Resumo: O artigo apresenta como princípio de sua fundamentação a possibilidade de compreender a filosofia de Platão como saber que intenciona, sobretudo, a formação e transformação do ser mesmo do homem, isto é, a alma (psyché) mediante um processo terapêutico aplicado sobre si. Neste sentido será a partir da proposta interpretativa encontrada nas obras do helenista francês, Pierre Hadot, sobre a filosofia antiga, que inferir-se-á que em Platão há uma terapêutica da psyché, a qual, se fundamenta e se revela de maneira necessariamente triádica: o cuidado de si, o conhecimento de si e o domínio sobre si, aqui denominados de “exercícios espirituais”, esta referida tríade, caracterizaria a filosofia platônica como um modo de vida, ou seja, uma proposta de ser abrangente que integre theoría e práxis. Por conseguinte, considera-se a existência de dois claros objetivos na filosofia como terapia da psyché que se justapõem: oferecer formação filosófico-espiritual à psyché e preparar ao bíos politiké (vida política).
Palavras-chave:Alma (psyché)Alma (psyché),Conhecimento de si (gnôsis hautós)Conhecimento de si (gnôsis hautós),Cuidado de si (epimeléia hautós)Cuidado de si (epimeléia hautós),Exercícios espirituaisExercícios espirituais,Senhor de si mesmo (enkratéia)Senhor de si mesmo (enkratéia).
Abstract: The article presents as a principle of its foundation the possibility of understanding Plato's philosophy as knowing that he intends, above all, the formation and transformation of the very being of man, namely, his soul (psyché) through a therapeutic process applied on them. In this sense, it will be on the basis of the interpretive proposal found in the works of the french hellenist, Pierre Hadot, about ancient philosophy, that it will be inferred that in Plato there is a therapy of psyche, which is grounded and revealed in a necessarily triadic way: Self-care, self-knowledge and self-control, here termed "spiritual exercises," this triad, would characterize Platonic philosophy as a way of life, in other words, a proposal to be comprehensive that integrates theoría and práxis. Therefore we consider the existence of two clear objectives in philosophy as a therapy of psyché that are juxtaposed: to offer philosophical-spiritual formation to psyché and to prepare to bíos politiké (political life).
Keywords: Self-care (epimeléia hautós), Self-knowledge (gnôsis hautós), Soul (psyché), Spiritual exercises, Master of himself (enkratéia).
Artigos
A terapêutica da alma em Platão
The therapeutics of the soul in Plato
Recepção: 11 Abril 2017
Aprovação: 20 Maio 2017
O artigo apresenta como princípio de sua fundamentação a possibilidade de compreender a filosofia de Platão como saber que almeja, sobretudo, a formação e transformação do ser mesmo do homem, i., é, a sua alma (psyché) mediante um processo terapêutico aplicado sobre si.
Neste sentido será a partir da proposta interpretativa encontrada nas obras do helenista francês, Pierre Hadot, acerca da filosofia antiga, inferir-se-á que em Platão há uma terapêutica da psyché, a qual, se fundamenta e se revela de maneira necessariamente triádica: o cuidado de si, o conhecimento de si e o domínio sobre si, aqui denominados de “exercícios espirituais”, esta tríade, caracterizaria a filosofia platônica como um modo de vida, i., é, uma proposta de ser abrangente que integre theoría e práxis.
Como pretende-se evidenciar nesta perspectiva, a filosofia como terapêutica da psyché é uma proposta existencial em cujo fim encontra-se a necessidade de formar um novo ethos. capaz de congregar em si os dois diferentes níveis que compõem a realidade, ou seja, o sensível e o suprassensível ou inteligível.. Assim é possível apreender dos diálogos platônicos o monumental esforço do filósofo ateniense para oferecer novas bases à cultura e a pólis grega.
Considera-se a existência de dois claros objetivos na filosofia como terapia da psyché que se justapõem: oferecer formação à psyché e preparar o bíos politiké (vida política).
Do que se segue que a transformação do indivíduo implica na necessidade de transformar o Estado (Politeía), sendo o seu contrário verdadeiro, ou seja, a necessidade de transformar ou formar um novo Estado implica na necessidade de formar um outro indivíduo que não ele mesmo, uma espécie de dever-ser formado a partir de um modelo ideal.
A tríade, portanto, que se propõe fundamentar a filosofia como terapia da psyché, constitui-se em complexo projeto filosófico-educacional abrangente a considerar o bíos humano em sua integralidade.
Ademais, a esta parte inicial acrescenta-se que este artigo não é somente um texto que versa sobre Platão e filosofia antiga, assim senso, não é apenas um texto de história da filosofia, mas é também, ao menos propõe-se a ser, um texto de filosofia, i. é., inclui-se à sua elaboração questões, problemas e perspectivas que permeiam a contemporaneidade..
