Resumo: O engajamento de Marx na filosofia tem desde o início a tentativa de um desenvolvimento mais objetivo do humanismo, na medida em que só adentra em tal disciplina em busca de uma racionalidade cujo desenvolvimento não é seccionado da transformação concreta do mundo. Tal é a sua impressão da filosofia sob a dialética hegeliana: apenas a razão filosófica se perceberia como forma não destacada da realidade, podendo realizar o humanismo que no Direito está dado como um puro idealismo. Nos Cadernos Preparatórios de sua tese de doutorado intitulada Diferença entre as filosofias de Demócrito e Epicuro (DFDE) Marx desenvolveu uma filosofia da história alternativa à de Hegel, indicando que a democracia não sofreu ocaso na Grécia por conta do desenvolvimento da razão filosófica, mas sim por conta da vitória de uma razão filosófica que sofrera viragem para a teologia.
Palavras-chave:AntiguidadeAntiguidade,EpicuroEpicuro,Marx, Hegel, Dialética, EstadoMarx, Hegel, Dialética, Estado.
Abstract: Marx's engagement in philosophy has from the outset attempted a more objective development of humanism insofar as it only enters into such discipline in pursuit of a rationality whose development is not cut off from the concrete transformation of the world. Such is his impression of philosophy under the Hegelian dialectic: only philosophical reason would perceive itself as an undisputed form of reality, being able to realize the humanism that in Law is given as a pure idealism. In the Preparatory Notes for his doctoral thesis entitled Difference between the Philosophies of Democritus and Epicurus (DFDE) Marx developed a philosophy of history alternative to that of Hegel, indicating that democracy did not suffer decline in Greece due to the development of philosophical reason, but because of the victory of a philosophical reason that had undergone a change to theology.
Keywords: Antiquity, Epicurus, Marx, Hegel, Dialectic, State.
Artigos
Jovem Marx: um esboço de uma filosofia da história e um republicanismo peculiar
Young Marx: an outline of a philosophy of history and a peculiar republicanism
Recepção: 20 Junho 2017
Aprovação: 29 Outubro 2017
Nos Cadernos Preparatórios de sua tese de doutorado intitulada Diferença entre as filosofias de Demócrito e Epicuro .DFDE) Marx indicou que, diferente do que teria considerado Hegel, o Estado democrático não foi subsumido pela razão propriamente filosófica e sim pela razão filosófica decaída. O sistema epicurista – e não os alexandrinos – é que teria desenvolvido o dualismo de Anaxágoras de um modo verdadeiramente filosófico, de modo que a dissolução da democracia engendrada pelos alexandrinos e perpetuada na modernidade não teria sido um progresso da razão e sim seu retrocesso. Assim, diferente do que teria considerado Hegel, o Estado democrático não era oposto ao caráter filosófico e à razão consciente, mas justamente o Estado da razão mais racional, da razão mais filosófica outrora perdida. Foi justamente a “razão transformada em teologia” que a modernidade herdou. Mas a razão filosófica – a razão democrática - deveria ser resgatada.
O encantamento de Marx por Hegel
Hegel considerou que desenvolver a razão filosófica é desenvolver a própria liberdade dos homens e que a razão filosófica só se autodetermina mediante a história concreta de desenvolvimento do Estado político. Nele ser livre é saber-se livre e a realização do saber é processual. Mas esse processo não é um desenvolvimento conceitual em si mesmo, na medida em que passa pelo desenvolvimento da realidade, dado que é neste desenvolvimento que o conceito se determina. Assim, a razão, como razão-princípio da natureza e dos homens, não se sabe livre de pronto. É apenas como razão-humana – espírito – que ela passa a saber-se livre, de modo que o processo para esse saber-se livre é a história concreta que vai da natureza aos homens. Nesse sentido, a razão não seria dotada de uma inteligência a reger o mundo de modo consciente desde o início. Daí porque, de acordo com ele, tratava-se de uma razão diferente daquela presente na tradição religiosa:
[...] essa manifestação do pensamento de que a razão governa o mundo está ligada a uma outra aplicação, que conhecemos na forma de verdade religiosa [...] Já esclareci que não tencionava recorrer à vossa fé no princípio da razão [...] A Providência divina é a sabedoria que, com um poder infinito, concretiza seus objetivos, isto é, o objetivo absoluto e racional do mundo: a razão é o pensar livre e determinante de si mesmo. (HEGEL, 1999, p. 19).
Hegel afirmou sua razão num idealismo objetivo desenvolvendo-a como uma espécie de “providência não consciente” que determina a si mesma por meio do desenvolvimento da consciência dos homens. Assim, não haveria um humanismo como princípio, mas como potência. A razão não guiaria os acontecimentos de modo inteligente, consciente de o estar fazendo. E os historiadores que porventura afirmam isso apenas “fazem aquilo de que acusam os filósofos, ou seja, invenções a priori da história” (HEGEL, 1999, p. 18). Na verdade, “deve ser temerário querer desvendar esse plano que dizem estar oculto aos nossos olhos” (HEGEL, 1999, p. 20): a história deve ser compreendida como meio de a razão se tornar inteligente e não como “produto de uma razão já inteligente”. Assim, desenvolver a razão consciente e o humanismo seria desenvolver uma (apreensão da) história de modo filosófico, ultrapassando o modo religioso:
Na história universal lidamos com indivíduos que formam povos e com totalidade, que são os Estados. Portanto, não podemos nos ater a miudezas da crença na Providência e, menos ainda, à crença abstrata e indeterminada, que apenas quer generalizar, ou seja, supor que existe uma Providência [...]. (HEGEL, 1999, p. 20).
Apreender a história de modo filosófico implicava tomar a história em seu modo empírico casual, sem pressupor uma racionalidade inteligente governando os momentos, na medida em que o processo de conhecimento é que determinaria esse encadeamento racional, já que ele não estava posto de modo inteligente a priori. A razão primeira não era uma razão absolutamente sujeito – e, portanto, realmente livre – porque não era consciente. Mas também não era somente produto, porque, ainda que fosse determinada por meio da história e da consciência humanas, é ela que se dá a si, sendo a natureza e os homens apenas a sua mediação.
