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Da necessidade de um proceder divino nos assuntos humanos: esquecimento, perdão e promessa como redenção aos infortúnios da ação humana
Pedro Lucas Dulci
Pedro Lucas Dulci
Da necessidade de um proceder divino nos assuntos humanos: esquecimento, perdão e promessa como redenção aos infortúnios da ação humana
The need to a conduct a divine in human affairs: forgetfulness, forgiveness and promise as redemption to the misfortunes of human action
Griot: Revista de Filosofia, vol. 13, núm. 1, pp. 349-372, 2016
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: O presente trabalho buscará fazer uma breve fenomenologia da ação humana tendo como ponto de inflexão a concepção de trágico na ação, isto é, pensar a ação humana como portadora de aspectos trágicos que exigem de nós respostas e atitudes que geralmente os sistemas éticos clássicos não conseguem proporcionar. Esta concepção pode ser apresentada a partir de vários autores de épocas e lugares bastante distintos. Todavia, optaremos por buscar em dois, dos três grandes tragediógrafos gregos, uma perspectiva trágica da ação humana para então examinarmos, a luz do pensamento de Friedrich Nietzsche e Hannah Arendt, possíveis modos de redenção aos infortúnios em que as ações humanas podem nos colocar.

THE NEED TO A CONDUCT A DIVINE IN HUMAN AFFAIRS:

FORGETFULNESS, FORGIVENESS AND PROMISE AS REDEMPTION TO THE MISFORTUNES OF HUMAN ACTION.

Palavras-chave:TragédiaTragédia,AçãoAção,PerdãoPerdão,EsquecimentoEsquecimento,PromessaPromessa.

Abstract: This paper aims to make a brief phenomenology of human action taking as turning point the tragic in action. Thinking human action as having tragic aspects that require us answers and attitudes that generally the classical ethical systems cannot provide. This assumption can be made from various authors from very different times and places. However, we will opt for seeking with two of the three great tragedians Greeks, a tragic view of human action and then examine the light of the thought of Friedrich Nietzsche and Hannah Arendt, possible modes of redemption to the misfortunes that human actions can put us.

Keywords: Tragedy, Action, Forgiveness, Forgetfulness, Promise.

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Da necessidade de um proceder divino nos assuntos humanos: esquecimento, perdão e promessa como redenção aos infortúnios da ação humana

The need to a conduct a divine in human affairs: forgetfulness, forgiveness and promise as redemption to the misfortunes of human action

Pedro Lucas Dulci
Universidade Federal de Goiás, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 13, núm. 1, pp. 349-372, 2016
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 14 Abril 2015

Aprovação: 20 Junho 2015

Introdução

Buscar compreender a extensão do significado das ações humanas no mundo da vida torna-se uma tarefa incontornável para todos aqueles que são colocados diante de uma perspectiva trágica da realidade. Isto porque a noção de trágico na ação apresenta-se a nós como uma lacuna na ética e na filosofia prática desde os esforços investigativos de Aristóteles até autores da contemporaneidade. Conforme desde muito cedo ficou claro para os seres humanos, o passado já não nos está disponível mais. Não é possível querer para trás, para falarmos com Nietzsche. Se não tomarmos ciência de tal fato poderemos facilmente nos tornar pessoas ressentidas. É preciso desenvolver uma compreensão mais trágica do agir humano e perceber a não-redutibilidade deste agir moral a qualquer racionalidade específica colocando assim, diante de nosso horizonte especulativo, uma verdadeira aporia para todos aqueles que buscam apreender o significado da ação humana. A riqueza elucidatória que uma concepção trágica da ação pode nos proporcionar não está reduzida a simplesmente algumas considerações sobre as catástrofes que envolvem as relações entre pessoas e das pessoas com o mundo. Na verdade, uma concepção trágica da ação humana diz respeito muito mais a uma concepção de âmbito filosófico concernentes à ética e à filosofia prática que tem entre os seus principais pressupostos a incontornabilidade da capacidade humana de desencadear acontecimentos cujas consequências e resultados nos escapam em nossos propósitos e motivações mesmo que tenham sido racional e milimetricamente programados. A concepção trágica na ação humana tem a condição de nos fazer conscientes, voluntária ou involuntariamente, da irreversibilidade, da ilimitabilidade e, principalmente, da imprevisibilidade das ações humanas no mundo. Isso acontece por um fato que Marta Nussbaum nos chama a atenção quando diz:

A tragédia grega mostra pessoas boas sendo arruinadas em razão de coisas que simplesmente acontecem a elas, coisas que elas não controlam. Isso é certamente triste; mas é um fato comum da vida humana, e ninguém negaria que acontece. [...] A tragédia também mostra, entretanto, algo nada mais perturbador: mostra pessoas boas fazendo coisas más, coisas que, em outras situações, seriam repugnantes ao seu caráter e aos seus compromissos éticos; e fazem essas coisas em virtude de circunstancias cuja origem não reside nelas. [...] Mas as tragédias também nos mostram e dão ênfase a um outro tipo de caso mais difícil – que passou a ser denominado, como conseqüência, a situação de “conflito trágico”. Nesses casos, vemos uma ação errada cometida, sem nenhuma compulsão física direta e em pleno conhecimento de sua natureza, por uma pessoa cujo caráter ou compromissos éticos a disporiam, do contrário, a rejeitar o ato. O constrangimento vem da presença de circunstâncias que impedem a satisfação adequada de duas pretensões éticas válidas. A tragédia tende, na totalidade, a levar tais situações muito a sério. Trata-as como casos reais de erro importantes para uma avaliação da vida ética do agente. A tragédia também parece considerar valiosa a ênfase nessas situações, explorando-as de muitas maneiras, indagando repetidamente o que é a bondade pessoal em tão alarmantes complicações. (NUSSBAUM, 2009, p. 22).

Por todos estes motivos que Nussbaum nos aponta, as tragédias têm grande potencial reflexivo para as questões morais que envolvem os seres humanos. Ainda que ela nos lembre que: “a tragédia grega, e em especial a tragédia de Ésquilo, tem sido reiteradamente atacada como moralmente primitiva” (Idem, p. 22) acreditamos que as discussões que as obras gregas trágicas levantam têm muito ainda a nos dizer. Isto porque, enquanto os arquitetos dos sistemas éticos buscavam meios para atingirmos o bem moral, nós seres humanos, sempre que lidamos com questões morais estamos tratando de acaso, das contingências, das fortunas que nos acontecem sem nenhuma previsão ou vontade e que exigem de nós respostas adequadas para estes acontecimentos. Dessa forma, uma consideração de inspiração trágica da atividade humana no mundo da vida tem maior potencial de descrição e esclarecimento do âmbito ativo do ser humano do que qualquer sistema moral pragmático-transcendental como queriam, por exemplo, Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas com sua ética do discurso.

Tendo tudo isto em vista de nosso horizonte investigativo, o presente trabalho buscará fazer uma breve fenomenologia da ação humana tendo como ponto de inflexão a concepção de trágico na ação, isto é, pensar a ação humana como portadora de aspectos trágicos que exigem de nós respostas e atitudes que geralmente os sistemas éticos clássicos não conseguem proporcionar. Esta concepção pode ser apresentada a partir de vários autores de épocas e lugares bastante distintos. Todavia, optaremos por buscar em dois, dos três grandes tragediógrafos gregos, uma perspectiva trágica da ação humana para então examinarmos, a luz do pensamento de Friedrich Nietzsche e Hannah Arendt, possíveis modos de redenção aos infortúnios em que as ações humanas podem nos colocar. Dessa forma, o presente trabalho procederá da seguinte maneira: (1) ocuparemos em delimitar, à luz das obras de Sófocles e Ésquilo, as principais marcas distintivas de uma concepção do trágico na ação para em seguida (2) faremos algumas considerações breves – porque demandaria outro trabalho para esmiuçarmos apenas este tema – sobre a contribuição de Aristóteles, por meio da noção de phronêsis, para a investigação da ação humana em uma perspectiva trágica para então (3) nos determos às contribuições do pensamento de Friedrich Nietzsche e Hannah Arendt sobre as potencialidades do esquecimento, do perdão e da promessa como condições de redenção para a condição do trágico na ação humana.

