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Recepção: 15 Setembro 2015
Aprovação: 27 Outubro 2015
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v12i2.665
Resumo:
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O móbil do presente artigo é dado a partir do subponto 52 da obra Justice as Fairness: A Restatement (2001) de John Rawls – “Addressing Marx’s Critique of Liberalism” –, mais precisamente quanto à objeção que o autor destaca de Karl Marx em relação à “divisão do trabalho” sob o capitalismo. Rawls considera que tal “divisão”, pelo menos da maneira como foi apontada por Marx, seria “superada” no âmbito dos princípios de justiça. Assim, através da Kritik des Gothaer Programms e de uma famosa Lettre de Marx (acerca de Proudhon), procuramos uma confrontação com as considerações avançadas por Rawls.
Palavras-chave: Capitalismo, Divisão do Trabalho, Economia, História, Justiça.
Abstract: The motive of this paper is taken from sub-item 52 of the work Justice as Fairness: A Restatement (2001) of John Rawls – “Addressing Marx’s Critique of Liberalism” –, more precisely about the objection that the author highlights of Karl Marx in regarding the “division of labor” under capitalism. Rawls believes that this “division” at least as it had been pointed out by Marx, would be “overcome” under the principles of justice. So by Kritik des Gothaer Programms and a famous Lettre to Marx (about Proudhon), we seek a confrontation with the considerations advanced by Rawls.
Keywords: Capitalism, Division of Labor, Economics, History, Justice.
§ 1. Apontamentos introdutórios
O móbil do presente artigo é dado a partir do subponto 52 da obra Justice as Fairness: A Restatement (2001) de John Rawls (1921-2002) – “Addressing Marx’s Critique of Liberalism”. São pouco mais de duas páginas que poderiam passar despercebidas não fosse o autor considerar uma série de objeções em suposto escopo marxiano, quanto a nós pertinentes, aos seus próprios princípios de justiça ..
Apesar de o autor apresentar quatro objeções, aquela que nos mobiliza é a quarta. Nesta objeção Rawls alude à “divisão do trabalho” (division of labor) sob o capitalismo, ao qual Karl Marx (1818-1883) aponta, a partir daquela “divisão”, “caraterísticas restritivas e humilhantes”. Porém, o autor americano considera que tal “divisão”, pelo menos da maneira como foi apontada pelo autor alemão, seria “superada” (overcome) através dos princípios de justiça ..
Como referido, na “crítica de Marx ao liberalismo” não nos deteremos quanto às outras objeções, a saber, as que apontam aos “direitos e liberdades básicos”, a proteção de “egoísmos” dos cidadãos; aos “direitos e liberdades políticos”, uma mera formalidade; e, ao “regime constitucional” com propriedade privada, a mera garantia das “liberdades negativas” (cf. RAWLS, 2001, §52, pp.176-177). Conquanto a abordagem à quarta objeção possa deixar algumas pistas em relação a estas.
No que ainda diz respeito à objeção em que nos deteremos, esta remete para a obra magna de Rawls – A Theory of Justice (1971) –, no entanto, esta obra não será mais abordada para além dessas mesmas passagens aludidas pelo autor, uma vez que nos vamos limitar à primeira obra anunciada, por esta se constituir já na sua maturidade, como reafirmação, por um lado, e por outro, como reformulação, dos seus princípios (por exemplo, RAWLS, 2001, §13, pp.43-44), bem como volta a trazer para reflexão a “divisão do trabalho” em escopo marxiano ..
Quanto a Marx, uma vez que trata a “divisão do trabalho” abundantemente ao longo dos seus escritos, e uma vez que Rawls apenas faz menção direta à sua Kritik des Gothaer Programms (1875), limitar-nos-emos o quanto possível a estas críticas do autor alemão ao “Programa de Gotha”. Mas também, a uma de suas Lettres endereçadas a Pavel Annenkov (1813-1887), mais precisamente, à que alude ao texto Système des contraditions économiques ou Philosophie de la misère (1846) de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), uma vez que Rawls destaca uma série de objeções que considerava possível serem-lhe desferidas por Marx, e a nós parece que a derradeira objeção em escopo marxiano poderia encontrar-se nesta sua carta, sobretudo no que concerne a uma confrontação com a “divisão do trabalho” e os princípios (de justiça) que Rawls propõe ..