A filosofia é a razão que alça o vôo de águia: enxerga os diversos momentos anteriores como parte de si mesma e, assim, torna-se consciente de conter toda a realidade. Apenas a razão-filosófica é a razão velha (madura) que olha para trás e reconhece todas as realidades racionais, porque as admite como partes, momentos, de seu processo histórico, participantes de si como totalidade manifesta não só no espaço, mas também no tempo. A Filosofia é o modo de a razão compreender que é princípio de si mesma, que toda realidade decorre de si, que toda realidade é modo de a razão compreender que é a força expressa não só na natureza (espaço/não espírito), mas também na história (tempo/espírito):
Mediante o conhecimento especulativo, comprova-se que a razão [...] é em si mesma a matéria infinita de toda forma de vida natural e espiritual, e também a forma infinita a realização do seu próprio conteúdo [...]. Ela é a força infinita, porque a razão não é tão impotente ao ponto de ser apenas um ideal, um simples dever ser, que não existiria na realidade [...] Assim ela própria realiza sua finalidade e a faz passar do interior para o exterior, não apenas no universo natural, mas também no universo espiritual – na história universal [...] eis o que a Filosofia demonstra [...]. (HEGEL, 1999, p. 17, grifo do autor).
Das diversas maneiras de apreensão da realidade, apenas aquela que se faz numa filosofia da história desenvolve e apreende a verdadeira unidade. É assim que Hegel distingue o modo filosófico de apreensão da história do modo imediato (infantil) e do modo reflexivo (adolescente), afirmando o modo filosófico (velho) como melhor, por conta de sua possibilidade única de lançar lógica a um passado temporal desenvolvido inconscientemente. Hegel convida os homens a desenvolverem a consciência especulativa para realizarem a liberdade.
Ao estudar Hegel com mais afinco, a razão do conflito de Marx com o curso de Direito, expresso em suas cartas e poemas de 1835,. havia finalmente se revelado: se devia ao fato de ele empreender uma separação entre ser e dever ser, realidade e razão, conteúdo e forma, tal como Kant o fizera. Era preciso, portanto, ultrapassar tanto o humanismo formal kantiano como também a disciplina que sustentava esse humanismo, o Direito. Mas esse não era um empreendimento qualquer. Marx precisava convencer seu pai dessa necessidade.
A carta emocionada que ele escreve ao pai Heinrich em 1837 explicando sua opção pelo deslocamento para a filosofia é uma insistência no caráter moral de sua opção. Ele mostra que havia se empenhado, mas não encontrava saída no interior do Direito justamente por esta ser uma razão meramente formal, tal como era formal a razão pratica kantiana. Marx indica que, nas cerca de trezentos páginas que escrevera sobre o Direito Positivo Romano, havia tentado desenvolver numa primeira parte o Direito puramente conceitual e numa segunda parte a efetivação prática deste, esbarrando em pontos críticos que não conseguia solucionar:
[...] tentei elaborar uma filosofia do Direito abrangendo toda a esfera do Direito. Eu comecei com algumas proposições metafísicas na introdução e continuei essa infeliz tarefa até chegar ao Direito Público, um trabalho de quase trezentas páginas. Aqui, sobretudo, a mesma oposição entre o que é e o que deve ser, que é característica do idealismo, destacou-se como um sério defeito e foi a fonte da divisão desesperadamente incorreta entre sujeito e matéria. [...] A seguir, como uma segunda parte, vem a filosofia do Direito, quer dizer, de acordo com meu modo de ver naquele momento, um exame do desenvolvimento das ideias no Direito Positivo romano, como se o desenvolvimento conceitual do Direito Positivo [...] pudesse alguma vez ser algo diferente da formação do conceito do Direito, cuja primeira parte, de todo modo, devesse lidar com ele. Mais ainda, eu havia dividido esta parte em teoria do Direito formal e teoria do Direito material, a primeira sendo a forma pura do sistema em suas interconexões e sequências, em subdivisões e extensões, enquanto a segunda, por outro lado, era voltada para descrever o conteúdo, mostrando como a forma se torna encorpada em seu conteúdo. Isso foi um erro que eu compartilhei com Herr v. Savigny [...] O erro descansava na minha crença de que matérias e formas podem e devem se desenvolver separadamente uma da outra, e foi então que obtive não uma forma real, mas algo como uma mesa com gavetas nas quais então derramei areia. (...) No final da sessão sobre o Direito Privado Material, vi a falsidade da coisa toda, o plano básico cujas fronteiras se encontram com as de Kant, mas desviam dele completamente na prática, e novamente tornou-se claro para mim que não poderia haver nenhum avanço sem a Filosofia. (...) Em um tratamento filosófico do Direito, portanto, um deve se erigir no outro; realmente a forma deve ser somente a continuação do conteúdo. [...] Havia caído uma cortina, o mais sagrado dos sagrados havia se despedaçado e novos deuses precisavam se instalados. Do idealismo, o qual, por acaso, eu havia comparado e nutrido com o idealismo de Kant e Fitche, cheguei ao ponto de buscar a ideia na realidade em si mesma. Se antes os deuses haviam duelado sobre a terra, agora eles se tornaram o centro dela. Eu havia lido fragmentos da filosofia de Hegel e sua grotesca melodia escarpada não havia me envolvido. Mais uma vez eu quis mergulhar no mar, mas com a clara intenção de estabelecer que a natureza da mente é, assim como necessária, concreta e firmemente baseada na natureza do corpo. Meu objetivo não era mais praticar truques de mágico, mas trazer pérolas genuínas para a luz do dia. (MARX, 1975b, pp. 16-18, tradução nossa).
Com a metáfora de gavetas vazias sobre as quais se derrama areia, Marx indica que na crítica de Hegel a Kant identificara o problema de seu estudo do Direito: há um equívoco na racionalidade (forma) apartada da prática efetiva (conteúdo). Condenando uma racionalidade vazia à qual se preenche posteriormente de realidade, ele indica a dificuldade de estudar a forma racional em si mesma. Estudar o dever ser como forma pura havia se revelado um equívoco próprio dos limites do idealismo de “oposição entre o que é e o que deve ser” (MARX, 1975b, p. 18, tradução nossa). A divisão entre direito público formal e direito privado material deveria ser superada. Para tanto, era preciso o desenvolvimento objetivo da razão filosófica, tal como Hegel defendera.