Por uma concepção trágica da atividade humana no mundo da vida

Uma das preocupações do pensamento ético grego que perpassou como denominador comum por vários autores e épocas distintas é o de como a boa vida humana depende das coisas ou situações que os seres humanos simplesmente não controlam. Conforme o poeta Píndaro mesmo nos diz: “a excelência humana cresce qual videira alimentada por verde orvalho, alçada, entre os homens sábios e justos, ao céu líquido.” (Neméias VIII. 39-42). Aqui chama-nos a atenção que a boa vida humana, a vida excelente, é um processo como o crescimento da videira: depende de uma série de fatores que podem, ou não, cooperar para que o seu fim seja alcançado com sucesso. Nas palavras de Aristóteles: “é evidente que a felicidade [eudaimonia] se mantém carente de coisas boas provindas do exterior, como dissemos: pois é impossível ou difícil fazer coisas boas sem recursos” (Ética a Nicômaco, 1099a31-3). Marta Nussbaum também nos mostra que: “a excelência da boa pessoa, escreve ele [Píndaro], é como uma planta jovem: algo que cresce no mundo, franzino, frágil, em constante necessidade de alimento provindo do exterior.” (2009, p. 1). Com estas constatações temos lançados os alicerces para uma concepção trágica da ação humana. Assim como as plantas, nós, para alcançarmos a excelência da boa vida, dependemos de um conjunto de situações, acontecimentos e pessoas que contribuirão para atingirmos condições naturais e sociais favoráveis à nossa formação enquanto indivíduos. Porém, justamente essas situações, pessoas e acontecimentos de que somos dependentes são aqueles que se apresentam a nós como imprevisíveis e submetidos a toda sorte de contingências. Diante disso, surgem algumas dificuldades inerentes ao próprio projeto humano de ser: como podemos nos formar ou progredir enquanto indivíduos que buscam a excelência da boa vida se, para tal, dependemos de tantas coisas que não nos podem ser garantidas por nada nem por ninguém? Como colocar nossa realização pessoal em empreendimentos tão frágeis como, por exemplo, a política, o amor e a amizade? E mesmo que consigamos nos tornar virtuosos, do ponto de vista existencial, como poderemos emitir algum louvor ou agradecimento, a quem quer que seja, se tudo não passou de um conjunto bem ordenado de contingências, fortunas e acasos?

Tais questões tradicionalmente não são respondidas pelos projetos filosóficos modernos e contemporâneos. Isso porque estes sistemas éticos nem se colocam estas perguntas. Talvez isso se dê por um fator que Nussbaum chama atenção quando diz:

a enorme influência da ética kantiana sobre nossa cultura intelectual levou a uma duradoura negligência para com esses temas nas obras sobre a ética grega. Quando são tratados, com frequência se sugere que a maneira como os gregos propõem os problemas da ação e da contingência é primitiva ou mal orientada. Pois o kantiano acredita que há uma esfera de valor, a esfera do valor moral, que é inteiramente imune às investidas da fortuna. Seja o que for que aconteça no mundo, o valor moral da boa vontade permanece intacto. (NUSSBAUM, 2009, p. 4).

Tal consideração de Marta Nussbaum é de suma importância justamente por um fato que Carl Schmitt também nos apresenta quando afirma que Kelsen e os neokantianos em geral não sabem o que fazer com os casos de exceção justamente porque só sabem pensar a partir da regra (cf. SCHMITT, 2006, p. 14). Isso porque a exceção é muito mais interessante, do ponto de vista elucidatório nas situações humanas, do que a regra. Enquanto a regra não prova nada, por si só, a exceção não só comprova a regra, como também lhe configura a forma. Sendo assim, na ação humana, que é da ordem da exceção por definição, “a força da vida real transpõe a crosta mecânica fixada na repetição [pelas regras].” (Idem, p. 15). Porém lamentavelmente nossa cultura intelectual, como salientou Marta Nussbaum, está marcada pelos surtos kantianos que buscam reduzir o âmbito da existência humana prática a máximas teóricas sem real valor de efetividade para o mundo da vida. Isto que parece ser uma questão marcadamente moderna e contemporânea, na verdade não é. Os gregos dos séculos V e VI a.C. já haviam se ocupado com tais acontecimentos e, por isso, têm muito a nos dizer. Façamos um retorno aos gigantes da tragédia grega Ésquilo, de Elêusis e Sófocles, de Colono.

O florescimento das obras de Sófocles e Ésquilo se deu no auge da democracia grega. É bem provável que isto tenha acontecido justamente porque os cidadãos gregos naquela época estavam percebendo que suas ações, decisões e medidas particulares ou públicas decidiam os rumos que a polis tomaria. Sófocles, por exemplo, participou ativamente da vida pública de sua pátria sendo tesoureiro geral de Atenas em 443/2 e também comandante do exército em expedições militares (estratego). Talvez tudo isso tenha lhe dado sensibilidade para perceber que a virtude humana não é capaz de nos livrar daquilo que nos escapa o controle e acaba nos atingindo e atingindo a outros. Também pode ser este o motivo que leva Werner Jaeger a dizer, a respeito de Ésquilo, que: “o Estado é o espaço ideal e não o lugar acidental dos seus poemas.” (2003, p. 285). Por isso o herói trágico difere consideravelmente do herói épico. A intenção destes dois tragediógrafos é justamente mostrar que não somos capazes, por melhor que sejamos ou por mais que nos esforcemos, de escapar ou de controlar as fortunas que nos acometem por meio daquilo que nossas ações desencadeiam ou por meio da ação dos outros. Não é esta a constatação a que Édipo chega quando, ao final de sua empreitada, percebe que nada adiantou correr tal carreira para se livrar do oráculo de Apolo e, por isso, fura os olhos? Nas suas próprias palavras:

Foi Apolo! Foi sim, meu amigo!

Foi Apolo o autor de meus males,

de meus males terríveis; foi ele!

Mas fui eu quem vazou meus olhos.

Mais ninguém. Fui eu mesmo, o infeliz!

Para que serviriam meus olhos

quando nada me resta de bom

para ver? Para que serviriam? (SÓFOCLES, Édipo Rei, 1576-1583).

Enquanto o herói épico até conseguiria lutar contra os deuses, o herói trágico sempre é retalhado pelas circunstâncias que lhe acometem. A tragédia não está no fato de Édipo ter sido atingido por algumas desgraças de ordem pessoal, por exemplo. Antes diz respeito à sua condição humana incontornável de estar em uma posição ontológica entre deuses e plantas – para lembrarmos-nos do dito de Píndaro.

