por outras palavras, que ela seja uma criatura. Neste caso como em muitos outros, Descartes recorre a Deus para libertar o conhecimento humano e afirmar a sua suficiência. (ALQUIÉ, 1987, p. 32-33)

Ao submeter a necessidade das verdades eternas ao espírito, Alquié acaba propondo que tanto as essências, quanto as evidências lógicas, matemáticas e físicas, podem ser reduzidas a um conjunto de verdades cuja necessidade depende somente da natureza do espírito humano. Uma tal redução epistemológica da doutrina cartesiana, argumento central para a defesa do abandono da ontologia, faz da Física um conhecimento para o qual o mundo material não desempenha mais nenhum papel.

Ao reduzir a realidade das verdades eternas à realidade das ideias, conferindo-lhes uma verdade relativa e dependente da natureza finita do espírito, Alquié constata que na tese cartesiana as verdades se caracterizam por uma dupla ausência de realidade ontológica. Para esse déficit ontológico, que confere às essências um caráter contingente e não necessário, concorrem a ausência da realidade atual, visto terem somente uma realidade objetiva, a distinção entre a absoluta liberdade da vontade divina, que poderia ter criado aquilo que para o espírito é impossível, e a natureza passiva do espírito, que se conforma aos limites daquilo que ele pode intuir clara e distintamente. A conclusão é de que o conhecimento que a Física proporciona do mundo é independente do próprio mundo, visto que, em si mesmo, o mundo já não possui mais nenhum indício de realidade ou de ser.

A posição de Alquié sobre a doutrina cartesiana de 1630 nos apresenta um Descartes afastado da teoria tomista, cuja “visão é resolutamente e radicalmente antinaturalista. A natureza, sobre a qual Descartes sempre diz que ela não é uma deusa, não tem mais poder próprio, não tem mais profundidade ontológica; reduzida ao espaço homogêneo e ao tempo descontínuo” (ALQUIÉ, 1968, p. 41). À primeira vista essa conclusão a que chega Alquié para estar em conformidade com o contexto da filosofia cartesiana, afinal, Descartes, influenciado pela concepção oratoriana, representada oficialmente pelo cardeal de Bérulle, teria assumido a tarefa de lutar contra o naturalismo renascentista, naturalismo que, ao exaltar as forças ocultas da natureza, culminara num certo paganismo. Por outro lado, influenciado pela concepção mecanicista, dada a admiração em relação ao funcionamento regular e ordenado dos autômatos que enfeitavam os espaços públicos, teria se lançado na tarefa de construir uma ciência cujo objeto, por não portar em si nenhuma finalidade, seria tecnicamente manejável (cf. ALQUIÉ, 1968, p. 35-38). Essa dupla tensão estaria na base do antinaturalismo cartesiano, o qual teria orientado a doutrina apresentada nas cartas de 1630. A conjunção desses fatores teria sido a responsável pela afirmação de uma ciência da natureza, cuja verdade, dependeria tão somente da capacidade operacional da razão humana e das essências como ideias das coisas.

Esse caráter técnico do conhecimento teria como contraponto o caráter não ontológico do mundo: “Este mundo é manejável, é transformável, é conhecível na medida em que ele não é, é conhecível na medida em que ele não tem profundidade ontológica. Ele não tem continuidade interna. Cada corpo é criado incessantemente por Deus, é criado aqui, acolá, e tal é movimento” (ALQUIÉ, 1968, p. 42). A teoria da criação contínua complementaria a doutrina da criação das verdades eternas à medida que ela supre uma deficiência inerente às essências criadas, ou seja, o fato das mesmas não serem reais e, portanto, de que a existência dos corpos não é mais determinada pela essência. A recorrência à tese da criação contínua teria servido para preencher o vazio ontológico provocado pela tese da criação das verdades necessárias. Tomadas em conjunto, essas duas teses justificam e legitimam a verdade e a coerência das explicações matemáticas que a Física pode fornecer sobre o mundo: “Podemos pensar que a teoria da criação contínua seja feita somente para a Física, e por um tipo de cálculo. Ou, mais exatamente, é de uma mesma e indissolúvel experiência que o mundo aparece em Descartes como matematicamente conhecível e que aparece como sendo criado, instante por instante, por Deus” (ALQUIÉ, 1968, p. 43). Contudo, o modo como Alquié interpreta essas duas teorias não deixa de ter sérias consequências para a Física cartesiana.

Ao dizer que no estudo de ambas as teorias, “encontramos uma experiência profunda do objeto da intuição como não possuindo em si sua razão de ser, e apelando para uma razão de ser que somente se descobre em Deus, que o cria e o coloca no ser a cada instante” (ALQUIÉ, 1968, p. 44), Alquié também afirma que, assim como os corpos são criados a cada instante, as essências também estão subordinadas a essa criação contínua. Do fato dos corpos serem criados a cada instante, segue-se a impossibilidade de uma continuidade no real e, portanto, o mundo é privado de qualquer tipo causa eficiente. Mas, se próprias essências também são criadas a cada instante, como é possível estabelecer uma Física que trata das relações entre os corpos? Segundo Alquié, a Física é também impossibilitada de estabelecer relações objetivas entre a causa e o efeito, donde se segue que ela é uma ciência onde predominam as causas ocasionais. Neste sentido, afirma ele, Descartes já anuncia em 1630, “a teoria de Malebranche sobre as causas ocasionais”, e vai além, afirmando que “a teoria cartesiana anuncia também a tese de Hume, de Hume que, por outras razões, que não são mais religiosas, negara toda continuidade, e mesmo toda conexão objetiva, entre a causa e o efeito” (ALQUIÉ, 1968, p. 41-42)..