Para o efeito, percorrem-se os seguintes passos: “Rawls e a objeção da/à ‘Divisão do Trabalho’” (§ 2.), onde se pretende dar conta da objeção marxiana que Rawls destaca e de como este considera a sua superação; “Marx e a relação da Kritik des Gothaer Programms” (§ 3.), onde se procura dar conta de uma possível relação crítica com as reflexões rawlsianas; e, “Marx e a Lettre como derradeira objeção” (§ 4.), onde, finalmente, se confronta a crítica de Marx a Proudhon com algumas das posições avançadas, a propósito, por Rawls em relação à “divisão do trabalho”.
§ 2. Rawls e a objeção da/à “Divisão do Trabalho”
No anunciado subponto 52, Rawls começa por dizer que irá examinar as ideias de Marx do ponto de vista da “crítica” deste ao “liberalismo”. É desta “crítica” que Rawls retira quatro objeções, mas, como já foi referido, para o efeito proposto interessa apenas a quarta objeção. O autor apresenta-a da seguinte maneira:
À objeção contra a divisão do trabalho sob o capitalismo, replicamos que as caraterísticas restritivas e humilhantes disso seriam amplamente superadas assim que as instituições de uma democracia de propriedade privada .property-owning democracy) se realizassem (grifos nossos, RAWLS, 2001, p.177) ..
O que quer dizer, segundo Rawls, que em escopo marxiano a “divisão do trabalho” sob o capitalismo seria apontada essencialmente como “restritiva” e “humilhante”, segundo ele, tão-só se as instituições de uma “democracia de propriedade privada” não se realizassem.
Como anunciado, a objeção remete para o subponto 79 de A Theory of Justice, onde o autor vai referir que a “divisão do trabalho” não é eliminada de uma sociedade bem-ordenada .well-ordered society), mas as suas piores caraterísticas (seguramente “restrição” e “humilhação”) poderão ser “superadas” – ninguém precisará ser servilmente dependente de outros ou resignar-se em ocupações monótonas, rotineiras, fatais para o pensamento e a sensibilidade humanas (cf. RAWLS, 1999, pp.463-464).
Numa sociedade justa as pessoas buscam o seu próprio bem (good) de maneiras que lhes são peculiares, mas confiam nos outros as coisas que não podem fazer ou que poderiam ter feito mas não fizeram (cf. RAWLS, 1999, §79, p.464). Rawls considera que não pode ser eliminada a dependência de uns para com os outros (obviamente, excluindo a “dependência servil”). O autor conclui o subponto 79 referindo:
A divisão do trabalho é superada não porque cada um se torna completo em si mesmo, mas através de um esforço voluntário e significativo [willing and meaningful work] dentro de uma união social justa de uniões sociais [social unions], na qual todos podem participar livremente considerando as suas próprias inclinações (grifos nossos, RAWLS, 1999, p.464) ..
Segundo o autor americano, a “divisão do trabalho” seria benéfica uma vez que parece propiciar às pessoas uma realização “voluntária” dentro de uma “união social justa”, composta de “uniões sociais”, onde as pessoas “podem participar livremente”. O que apenas poderia ser possível como parte daquilo a que chamou “democracia de propriedade privada”, também, “sociedade bem-ordenada”. O autor alega:
Como uma conceção pública de justiça precisa de regras claras, simples e inteligíveis, contamos com uma divisão institucional do trabalho entre princípios necessários para preservar a justiça de fundo [background justice] e princípios que se aplicam diretamente a transações particulares entre indivíduos e associações. Assim que essa divisão do trabalho é estabelecida, os indivíduos e as instituições ficam livres para promover os seus fins (permissíveis) no âmbito da estrutura básica, conscientes de que em todo o sistema social estão em vigor as regulações necessárias para preservar a justiça de fundo (RAWLS, 2001, §15, p.54) ..