São todos estes fatos que podem nos fornecer as condições metodológicas de possibilidade de delimitarmos as principais características de uma concepção trágica da ação humana a partir da obra destes dois autores. No caso específico de Ésquilo é justamente a precisão de guiar a atenção dos seus ouvintes ao fato de o destino dos homens ser enviado pelos deuses que acaba produzindo acontecimentos e eventos que abalam a vida de qualquer herói trágico. É no efeito religioso na vivência humana que Ésquilo consegue despertar o especificamente trágico da ação humana. Em seu drama não é o homem o problema, mas sim o destino. A presença do homem no mundo é o fator desencadeador de eventos que desafia a própria physis e por isso torna a ação humana trágica. Nas palavras de Jaeger:

É indiscutível a presença desta “infelicidade imprevisível” no mundo. É o resíduo irredutível da velha Ate de que fala Homero e que conserva a sua verdade, ao lado do reconhecimento da própria culpa. Está intimamente vinculada à experiência humana que os mortais denominam sorte, pois esta se transforma facilmente na mais profunda dor, assim que os homens se deixam seduzir pela hybris. O perigo demoníaco reside na insaciabilidade do desejo, que, por mais que tenha, sempre que o dobro. Assim, a felicidade e a fortuna não ficam muito tempo nas mãos de quem as goza. É na própria natureza dela que reside a sua perpétua mudança. A crença de Sólon numa ordem divina do mundo encontra o seu mais sólido fundamento nesta dolorosa verdade. O próprio Ésquilo seria inconcebível sem esta convicção, que, mais do que um conhecimento, é para ele uma fé. (JAEGER, 2003, p. 302-303).

Com isso Werner Jaeger, à luz da produção ésquiliana, buscar nos mostrar que a sina do herói trágico consiste no fato de que ele pode até diminuir, mas em hipótese alguma – por meio de crença religiosa, racional ou algo parecido – consegue evitar as conseqüências imprevisíveis que suas ações podem acarretar à realidade. Isto torna não só a virtude e a bondade, mas também a felicidade algo frágil e sujeito a uma infinidade de fortunas. Esta é a grande chave-hermenêutica para compreendermos o pensamento que perpassa a obra de Ésquilo: “quando o coro de Prometeu diz que só pelo caminho da dor se chega ao mais elevado conhecimento, atingimos o fundamento originário da religião trágica de Ésquilo. Todas as suas obras se fundam nesta grande unidade espiritual.” (JAEGER, 2003, p. 313).

No que diz respeito à obra de Sófocles, temos um enfoque diferente, mas que só vem acrescentar a nossa concepção do trágico na ação humana. Em Sófocles temos uma manifestação histórica da evolução da poesia grega. Agora não apenas o âmbito religioso, mas o estético e o ético também estão em jogo na sua representação da condição humana. Mais do que simplesmente descrever casos factuais da cotidianidade que o circundava, Sófocles elaborou hipérboles da condição humana, como Édipo, por exemplo, para dar forma à sua concepção trágica da realidade. Concepção esta, segundo Jaeger, que:

Passam a uma posição secundária as exigências da teodicéia, que tinham dominado o pensamento religioso, desde Sólon até Teógnis e Ésquilo. O que em Sófocles é trágico é a impossibilidade de evitar a dor. É esse o rosto inevitável do destino, do ponto de vista humano. Não é que seja abandonada a concepção religiosa do mundo, de Ésquilo; de modo nenhum. Simplesmente já não é nela que se coloca ênfase. Vê-se isto com especial clareza numa das primeiras obras de Sófocles, a Antígona, onde ainda aparece com vigoroso relevo aquela concepção de mundo (JAEGER, 2003, p. 329).

Dessa forma, Werner Jaeger mostra-nos o aprofundamento na noção trágica do herói que existe na passagem da obra de Ésquilo para Sófocles. Ao invés de colocar os seus heróis como sofredores injustos a uma Ate destinada pelos deuses, Sófocles apresenta-nos uma Ate irracional que não pode, justamente por definição, ser compreendida ou mesmo reduzida por raciocínio ou formula racional nenhuma. . Porém isso não limita os personagens hiperbólicos de Sófocles a uma passividade inerte frente a Ate desmesurável. Na verdade, Sófocles:

não partilha as resignadas palavras de Simônides, segundo as quais o homem tem que perder necessariamente a Arete, quando o infortúnio inexorável o derruba. A elevação dos seus grandes sofredores à mais alta nobreza é o Sim que Sófocles dá a esta realidade, a esfinge cujo enigma fatal consegue resolver. É o homem trágico de Sófocles o primeiro a elevar-se a uma autêntica grandeza humana, pela completa destruição da sua felicidade terrena ou da sua existência física e social. (JAEGER, 2003, p. 331).

Para Sófocles, a grandeza humana está para além deste sofrimento incontornável que acomete irremediavelmente o ser humano. Ao contrário de Ésquilo, em Sófocles temos uma intensificação da ação trágica humana. Ao invés de ter a tragédia em baixa cota, Sófocles encontra justamente nela o repouso do coração humano. É no “autoconhecimento trágico do Homem que aprofunda o γνωθι σεαυτον délfico até chegar à intelecção da inanidade espectral da força humana e da felicidade terrena.” (JAEGER, 2003, p. 332). É justamente este conhecimento que dá condições de que o ser humano englobe também a consciência indestrutível e invencível da grandeza do homem sofredor. A inevitabilidade da dor constitui, desta forma, uma parte essencial do ser dos heróis trágicos de Sófocles e de toda a sua percepção da realidade em que transcorre a ação humana. Para ele, só precisamos assumir a tragicidade constitutiva e construtiva da condição humana buscando ser virtuosos na medida do possível. Na verdade é na ausência da medida que reside grande parte do mal que acomete os seres humanos. Conforme Werner Jaeger: “é em Sófocles que atingimos o apogeu do desenvolvimento da idéia grega de medida, considerada como o mais alto valor” (2003, p. 325). O ético será aquele que encontrará a justa medida para sua ação em cada contexto bem específico, para falarmos com Aristóteles.

Com tudo isto, porém, não podemos de forma alguma pensar que Sófocles queira de alguma forma explicar a existência humana visando redimi-la. Não é isto que ele faz quando tem a oportunidade de continuar o drama de Édipo em Édipo em Colono. Ali o destino de Édipo não é absolvido nem condenado. Simplesmente Édipo agora encara sua dor e nada mais. No máximo a sua consciência o ajuda a suportar um pouco a dor que não o abandona mesmo que dela tenha consciência. Aqui não temos tipo algum de crença ou saber que buscar curar a vida pela vida. O que na verdade Sófocles gostaria de nos chamar a atenção é para o fato de que a dor, esta que as filosóficas práticas de todos os tempos buscam eliminar, é justamente aquilo que glorifica o homem. Podemos desafiar essa condição incontornável algumas vezes em nossa vida ainda que nunca possamos eliminá-la totalmente de nossa existência. Conforme nos lembra Jaeger:

Tão incompreensível como a senda da dor, pela qual a divindade conduz Édipo, é o milagre da salvação que no fim o espera. Os deuses, que te feriram, de novo te porão de pé. Não há olhos mortais que possam ver este mistério. Só pode participar nele por meio da consagração à dor. Não se pode saber como, mas a consagração à dor aproxima-o dos deuses e separa-o do resto dos homens. (JAEGER, 2003, p. 334).

Temos aqui talvez a síntese mais precisa das intenções de se recuperar uma concepção trágica da ação humana: ver na dor não o fator a ser eliminado pelas nossas investidas éticas e morais, mas tão somente o elemento que caracteriza a condição humana e que nos dá condições de sermos conscientes dos eventos e dos acontecimentos que podemos desencadear com nossas ações. Conforme os sóbrios, e também sombrios, comentários do professor Luiz Felipe Pondé: “o que nos humaniza é o fracasso, homens e mulheres muito felizes não são homens e mulheres. Tenho medo de pessoas muito felizes.”, isto porque, segundo ele: “a consciência trágica, seja ela cósmica, seja miserável, miúda e cotidiana, determina o horizonte onde se move o humano.” (PONDÉ, 2010, p. 14). Em Sófocles temos Édipo como este tipo ideal de humano capaz de sofrer muito e continuar vivendo até mesmo, em alguns momentos, de maneira gloriosa e bela em meio a tragicidades da vida.