Mesmo não sendo possível tratar essas duas afirmações polêmicas, convém apenas mencionar que, em relação a um suposto ocasionalismo cartesiano, há intérpretes da Física de Descartes que avalizam essa leitura, como é o caso de Daniel Garber (1992). Mas, em ambos os casos a defesa de um ocasionalismo na Física cartesiana encontra sérias restrições textuais, especialmente nas afirmações que Descartes faz sobre os princípios que regulam as relações de causa e efeito na Terceira Meditação.

Alquié interpreta a essência como um objeto da intuição e, consequentemente, isso teria dado a ela a característica de uma ideia. A essência seria algo cuja verdade “independente de todo reenvio a uma exterioridade” (ALQUIÉ, 1968, p. 120). Do contrário, se a essência visasse uma existência fora do pensamento, então não teria sentido afirmar que ela não é real e de que ela carece de profundidade ontológica. Dado que as essências e as suas propriedades servem de conteúdo para as explicações que a Física fornece sobre o mundo, segue-se que “o mundo da física é uma simples linguagem, que é, segundo o célebre termo de Descartes, uma ‘fábula’” (ALQUIÉ, 1968, p. 45). Mas, ao afirmar que o mundo da Física é simples linguagem, uma fábula, não se está colocando em questão a verdade pretendida por esse conhecimento?

Se Alquié está certo em sua interpretação, então a ciência poderia ser reduzida a “uma linguagem coerente”, que “possui em si mesma uma verdade própria, de tipo matemático” (ALQUIÉ, 1986, p. 113). Ao dizer que o mundo é uma simples linguagem, ele somente quer enfatizar que, em última instância, o mundo da Física é uma convenção, salientando que a linguagem dessa ciência possui uma “natureza inadequada ao real” (ALQUIÉ, 1986, p. 113). A coerência própria da linguagem matemática, que opera por intuição e dedução das essências e suas propriedades - as naturezas simples das Regras - acaba sendo o critério da verdade das explicações que a Física elabora sobre o mundo.. Dado que, para Alquié, o mundo em si mesmo não tem profundidade ontológica, é um mundo manejável e conhecido por aquilo que ele não é, a expressão “o mundo da física é uma simples linguagem (...) uma fábula” (ALQUIÉ, 1968, p. 45), significa que o mundo que a Física dá a conhecer é algo inventado, criado mediante rigorosas explicações matemáticas. Alquié não só subordina a representação ao sujeito, e o sujeito a Deus, mas também limita a verdade à coerência da linguagem matemática.. Ou seja, a necessidade atribuída às criações divinas é tão somente uma necessidade oriunda do constrangimento sofrido pelo espírito, por ser ele dotado de um entendimento absolutamente passivo.

Em sua defesa da certeza restrita a natureza passiva do entendimento humano, Alquié não só assimila a ciência à tecnologia, mas, sobretudo, a transforma num conhecimento em que o mundo nada mais é do que uma projeção feita a partir das verdades intuídas. A Física cartesiana seria incapaz de conhecer a realidade. Enquanto projeção, o mundo da Física cartesiana seria uma fábula, uma representação cuja correspondência com o mundo exterior já não pode mais ser reivindicada. A verdade não seria definida mais a partir da correspondência, mas como uma certeza racional fundada na ideia do Deus transcendente, do infinito perfeito que, por abarcar tudo, abarca também o que há de verdadeiro nas coisas. A doutrina da criação das verdades eternas revelaria um espírito que se liberta da ontologia física e que edifica a ciência subordinando a representação à razão, e esta a Deus. Segundo Alquié, a metafísica cartesiana de 1630 é uma “metafísica negativa” (ALQUIÉ, 1986, p. 94), a qual teria permitido a Descartes fazer frente às concepções realistas ainda vigentes em sua época. Concepções que, por negar a transcendência ao Ser, teriam levado alguns filósofos a confundir o Ser com a linguagem que o expressa, e outros a assimilar o ser à essência. Com isso sustenta que que Descartes teria sabiamente evitado o erro dos realistas que querem fazer do conhecimento a medida do Ser, erro que teria sido evitado retirando da essência a sua profundidade ontológica.

Alquié reconhece que posteriormente Descartes teria fundamentado a realidade do mundo e também subordinado a verdade à correspondência com essa realidade. Contudo, pensa que a obscuridade da matéria, a opacidade do mundo, impede qualquer conhecimento cuja representação implique numa referência exterior. A realidade do mundo ultrapassa o conhecimento. Por ser o entendimento que conhece e pelo fato da ciência operar por leis matemáticas e mecânicas, não é possível estabelecer uma correspondência que faça coincidir completamente a ordem da experiência e a ordem da ciência (cf. ALQUIÉ, 1986, p. 11-112). Para ele, “no fim dos Princípios, Descartes vai afirmar o caráter necessariamente hipotético do conhecimento físico. A física explica como as coisas podem ser, sem revelar com segurança o que são” (ALQUIÉ, 1986, p. 112). Com isso, pensa que ao identificar a verdade com a realidade e ao fundamentar a verdade da Física no Ser da matéria, Descartes teria dotado a Física de um caráter probabilista:

Então, já não podemos atingir a natureza, a não ser através de hipóteses acerca das quais nunca poderemos ter a certeza absoluta de que são as verdadeiras [...]. Nunca saberemos ‘matematicamente’ se as hipóteses coincidem com a realidade e se os mecanismos que supomos são os que Deus, único autor do mundo, utilizou efetivamente para o construir. Assim, o substancialismo da matéria acarreta simultaneamente a possibilidade de um conhecimento ontológico e a impossibilidade da certeza total no seio desse conhecimento. (ALQUIÉ, 1986, p. 113-114)

Não há como não identificar nas palavras de Alquié o descontentamento pelo rumo ao qual Descartes se enveredou. Também não há como não identificar nessas passagens o apreço por uma ciência matemática da natureza, aquela que teria sido elaborada por Descartes quando da afirmação da doutrina da criação das verdades necessárias. Para Alquié, o erro cartesiano se deve a atribuição de realidade à matéria, pois, ao fazer isso, Descartes estabelece um critério de verdade para a Física que ela jamais poderia satisfazer. O suposto abandono da boa Física explica o seu desdém em relação ao que é exposto nos Princípios. Ao afirmar a existência de uma substância extensa e, ao identificar a matéria à extensão, Descartes somente teria apresentado um roman sur la nature, e com isso não teria proporcionado nenhum avanço nas ciências. Alquié acusa Descartes de ter paralisado a Física com a proposta de uma ontologia materialista, afirmando que o seu tratado se assemelha mais à antiga cosmogonia de Lucrécio, do que propriamente a um moderno tratado de Física (cf. ALQUIÉ, 1968, p. 127-128).

Mas, a partir das Meditações, Alquié pensa que Descartes trocou a certeza pela probabilidade. Noutros termos, a obscuridade da matéria faz com que o conhecimento do mundo material seja equivalente às conjecturas oriundas das decifrações de códigos e, portanto, a verdade teria sido definitivamente banida do domínio da Física. A certeza somente pode ser atribuída aos conhecimentos metafísicos e às demonstrações da matemática, mas não ao conhecimento proporcionado pela Física: “a ciência não é, pois, isso que conhece com certeza o mundo real. A ciência é isso pelo qual me é sempre possível não me enganar” (ALQUIÉ, 1968, p. 136). Ao afirmar o ser do mundo, Descartes teria tornado a Física um conhecimento cuja única certeza possível seria a certeza moral.

Essa consequência extraída da tese das duas Físicas na filosofia de Descartes, implica numa consequência não muito interessante para a ciência, a saber, de que ela não proporciona um conhecimento do mundo material. Noutros termos, o caráter contingente das essências torna impossível saber se aquilo que se conhece do mundo é o que o mundo verdadeiramente é. A verdade teria sido suplantada por uma certeza oriunda do constrangimento frente às essências intuídas.

A doutrina da criação das eternas é compatível com o realismo?

Tendo por base os textos nos quais Descartes apresenta a sua doutrina da criação das verdades necessárias, pretendemos interpretar a mesma no sentido de estabelecer uma leitura alternativa a de Alquié. Pretendemos mostrar que as verdades criadas não são verdades contingentes, mas verdades necessárias ou eternas e imutáveis, e que a sua necessidade não resulta da natureza passiva do entendimento humano, antes sim, que elas têm um fundamento ontológico. Por fim, que através das ideias dessas verdades necessárias não só é possível afirmar o conhecimento, mas que a representação das mesmas é também ela verdadeira, pressupõe uma correspondência entre o pensamento e a realidade

Inicialmente convém retomar a passagem na qual Descartes afirma a Mersenne a questão metafísica que não deixará de mencionar na sua Física:

Que as verdades matemáticas, as quais vós nomeais eternas, foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, bem como todo o resto das criaturas. Com efeito, é falar de Deus como de um Júpiter ou Saturno, e o sujeitar ao Estige e aos Destinos, dizer que essas verdades são independentes dele. Não temais, vos peço, de assegurar e publicar por toda parte que é Deus quem estabeleceu essas leis na natureza, assim como um Rei estabelece as leis em seu Reino. Ora, não há nenhuma delas em particular que não possamos compreender se nosso espírito se dirige a considerá-la, e elas são todas mentibus nostris ingenitae, assim como um rei imprimiria suas leis no coração de todos seus súditos, se ele também tivesse poder para isso. (AT I, p. 145, grifo do autor)

Uma primeira questão que essa passagem suscita é se essas verdades estabelecidas., são verdades necessárias ou meramente contingentes? Após a interpretação de Alquié, não deixa de ter um certo sentido pensá-las como contingentes e, sendo contingentes, como explicar que Descartes aceita chamá-las de “verdades eternas” e até mesmo de “imutáveis”? Ou seja, o que está em questão é se essas verdades matemáticas são de fato necessárias, se possuem um fundamento ontológico, ou, do contrário, se elas somente são necessárias para o espírito, cuja natureza finita e passiva, não permite que ele as conceba de outro modo.

Ao afirmar que as verdades “foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, bem como todo o resto das criaturas”, Descartes pretende se afastar da tradição escolástica que concebia serem tais verdades independentes da criação do mundo, não obstante não independentes do entendimento divino. Para uma melhor compreensão do que consiste essa novidade introduzida por Descartes na sua doutrina de 1630, e de que forma ele dista do pensamento escolástico, pretendemos contrastá-la com a concepção de Tomás de Aquino, cuja influência era ainda predominante na sua época.