Marx toma partido de Hegel porque, na contramão da visão de seu pai, havia percebido que Hegel era mais objetivo que Kant. A filosofia como razão dialética é indicada aqui como uma fuga do plano do conceito puro contrário a um encantamento idealista ingênuo. O seu compromisso com uma contribuição concreta para a humanidade não seria abandonado, a sua ida do Direito para a Filosofia tratava-se de uma mudança de caminhos para realizar concretamente o bem comum. Não era o desvio de um jovem leviano e egoísta. Seu pai deveria desfazer-se de tantos temores apreendendo que a Filosofia no sentido hegeliano não era pura abstração, mas se referia ao humanismo como um processo dialético que perpassava não só o plano da forma moral como o próprio desenvolvimento concreto da história dos homens e do Estado político.
Marx mergulhara na grotesca melodia hegeliana no bojo da polêmica crucial que ela trazia naquele momento: Hegel empreendera uma oposição ao Estado laico democrático em detrimento de uma Monarquia Constitucional. ao mesmo tempo em que exaltara a razão filosófica como razão mais racional que a razão teológica. Nas diferentes apreensões de que o real é racional e o racional é real (HEGEL, 1821) fervilhava uma oposição entre hegelianos conservadores (hegelianos de direita) e liberais (jovens hegelianos ou hegelianos de esquerda). Para os conservadores, a questão era simplesmente que, após a Revolução Francesa descambar-se para o terror, Hegel teria se convencido de que a Monarquia Constitucional era o Estado mais racional possível. Já para os jovens hegelianos, a defesa da Monarquia Prussiana seria ou uma espécie de desvio moral ou uma espécie de Hegel exotérico desenvolvido para disfarçar o verdadeiro, o esotérico, já que o próprio havia empreendido uma defesa da filosofia em detrimento da religião.
Marx se aproximou mais dos jovens hegelianos. Desde que chegara a Berlim, conviveu com o humanista Eduard Gans – professor de Direito que defendia uma leitura progressista de Hegel. – e frequentou as reuniões do Clube dos Doutores (Docktorclub), grupo de debate sobre o idealismo alemão criado pelos jovens hegelianos em 1837.. Entretanto, também é preciso chamar a atenção para um fato importante: o seu posicionamento foi crítico aos jovens hegelianos desde o início. Tal como iremos demonstrar agora, já em sua tese de doutorado e nos respectivos Cadernos Preparatórios. desta, os quais começaram a ser esboçados em 1839, Marx desenvolveu uma crítica tanto aos hegelianos conservadores quanto aos liberais, numa tentativa peculiar de ultrapassagem de Hegel pelo desenvolvimento do aspecto objetivo da dialética hegeliana que teria sido tergiversado pelo próprio Hegel. Assim, a crítica de Marx se faz no interior da peculiaridade do modo como ele adentrou na Filosofia: elogioso da dialética hegeliana por conta do caráter objetivo desta.
Diferentemente de Hegel, Marx compreendia a liberdade como uma possibilidade efetiva apenas na República Democrática, uma herança paterna e experimentada pela realidade da família Marx, ainda mais oprimida pelo absolutismo por conta de sua tradição judaica. Ao longo de seus estudos sobre Hegel, Marx irá identificar que o idealismo outrora explicitado em Kant também está presente no próprio Hegel. A princípio, como veremos, isso não implicará um abandono de Marx da Filosofia, mas, antes, fará com que ele critique Hegel não sob forma de julgamento moral, tal como faziam os demais jovens hegelianos, e sim incorporando-o no próprio caráter determinado de modo objetivo e dialético.
A oposição entre razão filosófica e democracia em Hegel
O problema fundamental de Hegel teria sido considerar que o desenvolvimento da razão livre culminaria na absoluta realidade de suas potencialidades com o Estado prussiano de então, do período conhecido como Restauração (após Napoleão perder o domínio da Alemanha). Marx avalia no esboço de ua Tese de doutorado que com essa filosofia da história Hegel considerou que a República Democrática havia sido uma forma de Estado própria apenas a um momento anterior da razão; momento de anteposição dos homens em relação ao mundo, a uma realidade de continuidade entre o particular e o público, momento de consciência infantil da razão. E este momento teria desaparecido para sempre após o desenvolvimento do conhecimento na sociedade grega, levando à própria decadência desta.
De fato, em sua argumentação de superação da razão democrática pelo desenvolvimento da razão filosófica, Hegel indicou que o primeiro momento da razão consciente teria se dado na Grécia, mais especificamente na segunda fase de unidade grega. A filosofia grega, entretanto, teria se desenvolvido de dois modos gerais: o modo alexandrino, que culminou em Sócrates e Platão, e o modo eclético, dos sistemas cínico, cético e epicurista. As duas tendências filosóficas teriam partido dos chamados Sete Sábios, os primeiros legisladores gregos, e do filósofo Anaxágoras – o qual teria sido a expressão do momento da dualidade da razão especulativa que depois se desenvolvera cindida nas tendências alexandrina e eclética.
O Estado racional na Grécia antiga só podia ser uma democracia porque naquele momento não se tratava de uma razão especulativa desenvolvida: o que se transformava em lei não eram frutos de uma razão madura e sim dos hábitos. O que se configurava como lei para os gregos eram seus próprios costumes, ou seja, a lei não derivava da reflexão:
Para o indivíduo, o substancial do direito, os assuntos de Estado e o interesse geral são o essencial, mas apenas como costume, sob a forma da vontade objetiva. [...] A lei existe [...] vigora pura e simplesmente, por ser lei [...] existem leis nessa moralidade objetiva como uma necessidade natural. [...] Quando o costume e o hábito são a forma na qual se quer e se faz o lícito, então essa forma é fixa, pois ainda não possui o inimigo constituído pela imediatez – a reflexão e a subjetividade da vontade. (HEGEL, 1999, p. 211).
