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Recepção: 22 Fevereiro 2016
Aprovação: 10 Maio 2016
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v13i1.682
Resumo: O trabalho procura revisitar o materialismo histórico, as considerações marxianas sobre a “intimidade burguesa” e, por consequência, suas conclusões sobre a incidência dos imperativos sistêmicos e da lógica do Capital na condução da vida cotidiana. O argumento central do trabalho é que a crítica marxiana à intimidade hipostasiada pela sociedade fundada pelo Capital não está reduzida aos elementos dados a priori por sua teoria econômica, mas sintetiza um percurso teórico impulsionado pela antropologia filosófica presente nos Manuscritos de 1844. Desse modo, o trabalho afirma que, sobretudo porque estabelece uma clara distinção entre natureza e cultura, Marx pôde divorciar-se da moralidade hegeliana e afirmar o caráter histórico, ideológico e contingente das relações familiares. Nesse sentido, será demonstrado que ao afirmar a primazia do individualismo possessivo da família burguesa, o autor identifica o “proprietário privado” e o “marido burguês” - no sentido de que a intimidade burguesa é configurada, antes de tudo, pelo sentimento de apropriação do outro. Por fim, discute-se o modo como essas relações assimétricas são trabalhadas n'O Capital, onde a esfera íntima aparece com uma dupla função: a alimentação material do sociometabolismo do capital (por um lado na reprodução de mão-de-obra e por outro na reprodução de consumidores) e a alimentação moral do sistema (que se dá por meio da reprodução do sistema axiológico que perpetua a lógica da mercadoria).
Palavras-chave: Marxismo, Teoria Crítica, Capital, Gênero.
Abstract:
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The paper seeks to revisit historical materialism, the marxian considerations on the "bourgeois intimacy" and, consequently, his conclusions on the incidence of systemic imperatives and logic of capital in the conduct of everyday life. The central argument of the paper is that the Marxian critique of intimacy hypostatized by the society founded by the Capital is not reduced to the elements given a priori by its economic theory, but synthesizes a theoretical path driven by philosophical anthropology present in the Manuscripts of 1844. Thus, the paper assert that, mainly because it establishes a clear distinction between nature and culture, Marx was separated the Hegelian morality and reaffirmed the historical character, ideological and contingent of family relationships. In this sense, it will be shown that in asserting the primacy of possessive individualism of the bourgeois family, the author identifies the "private owner" and the "bourgeois husband" - in the sense that the bourgeois intimacy is configured, first of all, by the sense of ownership from the other. Finally, we discuss how these asymmetrical relations are worked in O Capital, where the intimate sphere appears with a dual function: the maintenance of the social metabolismo of capital (the reproduction of skilled labor and the reproduction of consumers) and the moral maintenance of the system (that is through the reproduction of the value system that perpetuates the logic of the commodity).
Keywords: Marxism, Critical Theory, Capital, Gender.
Breve situação da dicotomia público-privado
A distinção entre as esferas pública e privada, como observa Bobbio (2007), consagrou-se como uma “grande dicotomia” do pensamento político e sociológico. Como toda grande dicotomia, por sua vez, é composta por uma relação antitética na qual os seus dois polos, embora interdependentes, manifestam um vínculo de identidade e diferença. No caso específico, é usual conceber como “não-pública” a esfera privada e, com isso, despolitizá-la a ponto de identificar simplesmente o privado com privação. Isso porque na gênese do pensamento político, em especial no holismo aristotélico, está a ideia de que a esfera pública representa o espaço de realização plena das características humanas e, na medida em que admite-se a sociabilidade como uma dessas características, o indivíduo na esfera “não-pública” está privado de seu potencial humano. Como comenta Hannah Arendt, “segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política não apenas difere mas é diretamente oposta a essa associação natural cujo centro é constituído pela casa (oikia) e pela família” (ARENDT, 2007, p. 33).
Aristóteles, apoiado na observação empírica sobre a fundação da polis, identifica nas primeiras uniões entre pessoas (no par biológico fundamental, segundo ele) o objetivo de satisfazer as necessidades naturais mais básicas que, posteriormente, serão sofisticadas nos povoados, isto é, “a primeira comunidade de várias famílias para satisfação de algo mais que as simples necessidades diárias” (ARISTÓTELES, 1985, 1252b). A cidade, constituída a partir de vários povoados, aparece no pensamento aristotélico como uma criação natural cuja existência possui predominância em relação às formas anteriores de associação. Afirma o autor, logo no início do Livro 1 da Política:
Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade,e toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política. (ARISTÓTELES, 1985, 1252a)
É na polis, portanto, que os gregos exerciam o “ser político” cuja natureza da sociabilidade, assentada no debate público racional, se contrapunha a pré-politicidade da esfera privada, na qual, como observa Arendt, “o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos” (ARENDT, 2007, p. 35-36). Desse modo, o importante é que na origem do pensamento político a distinção entre o público e o privado pode ser resumida na distinção entre uma esfera da necessidade (oikos) e outra da liberdade (polis) ou, em outros termos, uma esfera da desigualdade (privada) e uma esfera da igualdade (pública). Como observa Habermas,
só a luz da esfera pública é que aquilo que é consegue aparecer, tudo se torna visível a todos. Na conversação dos cidadãos entre si é que as coisas se verbalizam e se configuram; na disputa dos pares entre si, os melhores se destacam e conquistam a sua essência: a imortalidade da fama” (HABERMAS, 1984, pág. 16)
Isso pode ser atestado no fato de que até mesmo a atuação “despótica” do chefe da família na esfera privada, segundo Aristóteles, não se configura como um ato de liberdade mas sim de autêntica necessidade. É sua superioridade natural, seja em relação à mulher, aos filhos ou aos escravos, que lhe confere a capacidade exclusiva de, superando as circunstâncias da esfera das necessidades, ascender ao plano político. Mais tarde, essa separação ficará explícita no idealismo hegeliano que confere ao homem “sua vida substancial real no Estado, na ciência […] e também na luta e no trabalho” enquanto confere à mulher a sua vida substancial “no amor familiar” (HEGEL, 1997, §166). Não deixa de ser interessante o fato de que tenha sido a tradição contratualista a responsável por extrair as consequências políticas desse ambiente desigual que caracteriza a esfera privada. Ao não explicitar os termos desiguais do que Carole Pateman (1995) chamou de “contrato sexual”, os teóricos do contrato social acabam legitimando um ordenamento social necessariamente patriarcal – o que fica evidente em autores como Locke, para quem a “determinação final” do conflito de vontades “cai naturalmente sobre o homem, como sendo o mais capaz e o mais forte” (LOCKE, 2006, p. 130).