Tomás de Aquino concebe a idea como “a forma de uma coisa existente fora dela” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 15, a.1). A forma de uma coisa pode ser considerada à parte da sua existência sob dois diferentes aspectos, a saber, como modelo ou como princípio de conhecimento (cf. Tomás de Aquino, 1967, I, q. 15, a.1). O fato da forma existir de diferentes maneiras não implica que ela não seja uma ideia, “pois em ambos os casos são necessárias as ideias” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 15, a.1), do mesmo modo que a sua existência fora da coisa não implica uma existência fora do entendimento divino. Neste sentido Tomás de Aquino segue a crítica aristotélica aos platônicos, defendendo que a ideia não subsiste por si só e, consequentemente, “a ideia em Deus não é mais que a essência divina” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 15, a.2). Mas, essa identificação entre a ideia e a essência divina não autoriza a supor que, dado a unicidade da sua essência, em Deus só há uma única ideia.

Ao contrário, por Deus ordenar o universo e conhecer os detalhes da sua ordenação, Tomás de Aquino assevera que “Deus, enquanto conhece sua essência como imitável em determinado grau por uma criatura, a conhece como razão ou ideia própria daquela criatura. Pois o que se sucede com uma se sucede com as demais, e assim se compreende que Deus entende muitas razões próprias de muitas coisas, que são outras tantas ideias” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 15, a.2). A diferença entre o conhecimento que Deus tem dessas diversas ideias e das que o homem conhece, reside no fato que no homem elas são formadas segundo o modelo das coisas, ao passo que para Deus elas são modelos, os quais ele conhece e pelos quais cria suas obras.

Contudo, mesmo que estas formas ou modelos, pelos quais Deus criou as coisas existentes, existam no entendimento divino a título de ideias, ainda assim elas são independentes da criação das coisas, isto é, as ideias precedem e determinam o ato divino de criação. Para Tomás de Aquino, Deus somente cria as coisas existentes e não as verdades eternas e imutáveis, as quais pertencem somente ao intelecto divino. O fato das demais verdades dependerem das verdades eternas indica precisamente que, para Tomás de Aquino, o intelecto humano participa do intelecto divino e dele depende para alcançar a verdade no conhecimento.

Ao propor a doutrina da criação das verdades eternas, Descartes quer afirmar que, por serem criadas, mantém uma absoluta dependência para com Deus, isto é, não preexistem e sequer determinam o ato divino de criação. Pois, é justamente esta predeterminação das verdades à criação, que Descartes vê como uma submissão de Deus à necessidade. O contraste entre Deus e o rei indica que, assim como o rei ao estabelecer as leis em seu reino não está subordinado a nada, pois essa liberdade é o que o caracteriza enquanto rei, também Deus não está submetido a nada ao estabelecer as verdades necessárias ou essas leis na natureza. Deus é concebido como causa eficiente que estabelece as leis na natureza sem estar submetido a algo que lhe é exterior, sequer que seja co-extensivo ao seu entendimento, como é o caso das ideias ou formas na teoria tomista. Deus é absolutamente livre, pois nada limita o seu poder criador. Essa questão é também mencionada quando das respostas aos autores das Sextas Objeções:

Quando consideramos com atenção a imensidade de Deus, vemos manifestamente que é impossível haver algo que independa dele, não somente das coisas que subsistem, mas também que não há ordem, nem lei, nem razão de bondade e de verdade que dele independem. [...] Se não fosse assim (como antes dizíamos), não haveria sido de todo indiferente ao criar as coisas que criou. Pois, se algum critério de bondade houvesse precedido a sua pré-ordenação, o houvesse determinado, então, a fazer o melhor. Mas sucede o contrário: que, como se determina a fazer as coisas que há no mundo, por essa razão (como diz o Gênesis) são muito boas: quer dizer, que a razão porque são boas depende de que quis faze-las assim. (AT IX-1, p. 235, grifo do autor)

A passagem acima sintetiza aquilo que mais tarde será alvo das críticas dos filósofos que o sucederam, ela afirma claramente que nada precede o ato de criação, ou seja, Deus não é determinado por nenhuma verdade ou bondade ao criar as verdades necessárias. Pois do contrário, se essas verdades fossem anteriores a criação divina, Deus estaria submetido a elas e, consequentemente, significaria concebê-lo como “Júpiter ou Saturno” e afirmá-lo como estando sujeito “ao Estige e aos Destinos”. Portanto, dizer que as verdades necessárias dependem inteiramente de Deus, é dizer que tais verdades não são ideias ou formas que preexistem e servem de modelo para a criação da natureza.

Mas há um outro aspecto para o qual a doutrina cartesiana também parece fazer séria oposição ao tomismo, a saber, a concepção da vontade divina. Para Tomás de Aquino não só “há ciência em Deus do modo mais perfeito” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 14, a.1), como Deus “possui também o grau supremo de conhecimento” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 14, a.1). Esta é a razão porque Deus, sendo “o mesmo na ordem do existente e na do inteligível, é puro ato, e, por conseguinte, entende-se a si mesmo por si mesmo” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 14, a.3) e, conhece-se “a si mesmo com toda perfeição com que é cognoscível, e por conseguinte, compreende-se por completo” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 14, a.3). Por Deus conhecer-se a si mesmo, compreender-se por completo, e dado que “a essência divina contém quanto de perfeição há nas coisas e muito mais” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 14, a.6), segue-se que “Deus não se conheceria perfeitamente a si mesmo se não conhecesse todos os modos possíveis com que outros podem participar da sua perfeição, como tampouco conheceria com perfeição o ser se não conhecesse todos os modos de ser” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 14, a.6). Ora, conhecer “os modos possíveis” ou “todos os modos de ser”, significa que Deus conhece todas as perfeições possíveis de serem realizadas, isto é, conhece inclusive os modos que entre si são contraditórios.