Como ponderou alhures o historiador e pesquisador em história antiga, Paul Veyne, sobre a sua convicção de que a presente atualidade mundial muito teria a aprender na compreensão do mundo antigo e na forma como os nossos antepassados enfrentarem situações dificílimas superando-as. O valor deste texto, portanto, não se limita apenas ao conhecimento histórico-filosófico ou puro esforço de erudição intelectual, mas em efetivo contribuição ao bem viver, através da criação de caminhos possíveis à felicidade e à realização civilizatória.
Isto significa, expor a crença de que, embora Platão encontre-se distante de nossa atualidade em sentido histórico e social, às ponderações realizadas pelo filósofo ateniense em muito ultrapassam o contexto por ele vivido, porquanto o estado da arte do verdadeiro pensador é contemplar o âmago das grandes questões que perpassam a vida humana em todos os tempos, assim como cabe ao grande filósofo propor sentidos, questionamentos e significados que, mesmo culminando por vezes em aporia, viabilizem seguir adiante. Indubitavelmente, o filósofo Platão, apresenta este alcance.
Propor que a filosofia de Platão é uma terapêutica ou terapia (therapeía). da alma (psyché) é, também, afirmar o legado de Sócrates ao filósofo Platão. Embora, não seja a chamada “questão socrática” solúvel, aceita-se como verdadeiro a seguinte assertiva de Grube (1987, p. 16-17) - que por sua vez concorda com Burnet e Taylor - “O Sócrates dos diálogos platônicos é, no essencial, o Sócrates histórico, e que as teorias que Platão põe em seus lábios foram sustentadas por ele, todavia, a exceção estaria por conta da teoria das Ideias..”
Do que resulta à temática apresentada, que a therapeía da psyché é tema característico do filosofar socrático, não obstante, o tríplice aspecto desta terapêutica, conforme se propõe, conta com um elemento de matriz platônica: o ser senhor (enkratéia) de si mesmo.
O termo grego enkratéia, revela a necessidade de a psyché dominar-se ou de se tornar senhora de si mesma. E o que isto significa? Significa que a psyché contém em si própria funções que necessitam serem veladas, assim, necessariamente, o tema do domínio de si está em consonância com a teoria da psyché de Platão. Assim manifestando característica dual: à formação da melhor psyché humanamente possível e a formação do melhor Estado (Politeía) com a construção do melhor regime ou forma de governo político.
O direcionamento à política, no sentido de preocupação com o melhor Estado (uma teoria de Estado) representado na melhor constituição, que atualmente corresponderia às melhores formas de governo, são estudadas e refletidas por Platão exaustivamente, por exemplo, consoante aos livros que compõem o diálogo República e Leis..
Resulta assim que o domínio de si bem como os seus possíveis antecedentes socráticos de cuidado e conhecimento de si, constituem-se como elementos formadores internos a psyché que, indubitavelmente, preparam (paraskheué) tanto à individual existência quanto às funções (sociais e políticas) assumidas e exercidas na pólis.
Em suma, a teorização filosófica de Platão, propõe desenvolver habilidades internas à formação da psyché, por isso uma terapêutica, para que assim seja possível realizar o seu melhor possível tanto em relação à vida privada como em relação à vida pública e, da mesma forma, em relação ao exercício de governo como também na função de governado.
Desprovido da filosofia, o discurso político enquanto expressão e utilização da retórica, cujo fim é persuadir a assembleia, e não corrigir e educá-la, torna-se prejudicial à comunidade política (pólis). Pois, se “a política é o conhecimento (epistéme) que cuida dos homens que vivem em comunidade”, como postula-se no diálogo Político(267d), somente a quem aprende a cuidar de si próprio pode propor-se ao cuidado da Cidade, exigindo-se como necessário uma complexa formação filosófica. Como propõe Vegetti (2010, p. 35) ao interpretar o diálogo República:
Na República, a proposta terapêutica apresenta-se em forma de um argumento de tipo condicional. Se quiser finalmente construir uma cidade governada com vista à felicidade pública, por conseguinte, unida, harmoniosa e pacificada, então será preciso, em primeiro lugar, redistribuir as funções sociais em relação às capacidades dos membros da comunidade.
Vegetti corrobora ao tema quando assere ser a proposta terapêutica, argumento condicional ao governo que objetiva à felicidade pública. Agora, acrescenta-se, não é possível atingir e garantir a felicidade na pólis sem a harmonia interna da psyché, i., é, a harmonia deve primeiramente ser construída internamente, pois é ela que forma a ação, orienta as escolhas e capacita ao discernimento. O Estado ideal, portanto, resulta da melhor realização possível da psyché e isto conduz a precisa divisão social da comunidade política, conforme A República.
Neste sentido é possível compreender a crítica de Platão à democracia, porque o critério da maioria é insuficiente para bem julgar às questões públicas, pelo simples fato de não ser possível à multidão, ponderar com discernimento, encontrando-se vulnerável há muitos enganos, como permitir a condenação de Sócrates.
Em Platão, o único caminho para se evitar a injustiça e a intemperança e tantos outros males na vida cívica, “é a coalescência do poder político com a filosofia”, como asserido na República (473d), e assim reafirma-se também a passagem da Carta VII. entre a atividade de governar e a filosofia.