Rawls atesta, “institucionaliza”, a “divisão do trabalho”, (con)firmando-a então como uma “divisão institucional do trabalho”. Será nesta que pode haver lugar ao exercício dos princípios necessários para aplicar a justiça de fundo, libertando as pessoas e as associações.
A “democracia” e a “institucionalidade”, pelo autor preconizadas, deverão, por sua vez, guiar-se pelos princípios que garantam a justiça na sociedade, são estes: o mesmo direito irrevogável de cada pessoa a um esquema adequado de liberdades básicas iguais, compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; e, na impossibilidade de se anularem as desigualdades sociais e económicas, estas devem satisfazer duas condições: por um lado, estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades e, por outro lado, terão de beneficiar maximamente as pessoas menos favorecidas da sociedade, o chamado “princípio de diferença” (difference principle, cf. RAWLS, 2001, §13, pp.42-43).
Rawls estava preocupado com aquilo em que consistia a “estrutura básica da sociedade” (basic structure of society) – principais instituições políticas e sociais e de como estas se harmonizam num sistema unificado de cooperação (unified system of cooperation). O autor considerava que a maneira como se organizava a “estrutura básica” teria uma forte influência nas desigualdades sociais e económicas e, por isso, estas deveriam ser tidas em conta na determinação dos princípios de justiça apropriados (RAWLS, 2001, §12, pp39-40).
Neste sentido, o autor refere que os princípios de justiça, acima enunciados, serviriam para regular (regulate) as desigualdades sociais e económicas (RAWLS, 2001, §12, p.41), devidamente acompanhados da própria “divisão do trabalho”:
O que é necessário, então, é uma divisão do trabalho entre dois tipos de princípios, adequadamente especificados: em primeiro lugar, aqueles que regulam a estrutura básica ao longo do tempo e se destinam a preservar a justiça de fundo de uma geração para outra; e, em segundo lugar, aqueles que se aplicam diretamente às transações isoladas e livres entre indivíduos e associações. Defeitos em qualquer tipo de princípio podem resultar numa grave falha da conceção de justiça como um todo (grifos nossos, RAWLS, 2001, §15, pp.53-54) ..
Daí que o autor americano reconhecesse que Marx, mesmo hipoteticamente aceitando uma “democracia de propriedade privada”, provavelmente objetaria
[…] que nenhum regime com propriedade privada dos meios de produção pode satisfazer os dois princípios de justiça, ou até mesmo fazer com que se realizem os ideais de cidadão e sociedade expressos pela justiça como equidade. […] que a […] descrição das instituições da democracia de propriedade privada não considerou a importância da democracia no local de trabalho e a modelação do curso geral da economia (RAWLS, 2001, §52, p.178) 10.
Em relação à primeira, o autor admite que implica uma dificuldade que deve ser ultrapassada, e em relação à segunda, uma enorme dificuldade (major difficulty) à qual não procurará responder.
Face a estas dificuldades na exposição rawlsiana, o autor procura levantar um pouco o véu (excecionalmente…) quanto a uma possível resolução (ainda que afirme não conhecer qualquer resposta definitiva). Observe-se, fá-lo por recuperar John Stuart Mill (1806-1873), contemporâneo de Marx e de Proudhon.
Com o autor inglês, Rawls parece ensaiar a ideia de uma sociedade que ao manter os seus princípios de “mercado livre”, não deixa por isso de procurar melhorar os seus meios de cooperação11. Daí afirma, a partir do capítulo 7 do livro IV da obra Principles of Political Economy (1848) de Stuart Mill, que a tese deste sobre “empresas geridas por trabalhadores” é compatível com a sua tese concernente a uma “democracia de propriedade privada”.