Contudo, conforme Tomás de Aquino, “tudo que implica contradição está compreendido entre os possíveis, em relação aos quais se chama onipotente a Deus, no entanto, o que a implica não está contido sob a onipotência divina, porque não pode ter razão de possível; donde o mais exato é dizer que ‘não pode ser feito’, antes de dizer que ‘Deus não pode fazê-lo’” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 25, a.3). Mas, por que nada é impossível para Deus e, ao mesmo tempo, aquilo que implica contradição não pode ser feito? A resposta é simples, a saber, aquilo que implica contradição não pode ser feito porque “nenhum entendimento pode concebê-lo” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 25, a.3).

Mesmo que “a vontade de Deus é causa dos seres” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 19, a.4), somente pode ser causado ou realizado aquilo que o entendimento pode conceber. Portanto, se o entendimento guia a vontade, razão pela qual Tomás de Aquino afirma que “a vontade segue o entendimento” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 19, a.5), significa que a vontade é guiada pelas ideias ou formas que o entendimento pode conceber. A despeito da vontade e do entendimento serem dois atos de uma e mesma essência, é inegável que há uma precedência deste em relação àquela, embora que uma tal precedência não seja temporal, mas lógica, visto se tratar da eternidade. Essa tese tomista acerca da precedência do intelecto sobre a vontade embasa a sua teoria de que Deus não cria os contraditórios, porque enquanto tais eles não são concebidos pelo seu entendimento. Em Tomás de Aquino a liberdade é restringida pelo entendimento.

Essa precedência do entendimento em relação à vontade será negada por Descartes, que concebe serem as verdades necessárias inteiramente dependentes de Deus. Na carta de 6 de maio, Descartes retoma a questão afirmando que as mesmas são verdadeiras ou possíveis porque Deus as conhece enquanto tal, e não

[...] que são conhecidas por Deus como verdadeiras, como se fossem verdadeiras independentemente dele. Se os homens entendessem bem o sentido de suas palavras, jamais poderiam dizer sem blasfemar que a verdade de alguma coisa precede o conhecimento que Deus dela possui, pois em Deus não é senão um querer e conhecer; de sorte que do mesmo modo que quer algo, por isso conhece e, somente por isso, tal coisa é verdadeira. Portanto, não é preciso dizer que se Deus não existisse, não obstante estas verdades seriam verdadeiras; pois a existência de Deus é a primeira e, de todas as verdades que podem existir, ela é a mais eterna, a única de onde procedem todas as outras. (AT I, p. 149-150)

Em 27 de maio de 1630, Descartes reafirma a dependência dessas leis a Deus dizendo a Mersenne que, “do mesmo modo que de toda eternidade as quisera e entendera, criou-as, ou então (se atribuis a palavra criou apenas à existência das coisas) as dispôs e as fez” (AT I, p. 152-153). Noutros termos, aquilo que Deus cria, mantém para com ele uma relação de absoluta dependência. Mas, nessas passagens em que Descartes afirma o caráter dependente das verdades necessárias, ele nos chama a atenção para um outro aspecto em relação ao autor da criação, a saber, para o fato de que em Deus, querer e conhecer são uma e a mesma coisa, ou seja, é porque Deus quer e conhece que elas são verdadeiras. Com isso, também estabelece uma outra distinção entre a sua doutrina e a concepção que Tomás de Aquino tem em relação às faculdades divinas.

Para Descartes, a natureza divina não comporta hierarquia quanto às faculdades que a constituem.: “em Deus é uma e mesma coisa querer, entender e criar, sem que uma preceda a outra, nem mesmo por razão” (AT I, p. 153). A restrição afirmada nesta passagem afeta diretamente a prioridade que Tomás de Aquino atribui ao entendimento em relação à vontade, pois mesmo que este não proponha uma distinção real entre as faculdades, ao menos propõe uma distinção de razão. Descartes, ao contrário, pensa que as faculdades que constituem a natureza divina são “uma e mesma coisa” e, neste sentido, entendimento, vontade e poder, formam em Deus uma verdadeira unidade.

Ao afirmar a impossibilidade do espírito humano em distinguir as faculdades divinas, Descartes não só está afirmando a impossibilidade de submeter à natureza divina à capacidade analítica da razão, mas, sobretudo, afirmando que a natureza divina é incompreensível para o espírito dotado de um entendimento finito. Esse caráter positivo da incompreensibilidade da natureza divina é afirmado inicialmente no contraste entre o poder real e o poder divino implicado na criação das verdades necessárias:

Ao contrário, não podemos compreender a grandeza de Deus, ainda que a conheçamos. Mas isso pelo qual a julgamos incompreensível nos faz estimá-la mais; assim como um Rei tem mais majestade quando é menos familiarmente conhecido de seus súditos, desde que eles não pensem por isso estar sem Rei e que o conheçam o bastante para não duvidar disso. (AT I, p. 145)

A incompreensibilidade da natureza do “ser infinito e incompreensível” (AT I, p. 150), não atesta uma incapacidade da razão. Apenas mostra que mesmo não sendo possível distinguir os infinitos atributos que constituem a natureza divina, ainda assim é possível ter dela uma ideia. Mesmo que a incompreensibilidade da natureza de Deus reforce ainda mais a sua grandeza e também a sujeição das leis criadas a este ser infinito, como é possível conhecer algo que por ser infinito é incompreensível?