Ocorre que a “promoção do social”, fenômeno que Arendt (2007) representa pelo movimento tipicamente moderno de “elevação do lar doméstico (oikia) ou das atividades econômicas ao nível público” (p. 42), reconfigura radicalmente essa linha divisória estabelecida pelo pensamento clássico em torno daquelas duas esferas. Na medida em que as esferas pública e privada se diluem num organismo societário cuja constituição é definida por “um conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-símile de uma única família sobre-humana [cuja] forma política de organização é denominada 'nação'” (idem. p. 38), a política perde seu status de loquos da ação humana autêntica. A consequência mais imediata que Arendt extrai desse fenômeno, ao articular sua teoria à perspectiva aristotélica da polis, diz respeito à caracterização da esfera social moderna como um ambiente cujo núcleo organizacional herda da família seus atributos pré-políticos. Por isso, afirma a autora:
a mais clara indicação de que a sociedade constitui a organização pública do próprio processo vital talvez seja encontrada no fato de que, em tempo relativamente curto, a nova esfera social transformou todas as comunidades modernas em sociedade de operários e de assalariados; em outras palavras, essas comunidades concentraram-se imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida – do labor […] a sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em função da vida, e de nada mais, assume importância pública, e onde foi permitido a atividades que dizem respeito à mera sobrevivência aparecer em público (ARENDT, 2007, p. 56)
Embora sua crítica à sociedade moderna não tenha o mesmo sentido daquela realizada pelo jovem Marx em relação o reino burguês das necessidades, Arendt tem em vista justamente uma esfera social que se volta para as questões relativas à sobrevivência humana – algo que os antigos caracterizavam como um problema puramente privado. Por outro lado, Arendt ressalta a domesticação da ação individual no plano social, o que remete ao tipo de relação existente na esfera privada clássica. Habermas (1984) também destaca a tendência comum à era burguesa segundo a qual a esfera privada ao mesmo tempo em que por um lado é reduzida à família por outro acaba desprivatizando-se de tal modo que os interesses ditos privados deixam de estar circunscritos aos limites domésticos. Os burgueses, que até então “viviam a sua vida privada prototipicamente na profissão e na família” (HABERMAS, 1984, p. 180-181) agora podem identificá-la apenas com a esfera íntima. No entanto, mais do que nunca, esse ambiente privado perde seu papel de provedor da formação moral necessária para a participação na esfera pública e passa abertamente a ser regulada por ela.
Nesse sentido, ao que parece, é um fenômeno contemporâneo ao invés da democratização da esfera privada (cuja ausência, aparentemente, fazia da democracia helenística tão somente um protótipo formal de democracia) a ascensão de um pater famílias global análogo ao que a interpretação lógica da primeira seção do Capital compreenderia como o sujeito determinante do processo social. É nesse sentido que podemos falar na inversão do fluxo entre o privado e o público, de modo que, nas sociedades industriais, o papel ocupado pelos “membros da casa” na estrutura produtiva da sociedade determina a posição ocupada por eles no interior da esfera íntima e não o contrário como ocorria na perspectiva aristotélica. Em outras palavras, não é porque exerce seu poder despótico no ambiente doméstico que o indivíduo se habilita para a participação na esfera pública mas sim porque no plano social ele se legitima, como proprietário e provedor, para exercer esse papel na família. O fato é que, como resume Habermas, a crítica marxiana “destrói todas as ficções a que apela a esfera pública burguesa” na medida em que, segundo ela, na sociedade burguesa inexistem os pressupostos da igualdade de oportunidades, isto é, a esfera pública “contradiz o seu próprio princípio de acessibilidade universal” (HABERMAS, 1984, p. 150).
No entanto, há de se destacar, Marx não dedicou-se especificamente às implicações políticas dessa relação dialética estabelecida entre a esfera pública e a intimidade burguesa, assim como grande parte das teorias ético-políticas de tradição marxista parecem ter deixado de lado essa questão e subestimado o conteúdo político dos conflitos existentes no interior da família. O seu caráter antagônico, comum a toda base social sobre a qual se ergue a superestrutura capitalista, impediu que se pudesse lê-la numa perspectiva positiva objetivamente fundada, o que poderia ser feito se operada a distinção conceitual entre a família e uma forma historicamente determinada da família (burguesa). De qualquer modo, ao que tudo indica, a tentativa de explorar numa perspectiva materialista as contradições imanentes à intimidade burguesa necessita de uma base conceitual prévia, cuja composição articule a teorização detalhada do papel e das possibilidades da família nas circunstâncias de controle capitalista.