Assim sendo, Rawls diz que com uma gestão empresarial geral dos trabalhadores a economia capitalista desapareceria, mas, como isso não aconteceu, levantava-se a questão de saber se Stuart Mill estaria enganado ou se as empresas geridas por trabalhadores não tiveram oportunidades equitativas (fair chance). Neste encalce, será que a sociedade deveria tê-las subsidiado… questiona (RAWLS, 2001, §52, p.178). Como dissemos, o autor afirma não saber as respostas, terminando o subponto 52 com novas questões:
[…] será que as empresas geridas por trabalhadores seriam mais propensas a incentivar as virtudes políticas democráticas necessárias para que um regime constitucional persevere? Se assim for, pode uma maior democracia nas empresas capitalistas alcançar o mesmo resultado? (RAWLS, 2001, p.178) 12.
Apesar de tudo, o autor estava convencido de que tinha apresentado a solução para a “superação” das caraterísticas adversas da “divisão do trabalho” através dos princípios de justiça preconizados. Podemos dizer, que a sua proposta se reconduzia a uma maior “democratização” do sistema capitalista por via da realização de uma “justiça de fundo” que o regulasse.
§ 3. Marx e a relação da Kritik des Gothaer Programms
A relação de Marx com o Programa de Gotha é sobejamente conhecida, se a má fama ficou agarrada ao Programa muito se deve seguramente à crítica que o autor alemão desferiu.
Em breves palavras, o Programa de Gotha visava constituir em Congresso a unificação dos dois Partidos que representavam os trabalhadores alemães à época, a sua unificação viria a dar origem ao Partido que mais tarde seria conhecido como Partido Social-Democrata da Alemanha (“social-democrata” significava algo muito distinto do que significa hoje, então continha o Socialismo nos seus objetivos…).
O principal problema assinalado por Marx consistia na cedência da fação, considerada por ele, como a mais consequente do movimento dos trabalhadores, liderada por Wilhelm Liebknecht (1826-1900) e August Bebel (1840-1913), em relação ao “lassalleanismo” – teses que perduravam no movimento dos trabalhadores, de antanho defendidas por Ferdinand Lassalle (1825-1864), (cf. MARX, 1987b, pp.15-32 passim) 13.
Mas não são as teses lassalleanas que conciliavam de certa maneira os trabalhadores com os fundiários, entre outras ideias avessas ao que a I Internacional defendia naquele período, que nos convidam ao Programa 14. À parte o próprio convite que as referências de Rawls nos colocou, podemos encontrar nas críticas de Marx, as que aquele referencia, uma crítica que incide em especial num ponto que até agora esteve subjacente quanto à possibilidade de se realizar uma “sociedade justa” – a chamada “distribuição justa” (cf. RAWLS, 2001, §14). Questionava Marx:
O que é uma distribuição “justa”? Os burgueses não consideram que a atual distribuição é “justa”? E não é ela a única distribuição “justa” tendo como base o atual modo de produção? As relações económicas são reguladas por conceitos jurídicos ou, ao contrário, são as relações jurídicas que derivam das relações económicas? (MARX, 1987b, p.18) 15.
No presente excerto o autor pretende reposicionar a política nas suas relações económicas de base, estas é que “regulam” aquela e não o contrário, eis a sua resposta.
Para Marx não se tratava de conceber as mais belas ideias ou conceitos jurídicos (reguladores) e com isso proceder à “adequação” da realidade, antes, tratava-se de dentro desta procurar transformá-la. Para isso seria necessário compreender o tipo de relações que estavam na base de certos tipos de conceitos, seria preciso atuar naquilo onde mais “primariamente” se desenvolviam as relações humanas – no modo de produção da sua própria vida material (Produktion des materiellen Lebens selbst).
É perante a necessidade de produzir a própria vida que se destacam as relações económicas, entre as relações humanas, como base. Assim, as relações económicas não eram assinaladas por Marx de uma forma arbitrária, nem como sendo estritas e/ou mecânicas, mas pelo desenvolvimento da realidade, confirmadas prática e historicamente16.