A resposta de Descartes passa pela distinção dos atos que constituem a capacidade intelectual da mente humana, quais sejam, conceber e compreender:

Pois se pode saber que Deus é infinito e onipotente, mesmo que nossa alma sendo finita, não o possa compreender nem conceber; do mesmo modo que podemos muito bem tocar com as mãos uma montanha, mas não abraçá-la, como faríamos com uma árvore, ou qualquer outra coisa que fosse, que não excedesse a grandeza de nossos braços: pois compreender é abraçar pelo pensamento, mas para saber uma coisa, basta tocá-la pelo pensamento. (AT I, p. 152).

Donde resulta que de Deus, diferentemente das coisas que podem ser concebidas ou compreendidas, a mente somente pode ter um conhecimento simples, como um tocar pelo pensamento. Esse conhecimento de Deus que Descartes reivindica, é um conhecimento por intuição, visto que a noção que o espírito finito tem de Deus é a noção mais clara e mais distinta dentre todas aquelas acessíveis ao seu entendimento. Essa simplicidade da noção divina expressa, ao nível do criador, uma positividade da sua natureza. Expressa a ausência de qualquer diferenciação dos constituintes da sua essência e, por isso mesmo, que em Deus o conhecer, o querer e o criar são uma e a mesma coisa.

Curiosamente, a doutrina cartesiana parece não só assumir a doutrina tomista acerca da criação do mundo, mas sobretudo levá-la as suas últimas consequências. Por nada preexistir ou determinar a criação divina, a criação pode ser dita verdadeiramente uma creatio ex nihilo e o criador pode ser dito verdadeiramente como omnipotente. Se Deus é um ser infinito e incompreensível, e se as verdades necessárias dependem dele totalmente, como podem ser leis necessárias, verdades imutáveis e eternas?

Para Tomás de Aquino, a necessidade das criaturas provém da própria necessidade da natureza de Deus, visto que somente pode ser criado aquilo que o entendimento divino pode conceber. Para Descartes, a vontade de Deus é uma vontade absoluta., por não estar subordinada ao entendimento nada a precede no ato de criação e, portanto, nela não há escolha, eleição, mas pura indiferença. Esse parece ser o principal problema, a saber, dado a indiferença da liberdade divina, e de que Deus cria livremente as verdades necessárias, como é possível afirmar que elas são necessárias e não meramente contingentes?

Ao responder à Mersenne sobre que necessidade teria Deus para criar as verdades necessárias, Descartes responde “que ele foi tão livre para fazer com que não fosse verdadeiro que todas as linhas tiradas do centro da circunferência fossem iguais, como para não criar o mundo. E é certo que essas verdades não são mais necessariamente conjuntas à sua essência que as demais criaturas” (AT I, p. 152). Descartes reafirma que a liberdade divina é uma liberdade caracterizada pela indiferença. Atribuir uma indifferentia à liberdade divina, indicando que ela não apresenta nenhuma particularidade, significa afirmá-la como uma liberdade que se exerce sem ser determinada por algo previamente dado. Neste sentido, antes de diminuir o poder de Deus, a indiferença o engrandece ainda mais, razão pela qual dele se diz que é um ser que tudo pode e, consequentemente, poderia ter criado uma circunferência cujos raios fossem desiguais, pois a indiferença é o que torna a sua liberdade absoluta.

Por um lado, é inegável que a indiferença dota o ato divino da criação de uma certa arbitrariedade, oriunda da ausência de qualquer determinação, mas, por outro, também é inegável que, por não ser determinado, aquilo que Deus cria não pode ser considerado a partir de uma escolha prévia. Diferente de Tomás de Aquino, cuja criação é uma atualização da infinidade de ideias possíveis que o intelecto divino concebe, para Descartes, uma vez Deus tendo criado uma circunferência de tal forma que, todas as linhas tiradas do seu centro são iguais, não se pode mais afirmar que uma circunferência, cujas linhas tiradas do seu centro são desiguais, seja algo que Deus poderia ter criado.

Uma vez tendo criado algo, pensar que ele poderia tê-lo criado de outro modo, implica pensar que Deus poderia ter escolhido qual deles criaria, o que carece completamente de sentido para Descartes. Nas Sextas Respostas, ao se referir à indiferença divina e sua implicação na criação, Descartes afirma que nenhuma ideia

[...] tinha sido objeto do entendimento divino antes que a sua vontade determinasse constituí-la tal como é. [...] Deus não quis criar o mundo no tempo por ter visto que isso era melhor que criá-lo desde toda a eternidade, nem quis que os três ângulos de um triângulo fossem iguais a dois retos, por ter sabido que não poderia ser de outra maneira, etc. Ao contrário: quis criar o mundo no tempo, por isso é melhor que tê-lo criado desde toda a eternidade; e porquanto quis que os três ângulos de um triângulo fossem necessariamente iguais a dois retos, é agora certo que isso é assim e não pode ser de outro modo, e o mesmo se sucede com as demais coisas. (AT IX-1, p. 233)

Por não escolher entre alternativas dadas para saber qual delas seria criada, Deus não esteve subordinado a nada no ato de criação. Deus não quis criar algo por ser melhor que o seu contrário, mas somente quis criar e, por isso mesmo, aquilo que ele criou é o melhor. Mas há uma outra situação que parece pôr em risco a necessidade das verdades necessárias estabelecidas por Deus, ou seja, que uma vez as tendo estabelecido, ele as pode mudar.