Do olhar trágico a uma reconsideração do âmbito prático da existência

Caminhando na esteira investigativa deste trabalho, a saber, de esboçar uma fenomenologia da ação humana tendo como ponto de inflexão a concepção de trágico na ação, dirigimo-nos agora a alguns séculos depois de Ésquilo e Sófocles para o pensamento moral de Aristóteles que, em muito, foi elaborado à luz dos temas tratados pelas tragédias. Segundo Marta Nussbaum: “Aristóteles desenvolve uma concepção da relação apropriada de um ser humano com a týkhe que retoma e esclarece melhor muitas intuições das tragédias.” (2009, p. 207). Desta forma, Aristóteles buscou recuperar da cultura popular grega o que Platão quis superar. Conforme Pierre Aubenque: “todos estes temas, que pertencem às velhas camadas da sabedoria popular grega, encontram sua expressão mais acabada na tragédia.” (2003, p. 257). Enquanto Platão buscava reduzir os acontecimentos da vida prática a uma racionalidade específica de caráter universal e objetivo, Aristóteles, inspirado pela visão de mundo das tragédias, mostrou-nos que a práxis demanda um conhecimento dos seres humanos diferente daquele conhecimento do âmbito teórico: “a sabedoria prática não concerne apenas a universais; ela deve também reconhecer particularidades, pois é prática, e a prática concerne a particulares.” (Ética a Nicômaco, 1141b4-6). O nome desta sabedoria prática é phronêsis. O esforço de dedicar-se a mostrar que a esfera prática da existência humana demandava um tipo de conhecimento, de certa forma indefinido e aproximado, foi a grande contribuição de Aristóteles para a filosofia prática que se coloca as mesmas questões tratadas por autores como Ésquilo e Sófocles, por exemplo. Nussbaum nos mostra que este esforço de Aristóteles foi realmente uma contribuição pelos seguintes motivos:

A investida de Aristóteles contra o objetivo científico [platônico] da comensurabilidade apoiou-se na idéia de apresentar uma reflexão ou definição de cada um dos valores em questão. [...] O cientista percebe que na atividade cotidiana de deliberação somos confundidos e afligidos pela particularidade complexa dos casos que se nos apresentam, sempre renovados, à decisão. Cada nova situação pode nos surpreender como diversa de qualquer coisa em certos aspectos; cada coisa valiosa pode parecer qualitativamente individual, diversa de qualquer outra. Esse modo de ver as coisas tem ao menos duas conseqüências infelizes. Primeira carecemos de entendimento abrangente da esfera prática: não podemos organizá-la por nós mesmos, explicar de forma perspícua seus traços significativos, nos transporta a uma nova situação preparados para encontrar traços que já aprendemos. Estamos, cognitivamente, á mercê de cada novo evento, e cada um se apresenta a nós como um mistério. Isso limita severamente nossas tentativas de planejar uma boa vida e de executar esses planos. [...] O cientista (platônico) gostaria de propor que impomos essa demanda por universalidade o máxima que podemos, procurando alcançar um sistema de regras práticas que nos preparará antes do fato para as exigências de nova situação, bem como procurando fazer-nos ver a nova situação nos termos desse sistema, meramente como um caso que recai sob sua autoridade. Assim jamais seremos pegos de surpresa. (NUSSBAUM, 2009, p. 260).

Dessa forma, Aristóteles é muito mais grego do que Platão, por exemplo, na medida em que mostra que no âmbito da filosofia prática o conhecimento necessário para o ser humano poder se movimentar pelo mundo da vida de forma minimamente estável é aquele que se mostra sempre ambíguo e irredutível a qualquer padrão racionalmente estabelecido. Sua insistência é em mostrar que não é em alguma episteme específica concernente a preceitos universais e a máximas gerais que a sabedoria prática encontra seu horizonte de ação, ou seja, “é obvio que a sabedoria prática não é entendimento científico ou dedutivo. Pois ela se ocupa do imediato e particular” (EN, 1142a23). Na práxis sempre temos que tomar medidas aproximadas, precárias e incertas e, justamente por isso, “a lei não tem poder algum que obrigue à obediência a não ser o do hábito” (EN, 1268b28). Isso torna nossa ação trágica, pois no âmbito da ação humana (política, economia e ética) não procedemos como no âmbito teórico e filosófico (sophia), em que podemos dominar conceitos e teorias claras e distintas. Os assuntos humanos são difíceis e muito específicos, fazendo com que a sua medida necessária e justa nunca seja a mesma para os vários casos específicos. A justa medida é sempre algo sinuoso e nunca pode ser diluído por algum saber preciso. Em suas palavras: “toda lei é universal; mas sobre algumas coisas não é possível que uma asserção universal seja correta.” E disso tira a conclusão que: “assim, nessas matérias em que é necessário falar universamente, mas não é possível fazê-lo corretamente, a lei toma o caso habitual, muito embora não ignore a possibilidade de errar o alvo.” (EN, 1137b13).

Quem também compreendeu isto muito bem, identificando uma tendência distintamente moderna de reduzir o campo humano às regras claras e distintas, foi Alexis de Tocqueville quando, observando o comportamento dos americanos, disse:

Deus não pensa, de modo nenhum, no gênero humano em geral. Vê, com um só olhar, e separadamente, todos os seres humanos que se compõe a humanidade, e percebe cada uma deles com as semelhanças que o aproximam de todos e as diferenças que o isolam do conjunto. Por isso, deus não tem necessidade de ideias gerais, isto é, jamais sente ser preciso encerrar muito grande número de objetos análogos sob uma mesma forma a fim de mais comodamente pensar neles. Não é assim que acontece com o homem. Se o espírito humano desejasse julgar e examinar individualmente todos os casos particulares que lhe chamam a atenção, logo perder-se-ia no meio da imensidão de detalhes e nada mais veria [...]. De maneira alguma atestam as ideias gerais a força da inteligência humana, mas, pelo contrário, a sua insuficiência, pois não há seres exatamente semelhantes na natureza: não há fatos idênticos, não há regras aplicáveis indistintamente e da mesma maneira a vários objetos a um tempo. [...] Os homens que vivem nos séculos de igualdade têm muita curiosidade e pouco lazer; a sua vida é tão prática, tão complicada, tão agitada, tão ativa, que lhes resta muito pouco tempo para pensar. Os homens dos séculos democráticos ama as ideias gerais, porque estas podem dispensá-los de estudar os casos particulares; elas contêm, se assim posso expressar-me, muitas sob um pequeno volume e dão em pouco tempo um grande produto. (TOCQUEVILLE, 2010, p. 297-298).

Neste longo trecho, valendo-se do artifício da ideia de Deus, Tocqueville nos mostra de maneira muito precisa que a tendência de se valer de regras gerais, e desprezar uma análise justa e pormenorizada dos assuntos humanos, é uma iniciativa que visa muito mais ser pragmática do que propriamente justa e eticamente honesta. Nós, habitantes das modernas democracias, somos obrigados a perceber que quando não há tempo para: “formular uma decisão plenamente concreta, examinando todos os traços do caso presente, é melhor seguir uma boa regra resumida do que fazer uma escolha concreta precipitada e inadequada.” (NUSSBAUM, 2009, p. 263). Porém, muitos séculos antes, Aristóteles havia percebido esta tendência e dedicou-se a mostrar que ela não é a disposição ideal para os assuntos humanos – ainda que as regras e leis políticas confiram estabilidade para o empreendimento político e, por isto, seja o único motivo de Aristóteles preferir um governo de leis ao invés de um por decreto –, pois, assim como Ésquilo, Sófocles e tantos outros gregos tinham nos mostrado, “se houvesse homens com essa ciência [precisa dos assuntos humanos], seria preciso inclinar-se diante deles.” (AUBENQUE, 2003, p. 259). Conforme o comentário anterior de Tocqueville, é Deus, e não os homens, que consegue pensar e agir no âmbito dos assuntos humanos de modo totalmente particular, pois somente ele teria condições metodológicas de possibilidade para agir assim graças à sua “perspectiva privilegiada”.