Portanto, consoante aos argumentos apresentados à função da filosofia em antecipar-se a política ocorre em dois sentidos, primeiro, formar a psyché na virtude ou excelência (areté), direcionando-a ao conhecimento (a ciência) do Bem (Agathón).
Tem-se, assim, duas fundamentações: metafísica e ética, e ambas se encontram relacionadas a premente necessidade de transformar a psyché em si mesma, formando-se condições à sua melhor manifestação existencial, através, inevitavelmente, de uma terapêutica.
Em outras palavras a filosofia como terapia da psyché fundamenta-se primeiramente na metafísica, na cosmologia da psyché e na realidade ontoepistêmica do Bem, realidade que objetiva à formação ética e à vida política.
Conforme A República (444d-e), “a virtude, será, ao que parece, uma espécie de saúde, beleza e bem-estar da alma”. E, no mesmo diálogo, “a ideia do Bem é a mais elevada das ciências, e que para ela é que a justiça e as outras virtudes se tornam úteis e valiosas”. Pois, consoante a este diálogo, nada há em superioridade ao Bem.. Quanto a cosmologia da psyché, devido a sua ampla complexidade, sobretudo em relação aos argumentos do diálogo Timeu10, será necessário subtrair-se de tal análise, mas, sem detrimento aos objetivos propostos, não obstante, considera-se a seguinte assertiva do diálogo tardio Timeu (89e-90a):
Conforme já dissemos mais de uma vez, em nós alojam-se três espécies diferentes de alma, cada uma com seu movimento peculiar. Agora, podemos observar resumidamente que, se qualquer delas ficar ociosa e deixar de exercer os movimentos que lhe são próprios, forçosamente se tornará a mais fraca das três, vindo a fortalecer-se a que se exercitar. Por isso mesmo precisamos ter cuidado para que esses movimentos conservem entre si a devida proporção.
Este argumento é fundamental, porquanto, em grande medida, demonstra a coerência no estudo de Pierre Hadot quanto a sua interpretação do conceito de “exercícios espirituais”. Porém, nota-se que a passagem referendada, embora de maneira implícita, fortalece a necessidade de conhecer a estrutura interna da psyché para que assim seja possível a proporcionalidade devida, como adiante será demonstrado.
Ainda quanto a primordial relação entre filosofia e política e filosofia como terapia, infere-se o seguinte raciocínio.
Há uma questão que perpassa a filosofia enquanto terapêutica da psyché e à preparação à política que pode ser expressa no seguinte: A filosofia como terapia é somente ao filósofo, o administrador público ideal, conforme Platão, ou é também endereçada ao homem comum?
Crê-se que mediante a hermenêutica dos textos platônicos evidencia-se que a filosofia, e, portanto, o consequente exercício político conforme apresentado no projeto platônico expresso na teoria dos filósofos- reis ou dos reis-filósofos11 não é a todos ou para qualquer um, mas, conforme a singular tendência interna da psyché à filosofia12. Logo, quem está direcionado ao governo mesmo sem o ter como desejo pessoal, porque filósofo, e isto também integra a paideía filosófica, deve ser necessariamente submetido a terapia, exatamente como Sócrates se propôs a realizar com Alcibíades, em diálogo homônimo13.
Porém, em certa medida a terapia da alma, em nível mais superficial, também pode ser direcionada e aplicada ao homem ou a mulher comum em cuja função dentro da pólis, e em cuja tendência interna não é necessariamente filosófica, ou seja, há certa dimensão educativa pública no projeto platônico de Estado (Constituição) e nas formas de governo que o conduzem.
Agora, aos filósofos, compreende-se a essencial função da filosofia como saber indispensável à política, saber este que, indubitavelmente, é também saber de si.
Observa-se a seguinte asserção do Político (305e), na busca continuada pela definição de política: “[...] àquela que dirige a todas, que tem o cuidado das leis e dos assuntos referentes à pólis, e que une todas as coisas em tecido perfeito, apenas lhe faremos justiça escolhendo um nome bastante amplo para a universalidade de sua função e chamando-a política.”
Do que resulta que a própria abrangência da política em sua responsabilidade ao tecer caminhos que se tornem direcionados à justiça, ao bom, à felicidade, exige igualmente uma psyché (bem) formada para abranger a esta universalidade. Assim mais uma vez justifica-se a necessidade, como inferido na República, de contemplar-se ao Bem mesmo à custo de grandes esforços sobre si mesmo.
É nesta assunção, pois, do filósofo ao Bem, como resultado de longa terapia aplicada sobre si, que as condições ao governo da pólis se desvelam14.
A perspectiva de considerar a filosofia como uma terapia da alma pressupõe um ponto determinante sobre o filosofar na Antiguidade como sobre a função do filósofo, no interior da civilização grega e romana15. O tema não é somente peculiar à Platão, mas perpassa o conjunto da filosofia antiga, sobretudo a partir do novo paradigma socrático, estendendo-se assim à Antiguidade Tardia16.
A seguinte ponderação de Pierre Hadot (2004, p. 384-85) orienta à metodologia e às formulações apresentadas sobre a filosofia de Platão correlato ao tema desenvolvido17.