Hegel considerou, assim, que a democracia ali só foi possível porque a moralidade que se tornava lei era imanente e objetiva, era dada pela crença nos hábitos como verdades inquestionáveis. A democracia foi própria a uma realidade específica na qual os indivíduos, ainda que racionais, eram desprovidos de uma razão que se pensa a si mesma como sujeito, desprovidos de uma razão mais consciente. O desenvolvimento da razão livre não estaria de acordo com a democracia porque fora, na verdade, o próprio processo de ruína dela:
À democracia – como só existiu na Grécia – estão vinculados os oráculos. À decisão autônoma pertence uma subjetividade determinante da vontade, que é estabelecida por razões preponderantes; os gregos porém não possuíam essa força [...] Os gregos também seguiam em questões particulares outras fontes de consulta e não decidiam nada independentemente. Com o progresso da democracia, vemos como, nas questões mais importantes, o oráculo não era mais consultado; nesses assuntos tornaram-se válidas e decisivas as decisões dos tribunos. Assim como, na mesma época, Sócrates inspirava-se em seu demônio, os líderes populares e o povo tomavam suas próprias decisões. Com isso surgiram a ruína, a desordem e a constante alteração da constituição. (HEGEL, 1999, p. 210, grifo do autor).
O Estado democrático teria começado a decair com o surgimento de uma razão mais consciente de sua liberdade já em Anaxágoras, mas só a partir de Sócrates é que tal ocaso passara a se tornar mais grave: “[...] o grego Anaxágoras foi o primeiro a afirmar que o nous – a inteligência em geral ou razão – rege o mundo [...] Sócrates adotou o pensamento de Anaxágoras, que se tornou dominante na filosofia – com exceção de Epicuro, que atribuía todos os acontecimentos ao acaso” (HEGEL, 1999, p. 19).
Portanto, Hegel desenvolveu em sua filosofia da história uma lógica de oposição à democracia no mundo moderno. Defendeu que a efetividade do Estado democrático não se resumia a uma constituição representativa, mas exigia uma realidade de identidade ingênua entre interesse particular e interesse geral. A mera participação por voto não seria suficiente para determinar de modo absoluto a identificação do cidadão com o interesse geral outrora possível na Grécia e “é por isso que, na Revolução Francesa, nunca a constituição republicana se concretizou como uma democracia, e a tirania, o despotismo, levantou a sua voz com a máscara da liberdade e da igualdade” (HEGEL, 1999, p. 213). As repúblicas modernas só podiam ser uma democracia aparente, uma falsa igualdade e liberdade, trazendo o risco de um posterior estabelecimento de tiranias em nome dessas bandeiras.
O resgate de uma fundamentação democrática da razão verdadeiramente filosófica
Nos Cadernos Preparatórios de sua DFDE, retomando o mesmo ponto de partida de Hegel, Marx (1972a, p. 45) afirma: “O sábio, sophos, é obrigatoriamente concebido pela filosofia antiga de acordo com duas determinações que, embora diferentes, possuem ambas a mesma raiz. [...] A filosofia grega começa com sete sábios” (MARX, 1972a, p. 35). Marx concorda com Hegel que os sete sábios são a raiz da consciência filosófica, mas, diferentemente deste, mostra que os sete sábios iniciam a razão especulativa justamente por tomarem a verdadeira razão a partir de uma determinação popular objetiva. Assim, os sete sábios não são sábios por serem determinantes individuais da verdade e sim por serem os primeiros a apreender a verdade a partir da vontade popular. Trata de serem sábios por partirem de princípios objetivos e não de um mero idealismo:
Não se sacodem os poderes vivos: os filósofos mais idealistas desse período, os Pitagóricos e os Eleatas, glorificam a vida pública e fazem dela a verdadeira Razão. Os princípios desses filósofos são objetivos e constituem um poder que os invade a si próprios [...] se tornam eles próprios as imagens vivas, as obras de arte vivas que o povo vê sair de si mesmo na dimensão plástica [...] são a substância que possui o verdadeiro valor: as leis. (MARX, 1972a, p. 37).
Para Marx, o poder dos sete sábios não teria emanado de uma iluminação individual e sim do povo. Os sábios pitagóricos e eleatas são a própria materialização daquilo que a vida pública glorifica. A razão não é individual e sim popular. Apenas é plastificada em alguns indivíduos, que então a transforma em leis. Ou seja, a razão sai do povo e não dos indivíduos legisladores, de modo que não há um desenvolvimento puramente conceitual. A perspectiva de plastificação indica uma corporificação no sentido de elaboração: a pessoa do legislador é formuladora das ideias do povo em leis efetivas. Marx defende que os primeiros homens a serem tidos como sábios foram justamente os bons leitores do clamor popular. O povo não glorificava invariavelmente os primeiros sábios, mas sim o modo como estes elaboravam em saber a vontade manifestada pela maioria ao invés de desenvolver verdades próprias na contramão dos desejos populares. O povo adora como sábios os legisladores que os compreendem verdadeiramente, do mesmo modo como outrora adoravam os oráculos.
Marx discorda de Hegel (1999, p. 191) que o povo, não sabendo decidir nada por reflexão própria, se recorria aos oráculos por estes serem “uma subjetividade determinante da vontade”. A verdade seria justamente o contrário: o povo só adorou os oráculos do Apolo de Delfos quando estes expressaram a própria vontade do povo, o que se comprova pelo fato de o oráculo ter deixado de ser popular tão logo saíra do lugar de expressão da vontade popular. O mesmo acontecera com os sábios. Estes foram perdendo sua popularidade na medida em que se afastaram do povo.
Estes sábios são assim tão pouco populares como as estátuas dos deuses olímpicos. [...] Os oráculos de Apolo de Delfos não foram para o povo os representantes da vontade divina nem foram ornados pelo claro-escuro de um poder desconhecido senão enquanto o próprio poderio do espírito grego ecoou do alto do tripé pítico; o povo só se interessou teoricamente por eles enquanto foram a expressão da própria teoria do povo [...]. O mesmo aconteceu com os sábios [primeiros, legisladores]. (MARX, 1972a, p. 37).