Os Manuscritos de 1844 e a intimidade entre a natureza e a cultura
Nos Manuscritos de 1844, Marx compreende o comunismo como suprassunção positiva (Aufhebung) da propriedade privada. e, portanto, a partir de uma perspectiva hegeliana que pressupõe a negação e a reposição da negação em um estágio qualitativamente superior. Com isso, exclui-se a tentativa de atribuir ao comunismo o momento último da lógica dialética aplicada à história dos modos de produção. Isso porque do ponto de vista social, significa que o posto alcançado por aquela suprassunção no devir histórico não é nunca definitivo, pois estabelecido como tal (como novo ordenamento social) prossegue seu percurso no sentido de reposições mais amadurecidas de liberdade: o comunismo é, portanto, configurado pelas novas condições que a sociedade se impõe. As consequências dessa compreensão são refletidas no modo como Marx critica o que ele considera o “comunismo rude”., cuja característica principal seria a universalização da propriedade privada:
quão pouco esta suprassunção da propriedade privada é uma apropriação efetiva prova-o precisamente a negação abstrata do mundo inteiro da cultura (Bildung) e da civilização; o retorno à simplicidade não natural do ser humano pobre e sem carências que não ultrapassou a propriedade privada, e nem mesmo até ela chegou. (MARX, 2004, p.104)
Para Marx, a limitação dessa concepção de comunismo mostra-se na negação do “mundo da cultura” - entendido aqui a partir da expressão Bildung.Se em Hegel essa categoria representa o percurso da Ideia em suas posições concretas mais elevadas, em Marx esse amadurecimento da cultura representa, não sem as contradições por ele destacadas, a resolução efetiva da oposição entre as necessidades naturais e aquelas produzidas socialmente.. Assim, porque aquele comunismo rude pretende-se tão somente uma “refutação” não pode compreender o sentido histórico e a essência da propriedade privada – de modo que sua existência acaba por reproduzir universalmente as alienações intrínsecas a ela. Ou seja, destaca-se a negação abstrata da bildungcomo uma regressão em relação ao momento histórico representado pela propriedade privada, cujo conceito se refere, em síntese, à “totalidade da forma distorcida da apropriação da natureza” (REICHELT, 2013, p. 42).
A dimensão positiva da propriedade privada, no entanto, é observada na abordagem sobre as necessidades, a partir da qual sua contradição aparece no processo de separação entre a riqueza universal da sociedade e a pobreza particular do trabalhador. O importante é que o pressuposto histórico que impulsiona a emancipação humana já existe, aqui, como realidade concreta: o trabalho alienado “produz maravilhas para os ricos” e “privação para o trabalhador” (MARX, 2004, p. 82) mas produz, de tal modo que o que deve ser apropriado universalmente é o modo de operar socialmente a produção, pelo qual o homem restituirá sua humanidade. A totalidade econômica proporcionada pelo comunismo rude, por sua vez, não elimina a contradição já evidenciada. Pelo contrário, as relações sociais alienadas gestadas pela propriedade privada não desaparecem com essa nova posição, assim como o pressuposto lógico da relação capital/trabalho se mantém inalterado. Por isso, diz Marx, desenvolve-se uma “propriedade privada universal”.
Essa manifestação rudimentar do comunismo organiza os indivíduos em torno de uma estrutura social na qual os seus membros possuem carências limitadas, carências essas generalizadas por conta de um movimento fixado na negatividade da propriedade privada. No que diz respeito à família, essa contraposição
se exprime na forma animal – na qual o casamento (que é certamente uma forma de propriedade exclusiva) é contraposto à comunidade das mulheres, no qual a mulher vem a ser, portanto, uma propriedade comunitária e comum. Pode-se dizer que essa ideia da comunidade das mulheres é o segredo expresso desse comunismo rude e irrefletido (MARX, 2004, p. 104)
Assim como universaliza a propriedade privada em vez de superá-la e com isso generaliza as manifestações alienadas a ela intrínsecas, o comunismo rude transforma a relação matrimonial burguesa, cuja configuração é definida pela posse e pela opressão, numa relação alienada generalizada. Sob as condições capitalistas de produção, diz Marx, a esposa é concebida como um objeto passível de posse (“uma forma de propriedade exclusiva”) e, no movimento da contraposição, transforma-se numa propriedade comunitária. Assim, “sai do casamento e entra na prostituição universal”, isto é, conserva seu papel de “objeto” passível de regulação pela perspectiva da mercadoria (antes de forma privada, agora de forma coletiva). Nessa comunidade, argumenta Marx, as formas de gênero são delineadas pela pobreza de determinações individuais e coletivas, cuja manifestação mais evidente se dá no modo como a natureza biológica ainda se impõe sobre as particularidades humanas. Aponta o autor:
Na relação com a mulher como presa e criada da volúpia comunitária está expressa a degradação infinita na qual o ser humano existe para si mesmo, pois o segredo desta relação tem a sua expressão inequívoca, decisiva, evidente, desvendada, na relação do homem com a mulher e no modo como é apreendida a relação genérica imediata, natural (idem, p. 104)
A superação social da determinação biológica (para Marx, o salto ontológico proporcionado pelo trabalho) desenvolve consigo a exigência moral de reavaliação da “relação genérica imediata, natural” e isso está perfeitamente de acordo com a teoria geral da sociedade elaborada pelo autor, segundo a qual nenhuma determinação biológica é suficiente para regular moralmente as ações individuais. Por um lado, Marx não deixa de identificar na relação homem-mulher o substrato imprescindível de manutenção do gênero humano, mas por outro evidencia o fato de que a processualidade desenvolvida com a fundação do ser humano contém um universo muito mais complexo de determinações – de modo que as referidas ações não podem ser avaliadas apenas por estarem ou não de acordo com a natureza. Aqui, o fator natural(biológico) da relação genérica mostra-se insuficiente para a determinação de sua adequabilidade social. Por isso, na sequência do trecho citado, afirma Marx:
A partir desta relação [do homem com a mulher] pode-se julgar, portanto, o completo nível de formação (die ganze Bildungsstufe) do homem. Do caráter desta relação segue-se até que ponto o ser humano veio a ser e se apreendeu como ser genérico, como ser humano; a relação do homem com a mulher é a relação mais natural do ser humano com o ser humano (idem, p. 104-105).