Contudo, cabe aqui ainda ponderar que, imediatamente depois de estabelecer a afirmação de que faltam-nos homens divinos, Pierre Aubenque faz uma pergunta paradigmática nesta altura de nossa investigação, a saber, se esta ciência prática é algo impossível de encontrar em homens: “o que há para saber?” (Idem, p. 259). A resposta também nos é dada por ele:

Pouco a pouco se esboçam os delineamentos de uma “prudência” que reconhece que o racional (defender a integridade do Estado contra a rebelião, de onde quer que venha) pode não ser razoável (porque, neste caso particular – mas todos os casos são particulares – a rebelde também tem boas razões), que sabe que neste mundo há problemas insolúveis e se contata, então, com compromissos, deixando aos cuidados dos deuses a verdadeira solução. [...] E o coro não dirá outra coisa quando, mais tarde extrair a lição da tragédia: “a prudência (τό φρονειν) é de longe a primeira condição da felicidade. (AUBENQUE, 2003, p. 259-260).

Com esta afirmação, começa a ficar mais claro no horizonte de nossa investigação os caminhos para uma possibilidade de redenção das infortunas da ação – que buscaremos mostrar no próximo tópico do presente trabalho. O que se mostra neste momento por meio da fala de Aubenque é que a aposta de Aristóteles em um saber, ainda que sinuoso e ambíguo, como é a prudência, é o melhor meio para procedermos no campo político e ético que é o ambiente dos assuntos humanos. Não temos aqui uma espécie de crença no não-saber – ao estilo socrático. Na verdade o que temos aqui é uma consciência trágica que suspeita de nossas próprias capacidades de redimirmos os malefícios que nossas próprias ações podem causar. É um modo de ser que visa buscar sermos bons, mas sem excessos, pois até mesmo o excesso de bondade pode acarretar situações indesejáveis. A areté é do âmbito dos deuses. Nós estamos muito longe deles. Vamos deixar de lado, então, as grandes pretensões de virtude e de excelência para deuses, pois quando nós incorremos nas tentativas de nos tornarmos heróis de bondade e de virtude, acabamos produzindo uma “sabedoria” sem nenhuma possibilidade de ser aplicada efetivamente à realidade humana e, rapidamente, nos mostramo-nos ingênuos em nossos empreendimentos práticos e éticos. Somente a experiência e o passar dos anos poderão nos dar um pouco mais de humildade e de condições para nos movimentarmos de maneira minimamente prudente sem que nos esqueçamos de temer a hybris reduzindo-a a um ou dois conceitos da razão pura. Não há virtude que nos salva da toda desgraça e nem sabedoria que nos livre de qualquer erro. O grande lema dos seres humanos deve ser: respeite o que te escapa e fuja dos excessos, pois nós não somos a medida de todas as coisas (cf. AUBENQUE, 2003, p. 269).

Toda essa reflexão aristotélica nos remete, harmonicamente, ao terceiro momento do presente trabalho que se propõe a trabalhar de maneira bem pontual duas atitudes investigadas por Friedrich Nietzsche e Hannah Arendt – principalmente nas obras Genealogia da moral e A condição humana – como possibilidades de redenção para os infortúnios desencadeados pela ação humana, a saber, o perdão e o esquecimento.

Por um proceder divino nos assuntos humanos

Antes de nos dirigirmos ao pensamento de Nietzsche e Arendt, convém, ainda, destacarmos alguns pontos não trabalhados no pensamento aristotélico. Conforme tudo que dissemos no tópico anterior, a proposta de Aristóteles é, à revelia do projeto platônico, mostrar que nunca vamos chegar a algum tipo de imortalidade por meio de alguma dieta teórica ou mapa conceitual da realidade. Devemos assumir nossa impossibilidade de sempre conseguirmos deliberar acertadamente sobre todos os assuntos humanos. Este âmbito é, por excelência, o espaço da contingência, da fortuna, daquilo que simplesmente nos escapa. Foi assim que Aristóteles atacou uma noção corrente, desde Sócrates e Platão, de razão prática como uma tékhne. Na perspectiva de Nussbaum ele: “desenvolveu ainda uma concepção de raciocínio prática que vimos prenunciada na Antígona, em que a receptividade e a habilidade de ceder flexivelmente à ‘matéria’ do particular contingente” (2009, p. 270). Contudo, não temos aqui, no pensamento de Aristóteles, um projeto filosófico de resignação frente à indefinição ou a indeterminação de tudo que diz respeito à prática. Antes o contrário. No livro X da Ética a Nicômaco, Aristóteles mostra exatamente aonde pretendia chegar com toda sua reflexão sobre a esfera da ação humana:

Não devemos seguir aquelas pessoas que nos instam a, sendo humanos, pensar em coisas humanas, e sendo mortais, a pensar no que é mortal [fazendo referência a Eurípedes e a Píndaro]; ao contrário, devemos tanto quanto possível agir como se fôssemos imortais, e esforçar-nos ao máximo para viver de acordo com o que há de melhor em nós, pois embora esta nossa parte melhor seja pequena em tamanho, em poder e importância ela ultrapassa todo o resto. (Ética a Nicômaco, X, 7, 1177b33- 1178a2).

Nesta bela passagem, Aristóteles não está esboçando nenhuma teoria soteriológica de imortalização da alma por meio de qualquer prática, rito ou crença. Na verdade, o autor está nos fazendo um convite, por demais promissor, quando temos em nossa frente uma concepção trágica da ação humana e da realidade dos assuntos do mundo da vida, a qual seja, de não nos deixarmos influenciar pelas propostas éticas, políticas e intelectuais, de maneira geral, que visam limitar nossa ação e pensamento ao que é humano e mortal. Antes devemos, o “tanto quanto possível”, buscar orientar nosso pensamento e ação a partir de um ponto de vista divino e imortal. Conforme Aubenque, Aristóteles nos “convida a livrarmo-nos dos entraves do ‘pensamento mortal’ e elevarmo-nos, pela contemplação, a um saber de tipo divino.” (2003, p. 269). O homem já não será mais a medida de todas as coisas, antes buscará uma medida superior a si mesmo para pautar seu agir e seu pensar e, assim, experimentar um saber mais divino, mais sensato e mais justo. Devemos investir em elaborar estratégias para “como arqueiros, termos maior probabilidade de atingir nosso alvo se tentarmos através da reflexão obter dele uma visão mais clara.” (NUSSBAUM, 2009, p. 270). Dessa forma, buscaremos, por meio deste desafio aristotélico, tender aos deuses, mas sem nunca incorrer no equívoco de pretender alcançá-los ou ocupar o lugar que apenas lhes cabe. Será a busca de colocar o ser humano em uma posição de destaque sem necessariamente divinizá-lo, pois “a pessoa de sabedoria prática [ainda] habita o mundo humano, e não procura elevar-se acima [ou para fora] dele” (Idem, p. 274). Este é o modo de imortalizar o homem de Aristóteles. Conforme bem mostrou Pierre Aubenque:

Não se prestou atenção suficiente ao fato de Aristóteles acrescentar na célebre passagem que citamos acima, onde éramos convidados a “imortalizarmo-nos”: εφ’ όσον ενδέχεται, tanto quanto possível. Se levarmos a sério a restrição, ela significa que devemos tender à imortalidade, tender à imitação de Deus, sem a segurança de nunca atingi-la inteiramente: a imortalidade de que fala Aristóteles (e que não é, ma vez mais, a imortalidade da alma), comporta graus e talvez uma infinidade deles. Para o homem, contentar-se com sua condição seria frouxidão, mas, para ultrapassá-la, não basta querer e acreditá-lo seria desmesura. Assim, ao mesmo tempo em que Aristóteles pensa ter conjurado o antigo escrúpulo, o encontra mais estreitamente circunscrito, é verdade, mas sempre presente: escrúpulo residual mas indestrutível, que exprime a distancia infinita, mesmo que seja apenas infinitesimal, que separa o homem de Deus. (AUBENQUE, 2003, p. 273).