Assim, enquanto para Hegel o Estado só pode emanar do povo, ser democrático, quando o povo se identifica ingenuamente com leis desenvolvidas pela razão em si, Marx indica que o povo só se identifica com as leis quando estas de fato dele emanam. O respeito às leis, portanto, não teria repousado na ingenuidade do povo em relação costumes e sim na satisfação com o poder público de determinação da ordem pública. Os legisladores foram reconhecidos como sábios enquanto não fecharam a razão em si mesma e os primeiros sete sábios são menos rejeitados do que os posteriores - Anaxágoras e Sócrates - justamente por fazerem da especulação apenas um isolamento parcial da razão:
A forma da vida dos pitagóricos é em si mesma a forma substancial, política, apenas tomada em abstrato e levada a um mínimo de extensão e de fundamentação natural [...] a forma na qual realizam o seu conhecimento da substância está a meia distância do isolamento total e consciente.
Marx (1972a, p. 37) afirma que mesmo nos pitagóricos não há um isolamento total da razão. O isolamento do sábio é sempre parcial porque ser sábio não implica aqui ter o privilégio da verdade e sim ser especialmente capaz de apreender a vontade geral quando da elaboração das leis. Mas a partir de Anaxágoras a situação começa a se modificar: “mas com os sofistas e Sócrates (na mesma linha do dinamis que encontramos em Anaxágoras), a situação inverteu-se. (MARX, 1972a, p. 37)”. O povo deixa de reconhecer como sábios os legisladores que passam a desenvolver a razão como uma entidade distante da determinação popular, seja no plano da razão como pura forma retórica seja no plano da razão como idealismo em si.
Marx considera que o fato de o povo se voltar contra o nous de Anaxágoras demonstra como o caráter de sábio estava para os gregos completamente vinculado à razão determinada objetivamente. O povo rejeita Anaxágoras num protesto contra a forma de razão que se compreende como pressuposto de si mesma: “[...] é o próprio povo que se afasta do antigo deus para se levantar contra o sábio individual” (MARX, 1972a, p. 37).. A rejeição do povo àquele que desenvolve uma razão autônoma é uma comprovação de que as leis não eram aceitas por advirem de uma divindade e sim que os legisladores eram divinizados quando atendiam ao clamor popular. Mas, se o povo se contrapõe aos sábios tão logo estes deixam de ser receptáculos da vontade popular, a democracia não é uma razão mística superada pelo nous; o nous é que é uma razão mística, alienada de sua determinação objetiva e oposta ao modo verdadeiramente filosófico de especular, a despeito do misticismo ter ganhado a batalha.
A vitória do nous de Anaxágoras representa o início da derrocada do Estado democrático. Ele não foi exatamente promotor individual da absoluta viragem teológica já que não usou sempre a razão autônoma como fundamento explicativo. Na verdade, sua “idealidade da determinação real” (MARX, 1972a, p. 37) só se fazia presente “perante as falhas de explicações físicas” (MARX, 1972a, p. 37). Portanto, não se alienava sempre numa razão especulativa segregada, mas o fazia apenas quando não conseguia dar conta de explicar os fenômenos naturais a partir deles mesmos. O fato de ora explicar os fenômenos por uma razão em si e ora por investigações empíricas não permite que ele seja apontado como o promotor do dualismo. Assim, o dualismo não se afirma com o desenvolvimento de uma razão individual fechada, não se afirma simplesmente com Anaxágoras. Este apenas expressou o conflito objetivo da vida política grega e se sua filosofia sobreviveu na contraposição entre Sócrates e os sofistas, é porque o elemento dualista do Estado político grego ainda sobrevivia:
Criticou-se recentemente o idealismo de Anaxágoras. [...] Mas, por um lado, essa aparência de dualismo não é mais do que o próprio elemento dualista que começa, na época de Anaxágoras, a cindir o coração mais íntimo do Estado; e, por outro, [...] só é empregue quando a determinação natural não existe. [...] Com isso, o núss aparece como o núcleo da filosofia do filósofo errante e surge como todo o seu poder enquanto idealidade da determinação real, por um lado com os sofistas e por outro com Sócrates. (MARX, 1972a, p. 36).
Marx indica que Sócrates será mais rejeitado que Anaxágoras justamente porque lança mais radicalmente a rejeição à determinação popular, enquanto este em alguma medida desenvolvia uma razão dualista. Sócrates é mais rejeitado porque é mais unilateral, desenvolve mais isoladamente o lado da razão absolutamente determinante sobre si mesma a partir de si mesma, ou seja, a razão como determinação mais subjetiva. Se em Anaxágoras o saber ainda é dado como determinado concretamente de algum modo, em Sócrates a substância racional passa a ser buscada como pressuposto único e absoluto.
Marx indica que em sua queda mais completa no idealismo, Platão paralisou o movimento do pensamento filosófico, da determinação mútua do idealismo com o campo objetivo. Assim, se de fato os primeiros sábios foram o início do movimento da razão filosófica, com os alexandrinos esta sofreu um desvio e não uma continuidade mais filosófica dado que “o movimento em Platão torna-se movimento ideal” (MARX, 1972a, p. 41) e se paralisa: “Platão quer transferir para a idealidade não apenas alguns seres, mas toda a esfera do ser: esta idealidade é um reino fechado, diferenciado especificamente na própria cabeça filosofante; e precisamente porque o é; falta-lhe o movimento” (MARX, 1972a, p. 43) .
Ao contrário do que considerou Hegel, portanto, Platão não é o aprofundamento do desenvolvimento da razão num sentido mais filosófico e sim de uma razão filosófica que sofrera uma viragem mística para um sentido teológico. Assim, se Hegel tem razão em afirmar que o sistema alexandrino negou a democracia, está equivocado em considerar que tal sistema tenha representado um momento positivo no desenvolvimento da razão filosófica. Na verdade, sendo mais dialética, a democracia – e não a sua dissolução – é que teria sido o momento de aprimoramento da razão mais filosófica.
É neste sentido que Marx busca então retomar a filosofia grega que escapou do desvio promovido pelos alexandrinos, o epicurismo. Hegel destacara Epicuro dentre os filósofos ecléticos à filosofia alexandrina – “o grego Anaxágoras foi o primeiro a afirmar que o nous – a inteligência em geral ou razão – rege o mundo [...] Sócrates adotou o pensamento de Anaxágoras, que se tornou dominante na filosofia – com exceção de Epicuro, que atribuía todos os acontecimentos ao acaso” (HEGEL, 1999, p. 19) – entretanto, não apreendera que Epicuro foi quem representou o ocaso positivo da filosofia grega. Marx busca retomar o atomismo de Epicuro no sentido de demonstrar o sistema deste como mais filosófico que o alexandrino e no sentido de pontuar alguns elementos importantes para que o desenvolvimento da filosofia siga no seu rumo mais filosófico também na modernidade, no rumo de uma razão democrática.