Já foi dito que na concepção antropológica de Marx o trabalho inaugura um novo tipo de ser por meio de uma atividade racionalmente orientada por fins pré-estabelecidos. É nesse contexto que, para utilizar uma expressão de Lefebvre, o habitar deixa de ser mero habitat (sendo potencialmente capaz de tornar-se um loquos de sociabilidade e experimentação estética, por exemplo) e o comer transcende o ato de saciar a fome (revelando-se uma forma de fruição cultural, na qual o objeto de consumo manifesta em si toda uma formação cultural). Do mesmo modo, com a inauguração desse tipo particular de ser (social), a relação homem-mulher deixa de ser medida apenas em termos de sua finalidade biológica (procriar). Ou seja, para Marx, em que pese não seja possível excluir a base natural sobre a qual se ergue a existência humana, ela é insuficiente para assentar qualquer tipo de prescrição moral, pois, como observa Mészáros, na medida em que não há rompimento ontológico com a natureza, “não há nada de errado nos apetites naturais do homem, desde que sejam satisfeitos de uma maneira humana” (Mészáros, 2002, p. 157).
O amor como predicado da propriedade privada
Ao mesmo tempo em que rejeita a perspectiva contratualista do casamento, segundo a qual institucionaliza-se a posse dos atributos sexuais do outro (Kant), Hegel afirma que a família se constitui como o fundamento moral do Estado – este, por sua vez, o momento pleno da realização da liberdade. Diferente das teorias do contrato social, para as quais o Estado materializa-se por meio de uma entidade externa aceita universalmente a partir de um acordo hipotético, o autor compreende o Estado como a reunião de vontades individuais, atribuindo a ele o loquos da identidade entre vontade individual e universal. A família insere-se, nesse ponto, como o local a partir do qual se desenvolvem as disposições morais e onde o indivíduo se reconhece enquanto ser social cuja sociabilidade será realizada no Estado. Diz Hegel:
Como substancialidade imediata do espírito, a família determina-se pela sensibilidade de que é una, pelo amor, de tal modo que a disposição de espírito correspondente é a consciência em si e para si e de nela existir como membro, não como pessoa para si. (HEGEL, 1997, p. 149)
Como ambiente caracterizado por um estágio em que a subjetividade toma ciência de sua condição para em seguida operar o intercâmbio segundo o qual a vontade individual abdica de suas determinações irrestritas e se impõe deveres em troca do sentimento tipicamente moderno de pertencimento à coletividade privada, a família aparece aqui como uma relação apreendida no nível da eticidade e não como um ambiente estritamente natural. Por isso, ao identificar a reciprocidade familiar ao reconhecimento individual da alteridade que a constitui o autor pode destacar o amor como seu fundamento. Nesse sentido, como observa Honneth (2003), para Hegel “o amor representa a primeira etapa de reconhecimento recíproco, porque em sua efetivação os sujeitos se confirmam mutuamente na natureza concreta de suas carências, reconhecendo-se assim como seres carentes” (p. 160). Por outro lado, a mera formalidade dessa concepção (expressa na importância dada pelo autor para a cerimônia do casamento e para a declaração solene que a conclui, como se vê no §164) demonstra que Hegel não procurou compreender as opressões constituídas e reproduzidas no interior do ambiente privado – o que identificaria a alteridade como aceitação da autoridade e, por certo, prejudicaria o reconhecimento do bem comum por parte da vontade particular.
Nesse sentido, embora tenham sido os teórico de Frankfurt os responsáveis pelas constatações de que, por um lado, a conciliação entre o particular e o universal dentro da família apenas poderia ter sentido sob fortes coerções (Adorno) e, por outro, a privacidade burguesa estaria envolvida numa constante e recíproca relação de dependência com os imperativos sistêmicos (Habermas), Marx já havia identificado o “pecado original” da família burguesa na exaltação da propriedade privada. Isso porque o primeiro estágio da eticidade hegeliana, responsável pela elaboração de uma imagem coerente do mundo, bem como pela constituição de sistemas individuais de referência, aparece aqui atravessado por relações desiguais gestadas no âmbito privado e reproduzidas no plano político. Por isso, Marx problematiza a importância que Hegel atribui ao “estamento dos proprietários fundiários” como instância mediadora entre o Estado e a Sociedade Civil.. Segundo ele, Hegel fundamenta o papel político de uma classe na propriedade transmissível apenas aos primogênitos de sangue – em uma propriedade que não se constitui como patrimônio, como propriedade suscetível de avaliação em termos de seu valor de troca (não alcançou, diz Marx, o caráter de “propriedade posta pela vontade social”). Asim, argumenta o autor:
Que poder exerce o Estado político sobre a propriedade privada no morgadio? Ele o isola da família e da sociedade, ele o conduz à sua autonomização abstrata. Qual é, então, o poder do Estado político sobre a propriedade privada? O próprio poder da propriedade privada, sua essência trazida à existência. O que resta ao Estado político, em oposição a essa essência? A ilusão de que ele determina, onde ele é determinado. Ele rompe, é verdade, a vontade da família e da sociedade, mas apenas para dar existência à vontade da propriedade privada que é sem a vontade da família e da sociedade e para reconhecer essa existência como a suprema existência do Estado político, como a suprema existência ética (MARX, 2010, p. 116)
O resultado é que Hegel “realizou a proeza de desenvolver, a partir da Ideia absoluta, os pares por nascimento, o bem hereditário” (MARX, 2010, p. 93) e, com isso, encontrou a solução aparente do conflito de vontades no momento natural do “nascimento”. Ou seja, critica Marx, “no cume do Estado político, é o nascimento, por toda parte, que faz de determinados indivíduos a encarnação das mais altas tarefas públicas” (idem, p. 121). O importante para os fins propostos pelo trabalho é o fato de que, segundo a crítica marxiana, na medida em que Hegel estabelece a soberania da propriedade privada, acaba colocando em segundo plano o fundamento que constitui a base familiar (sensibilidade e amor, como se vê no §158). Hegel havia argumentado que a referida classe possui a vida familiar como base (§305), ao mesmo tempo em que caracteriza-se pela independência e estabilidade em relação às contingências sociais (§306). Aqui, a objeção de Marx diz respeito ao fato de que o “princípio da propriedade privada contradiz o princípio da família” (MARX, 2010, p. 115) de tal modo que a primeira esfera da eticidade é caracterizada como apêndice da propriedade privada e o amor, por sua vez, como vontade negada por essa mesma propriedade soberana. Por isso, diz o autor, “estamento da eticidade natural é, antes, a barbárie da propriedade privada contra a vida familiar” (idem).