Por haver história real, desenvolvimento, também económico, é que Marx vai considerar que a “distribuição” não pode ser mais do que o reflexo das relações económicas de cada época e qualquer “justiça” que lhe seja feita, se for dentro das mesmas relações, nada mais será do que uma adequação às relações económicas vigentes. Veja-se como o refere:
A distribuição dos meios de consumo é, em cada época, apenas a consequência da distribuição das próprias condições de produção. Contudo, esta última é uma caraterística do próprio modo de produção. O modo de produção capitalista, por exemplo, baseia-se no facto de que as condições materiais de produção estão dadas aos não trabalhadores sob a forma de propriedade do capital e de propriedade fundiária, enquanto a massa é proprietária somente da condição pessoal de produção, da força de trabalho [Arbeitskraft]. Estando assim distribuídos os elementos da produção, daí decorre por si mesma a atual distribuição dos meios de consumo. Se as condições materiais de produção fossem propriedade cooperativa dos próprios trabalhadores, então o resultado seria uma distribuição dos meios de consumo diferente da atual (MARX, 1987b, p.22) 17.
Quer dizer, uma distribuição dos meios de consumo mesmo que considere as mais “justas” reivindicações, se não transformar as condições materiais de produção onde a economia assenta (em relações de propriedade dos meios de produção), então, pouco terá alterado. Aqueles que não trabalham, mas são detentores dos meios de produção, distribuem o capital entre si e aqueles a quem resta trabalhar (a grande maioria), a distribuição surgirá por meio da sua própria força de trabalho e daquilo que cada um conseguir ganhar através dela. Observe-se, para exemplo, o que Marx alega acerca dos impostos:
[…] [Estes] são o fundamento económico [wirtschaftliche Grundlage] da maquinaria governamental, e nada mais. […] O imposto sobre a renda pressupõe as diferentes fontes de renda das diferentes classes sociais, logo pressupõe a sociedade capitalista. Não é de estranhar, pois, que os reformadores financeiros [financial reformers] de Liverpool – burgueses, […] – formulem a mesma reivindicação que o programa [de Gotha] (MARX, 1987b, p.30) 18.
No seu seguimento, dentro das relações sociais vigentes os impostos universais não significam nada mais do que impostos tributados sobre todas as classes (sem qualquer distinção, independentemente de haver ou não proporcionalidade) sob uma suposta justiça de base “equitativa”. Todavia, em nada suprimem as classes, visto que não eliminam a exploração, a “divisão”, mesmo que conclamada como “justa”, somente revestindo o Estado de uma aparente “moral”.
Ao revés do entendimento marxiano, Rawls vai dizer que o autor alemão procura, como contrapartida às suas considerações acima expostas, elevar os impostos em relação aos “talentos naturais” (native endowments) das pessoas, o que, segundo ele, violaria as liberdades básicas de cada um. O autor assinala o preceito de Marx que o leva a tirar tal conclusão: «De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!» (Jeder nach seinen Fähigkeiten, jedem nach seinen Bedürfnissen!, MARX, 1987b, p.21) 19.
Porém, em nosso entendimento, parece escapar a Rawls, mesmo que por vezes pareça estar ciente disso, de que as condições que Marx aponta para a concretização do referido preceito são outras que não as relações capitalistas de produção e distribuição. Ao invés, o autor alemão aponta para as relações que visem a superação (abolição) definitiva da “divisão do trabalho” sob o capitalismo (a qual Rawls julgava “superar”, pelo menos as suas caraterísticas adversas, com os seus princípios) 20.
Por sua vez, em Marx a “igualdade equitativa de oportunidades” jamais poderia ser dada, tendo em conta a perseveração da “divisão do trabalho” sob o capitalismo, e tal “divisão” seguramente também refletiria naquilo que pode ser considerado como “talento natural”. Quer fosse porque este seria desde logo histórico-socialmente condicionado e/ou transformado (circunscrita de certa forma pela “divisão” ou pela “superação” desta), quer fosse porque ninguém é responsável por aquilo que pode ser entendido como uma “lotaria genética” (e mesmo esta, tem muito que ver com as condições de vida dos ascendentes).