Para compreender as obras filosóficas da Antiguidade, será necessário dar conta das condições peculiares da vida filosófica naquela época, revelar aí a intenção profunda do filósofo, que é não desenvolver um discurso que teria um fim em si mesmo, mas agir sobre as almas. De fato, toda asserção deverá ser compreendida na perspectiva do efeito que ela visa produzir na alma do ouvinte ou do leitor. Trata-se por vezes de converter, consolar, curar ou exortar, mas trata-se sempre e principalmente, não de comunicar um saber acabado, mas de formar, isto é, de ensinar um saber-fazer, de desenvolver um habitus, uma capacidade nova de julgar e de criticar, e de transformar, isto é, de mudar a maneira de viver e de ver o mundo. Não causará espanto, então encontrar em Platão, em Aristóteles, ou em Plotino aporias nas quais o pensamento pareça encerrar-se, retomadas e repetições, incoerências aparentes, caso se recorde que são destinadas não a comunicar um saber, mas a formar e a exercitar18.
Adicionando-se a interpretação de Hadot à filosofia de Platão, crê-se encontrar forte justificativa teórica de que há um plano platônico objetivando formar a psyché, mediante, a tríade condicional que assim irão condicioná-la a melhor realização possível de ser mesma.
Da mesma forma, consoante este viés interpretativo, o cuidado, o conhecimento e o domínio de si, poderiam incluir-se ao que o autor (2009, p. 137) denomina de “exercícios espirituais”, que se constituem como: “Prática voluntária, pessoal destinada a operar uma transformação do indivíduo, uma transformação de si [...] Os exercícios espirituais se realizam no discurso interior que orientam a nossa ação19”.
Por isso infere-se que o objetivo dos “exercícios espirituais” corresponde, em grande medida, ao que Platão pretende em sua filosofia, i., é, formar e transformar a psyché através uma terapia em sua tríade característica, ademais e em maior abrangência do que aqui é exposto, considera-se que o uso dos mitos, a filosofia como saber e exercício que prepara à morte, a função de eros e sua identificação ao filósofo, como a própria forma dialógica no desenvolvimento da dialética, compõem o conjunto platônico para alcançar a este fim.20
Neste propósito o discurso deve agir sobre as almas, ao “interior”, como sugere Hadot, em justa correspondência conforme o proposto no diálogo Górgias (504d-e):
É que o orador honesto e competente deverá dirigir seus discursos à alma dos homens, sempre que lhes falar, e todos os seus atos [...] deverá pensar sempre no modo de fazer nascer a justiça na alma de seus concidadãos e de banir a injustiça, de implantar nela a temperança (σωφροσύνη) e de afastar a intemperança (ἀκολασία).
A dimensão discursiva da filosofia21, ou seja, a utilização do lógos pela filosofia dialética22, revela-se como contributivo à formação da conduta moral, pois a finalidade do discurso está direcionada à interioridade do agente23. Por isso, como afirma Szlezák24, Cálicles nada entendeu sobre as ponderações de Sócrates.
O télos do discurso é a formação e a transformação da psyché e não o poder como capacidade de fazer o que se apraz, na satisfação do gozo próprio. Além disso, e não menos importante, está sendo apresentado um modo de vida que, claramente, destoava do senso comum no qual a elite cultural e política grega comungava25.
Conceito fundamental em Hadot, a filosofia como modo de vida é elemento comum e primordial característico à filosofia na Antiguidade. Embora houvessem diferentes escolas filosóficas no período histórico-filosófico que convencionou-se chamar de filosofia antiga, cada qual com suas particularidades, o modo de vida significaria, consoante Hadot (2004, p. 249): “A eleição de uma vida filosófica em oposição a uma vida não filosófica.”
Pondera o autor (2004, p. 257) que “na escola platônica o diálogo seria parte integrante do modo de vida filosófico”. E qual o objetivo, poder-se-ia inquirir, do modo de vida filosófico em Platão? Ser filósofo.
Embora a resposta parece inicialmente pueril, ser filósofo é atingir a excelência da psyché, pois não há modo de vida superior à filosofia. A política é atividade meio se a considerarmos não como télos existencial, mas somente como consequência da preparação a que se foi submetido na paideía filosófica.
A política é fundamental a pólis e a filosofia é fundamental a psyché. Somente a quem a isto compreendera poderá exercer a política, porquanto, fez-se filósofo. Neste sentido a tradição que postulava primeiramente à educação de si próprio e a atenção e desenvolvimento de virtudes fundamentais26 para “ir-se à política”27, inicia-se com Platão, estendendo-se até a ruptura apresentada por Maquiavel entre a política e a ética na aurora da modernidade.
Assim, ao considerar-se o cuidado, o conhecimento e o domínio de si como exercícios espirituais que em conjunto formam a filosofia como um modo de vida, construída e somente assim, a partir de uma terapia da psyché, crê-se construir novo caminho investigativo à obra platônica, bem como, ir adiante as proposições de Hadot em relação a filosofia de Platão.