A digressão justifica-se pela constatação de que já em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx havia esboçado uma crítica imanente à estrutura lógica da eticidade hegeliana, fundamentando-a na ideia (ainda devedora dos pressupostos idealistas) de que o conflito entre a propriedade privada e a base familiar desqualifica a participação política da classe em questão. Com efeito, o “estamento dos proprietários fundiários” se torna “inapto para a mais elevada tarefa política, já que ele aplicará leis patriarcais a uma esfera não patriarcal e fará valer o filho ou o pai, o senhor e o servo, lá onde se trata do Estado político, da qualidade de cidadão do Estado (Staatsbürgerthum)” (MARX, 2010, p. 111). Quando o faz, Marx estabelece as bases para a tese de que os problemas fundamentais da intimidade humana (o conteúdo das relações privadas), bem como a realização plenas das individualidades, estão em franca oposição ao princípio da propriedade privada na medida em que o conteúdo humano dessas relações, cujo momento mais elevado é a constatação pessoal da necessidade do outro para a realização plena de sua própria liberdade, encontra na lógica da “mônada isolada” seu principal obstáculo. Se na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Marx opõe o princípio da família (amor) ao princípio da propriedade privada, em A Questão Judaica o autor constata que o dinheiro e a propriedade privada representam o desprezo completo pelas relações interpessoais no âmbito privado de tal modo que “a própria relação de gênero, a relação entre homem e mulher etc., torna-se um objeto de comércio” e “a mulher é negociada” (idem, p, 59).
Não é surpreendente, portanto, que quando retorna ao estudo da antropologia cultural e social, o interesse de Marx recaia justamente sobre o fato de que, historicamente, nas famílias patriarcais “o matrimônio não se baseava no 'sentimento', mas na conveniência e na necessidade” (MARX, 1998, p. 90). No entanto, sua crítica é dirigida especificamente ao modo como a sociedade burguesa confere à mulher o papel de um objeto passível de apropriação privada - como se nota em Sobre o Suicidio67:
A infeliz mulher fora condenada à mais insuportável escravidão, e o sr. Von M... podia praticá-la apenas por estar amparado pelo Código Civil e pelo direito de propriedade, protegido por uma situação social que torna o amor independente dos livres sentimentos dos amantes e autoriza o marido ciumento a andar por aí com sua mulher acorrentada como o avarento com seu cofre, pois ela representa apenas uma parte de seu inventário. (MARX, 2006, p. 37)
Como “parte do inventário” do homem “amparado pelo Código Civil e pelo direito de propriedade”, a mulher é colocada, naturalmente, numa posição de desigualdade diante dos olhos e das normas da sociedade. Heather Brown (2012) observa que nesse trecho Marx aponta os dois principais princípios da opressão da mulher. Por um lado, na perspectiva institucional, a lei reconhece a autoridade do homem sobre a mulher e, por outro, do ponto de vista social, o matrimônio burguês é conduzido pela lógica do Capital, segundo a qual o subordinado é reconhecido tão somente como uma coisa (BROWN, 2012, p. 48-50). A “mulher como mercadoria” aparece igualmente na crítica do jovem Marx ao “dinheiro” enquanto forma universal que “despojou tanto o mundo humano quanto a natureza, de seu valor singular e próprio” (MARX, 2010, p. 58). Nesse contexto, a família assume os traços de um ambiente profundamente hostil, no qual os membros empossados de autoridade a exercem como forma de compensar as relações alienadas que enfrentam na sociedade civil. Isto é, “o mau uso dessa autoridade é igualmente uma compensação grosseira para o servilismo e a subordinação aos quais essas pessoas estão submetidas, de bom ou de mau grado, na sociedade burguesa” (MARX, 2006, p. 32).
Na mesma direção, nos apontamentos etnológicos sobre a subordinação da mulher, como exemplo do subdesenvolvimento humano experimentado nas sociedades divididas em classe, Marx destaca a seguinte passagem: “o homem começou a exigir fidelidade da mulher através de castigos selvagens, mas reclamando isenção para ele mesmo” (MARX, 1998, p. 79). O mesmo acontecia, observa o autor, entre os iroqueses e algumas tribos índias, onde os homens “exigiam sob severas penas a castidade das mulheres, mas sem a obrigação recíproca” (p. 91). Em outro trecho, Marx aponta:
As mulheres romanas tinham mais dignidade pessoal e independência que as gregas, mas o matrimônio lhes entregava in manu viri [na mão do homem]. Este tinha autoridade para castigá-la e direito de vida e morte em caso de adultério (MARX, 1998, p. 96).