Aubenque chama-nos a atenção aqui a intenção original dos versos aristotélicos de convidar seus leitores a uma tomada de postura mortal (considerando todas as limitações a que esta atitude está circunscrita) e encontra a virtude na busca pela imortalidade (ainda que seja uma busca que, por definição, implica em uma caminhada sem final plenamente alcançável). Este é o convite paradoxal de Aristóteles para aqueles que se propõem a compreender a extensão do significado das ações humanas no mundo da vida diante de uma perspectiva trágica da realidade humana. O convite a desenvolver uma potencialidade – que Santo Agostinho no capítulo 23 do livro XI da Cidade de Deus garantiu que temos por termos sido criados a imagem e semelhança de Deus – de justamedir. Dessa forma exerceríamos o nosso pequeno poder naquilo que não temos todo-poder. Reconheceríamos nossos limites de seres mortais que somos, mas também saberíamos que: “é possível para o homem, por seu conhecimento, sua ação e seu trabalho, empurrá-los sempre para mais longe” (AUBENQUE, 2003, p. 276). Com tudo isso, temos, no âmbito dos assuntos humanos, aquilo que nos dignifica e que, ao mesmo tempo, coloca-nos em risco. Este é o “humanismo trágico que convida o homem a desejar todo o possível, mas somente o possível, e deixar o resto aos deuses.” (Idem, p. 281).

A pergunta, no entanto, que paira no ar neste momento é: como fazer isto de modo bem concreto e prático, como bem requer os assuntos humanos? Qual é o tipo de comportamento que será preciso ser desenvolvido pelos homens que tomam consciência da experiência trágica da contingência nos assuntos do mundo da vida? A hipótese aventada neste trabalho é que Friedrich Nietzsche e Hannah Arendt nos dão esta resposta: a capacidade de esquecer, de perdoar e de prometer.

Estes dois pensadores, ainda que estejam historicamente distantes um do outro, caminham em uma mesma trilha propositiva no que diz respeito à investigação do significado e das implicações diretas que são inferidas de uma concepção trágica da ação humana. E, justamente por isso, podemos encontrar no pensamento dos dois autores frutíferas contribuições para pensarmos meios de redimir as infortunas da ação humana no mundo da vida. Começaremos examinando a contribuição de Friedrich Nietsche ao tema para depois seguirmos no pensamento de Hannah Arendt. Essa escolha não foi feita apenas por motivos historiográficos, mas porque acreditamos que na passagem do pensamento de Nietzsche para Arendt existe uma espécie de aprofundamento e radicalização dos meios de redimir os infortúnios da ação humana. Dessa forma, se apresenta didaticamente mais profícuo fazermos o caminho histórico.

Tanto Nietzsche quanto Arendt compreendiam a ação humana de uma perspectiva trágica, semelhante à que tentamos apresentar no primeiro tópico deste trabalho, isto é, como incontornavelmente contingente, irreversível por definição e, principalmente, totalmente imprevisível no que diz respeito aos eventos que poderá desencadear no mundo. Justamente por isso que os dois filósofos buscaram deixar claro que a ação humana muitas vezes é tributária de uma necessidade de reconciliação com o passado e com aquilo que eventualmente produziu. Uma vez que não se pode querer para trás, pois o passado já não nos é mais acessível, urge pensar outros meios de reconciliação, meio este que Nietzsche encontra na potencialidade da capacidade de esquecimento. Em suas palavras:

Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?... O fato de que este problema esteja em grade parte resolvido deve parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua de modo contrário, a do esquecimento. Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”. Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer impertubado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo paras as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prover, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: como o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue “dar conta”... Precisamente esse animal que necessita esquecer esquecem no qual o esquecer é uma força, uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, como cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos – nos casos em que se deve prometer: não sendo um simples não-mais-poder-livrar-se da impressão uma vez recebida, não a simples indigestão da palavra uma vez empenhada, da qual não conseguimos dar conta, mas sim um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade: de modo que entre o primitivo “quero”, “farei”, e a verdadeira descarga da vontade, seu ato, todo um mundo de novas e estranhas coisas, circunstância, mesmo atos de vontade, pode ser resolutamente interposto, sem que assim se rompa esta longa cadeia do querer. Mas quanta coisa isto não pressupõe! (NIETZSCHE, 2009, p. 43-44 [2ª diss., § 1] grifos no original).

Nesta longa seção da 2ª dissertação da Genealogia da Moral, Nietzsche coloca os principais pontos da sua argumentação concernente a potencialidade do esquecimento que serão posteriormente melhor desenvolvidos nas próximas seções da 2ª dissertação. Gostaríamos de chamar a atenção para os seguintes apontamentos nietzschianos: logo no início do parágrafo ele mostra que o principal projeto que a natureza impôs ao homem foi torná-lo confiável, isto é, alguém que “pode fazer promessas”. Caso os seres humanos não desenvolvessem esta capacidade, a convivência entre eles seria impossível – argumentaremos melhor este ponto quando entrarmos no pensamento de H. Arendt que viu justamente aí um ponto de convergência em sua argumentação (cf. ARENDT, 2010, p. 306). Como hoje o projeto social humano já está em vigor, Nietzsche pode dizer que: “este problema esteja em grande parte resolvido” e, justamente por isso, é preciso neste momento, em que o homem aprendeu a fazer promessas e buscou se tornar um ser confiável, desenvolvermos a capacidade de apreciar “a força que atua de modo contrário, a do esquecimento”.

Dessa forma, a tese principal nesta seção é: como a ação humana no mundo da vida é entendida aqui como a capacidade distintamente humana de desencadear eventos e acontecimentos totalmente imprevisíveis em seus resultados e irreversíveis em suas conseqüências, seria simplesmente impossível existir em um ambiente assim caso não desenvolvêssemos a capacidade de esquecer aquilo que é: “por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido” graças à nossa ação ou à ação dos outros que nos circundam. Segundo Nietzsche: “não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento”, ou seja, estaríamos sempre sendo limitados e perturbados por aquilo que simplesmente não desocupa nossa consciência. E daqui surge a ilustração do dispéptico: aquele que, vivendo em sociedade, não consegue desenvolver a capacidade de esquecer os eventos que desencadeia ou que experimenta, é comparado ao que tem problemas gástricos impossibilitando a natural digestão daquilo que ingere. Assim como o alimento que ocupa o estômago, a memória ressentida ocupa a consciência impedindo que “novamente haja lugar para o novo”, para a novidade em meio ao cenário do mundo da vida. Novidade esta que é característica dos homens que, por meio de suas ações, sempre desencadeiam novos eventos onde estão – esta potencialidade do ser humano “significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável.” (ARENDT, 2010, p. 222). Por tudo isso, o esquecimento não somente tem a capacidade de ser uma “espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz” do indivíduo que vive em meio a este ambiente trágico da ação humana, mas também é aquilo que nos dá condições de possibilidade para continuar habitando o mundo da vida. Por isso que “o esquecer é uma força, uma forma de saúde forte”.