O tríplice aspecto que comporia a filosofia como terapia da psyché em Platão, tem como clara à intenção de formar e transformar a psyché, integrando-se assim na própria finalidade da filosofia e do filosofar na Antiguidade.
Como pretende-se demonstrar nesta seção, esta tríade manifesta uma ética ou uma “psicologia moral” que, como afirmado, fundamenta-se em uma antropologia e em uma cosmologia, que deduz a humanidade como partícipe do universo inteligente.
A razoabilidade do argumento platônico é a seguinte, se há no universo o operar de uma razão inteligente, justa e boa, a psyché deve ser capaz, em sua humana perfectibilidade de assemelhar-se lhe. Assim não há dissociação entre uma antropologia da psyché humana e a cosmologia platônica. Corrobora Reale (2004, p. 91): “A conquista do conceito do suprassensível deu novo sentido à socrática psyché e ao socrático ‘cuidado da alma’; deu outro sentido ao homem e aos seus destinos, outro sentido à divindade, ao cosmo e à verdade.” Portanto, é imensa a abrangência da terapêutica platônica da psyché, e aqui trataremos somente de uma parcela, conforme os objetivos já apresentados.
Agora, e este ponto é importante, além dos acréscimos de Platão à psyché socrática, o filósofo ateniense não ignora a relevância do mundo sensível para o desenvolvimento da psyché e da comunidade humana. Fato este, por muito subtraído nas interpretações de Platão.
Crê-se que a justificativa se evidencia na “Alegoria da Caverna28” quando o prisioneiro liberto, o filósofo, retorna ao interior da Caverna. Este retorno é crucial ao entendimento do platonismo, pois denota o empenho de Platão para transformar o mundo sensível de acordo a um modelo (cósmico) ideal. Porém, não basta contemplar (theoría) o modelo perfeito, o Bem (Agathón) e as Ideias (Ideai), sem, no entanto, haver o esforço na aplicabilidade deste modelo à realidade inferior, para então, modifica-la.
Por isso é atributo da paideía (cf. A República, 518e) orientar o direcionamento do olhar. Quando submetida (a alma) às fortes influências dos objetos sensíveis, não se torna possível alterar crenças e valores29, é necessário valer-se da dialética, do Bem ao sensível, em sua característica descendente, e da multiplicidade sensível ao Bem, em aspecto ascendente30.
Como pondera Gazolla (2004, p. 684): “O dialético é um homem ‘convertido’, tem phrónesis31 porque sabe sobre o próprio conhecer, sabe que deve retornar ao sensível, à vida prática, com o saber dos fundamentos.” Por conseguinte, o filósofo é aquele que conduz e prepara ao bem viver, e no próprio exercício espiritual de conhecimento e cuidado de si torna-se apto, como asserido na seção anterior, de cuidar da comunidade e, portanto, tornar efetiva as elevadas prescrições da atividade política, sem nunca perder de vista a idealidade inteligível.
Neste sentido a dialética é um saber de si, e assim está relacionada com a psyché em sua própria faculdade de conhecer (énnoia) e raciocinar (diánoia), incluída a noção de razão argumentativa. Logo, torna-se imprescindível algumas notas sobre o conceito de psyché em Platão.
No livro X do diálogo Leis (891a-e; segs.), a última obra de Platão32, consta uma crítica à tradição que tentou fazer da natureza, o princípio de todas as coisas mediante os elementos físicos-naturais de terra, fogo, água e ar. Platão argumenta que a psyché é anterior a estes elementos33. No mesmo diálogo, livro V (726 a), consta o seguinte:
[...] Porque de todos os bens é a alma o mais divino (ψυχή θειότατον) e o que mais intimamente no pertence. É duplo tudo o que faz parte do homem: há uma porção superior e melhor [...] e outro inferior e menos boa [...] é preciso dar preferência à que comanda, não à que obedece.
Diminuída à questão da “tripartição”34, Platão ainda se mostra em conformidade com A República35 sobre a existência de duas faculdades essencialmente opostas, a que deseja (epithumía) e a que pensa (phrónesis) ou é capaz de raciocínio (logistikón), i., é, de encadeamento lógico entre ideias, conceitos e argumentos.
Platão persevera na dicotomia da psyché, pois, entre as duas faculdades ou funções que se apresentam como essencialmente opostas, há entre estas o thymós, que variavelmente oscila conforme a predominância dada ou ao pensamento ou a faculdade desiderativa. E como anteriormente referendado no Timeu (89e-90a), a função que prevalece é a exercitada, portanto, àquela em que é dada a preferência.
Não obstante, é importante considerar que não há exclusão das funções internas da psyché, mas, o controle que proporciona o indispensável equilíbrio. E esta harmonia interna só é possibilitada na instrução e educação corretas, o que irá derivar na condução integrada entre racionalidade e emoção, ou seja, entre a phrónesis e o thymós36.