No caso da moralidade burguesa, quando impõe sua especificidade como um suposto atributo universal o que a burguesia faz, em verdade, é fundar sua moralidade numa perspectiva de classe e não antropológica. No entanto, a crítica de Marx vai mais além no sentido de que a validade dessa falsa universalidade restringe-se não apenas à burguesia, mas ao homem burguês – de modo que a burguesia rejeita, simultaneamente, a moral em seus sentidos universal e de classe. Sendo assim, Marx pode encontrar essa particularidade na figura do “marido burguês”:
O burguês corrompido transgride as leis do casamento e secretamente comete o adultério; o comerciante transgride a instituição da propriedade quando,pela especulação, pela falência etc., priva outrem da propriedade; o jovem burguês, quando o pode, torna-se independente de sua própria família e abole praticamente a família para si; mas o casamento, a propriedade, a família permanecem intocados na teoria porque constituem, na prática, as bases sobre as quais a burguesia erigiu seu domínio, porque essas instituições, em sua forma burguesa, são as condições que fazem do burguês um burguês (MARX, 2007, p. 181)
Ao que tudo indica, Marx identifica naquelas sociedades a mesma falsa moralidade patriarcal existente no seio da sociedade burguesa, onde o homem, possuindo a mulher, possui autonomia para não abdicar de sua absoluta liberdade sexual. Para a burguesia, no entanto, esse fenômeno constitui um paradoxo irreparável devido à universalidade que fundamenta sua moralidade: a ideia de direitos iguais, nesse caso, apenas na teoria, faz com que a mulher seja igual ao homem. A crítica à formalidade política, nesse sentido, é resumida pelo autor nos seguintes termos: “assim como os cristãos são iguais no céu e desiguais na terra, também os membros singulares do povo são iguais no céu de seu mundo político e desiguais na existência terrena da sociedade” (MARX, 2005, p. 97). As consequências dessa compreensão de Marx se dão na relação imediata da esfera íntima, segundo a qual a relação matrimonial baseia-se num contrato de posse. Isto é, “o ciumento necessita de um escravo; o ciumento pode amar, mas o amor é para ele apenas um sentimento extravagante; o ciumento é antes de tudo um proprietário privado” (p. 42).
A intimidade do Capital: ideologia e força de trabalho
Do ponto de vista da reprodução dos imperativos sistêmicos, a família cumpre, fundamentalmente, dois papeis: por um lado, como um espaço de reprodução e manutenção metabólica do modo capitalista de produção e, por outro, como um espaço de deformação das individualidades dos seus membros. Uma forma que parece resumir essas funções está naquilo que Althusser denomina de Aparelho Ideológico do Estado (AIE), cujo objetivo seria “a reprodução das relações de produção, isto é, das relações de exploração capitalista” (ALTHUSSER, 1980, 63). Embora não encontre na família mais que um “par” complementar ao AIE dominante (Escola), Althusser é capaz de captar o que, ao que tudo indica, é a função primária da família na estrutura de classe:
Antes de nascer a criança é, portanto sujeito, determinada a sê-lo através de e na configuração ideológica familiar específica na qual ele é “esperado” após ter sido concebido. Inútil dizer que esta configuração ideológica familiar é, em sua unidade, fortemente estruturada e que é nesta estrutura implacável, mais ou menos “patológica” que o já-presente futuro-sujeito “encontrará” o “seu” lugar, quer dizer “tornando-se” o sujeito sexual (menino ou menina) que ele já é (ALHTUSSER, 1983, p.100).
A imposição de certos padrões de comportamento, nesse caso, como mostra o autor, não está limitada à experiências familiares em particular mas sim ao fenômeno social de ocultação das contradições que acompanham o Capital. Essa estrutura “implacável” da família situa o indivíduo recém-nascido, ao mesmo tempo, num terreno econômico (classe) e numa posição cultural (identidade). Isto é, na qualidade “de membros de um grupo social, eles são localizados em algum ponto predeterminado na estrutura de comando do capital muito antes mesmo de aprender as primeiras palavras no ambiente familiar” (MÉSZÀROS, 2002, p. 187). Se está correta essa compreensão da família como um aparelho subordinado à exigência de expansão sócio-metabólica do Capital (MÉSZÁROS, 2002), há de se destacar pelo menos dois sentidos mais evidentes de sua existência: o primeiro diz respeito à alimentação material do sociometabolismo mencionado - que se dá por um lado na reprodução de mão-de-obra e por outro na reprodução de consumidores. o segundo se refere à alimentação moral do sistema – que se dá por meio da reprodução do sistema axiológico que perpetua a lógica da mercadoria (nesse caso, a atuação da família não se restringe apenas à reprodução das normas do sistema, mas em especial à reprodução das ideologias que as tornam possíveis).