Diante de tudo isto que apresentamos até aqui, fica claro que o elogio nietzschiano ao esquecimento não é uma ingênua tentativa de simplesmente desprezar o passado em favor de uma afirmação pura e simples do presente. Antes, o que Nietzsche procura aqui é impedir que o ressentimento ou uma moral dominante baseada na memória, na punição e na vingança seja um obstáculo para aquilo que é a maior marca do ser humano: produzir a novidade por meio de sua ação no mundo. Nas suas palavras: “é totalmente impossível viver sem o esquecimento” isto por que: “existe um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, que prejudica o vivente e por fim o destrói, seja um homem, um povo ou uma cultura.” (NIETZSCHE, 1999, p. 250, grifos no original). Dessa forma, o esquecimento seria uma espécie de libertação para que os homens continuassem sendo homens, no melhor sentido da palavra, no mundo agindo e não deixando ser prejudicados por nenhum sujeito ou situação.

Esta libertação nietzschiana afunila e aprofunda-se assumindo dois outros modos de apresentação na obra de Hannah Arendt, a saber: o perdão e a promessa. Assim como Nietzsche, Arendt acredita que o meio para redimirmos a condição trágica da ação humana encontra-se nas potências da própria ação humana e não em uma instância superior ou diferente do próprio ser humano – algo diferente acontecia, por exemplo, como o homem enquanto animal laborans, homo faber ou pensador, pois estes encontravam em algo inteiramente diferente de si mesmos o que lhes salvava (cf. ARENDT, 2010, p. 294). É o mesmo ser humano que desencadeia eventos irreversíveis e imprevisíveis que pode também desenvolver duas capacidades reparadoras de suas ações. Nas palavras de Arendt:

O remédio contra a irreversibilidade e a imprevisibilidade do processo que ela desencadeia não provém de outra faculdade possivelmente superior, mas e uma das potencialidades da própria ação. A redenção possível para a vicissitude da irreversibilidade – da incapacidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia – é a faculdade de perdoar. O remédio para a imprevisibilidade, para a caótica incerteza do futuro, está contido na faculdade de prometer e cumprir promessas. As duas faculdades formam um par, pois a primeira delas, a de perdoar, serve para desfazer os atos do passado, cujos “pecados” pendem como espada de Dâmocles sobre cada nova geração; e a segunda, o obrigar-se através de promessas, serve para instaurar no futuro, que é por definição um oceano de incertezas, ilhas de segurança sem as quais nem mesmo a continuidade, sem falar na durabilidade de qualquer espécie, seria possível nas relações entre os homens (ARENDT, 2010, p. 295).

Neste parágrafo Arendt apresenta seus dois “remédios” contra a esfera trágica na ação. Segundo ela, as duas ações tratam-se de um par e, para serem realmente efetivas, devem acontecer juntas. O motivo também nos é apresentado aqui: para redimirmos os possíveis infortúnios que as ações humanas podem nos causar irreversivelmente – uma vez que não temos mais o passado à nossa disposição e por isso não podemos desfazer o que já se fez – precisamos desenvolver a capacidade de perdoar. O perdão, aqui, acreditamos ser um aprofundamento da noção de esquecimento nietzschiana, na medida em que também se mostra como uma faculdade capaz de libertar os agentes das conseqüências impensáveis de suas ações e dos resultados irreversíveis causados por suas atitudes. Assim como o esquecimento, o perdão se mostra como o artifício que é capaz de proporcionar condições de possibilidade para que o homem continue sendo homem: o agente desencadeador de novidades no mundo da vida. Caso não fôssemos perdoados teríamos nossa capacidade de desencadear novos eventos no mundo da vida “por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre vítimas de suas conseqüências à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço.” (Idem, p. 295-6). Dessa forma, o perdão seria a primeira ação dos habitantes do mundo da vida para garantirem as condições mínimas para que eles, e seus co-cidadãos, pudessem continuar agindo e desencadeando a novidade no mundo.

Apenas o perdão, porém, não conseguiria redimir de maneira exaustiva a condição trágica da ação humana, na medida em que apenas permitiria que o ser humano continuasse agindo da maneira que lhe é mais distinta, enquanto que a convivência com esses humanos, demasiado humanos, mostrar-se-ia quase impossível de se manter por si mesma. Daqui surge o outro lado da moeda apresentada por Arendt como remédio para a condição humana: a capacidade de fazer promessas. Pode parecer um pouco estranho aos ouvidos de alguns falar em capacidade de fazer promessa depois de deixar clara a condição do trágico na ação como a incapacidade de saber o que sua ação e seu discurso podem acarretar no mundo e naqueles que nos circundam. Neste cenário, por definição, teríamos que perder a capacidade de fazer promessas, pois nada mais nos garantiria a possibilidade de sabermos se cumpriremos com nossa palavra ou não. Porém Arendt mostrará que é, justamente por isso que os seres humanos devem buscar investir precisamente no contrário senso a que chegaram. Conforme ela mesmo salienta:

Se, estarmos obrigados ao cumprimento de promessas, jamais seriamos capazes de conservar nossa identidade; seriamos condenados a errar, desamparados e sem rumo, nas trevas do coração de cada homem, enredados em suas contradições e seus equívocos – trevas que só podem ser dissipadas pela luz derramada no domínio público ela presença de outros, que confirmam a identidade entre aquele que promete e aquele que cumpre (ARENDT, 2010, p. 296).

Dessa forma, o seu raciocínio é que, se realmente nós não somos os principais autores dos eventos que desencadeamos no mundo, e das conseqüências que deles emanam, precisamos construir certos pontos de segurança no terreno das relações humanas, pois, caso contrário, retornaríamos ao estado de natureza hobbesiano em que o homem seria o lobo do homem e a convivência estaria dominada pela desconfiança de todos que estão ao nosso redor. Arendt observa que esta aposta na promessa e no perdão dependem: “da presença e da ação de outros, pois ninguém pode perdoar a si mesmo e ninguém pode se sentir obrigado por uma promessa feita apenas para si mesmo.” (2010, p. 296). Isso mostra que a promessa e o perdão não são apenas meio para redimir a ação humana no mundo, mas na verdade são as únicas ações que dão reais condições para que os homens vivam em comunidade no mundo. A promessa, ainda que seja acompanhada de toda a sinuosidade e imprevisibilidade dos assuntos humanos, é um dos únicos meio para organizar minimamente a convivência humana sem que, necessariamente, esta seja aniquiladora da própria espécie;

a imprevisibilidade, que o ato de fazer promessas dissipa ao menos parcialmente, tem uma dupla natureza: decorre ao mesmo tempo da “obscuridade do coração humano”, ou seja, da inconfiabilidade fundamental dos homens, que jamais podem garantir hoje quem serão amanhã, e da impossibilidade de se preverem as consequências de um ato em uma comunidade de iguais, onde todos têm a mesma capacidade de agir. A incapacidade do homem para confiar em si mesmo e para ter fé absoluta em si próprio (o que é a mesma coisa) é o preço que os seres humanos pagam pela liberdade; e a impossibilidade de permanecerem como senhores únicos do que fazem, de conhecerem as consequências de seus atos e de confiarem no futuro é o preço que pagam pela pluralidade e pela realidade, pela alegria de coabitarem com outros em um mundo cuja realidade é assegurada a cada um pela presença de todos (ARENDT, 2010, p. 304).