Assim é correto quando Annas (1999, p. 120) assere sobre a existência de “uma psicologia moral atribuída a Platão”. Contudo, considera-se o conceito de exercícios espirituais mais abrangente e de maior equivalência à formação e transformação da psyché como a propõe Platão, porquanto não é somente da moral individual de que se trata, mas de profunda mudança espiritual, i, é., transformações que correspondam de maneira integral a unidade da psyché, embora, tendo-se sempre em conta às peculiaridades de cada faculdade ou função interna.
Quando no diálogo Alcibíades Primeiro, Sócrates pergunta para Alcibíades (127e): “Que significa a expressão cuidar de si mesmo? ” E em sequência acrescenta, (128 a): “Quando é que o homem cuida de si mesmo?”
O conceito de cuidado (epimeléia) expressa o novo fundamento antropológico da ética socrática, i., é, a psyché, sendo esta o que o homem possui de maior valor, e assim a hierarquia de bens e valores devem necessariamente corresponder primeiramente a psyché, depois ao corpo e, em último, aos bens materiais.
Retomando-se a “questão socrática” em referência ao Alcibíades Primeiro, sendo Sócrates o personagem pelo qual fala Platão, ou havendo uma filosofia socrática particular, da qual Platão faz uso em seus diálogos, em ambos caminhos é evidente a preocupação com uma formação específica que habilite ao bíos político.
No diálogo homônimo, Alcibíades deseja o poder político e a glória de grandes feitos, mas ignora que deve antes cuidar de sua própria psyché, e isto significa colocar-se em exame, i., é, Alcibíades precisa conhecer a si mesmo37.
A proposição “conhece-te a si mesmo” é uma sentença délfica, cuja inscrição encontrava-se no pórtico de entrada do templo de Apolo, na cidade portuária de Delfos. Sócrates aderira a si próprio tal princípio, fazendo-o um de seus pilares de sua filosofia.
Ao explicar no diálogo Alcibíades Primeiro (133b) este preceito, Sócrates ajuíza que para conhecer a psyché, i., é, a si mesmo, deve-se olhar para a sua virtude específica: o pensamento, pois esta é a faculdade que permite o vínculo entre o divino e o homem38.
O pensamento é objeto de estudo na filosofia platônica39. Tornar a alma inteligente e capaz de “pensamento puro”, colocando-a em vínculo com o inteligível na contemplação do Bem, é somente possível na tríade do cuidado, conhecimento e de domínio de si.
É importante compreender que a terapêutica da psyché não se restringe somente ao melhoramento do indivíduo, reafirma-se, portanto, a dimensão política desta proposta filosófica, pois o indivíduo deve contribuir com a pólis, desempenhar o melhor possível a função que lhe compete. Em suma, não há boa vida individual sem participação e contribuição no espaço público da comunidade política.
E é exatamente este, o liame que aproxima não apenas o inteligível ao mundo corpóreo, mas também demonstra a unidade do corpus platonicum em relação ao tema: formação do indivíduo e formação do melhor Estado (Politeía), sendo a melhor forma de governo ou regime político o consequente nesta relação.
Neste propósito é possível perceber e considerar fortemente plausível a aproximação entre as seguintes sentenças do Alcibíades Primeiro (133d): “Quem não se conhece não pode saber o que lhe faz bem ou mal, nem a si, nem aos outros e nem a cidade”. Que logo é complementada (133e): “Quem ignora as coisas que lhe dizem respeito, não há de conhecer, também, as dos outros [...] E se não conhece as dos outros, não conhecerá também as da cidade”, com a proposição seguinte da Carta VII (324 c): “Quando eu era jovem, senti o mesmo que muitos: pensei, logo me tornasse senhor (κύριος) de mim mesmo, ir direto à política.”
É possível inferir com convicção, ser Platão conhecedor de um processo filosófico-educativo que todos os que quisessem ir à política deveriam ser submetidos. Portanto, não bastava somente o querer ou contar com condições sociais favoráveis ao poder político, mas submeter-se a uma formação que efetivamente preparasse ao cuidado dos outros.
Nota-se a clara hierarquia exposta no Alcibíades Prim., conhecer o que pertence a si mesmo para conhecer o que diz respeito aos outros para então conhecer o que é causa de bem para a pólis. Também é possível considerar o caráter ascensional da tríade terapêutica: o aprender a cuidar de si mesmo, o conhecer a si mesmo, e ser senhor de si mesmo, completado o processo, ir à política40.
Também de acordo com a Carta VII (331d), Platão enfatiza à educação de si centrada no autodomínio: “Viver cada dia de modo a que fosse senhor de si mesmo (ἐγκρατῂς αὐτὸς αὑτοὗ), o mais possível41”. Evidencia-se a condição de exercício espiritual voltado a interioridade da psyché, assim, como a exortação ao cuidado e ao conhecimento de si.