No primeiro aspecto, é possível entender o papel da mulher em dois planos: na regeneração da força de trabalho, isto é, na preparação do ambiente doméstico para que o homem possa repor energias e suprir necessidades biológicas e na reposição da força de trabalho, isto é, na produção e preparação de crianças que, futuramente, suprirão a ausência do pai no mercado de trabalho. Quanto à isso, Marx afirma:
Por meio de seu acionamento, o trabalho, gasta-se determinada quantidade de músculos, nervos, cérebro etc. humanos que tem de ser reposta [...] Esse gasto aumentado implica uma renda aumentada […] Se o proprietário da força de trabalho trabalhou hoje, ele tem de poder repetir o mesmo processo amanhã, sob as mesmas condições no que diz respeito a sua saúde e força […] A quantidade dos meios de subsistência tem, portanto, de ser suficiente para manter o indivíduo trabalhador como tal em sua condição normal de vida (MARX, 2013, p. 317)
As despesas individuais e familiares com a manutenção da força de trabalho em níveis aceitáveis para o fim que lhe é imposto estão contidas no preço dessa mercadoria particular que é o trabalhador. Aqui, já se sabe que os meios de subsistência (comida, roupa, etc) apenas podem ser usufruídos pelo trabalhador quando neles incide também um trabalho humano. Na medida em que o trabalho que incide sobre esses meios de subsistência não é remunerado, pode-se dizer que o custo do trabalhador se mantém inalterado, de modo que o trabalho não-remunerado exercido no ambiente doméstico se torna fundamental para o incremento da mais-valia a partir da diminuição do custo da manutenção física do trabalhador (Cf. RUBIN, 1975). Fenômeno semelhante ocorre na reposição da força de trabalho:
as forças de trabalho retiradas do mercado por estarem gastas ou mortas têm de ser constantemente substituídas, no mínimo, por uma quantidade igual de novas forças de trabalho. A quantidade dos meios de subsistência necessários à produção da força de trabalho inclui, portanto, os meios de subsistência dos substitutos dos trabalhadores, isto é, de seus filhos, de modo que essa peculiar raça de possuidores de mercadorias possa se perpetuar no mercado (MARX, 2013, p. 318)
Nesse aspecto, Marx reitera as considerações levantadas pela primeira vez nos Manuscritos de 1844 sobre o fato de que o trabalhador se mantêm vivo e funcionando como peça da engrenagem do capitalismo simplesmente em suas funções vitais. Desse modo, Marx concebe o ambiente doméstico não como a primeira esfera da eticidade, como supôs Hegel, mas como reduto de aparelhamento para a manutenção das funções vitais do sistema. Assim, conclui VOGEL:
as mulheres pertencentes à classe subordinada tem, portanto, um papel especial no que diz respeito à reposição geracional de força de trabalho. Enquanto elas também podem ser produtoras diretas, é o papel diferencial na reprodução da força de trabalho que está na raiz de sua opressão na sociedade de classes (VOGEL, 2013, p. 150)
É justamente por esse motivo, segundo a autora, que “a classe dominante, para agradar a estabilizar a reprodução da força de trabalho, bem como para manter a quantidade de trabalho necessário em níveis aceitáveis, incentiva a supremacia masculina dentro da classe explorada” (idem, p. 153). De fato, se está correta essa consideração, parece igualmente correto o argumento de ZARETSKY (1986), segundo o qual embora aparentemente o trabalho da mulher seja explorado pelo homem, na realidade, é explorado pelo modo capitalista de produção. O elemento-chave da exploração das mulheres, nesse sentido, é a separação entre o ambiente público e o ambiente privado, cuja dissolução coincide com a superação do modo de operar socialmente a extração da mais-valia. Por outro lado, também costuma-se atribuir o interesse da burguesia na família nuclear ao modo como essa configuração familiar contribui para o consumo. Para Barrett, “há uma certa quantidade de evidências que sugerem que as altas taxas de consumo são facilitados ou mesmo dependem da dona de casa em tempo integral” (BARRETT, 1986, p. 221).
Em consonância com a necessidade essencial do sociometabolismo do capital, que é distribuir os bens produzidos em escala cada vez maior (ainda que de forma irracional e autodestrutiva), o consumo precisa não somente adaptar-se, mas pelo contrário, configurar e orientar as relações individuais para que o alimentem. Assim, “as relações da família 'nuclear' devem ser adaptadas no mesmo sentido, reduzidas à unidade básica de uma geração e à transformação dos filhos em 'consumidores soberanos' tão cedo quanto possível” (MESZÁROS, 2002, p. 261). Contudo, a análise da família do ponto de vista estritamente econômico não conclui a discussão em torno da relação recíproca entre o ambiente privado e o interesse do sociometabólico do Capital. Isso porque tal análise não parece dar a devida atenção para aqueles fenômenos que incidem de forma direta na construção da subjetividade e, de modo mais claro, na edificação ideológica de estereótipos como feminilidade, domesticidade e romantismo (Cf. BARRETT, 1986, p. 30-35). Nesse sentido, além da função metabólica, é possível delegar à família burguesa a função de reproduzir a ideologia que mantém a passividade do ser social e, por consequência, a autoridade do Capital. Como mostra Meszáros,
o aspecto mais importante da família na manutenção do domínio do capital sobre a sociedade é a perpetuação – e a internalização – do sistema de valores profundamente iníquo, que não permite contestar a autoridade do capital, que determina o que pode ser considerado um rumo aceitável de ação dos indivíduos que querem ser aceitos como normais, em vez de desqualificados por “comportamento não conformista” (MESZÁROS, 2002, p. 271)
A análise de Meszáros complementa-se com a observação de Althusser, para quem o indivíduo quando aparece no mundo já encontra-se com um ambiente que dele espera algo. A família, nesse caso, opera o processo de constituição desse indivíduo por meio de relações de alteridade, em especial com os pais. Assim, “a ideologia funcionaria como a imagem do 'outro', imagem conformada social-familiarmente de acordo com o que a sociedade-família espera de cada indivíduo que vem ao mundo, desde a infância” (ALTHUSSER, 1988, p. 69-70). É desse modo, portanto, que os indivíduos se constituem como sujeito sociais a partir da capacitação individual para o cumprimento das expectativas geradas pelos imperativos sistêmicos do Capital. O resultado, naturalmente, é a habilitação para a obediência de normas sociais que garantam a reprodução das relações sociais de produção. Aqui, o conceito marxiano de ideologia insere-se na descrição de como o capitalismo inaugura uma forma sofisticada de ocultação das contradições essenciais que operam na base do seu modo de produção.