O elogio à dialética do atomismo de Epicuro
O elogio ao sistema de Epicuro promovido por Marx remete-se a uma busca desse sistema de uma saída do idealismo hegeliano mantendo-se numa filosofia dialética. Marx (1972a, p. 11) afirma que os filósofos tradicionalmente partem de pressupostos da consciência e acabam por buscar como base substancial a representação comum – “todos os filósofos antigos, incluindo os céticos, partem de pressupostos da consciência, torna-se necessária uma base sólida que é fornecida pelas representações que se encontram na consciência comum” (MARX, 1972a, p. 11). A vantagem de Epicuro é que, embora também seja um filósofo da representação, ele simultaneamente nega a representação como um espelho do mundo em si, afirmando-a como mera projeção da criação ideal sobre o mundo, sendo um filósofo da representação mais rigoroso. “Epicuro, enquanto filósofo da representação, mostra-se neste ponto mais rigoroso do que qualquer outro e define melhor as condições desse fundamento” (MARX, 1972a, p. 11). O avanço fundamental de Epicuro teria sido reconhecer o seu conceito de causa única como uma mera ilusão, de modo que seu pressuposto acaba por suprimir-se.
[Em Epicuro] vimos que os átomos, considerados abstratamente, não são mais do que seres representados como existindo e que apenas sua colisão com o concreto permite desenvolver a sua idealidade fictícia e por isso mesmo envolvida em contradições. Demonstram igualmente, ao constituírem um dos lados da relação (quando se consideram objetos que têm em si mesmos o princípio e o seu mundo concreto – o vivo, o animado, o orgânico), que o reino da representação é pensado ou como sendo livre ou como constituindo o fenômeno de uma coisa ideal. (MARX, 1972a, p. 11).
Se o mérito de Epicuro é subsumir o conceito-causa, é no modo como ele define o átomo que está a sua negação da existência de um princípio em si do mundo. Isso porque nele o átomo seria apenas a representação de um limite para o mundo sensível criado pela consciência filosofante que questiona a verdade dos fenômenos. Ao dar o átomo como uma idealidade de princípio em si, Epicuro negara tal princípio como existente no mundo e admitira-o como fictício. O átomo seria mera subjetividade humana que se pensa livre e dá a si como totalidade absoluta indeterminada sem, de fato, o ser. A subjetividade não é absolutamente livre: “Esta liberdade da representação é então uma liberdade apenas pensada, imediata, fictícia, ou seja, o atomismo na sua forma verdadeira” (MARX, 1972a, p. 14). O átomo (princípio em si) é uma ficção porque é mera idealidade e porque a liberdade da idealidade em si é pura ficção. Epicuro relata o momento específico dessa razão autônoma ficcional na tentativa de a razão humana de compreender o comportamento dos corpos celestes:
[...] o método da consciência produtora de ficções e de representações apenas se debate com a sua própria sombra; e a natureza dessa sombra depende da maneira como ela é vista e de como o objeto que reflete envia o seu próprio reflexo a partir dessa sombra [...] A consciência filosofante admite o que faz, agora que o próprio objeto entra na forma da certeza sensível e do entendimento que representa. No primeiro caso, o princípio representado e a sua aplicação encontram-se objetivados numa única coisa, e as armas num antagonismo que opõe as próprias representações substancializadas; do mesmo modo, aqui onde o objeto está, por assim dizer, suspenso sobre a cabeça dos homens, onde desafia a consciência pela sua autonomia, pela independência sensível e a misteriosa distância da sua existência, a consciência explode no reconhecimento da sua atividade, contempla o que faz: chamar à inteligibilidade as representações que nela pré-existem e reivindicá-las como sua propriedade [...] que só pode admitir como princípio desta atuação a possibilidade, o acaso, e que apenas pretende estabelecer de qualquer modo uma tautologia entre si mesma e o seu objeto. [...] os meteoros e a doutrina que lhes diz respeito são, na antiguidade em geral, onde a filosofia não está isenta de pressupostos, a imagem onde a consciência contempla as suas falhas, e isso mesmo em Aristóteles. Epicuro exprimiu essa imagem e é esse o seu mérito, como conseqüência implacável das suas concepções e desenvolvimentos. Os meteoros desafiam o entendimento sensível; Epicuro ultrapassa esse desafio e daí em diante apenas quer ouvir falar sobre eles. (MARX, 1972a, p. 18, 21).
Diferentemente dos outros filósofos, perante a grandeza dos astros e o mistério da ordem dos movimentos destes, ao invés de recorrer ao mito e ao maravilhoso, ou seja, a princípios em si, Epicuro desenvolveu a compreensão de que a liberdade da razão é uma consciência fictícia da razão sobre si mesma: a razão se compreende autônoma, mas na verdade ela é determinada. Desse modo, o átomo (causa primeira) não seria uma existência ontológica, mas uma projeção da consciência na sua tentativa de dar ao mundo uma ordem em si. Ocorre que ele teria sido mal compreendido, já que a sua teoria atomista foi tradicionalmente apreendida como similar à teoria atomista de Demócrito..
Epicuro também superou a perspectiva de que a representação é simples reflexo do mundo. A grandeza de sua filosofia foi desconsiderar mundo e representação – e, neste sentido, matéria e ideia, objetivo e subjetivo – como existências ontologicamente distintas ao mesmo tempo em que mantém a representação livre em si como uma mera ficção.