No livro IV de A República (430 e – 431 a-b), encontra-se promissor argumento sobre “ser senhor de si”
[...] esta expressão parece-me significar que na alma do homem há como que uma parte melhor e outra pior; quando a melhor natureza domina a pior, chama-se a isso ‘ser senhor de si’ – o que é um elogio, sem dúvida; porém, quando devido a uma má educação ou companhia, a parte melhor, sendo mais pequena, é dominada pela superabundância da pior, a tal expressão censura o fato como coisa vergonhosa, e chama ao homem que se encontra nessa situação escravo de si mesmo e libertino [...] Olha então para a nossa nova cidade, e descobrirás nela a presença de uma destas condições. Dirás que é com justiça que ela é proclamada senhora de si, se realmente se deve denominar temperante e senhor de si tudo aquilo cuja parte melhor governa a pior [...] se, por conseguinte, se deve classificar alguma cidade como senhora dos seus prazeres e desejos e de si mesma, é esta que assim se deve denominar.
Em consonância a extensa análise da psyché humana como encontramos n’A República, o senhorio sobre si mesmo corresponde ao domínio da melhor função da psyché sobre a que lhe é inferior, embora, como já asserido, não é por ser inferior que não tenha forte influência na interioridade da própria psyché, ao contrário, é justamente por isso que se deve pô-la sob domínio.
Agora, e isto é muito importante à compreensão sugerida neste trabalho, o domínio sobre si mesmo não funciona como simples equivalente da razão, porque não é o bom uso da inteligência e da habilidade em raciocinar e argumentar que equivale ao domínio de si. Do que se segue que é imprescindível considerar a formação triádica da filosofia como terapêutica da alma, do contrário, os debatedores de Sócrates, por exemplo, Cálicles no diálogo Górgias, seria perfeitamente capaz de ter domínio sobre si mesmo.
Assim, e isso reforça a proposição de filosofia como modo de vida, o ser senhor de si mesmo implica um conjunto, portanto, formativo e transformador da psyché humana, não é, pois, somente intelectual, nem somente moral, mas são ambos, e acrescidos de toda uma cosmologia que invertera a hierarquia de bens e de valores que devem constituir-se na interioridade da psyché resultando assim em novo bíos politiké.
Embora aproximando-se do término deste estudo, não obstante é ainda cabível o seguinte questionamento: Mas por que Platão é tão preocupado em transformar e apresentar uma nova formação à psyché humana?
Responde-se a este questionamento a partir de dois problemas, internos a psyché, e que justificam em grande medida a filosofia como terapia da alma: o amor próprio excessivo e a epithumía.
Quanto ao primeiro, faz-se referência ao diálogo Leis, 731e, no seguinte:
Para a maioria dos homens, o maior defeito da alma é natural (φύσει) para todo mundo, o amor próprio excessivo (φίλος αὑτῷ πᾶς ἄνθρωπος) é causa de inúmeros males. Quem ama é cego para o objeto amado, passando, por isso, a julgar mal o justo, o bom e o belo, por imaginar que sempre deve antepor seu interesse à verdade.
Platão, de maneira magistral e originária, atenta quanto a tendência humana ao personalismo, ou seja, ao culto da própria personalidade que, condiciona o indivíduo a pensar e agir somente conforme o seu interesse pessoal.
Este ponto é relevante, pois também esclarece que os exercícios espirituais de cuidado, conhecimento e domínio de si, de forma alguma objetiva apenas ao desenvolvimento pessoal e exclusivista, ao contrário, o télos que tais exercícios se direcionam, como asserido, é claramente a vida política com a melhor contribuição possível à pólis e a politeía.
Aquele que tudo quer para si e, portanto, age somente almejando a sua própria satisfação jamais poderá governar e, se o fazê-lo, tornar-se-á um tirano42. O tirano é importante figura, pois que fornece forte evidência quanto à necessidade da filosofia como saber e exercício terapêutico à psyché. Assim, o tirano é quem é escravo de si, i é., de seus desejos e apetites, o que acaba por servir como ponto de ligação ao outro problema citado a encontrar-se presente na psyché humana, a epithumía.
Em suma, quem se permite dominar pela função inferior da psyché possuindo excessivo amor próprio, em que o tirano representa caso exemplar, serve também como exemplo da antítese do filósofo, o que procurou “ser a cada dia senhor de si mesmo”, como referendado na Carta VII que, a propósito, encontra forte consonância a seguinte asserção do livro I de A República, 347c: “Ora o maior dos castigos é ser governado por quem é pior do que nós, se não quisermos governar a nós mesmos”.
De um texto ao outro é evidenciado o princípio de domínio ou de governo sobre si. E qual é a pior parte que deve ser governada, e que irá governar se não lhe opormos o controle? Como é demonstrado no decorrer do próprio diálogo A República, trata-se da função inferior da psyché, a epithumía. Contudo, observa-se a ponderação seguinte exposta nas Leis, 870a43:
A mais grave é a concupiscência44 (ἐπιθυμία) que se apodera de uma alma embrutecida pelos desejos. Na maioria dos homens é o que se observa com o que entretém a paixão mais frequente e mais forte, a saber: o poder da riqueza para engendrar uma infinidade de desejos insaciáveis e sem limites, ou seja isso fruto do pendor inato ou de educação viciosa. A causa dessa educação está no apreço imerecido de que tanto entre os helenos como entre os bárbaros goza a riqueza, pois todos lhe assinalam o primeiro lugar entre os bens, quando só lhe cabe o terceiro, com o que corrompem tanto a eles mesmos como a seus descendentes. Nada mais belo e melhor do que dizer a verdade em toda a parte, isto é, que a riqueza foi feita para o corpo, e o corpo para a alma [...]