Dessa forma, a argumentação de Arendt em prol da capacidade de prometer, mesmo que em nosso horizonte investigativo esteja o significado trágico da ação, gira em torno da vontade de: “dominar essa dupla obscuridade dos assuntos humanos e, como tal, constitui a única alternativa a uma supremacia baseada na dominação do si-mesmo e no governo de outros [como queria a teoria política platônica]” (Idem, p. 304). Sem essas duas instâncias – perdoar/prometer – estaríamos condenados a não podermos desencadear mais nada de novo e também a não podermos sustentar nenhum tipo de convivência genuinamente política com nossos semelhantes.

Considerações finais

Com tudo isso que foi dito até aqui, gostaríamos de lembrar o imperativo aristotélico de buscarmos: “tanto quanto possível agir como se fôssemos imortais, e esforçar-nos ao máximo para viver de acordo com o que há de melhor em nós” (EN, X, 7, 1177b35-6). Aventamos neste trabalho a hipótese de que este “agir como se fôssemos imortais”, ao qual Aristóteles nos impele, é o materializado de forma brilhante pela argumentação de Nietzsche e Arendt quando advogam pelo esquecimento, o perdão e a promessa. Ainda que seja muito rara a defesa de temas como o perdão e a promessa no campo da ética e da política – “talvez devido a seu contexto religioso, talvez devido à ligação com o amor que acompanhada sua descoberta” (ARENDT, 2010, p. 303) – vemos neles uma possibilidade de nos livrarmos da ordem do discurso vigente na sociedade em que nos localizamos tão marcada pelo ressentimento e pelo ódio, em que “fazer sofrer é altamente gratificante, na medida em que o prejudicado trocava o dano, e o desprazer pelo dano, por um extraordinário contraprazer: causar o sofrer” (NIETZSCHE, 2009, p. 50). Não é sem motivo que Hannah Arendt afirma que: “o descobridor do papel do perdão no domínio dos assuntos humanos foi Jesus de Nazaré” (ARENDT, 2010, p. 297), a quem historicamente a cristandade atribuiu o título de divindade. Conforme o raciocínio de Tocqueville apresentado anteriormente, o mínimo que se esperaria de uma divindade era que não tratasse o gênero humano de forma geral, a partir de leis rígidas e sem muita capacidade de efetividade no mundo da vida. Para Arendt, foi Jesus que, em um contexto político-religioso marcado pela busca de justiça enquanto cumprimento da lei, de retribuição e de vingança, apostou em um modo totalmente outro de proceder com o perdão e o esquecimento.

O fato de que ele tenha feito essa descoberta em um contexto religioso e a tenha enunciado em linguagem religiosa não e motivo para levá-la menos a serio em um sentido estritamente secular. É da natureza de nossa tradição de pensamento político (por motivos nos quais não podemos nos deter aqui) ser altamente seletiva e excluir da conceituação articulada grande variedade de experiências políticas autênticas entre as quais não é surpreendente encontrar algumas de natureza elementar. (ARENDT, 2010, p. 297-298).

Aqui Arendt, além de chamar atenção para o próprio fenômeno da descoberta do poder do perdão no âmbito dos assuntos humanos, mostra-nos algo a mais do que já havíamos apontado em um momento anterior quando fizemos referência ao comentário de Alexis Tocqueville sobre Deus não pensar no gênero humano de modo geral, a partir de leis e categorizações universais. Enquanto Tocqueville trata sobre o próprio modo de proceder divino, Arendt, à luz do imperativo aristotélico, mostra-nos que: “não é verdade que somente Deus tenha o poder de perdoar”, antes “o motivo da insistência [de Jesus] sobre um dever de perdoar é, obviamente, [por] que ‘eles não sabem o que fazem’” (2010, p. 298-99). Enquanto a vingança, essa atitude tão marcadamente humana e já esperada de seres egoístas como nós, não consegue promover condições para que surja a novidade no mundo da vida, o perdão “é a única reação que não re-age [re-act] apenas, mas age de novo e inesperadamente” (2010, p. 300), pois rompe com a cadeia de mesmicidade vingativa no mundo da vida – uma vez que está alicerçado na “convicção de que só o amor tem o poder de perdoar” e esta disposição amorosa é: “uma das mais raras ocorrências nas vidas humanas” (2010, p. 301) . – e, ao mesmo tempo, proporciona condições para que continue acontecendo novos eventos no âmbito dos assuntos humanos. Dessa forma, aqui temos, de uma modo bastante harmônico, o fechamento de um círculo argumentativo – que buscamos apresentar neste trabalho – que considera o significado trágico da ação e as possibilidades de redenção das infortunas desta mesma ação humana por meio do esquecimento, da promessa e, principalmente, do perdão. Como Arendt mesmo afirma:

[em uma sociedade em que] a ofensa, contudo, é uma ocorrência cotidiana, decorrência natural do fato de que a ação estabelece constantemente novas relações em uma teia de relações, e precisa do perdão, da liberação, para possibilitar que a vida possa continuar, desobrigando constantemente os homens daquilo que fizeram sem saber. Somente mediante essa mútua e constante desobrigação do que fazem os homens podem ser agentes livres; somente com a constante disposição para mudar de idéia e recomeçar pode-se confiar a eles um poder tão grande quanto o de começar algo novo. (ARENDT, 2010, p. 299-300).

O perdão, o esquecimento e a promessa, em decorrência dos dois primeiros, são a resposta ativa não somente à vingança e ao ressentimento característicos da nossa sociedade democrática de direito (cf. NIETZSCHE, 2009, p. 49 [2ª diss., § 5]), mas também para a imprevisibilidade e a irreversibilidade da ação humana. É o “modo imortal” e “divino” de agir conforme Aristóteles um dia imaginou. É o único modo de proceder no mundo da vida que proporcione condições e possibilidades para que haja lugar para o novo, para a nova ação, para a novidade e, ao mesmo tempo, para que este lugar seja apropriado para a convivência humana – a alternativa que teríamos ao perdão seria a punição que, como o perdão, tenta “pôr fim a algo que, sem interferência alguma, poderia prosseguir indefinidamente” (ARENDT, 2010, p. 301), porém Nietzsche já havia nos mostrado que a punição não tem esta capacidade (cf. 2009, p. 49-54 [2ª diss., § 5, 6, 7]. Dessa forma, esquecendo, perdoando e dando lugar às promessas, liberamos os homens para continuarem, assim, sendo distintamente seres humanos, restaurando-os a uma condição originária de inocência que lhes permite serem o agente do novo. Damos a eles a possibilidade de fazerem promessas e, assim, contribuírem para o estabelecimento de uma convivência comunitária minimamente saudável. Tão somente assim, com um procedimento divino nos assuntos humanos, poderemos garantir que não haja prejuízo para o homem, para seu povo e para sua cultura (cf. NIETZSCHE, 1999, p. 250).

Material suplementar
Referências bibliográficas
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AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Trad. Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, 2003.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2003
NIETZSCHE, Friedrich.Unzeitgemässe Betrachtungen. Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben.Kritische Studienausgabe [KSA], vol. I. Ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. München: DTV; De Gruyter, 1999. Tradução inédita de André Itaparica.
________. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NUSSBAUM, Martha. A fragilidade da bondade: fortuna e ética na tragédia e na filosofia grega. Trad. Ana A. Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
PONDÉ, Luiz Felipe. Contra um mundo melhor: ensaios do afeto. São Paulo: Leya, 2010.
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006.
SÓFOCLES. A trilogia tebana. Trad. Mario de Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Trad. Neil Ribeiro da Silva. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010.
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