Como se sabe, é fundamental para a preservação do ambiente irracional operado pelo Capital uma atmosfera político-cultural que impossibilite a subversão do sistema axiológico que o mantém hegemônico. É a ideologia, “como forma específica de consciência social” e “inseparável das sociedades de classe” (MESZÁROS, 2008, p. 9), que cumpre esse papel ao naturalizar e universalizar proposições cujo conteúdo, em última instância, reproduz as relações de produção. Não se trata, portanto de uma “falsa realidade”, mas de uma realidade cujo conteúdo está ancorado em parcelas da realidade existente, de modo que pode oferecer a aparência de um sistema acabado, a-histórico e mistificado, que “encontra justificação definitiva em sua descrição da ordem do 'mundo real' para a qual 'não pode haver nenhuma alternativa'” (MESZÁROS, 2002, p. 40). Na medida em que incorpora-se à vida cotidiana e penetra na psique humana, a ideologia é responsável pela ocultação das pistas que vinculam o modus operandi do Capital às formas de opressão e subordinação experimentadas pelo ser social.
Marcuse discutiu essa identificação de uma forma específica de realidade como sendo a única “real” ao criticar, em outros termos, o modo como Freud opera o conceito de princípio de realidade identificando necessidades biológicas e contingências históricas. Para ele o conteúdo desse princípio está em grande parte comprometido com o sistema de valores e instituições vigentes e não pode ser concebido a partir de atributos estáticos. Por exemplo, diz o autor,
as modificações e deflexões de energia instintiva necessárias à perpetuação da família patriarcal-monogâmica, ou a uma divisão hierárquica do trabalho, ou ao controle público da existência privada do indivíduo, são exemplos de mais-repressão concernente às instituições de um determinado princípio de realidade (MARCUSE, 1979, p. 47)
Por isso, é fundamental para o bom funcionamento do sociometabolismo do Capital que esses enunciados ideológicos que o sustentam sejam distribuídos o quanto antes para apreciação do indivíduo, dado que desprovido de ilusões sobre a realidade a massa proletária é pouco vulnerável aos imperativos sistêmicos. A família cumpre esse papel, ao comportar-se “conforme o específico autoritarismo da qual depende em ampla medida a perduração da ordem civil-burguesa” (ADORNO & HORKHEIMER, 1969, p. 131). A família aparece aqui, ela mesma, como um produto ideológico sobre o qual a burguesia construiu o mito da “esfera privada” - um reduto emocional impenetrável e sobre o qual, aparentemente, o indivíduo possui completa autoridade. Apesar disso, quando a família volta-se para dentro de sua própria estrutura como veículo da ideologia, sua tarefa consiste não mais apenas na produção, manutenção e reposição de força de trabalho e consumidores, mas em especial na ocultação desses interesses e na imposição de uma personalidade tipicamente burguesa – o que, por um lado, contribui na desvalorização da mulher e por outro contribui para a passividade política do proletariado, que desde cedo aprende a internalizar a autoridade paterna como exemplo bem-sucedido de toda autoridade social.
Considerações finais
O trabalho procurou resgatar as considerações marxianas sobre a “intimidade burguesa” e, por consequência, suas conclusões sobre a incidência dos imperativos sistêmicos e da lógica do Capital na condução da vida cotidiana. Primeiramente, situou-se, de um modo geral, a dicotomia entre as esferas pública e privada e suas implicações políticas, com ênfase para o apagamento da mulher. Em seguida, tomando como base os Manuscritos de 1844, explicitou-se a crítica de Marx à “comunidade das mulheres” como sinônimo de universalização das alienações implícitas à propriedade privada – o que demonstra a ideia, ainda incipiente, de que o matrimônio burguês é constituído pela posse e pela opressão. Desse modo, pode-se perceber que, sobretudo porque estabelece uma clara distinção entre natureza e cultura, o autor pôde divorciar-se da moralidade hegeliana e afirmar o caráter histórico, ideológico e contingente das relações familiares.
Em seguida, ao discutir a relação entre a propriedade privada e a base familiar para Hegel (amor) percebe-se que esse primeiro estágio da eticidade hegeliana, responsável pela elaboração de uma imagem coerente do mundo, bem como pela constituição de sistemas individuais de referência, aparece atravessado por relações desiguais gestadas no âmbito privado e reproduzidas no plano político. Nesse ponto, ao demonstrar a primazia do individualismo possessivo da família burguesa, Marx já opera a semelhança entre o “proprietário privado” e o “marido burguês”, isto é, a ideia de que a intimidade burguesa é configurada, antes de tudo, pelo sentimento de apropriação do outro – fenômeno cuja explicação mais adequada parece estar no conceito de reificação.
Esse percurso filosófico de Marx, cuja crítica à moralidade parcelar e classista do projeto moderno se constitui como núcleo central, desemboca n'O Capital, onde a esfera íntima aparece com uma dupla função, a saber, a alimentação material do sociometabolismo do capital (por um lado na reprodução de mão-de-obra e por outro na reprodução de consumidores) e a alimentação moral do sistema (que se dá por meio da reprodução do sistema axiológico que perpetua a lógica da mercadoria). Aqui, segundo Marx, embora aparentemente o trabalho da mulher seja explorado pelo homem, na realidade, ele é explorado pelo modo capitalista de produção na medida em que o trabalho realizado “dentro do lar” se constitui como a principal fonte da desvalorização real do trabalho realizado “fora do lar”. Por outro lado, a constituição dessas relações assimétricas que definem a intimidade burguesa prejudica todas as reivindicações de reconhecimento e formação moral do indivíduo visto que a compreensão da alteridade, nesse contexto, resume-se à aceitação da autoridade – o que, naturalmente, desenvolve manifestações distorcidas e reificadas de convivência humana.
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