Em consonância com A República, depreende-se o prejuízo causado à psyché quando dominada pela concupiscência, pois neste caso a alma que assim procede será escrava de si mesma, porquanto todos os desejos encontrar-se-ão submetidos a saciar-se no gozo físico e na procura de meios para aumentá-los, i., é, a incessante procura pelo acúmulo de riquezas materiais.
Para Platão não é admissível tamanha inversão na hierarquia dos bens, e é preciso agir mediante à correta educação, para assim, formar um novo ethos45 que se coadune com as virtudes (aretai) individuais e pública (políticas), refreando o natural pendor46 à sensualidade e à luxúria.
Como propõe Lima Vaz (2002, p. 42), “assim como o ethos (costume) tem sua duração no tempo assegurada pela tradição, assim o ethos .hexis ou hábito) torna-se, no indivíduo, forma permanente de seu agir pela educação”. A partir desta inferência, é possível considerar que Platão propõe abranger em sua filosofia tanto o ethos como costume formando uma nova tradição, como alcançar o agir individual mediante à formação de novos hábitos (hexai).
Assim os exercícios espirituais de cuidado, conhecimento e domínio de si formam condicionam para a formação de novas condutas e novas crenças que transformem a psyché humana em manifestação de sua própria excelência (arete), assim formado o indivíduo, a pólis e o Estado (Constituição e regime político) em consequência se configurarão justos, temperantes, belos e bons.
Em consonância aos conceitos de filosofia como modo de vida e de exercícios espirituais conforme Pierre Hadot, a interpretação sugerida propusera haver em Platão uma precisa inquietação filosófica quanto a preparar o indivíduo para bem servir a pólis e ao filósofo para bem servir na formação e condução do melhor Estado.
Conceber a melhor psyché humanamente possível, é criar condições para a formação da melhor cidade e do melhor regime político para governá-la. Como também é o caminho para aproximar a perfectibilidade humana à perfeição cósmica. Portanto, trata-se de tornar consciente o que se é e o que se deva ser conforme um modelo universal de perfeição, o Bem.
Conhecer a si mesmo, i., é, examinar-se, desvelar-se, significa encontrar questões centrais concernentes a formação do pensamento, da praticidade ação, da aceitação ou recusa de valores e crenças.
Ninguém poderá modificar-se se não re-conhece a necessidade de fazer modificações, portanto, a terapia platônica perpassa uma ideia de futuro: devo me tornar algo que não sou, mas, que posso e tenho de ser, não obstante é imperativo querer, para então agir conforme um sentido e uma direção.
Indubitável, pois, que a terapia filosófica de Platão, se caracteriza a partir do primado de uma nova antropologia cosmológica da psyché. Contudo, o caminho teórico escolhido foi o de demonstrar o quanto é crucial para Platão o mundo sensível, não basta como afirmou-se “sair da caverna” é imperativo o retorno.
Nisto se justifica a terapia enquanto formação ao bíos politiké. Não se trata, portanto, de uma via ascensional que intenciona condutas, crenças e valores que se adequem a um modo de viver monástico ou místico. Trata-se de modificar-se a si para poder modificar ao outro ainda não modificado e, se não modificável ao menos bem conduzido.
Sem dúvida é inegável a presença de forte intelectualismo, e nisso também repousa a crítica à democracia, bem como e a construção da tese dos reis-filósofos e a inseparabilidade entre saber e formação filosófica e a atividade política. Pois quem não conhece o que é bom para si mesmo como é possível saber o que é bom para a cidade?
A tríade do cuidado, conhecimento e de domínio sobre si são exercícios espirituais de formação e transformação da psyché para que lhe seja possível a efetiva realização de sua própria excelência (areté), o que inegavelmente a conduzirá à eudaimonia.
No entanto, nada disto será realmente filosófico se não houverem contribuições a comunidade política, neste sentido que cabe ao filósofo ou a quem verdadeiramente filosofe, o poder político, a construção das leis, a condução da paideía e a formação de um novo ethos.
Ponderou-se sobre a dimensão pública deste processo interno de construção e renovação de si. Evidente que somente a psyché que tende à filosofia a realizará, mas à medida em que ocorre esta operação interna em alguns é mediante o Estado, as leis, a paideía, que o vulgo será também partícipe nesta progressão ascendente ao ideal do Bem.
Portanto, o homem tornado excelente em si mesmo, será o capaz da mesma excelência na vida pública no exercício da cidadania. Assim que a vida ética se antecipa a bíos político da mesma forma que o complementa.
Por isso considerou-se haver em Platão uma clara noção de responsabilidade da função e do contributo da filosofia e do filósofo para com a vida humana manifestada no plano não inteligível, não basta, pois, sair da caverna, o retorno é imprescindível.