Nele, o fato de as ideias poderem ser fortuitas e sem qualquer enraizamento necessário demonstrável na realidade não implicava que elas partiam apenas de si mesmas. A natureza do átomo epicurista “não é a espacialidade, mas o ser para si” (MARX, 1972a, p. 43), é o desvio do seu pressuposto: “[...] esse ato de fuga, esse ser-fechado-sobre-si privado de pressuposto e conteúdo é a forma como aparece a sua qualidade própria: do mesmo modo toda a filosofia epicurista se desvia dos pressupostos. Por exemplo: o prazer não é mais do que o desvio da dor” (MARX, 1972a, p. 43). Desse modo, o encadeamento entre as partes diversas não deixa de existir. Mas é casual. Todos os fenômenos como determinações em si são repulsão/diferenciação do outro fenômeno:
[...] dado que são elementos fechados num estado natural limitado, o seu ato criador só pode ser um ato particular, a saber, o seu próprio ser transformado que novamente nos apresenta a sua particularidade natural, significa isto que o seu ato criador consiste apenas no seu processo natural de metamorfose. (MARX, 1972a, p. 71-72).
Diferentemente do Platão, Epicuro mantém a filosofia no movimento de mudança. Daí sua dialética: “O que vem aqui é portanto a sua aptidão para a mudança e não sua persistência. [...] O ato de criação corresponde neles à morte da sua existência particular, e o resultado dessa criação é apenas a negação de uma tal persistência” (MARX, 1972a, p. 72). Portanto, um elemento dá origem a outro, o novo nada mais é que o velho transformado: o novo persiste algo do velho. “Esta reciprocidade dos elementos e das coisas naturais necessárias à sua persistência significa apenas que as suas condições, consideradas como forças que lhes são específicas, estão tanto neles como fora deles” (MARX, 1972a, p. 72).
Há assim, no sentido epicurista, uma totalidade casual no âmbito material e uma liberdade pensável no âmbito da determinação do mundo: nele as partes se articulam na medida em que só se formam como mutações do outro. A razão deve compreender que a metamorfose do velho no novo pode se dar de inúmeras maneiras, não há uma regra. Temos um encadeamento casual entre as partes, de modo que o determinado só o é como desvio de outro determinado sem nunca haver um determinado em si mesmo que não seja uma repulsão do limite que o separa do outro. Uma determinada existência é justamente decorrente da negação da persistência do velho.
O republicanismo peculiar de Marx
Ao contrário do que uma primeira impressão poderia supor, o primeiro esboço de elaboração filosófica no âmbito da teoria do conhecimento desenvolvida na tese de doutorado de Marx e respectivos Cadernos Preparatórios não deixa de ser também o primeiro esboço de uma elaboração filosófica no âmbito político. Há nela uma argumentação nitidamente defensora da República Democrática. Nela Marx expressa de modo embrionário os argumentos em prol do sufrágio universal que desenvolveu mais tarde na Gazeta Renana, os quais conjugaram uma perspectiva própria da relação espírito e matéria imbricada com um projeto de emancipação humana no âmbito do desenvolvimento do Estado. Como veremos, trata-se de uma primeira tentativa de revirar a dialética hegeliana sem negá-la radicalmente.
Marx, em sua Tese de doutorado, buscou reelaborar a história da filosofia relatada por Hegel de modo político e sem refutar a dialética, mostrando que essa repetição ocorria pelo fato de a razão filosófica não ter plena consciência de conter uma tendência teológica em seus pressupostos de indeterminação objetiva. Ele avaliou que a passagem da filosofia para a teologia não é consciente em Hegel, na medida em que este herdara uma consciência filosófica da antiguidade que assimilou a tendência da razão a fechar-se sobre si mesma de modo não intencional. A alienação da razão seria, portanto, um risco tradicional próprio da filosofia e não reconhecido por esta desde o seu nascimento no contexto grego. Hegel caíra no idealismo que combatia porque ainda não tinha consciência dos riscos do voo livre da razão e isso ficara demonstrado no fato de não ter avaliado de modo eficaz a grandeza de Epicuro. Era necessário desenvolver a consciência filosófica retomando a razão epicurista, especulação que conseguiu, ainda que de modo não ingênuo, escapar do misticismo alexandrino.
A DFDE de Marx buscou um pressuposto objetivo para o voo dialético da razão num esforço de defender este voo da razão – a libertação da razão – salvando-o do idealismo que se contrapôs à democracia. O estudo sobre o materialismo epicurista tem presente uma tentativa de resguardar a filosofia especulativa de um desenvolvimento lógico que culmina na monarquia constitucional, ou seja, de encontrar um fundamento filosófico em defesa de democracia que desse conta de se contrapor à lógica hegeliana não por uma pura negação dela e sim por uma ultrapassagem como aufhebung. Nesta trilha, Marx acabou por promover a primeira tentativa de uma dialética de determinação objetiva, ainda que se trate aqui de uma tentativa de escapar da alienação da forma pelo próprio desenvolvimento da forma, ou seja, ainda que numa tentativa bastante carregada do idealismo hegeliano.
Trata-se de um posicionamento distinto dos jovens hegelianos e crítico destes: estes não entreviam que o idealismo unilateral de Hegel se dera por conta do desenvolvimento de uma razão contraposta à razão democrática. Marx mantém um apreço pela dialética de Hegel. Fora justamente este quem lhe chamara a atenção para o problema do idealismo unilateral e indicara que a racionalidade real é racionalidade contraditoriamente determinada. Se o mestre traíra seus próprios preceitos dialéticos por seguir inconscientemente a tendência teológica da filosofia, era necessário realocá-los de modo correto: desenvolver a razão universal verdadeiramente objetiva, desenvolvendo-a como razão efetivamente determinada pelo povo. Era preciso desenvolver a forma política para uma democracia plena. A filosofia de Hegel não estaria acabada ao ponto de “se lhe entregarem com uma confiança ingênua e não crítica” (MARX, 1972b, p. 158) e, por isso, incorreriam em erros aqueles que buscavam uma intenção escondida no filósofo, “para quem a ciência não estava terminada, mas sim em devir” (p. 158). Ao invés de buscar um Hegel esotérico por trás do Hegel exotérico ou promover uma acusação de desvio do mesmo num âmbito moral, era necessário seguir o devir de sua dialética não acabada e isso implicava lutar pelo desenvolvimento da democracia. O único modo de reestabelecer o caráter objetivo perdido da razão filosófica era desenvolvê-la determinada popularmente subssumindo Hegel.