Para Tomás de Aquino todas as verdades dependem de uma primeira verdade, isto é, todas “as coisas são verdadeiras por comparação com o intelecto divino” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 16, a.6). Como “só o intelecto divino é eterno, somente nele a verdade é eterna” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 16, a.7), logo, todas as verdades, tais como, “o conceito de círculo e que dois e três sejam cinco, têm eternidade na mente divina” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 16, a.7). Quanto à imutabilidade da verdade, esta deve ser buscada somente no intelecto, pois nele “a verdade consiste na conformidade com as coisas entendidas” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 16, a.8). Ocorre que em relação ao intelecto humano há duas situações onde se verifica uma mudança da verdade para a falsidade: “quando alguém muda de opinião sobre coisas que permanecem no mesmo ser” e “quando o intelecto conserva a mesma opinião sobre coisas que tenham mudado” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 16, a.8). Porém, o intelecto divino é tal que não há mudança nem de parecer e sequer algo escapa à sua perspicácia, donde se segue que “a verdade do entendimento divino, pela qual se chamam verdadeiros os seres da natureza, é absolutamente imutável” (Tomás de Aquino, 1967, I, q. 16, a.8). Mesmo que a verdade não mude, o fato do intelecto humano mudar da verdade para a falsidade faz com que a imutabilidade seja um atributo exclusivo da verdade do entendimento divino, que é o próprio Deus.

Para Descartes, a discussão sobre a verdade se assenta noutras bases. A resposta para a questão da eternidade e imutabilidade das verdades criadas é dada por Descartes na carta de 15 de abril: “Dir-vos-ão que se Deus tivesse estabelecido essas verdades, ele poderia mudá-las como um Rei faz com suas leis; ao que é preciso responder que sim, se sua vontade puder mudar. – Mas as compreendo como eternas e imutáveis. – E eu, julgo o mesmo de Deus. – Mas sua vontade é livre. – Sim, mas sua potência é incompreensível” (AT I, p. 145-146). O caráter eterno e imutável da vontade divina assegura a eternidade e imutabilidade às verdades necessárias, razão pela qual essas verdades também são chamadas de verdades eternas. Nas respostas de Descartes às Quintas Objeções de Gassendi, também encontramos uma afirmação que nos ajuda a entender melhor a necessidade das verdades necessárias:

[...] assim como os poetas fingem que os destinos foram na verdade feitos e ordenados por Júpiter, mas que, uma vez por ele estabelecidos, ele próprio é obrigado a conservá-los, da mesma maneira não penso, na verdade, que as essências das coisas e essas verdades necessárias que delas se pode conhecer, sejam independentes de Deus, mas, no entanto, penso que porque Deus assim o quis e dispôs, elas são imutáveis e eternas. (DESCARTES, 1996, p. 410; AT VII, p. 380)

Mesmo que as essências das coisas e as verdades necessárias não precedam e sequer determinem a vontade divina, por terem sido criadas, elas são verdades imutáveis e eternas. Nessa passagem, Descartes está reafirmando que as verdades criadas não precedem o ato de criação, que Deus não foi coagido ou obrigado a querê-las e criá-las, reforçando o que havia dito sobre a absoluta dependência das verdades criadas em relação ao criador. Mas, ao querer que as verdades fossem necessárias, Deus as cria e as mantém como necessárias para todo sempre. Essa permanência da necessidade em relação as verdades criadas de modo algum contradiz a sua liberdade absoluta. Ao contrário, dizer que uma vez tendo criado, Deus pode alterar aquilo que criou é, no mínimo, contradizer a sua natureza imutável e eterna.

Portanto, assim como o Júpiter dos poetas é obrigado a conservar os destinos que foram por ele feitos e ordenados, também Deus, ao querer que algumas verdades fossem necessárias, não só as criou como também é obrigado a conservá-las como tais. Donde se pode inferir que as essências das coisas e as verdades necessárias que delas se pode conhecer, são verdades eternas e imutáveis, possuem uma necessidade que depende somente de Deus, e de forma alguma depende do espírito humano. Essa é a razão pela qual escreve numa carta de 6 de maio que “Deus é uma causa cuja potência ultrapassa os limites do entendimento humano, e que a necessidade dessas verdades não excede o nosso conhecimento, que elas são algo de menor e de sujeito a essa potência incompreensível” (AT I, p. 150).

O fato de ser um entendimento finito e limitado, condição que lhe permite compreender Deus como causa, não o impede de compreender as verdades necessárias que ele criou. Pois, mesmo tendo sido criadas como verdades necessárias e, portanto, independentes da própria natureza do entendimento humano, isso não implica que o entendimento não as possa conhecer. Nessa passagem, Descartes está afirmando que o fato do entendimento humano não poder compreender a natureza divina, não significa que ele não possa compreender as verdades criadas. Contudo, é importante observar que compreender as verdades como necessárias não significa que a necessidade dessas verdades depende do conhecimento que o entendimento tem delas.

Há uma passagem na carta de 27 de maio de 1630 em que Descartes faz a seguinte afirmação: “pois é certo que ele é tanto o autor da essência como da existência das criaturas. Ora, essa essência não é outra coisa que essas verdades eternas [...] sei que Deus é o Autor de todas as coisas e que estas verdades são alguma coisa” (AT I, p. 152). Para entendermos melhor essa passagem, convém retomar a resposta que Descartes deu a Burman10, quando este lhe perguntara sobre a distinção entre a essência e a existência:

Separamos corretamente essas duas coisas com o pensamento, porque podemos conceber a essência sem existência atual, como uma rosa no inverno; contudo, aquilo que costumamos distinguir, não podem estar separadas na própria coisa, porque a essência não é anterior a existência, já que a existência não é mais que a essência existente e, portanto, uma coisa não é anterior a outra, tampouco diferente ou distinta dela. (Œuvres et Lettres, 1953, p. 1375)

Enquanto ideias, a essência e a existência podem ser pensadas separadamente, sem perigo de aí se incorrer em contradição. Mas, se o que está em questão é a própria coisa e não a ideia, então, não é mais possível separar a essência da existência. Aliás, pensamos que na explicação do porquê não é possível separá-las na própria coisa, encontra-se a chave para entender o significado da tese da criação das verdades necessárias, a saber, aquilo que denominamos de coisa e lhe atribuímos uma existência nada mais é do que a essência existente, isto é, as coisas existentes, as criaturas, são as essências criadas por Deus. A dificuldade ao tratar dessa questão provém da confusão que se estabelece entre a distinção de razão e a distinção real. Daí que a distinção entre essência e existência só tem lugar no e pelo pensamento, jamais na realidade.11

Na afirmação acima citada: “pois é certo que ele é tanto o autor da essência como da existência das criaturas”, o que está em questão é a coisa criada, a criatura da qual Deus é o autor. Sendo assim, se na coisa a essência não pode ser separada da existência, e se “a existência não é mais que a essência existente”, então, as criaturas a que se refere a passagem acima são as essências que Deus criou, as essências existentes. Quando Descartes diz que “essa essência não é outra coisa que essas verdades eternas”, ele quer dizer que as verdades necessárias, verdades eternas, são verdades sobre a essência. Por exemplo, quando falamos da essência ou da natureza do triângulo, estamos falando que os três ângulos são iguais a dois retos, que o maior ângulo é oposto ao maior lado, etc. Neste sentido, a essência do triângulo não é uma verdade eterna ou uma propriedade que pertence necessariamente ao triângulo.

Segundo o que apresenta Alquié, pensamos que há três aspectos fundamentais nessa doutrina que inviabilizam a sua interpretação da doutrina da criação das verdades eternas. Na sua doutrina de 1630, Descartes afirma que Deus estabeleceu, concomitantemente, às leis na natureza existente e as ideias dessas leis no espírito humano, o que se opõe com a tese de que Deus teria criado as essências como ideias no espírito. O fato de as verdades eternas possuírem uma realidade que independe do próprio espírito que as concebe, isto é, existirem fora do pensamento, contrapõe a afirmação feita por Alquié de que tais verdades somente são necessárias devido a passividade do entendimento humano. Aliás, isso inclusive torna problemática a afirmação de que elas são contingentes e não possuem nenhuma profundidade ontológica. Finalmente, a correspondência entre a realidade e o pensamento, originada pelo estabelecimento das leis na natureza existente e das ideias dessas leis impressas no espírito, possibilita a defesa de numa concepção da verdade como correspondência entre as ideias e a realidade. Essa correspondência que pode encontrada em várias passagens de outras obras de Descartes, na interpretação oferecida por Alquié desaparece completamente.

Posto esses três aspectos, parece-nos indefensável concluir que a doutrina cartesiana de 1630 conduz a uma concepção da Física cujo conhecimento se limita à certeza inerente às naturezas simples e à coerência das demonstrações matemáticas. Também parece indefensável a alusão feita por Alquié, a saber, que o mundo da Física seria simplesmente uma linguagem, uma invenção, uma fábula. Ao contrário, os elementos apresentados nas cartas permitem dizer que Descartes pensava a sua Física como uma ciência do mundo material. Por fim, com a doutrina de 1630 a Física cartesiana deixa de ser uma mera coleção de conjecturas prováveis e incertas, tornando-se um conhecimento cujas demonstrações geométricas explicam verdadeiramente a realidade in rerum natura.

Material suplementar
Referências bibliográficas:
ALQUIÉ, Ferdinand. Science et métaphysique chez Descartes. Paris: Centre de Documentation Universitaire de La Sorbonne, 1968.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Madrid: editorial Católica, 1967, tomo I.
DESCARTES, René. Œuvres de Descartes. Publiées par ADAM, Charles & TANNERY, Paul. Paris: CNRS/Vrin, 1965-1973, 11 v.
___. Œuvres et Lettres. Textes presentes par BRIDOUX, André. Paris: Éditions Gallimard, 1953.
___. Obra Escolhida. Tradução de GUINSBURG, J. & PRADO JÚNIOR, Bento. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os Pensadores)
BOUTROUX, Émile. Des Vérités Éternelles chez Descartes. Paris: Félix Alcan, 1927.
DEPRÉ, Olivier. De la liberté absolue: A propos de la théorie cartésienne de la création des vérités éternelles. In : Revue Philosophique de Louvain, t. 94, n. 2, mai 1996, p. 216-242.
GARBER, Daniel. Descartes’ Metaphysical Physics. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1992.
KOBAYASHI, Michio. A filosofia natural de Descartes. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
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Autor(a) para correspondência: Albertinho Luiz Gallina, Universidade Federal de Santa Maria, Av. Roraima, 1615, Camobi, CEP 97105-340, Santa Maria - RS, Brasil. albertinho.gallina@gmail.com
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