A tentativa de desenvolver a dialética idealista-objetiva de Hegel ultrapassando a queda teológica do mesmo interessa-nos não no âmbito de um debate abstrato sobre um maior ou menor idealismo, mas sim por conta da elucidação da lógica filosófica de Marx por trás de sua atuação política republicana. Consideramos que se trata de uma lógica que já persegue – ainda que de modo embrionário – um caráter materialista na emancipação humana, na medida em que compreende esta como razão consciente a ser desenvolvida apenas pela determinação efetiva do povo sobre a ordem pública, o que implica uma intervenção política real e não o mero desenvolvimento conceitual. O fato de Marx considerar que o povo poderá efetivamente determinar a ordem pública apenas mediante um desenvolvimento da forma de monarquia para forma república democrática é importante para indicar a essência da sua busca desde 1837: uma liberdade dos homens como consciência da liberdade – tal como em Kant e Hegel – mas como uma consciência que só pode ser alcançada pelo exercício efetivo de determinação dos homens sobre a realidade, o que exigia não uma democracia meramente liberal e sim uma democracia dialética. Exercitando a determinação do ordenamento público é que os homens poderiam admitirem-se como sujeitos, desenvolverem uma consciência de que escolhem a ordem social e assim serem de fato livres em tal escolha. Tal exercício não seria possível também num liberalismo unilateral.
Admitindo a oposição de Hegel contra o liberalismo, o republicanismo de Marx não é semelhante ao dos burgueses alemães. A sua defesa da democracia se dá em termos de uma democracia não liberal: simultânea à consideração de que a República Democrática educa o interesse individual transformando-o em interesse geral, ele promove críticas aos burgueses liberais chamando-os de “reacionários das cidades” (MARX, 1975c) e defensores de um “semiliberalismo” (MARX, 1975c). Como bem indica Löwy (2002, p. 59):
Desde seu primeiro artigo de A Gazeta Renana, a propósito dos debates sobre a liberdade de imprensa na Dieta Renana, toda a distância que separa Marx do liberalismo burguês renano aparece claramente. Sua crítica não se dirige somente contra os deputados burgueses do “estado das cidades”(Stand der Städte) que se opõem à liberdade de imprensa – ele os considera como burgueses e não como cidadãos, e os qualifica de reacionários da cidades”(städtischen Reaktion).
A defesa da democracia promovida por Marx se dá, desde o início, numa relação de tensão com o liberalismo. Nesse sentido, a resolução da cisão entre dever ser e ser, que é propriamente o que realiza a filosofia, é para o jovem Marx o desenvolvimento da determinação mais popular da razão. Mais que uma oposição puramente teórica – tal como o faz Feuerbach - à perspectiva hegeliana de um todo lógico que se antecipa e se sobrepõe sobre as partes, o desenvolvimento de uma racionalidade determinada exigia uma ativa militância política republicana: a razão que busca ser mais consciente tem o dever de desenvolver o Estado democrático.
É fundamental compreender que a peculiaridade da relação de Marx com Hegel é uma peculiaridade da sua relação com a causa republicana liberal. Já em 1839 o seu programa de realização da liberdade como realização da filosofia não é unilateralmente desenvolvimento teórico,. mas também prático, ainda que seja uma prática apenas política. A crítica de Marx aos liberais lançada desde a sua DFDE está na essência do seu afastamento cada vez mais constante em relação aos jovens hegelianos: ele rejeita Os Livres10 não só pelo modo leviano com que propagam o ateísmo na Gazeta provocando a censura prussiana, mas pelo fato de se limitarem à busca de um desenvolvimento moral, na crítica religiosa, ao invés de adotarem uma atitude mais efetiva de combate ao absolutismo no bojo dos fatos concretos da vida pública prussiana.
A verdadeira teoria deve ser ampliada e desenvolvida em relação com os fatos concretos e com o estado de coisas existente. Portanto, o ato de golpear contra os pilares da estrutura do Estado de coisas presente apenas pode gerar uma pressão na censura e mesmo um fechamento do jornal. (MARX, 1975h, p .381, tradução nossa).
Marx expressa nitidamente que a busca pela ampliação da razão que não passasse pela efetivação da democracia esse mantivesse nos limites da propagação do ateísmo poderia levar apenas ao fechamento da Gazeta. Concordamos com Lukács que a primeira divergência de Marx com Hegel expressa na DFDE diferencia-se dos jovens hegelianos justamente por conta do peso do caráter político:
A importância desta divergência é tanto maior porque a crise da filosofia, neste primeiro escrito de Marx, assume já um acento claramente político, indo bem além das posições de Bruno Bauer e dos outros jovens hegelianos os quais, com exceção de Ruge, haviam se limitado no essencial à crítica da religião. Em sua análise desta crise, já se manifestam em Marx ideias que preparam explicitamente a visão do papel político e revolucionário de uma filosofia que não pode se realizar sem se suprimir a si mesma [...]. (LUKÁCS, 2009, p. 131).
O acento claramente político da DFDE de Marx de fato rejeita a realização da liberdade por um desenvolvimento moralista da consciência da liberdade no interior da esfera meramente conceitual e antecipa a perspectiva de realização da liberdade num sentido mais objetivo. Mais que um desenvolvimento conceitual em si, Marx busca um desenvolvimento da razão pelo ato prático político e já indica que se trata de fazer o político dissolver-se, não manter-se como forma apartada dos homens sujeitos. É este o sentido forte de seus artigos jornalísticos publicados na Gazeta Renana a partir de 1842. O fato de o engajamento de Marx na luta contra o absolutismo prussiano apresentar-se em seus primeiros artigos jornalísticos entrelaçado com a filosofia e com o desenvolvimento da forma Estado em democracia não nos permite exacerbar o caráter idealista dele, ainda que tal caráter esteja presente, na medida em que a lógica de fundo é dissolver a forma como uma indeterminação sobreposta aos homens.
Seu projeto da DFDE explicitado em sua militância política na Gazeta Renana não defende a democracia no sentido tradicional e sim a entende como modo efetivo de tornar a razão pública uma determinação objetivamente popular ao invés de uma determinação meramente conceitual imposta sobre o povo. Compreende a determinação democrática da forma pública como modo efetivo de tornar os homens conscientes de sua liberdade de escolha da ordem pública, já que apenas conscientes de sua liberdade os homens são efetivamente livres.