O preceito marxiano não quereria dizer mais do que, uma vez superadas as condições de exploração de uma classe por outra – pela “divisão do trabalho”, pela propriedade privada dos meios de produção –, abria-se a possibilidade de concretização pessoal e/ou coletiva tendo em conta as próprias capacidades e/ou necessidades. Assim, ninguém seria prejudicado (ou beneficiado) pela sua condição de classe e de talento (o que não quer dizer, bem pelo contrário, de que não usufruiria de espaço para o seu desenvolvimento). Aqui residiria a única possibilidade de uma “igualdade equitativa de oportunidades”.
Portanto, voltando um pouco atrás, quaisquer impostos de tipo verdadeiramente universalista teriam de ser considerados em circunstâncias onde não existisse uma divisão entre classes. Marx entendia que
[…] quando tiver sido eliminada a subordinação escravizante dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e se tiver tornado a primeira necessidade vital; […] [então…] de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades! (MARX, 1987b, p.21) 21.
O autor alemão pretendia que se atendesse ao condicionamento natural do trabalho (Naturbedingtheit der Arbeit, cf. MARX, 1987b, p.15-16), pois cabia ao ser humano trabalhar (pelo menos, a Natureza) para criar as condições necessárias de produção da sua própria vida. Então, se alguém detivesse a propriedade dos meios de produção, esse, deteria os meios de vida das outras pessoas, de certa maneira escravizando-as (mesmo que não num sentido esclavagista como o da escravatura antiga ou como o da escravatura pós-medieval).
Tal apropriação do trabalho alheio (como “trabalhado alienado”, entäußerten Arbeit, por exemplo, MARX, 1968, pp.518-522 passim) tornou-se possível tendo em conta a maneira como o mesmo se desenvolveu, no sentido de uma progressiva “divisão”. O que aponta para diferentes etapas de um desenvolvimento histórico das relações humanas ao qual compete prestar a devida atenção, visto que não se tratava apenas de
[…] lançar frases feitas sobre “. trabalho” e “. sociedade”, [mas] demonstrar com precisão de que modo, na atual sociedade capitalista, são finalmente criadas as condições materiais, etc., que habilitam e obrigam os trabalhadores a romper essa maldição histórica (geschichtlichen Fluch ), (MARX, 1987b, p.17) 22.
§ 4. Marx e a Lettre como derradeira objeção
Chegados aqui, exige-se, finalmente, que se tenha em conta a Lettre de Marx a Annenkov. Esta carta foi escrita em francês a 28 de dezembro de 1846 quando o autor estava em Bruxelas e respondia ao pedido do autor russo que estava sediado em Paris, relativo a uma apreciação da recém-lançada obra de Proudhon. Observem-se algumas das suas considerações.
Marx censurava a Proudhon um certo “dualismo” (dualisme). No autor francês parecia haver uma separação entre a alma e o corpo (l’âme et le corps), , entre as “ideias” e a restante vida prática humana, essencialmente económica (cf. MARX, 1977, p.457).
O autor alemão apontou àquele precisamente o completo desprezo pela história (descontando todas as restantes críticas acusando-o de tresler o fundamental da dialética de Georg Hegel (1770-1831), entre outras críticas). Era como se o economista e também “anarquista” francês não tivesse necessidade de, ao falar de economia, analisar em parte os séculos anteriores e como se havia ali chegado. Descurava a vida prática humana (parte essencial do seu desenvolvimento).
De acordo com Marx, Proudhon acabava por falar de uma “razão universal” (raison universelle) e como esta se fazia mostrar na sociedade. Proudhon considerava uma “história das ideias” (histoire des idées) em vez de uma história (profana) de onde aquelas refletiam (cf. MARX, 1977, p.449). Marx avançava contra Proudhon:
A um certo estado de desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens corresponde uma forma particular de comércio e de consumo. A certas fases de desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo correspondem formas particulares de constituição social, particular organização da família, das ordens ou das classes; numa palavra, uma particular sociedade civil (société civile). A uma particular sociedade civil corresponde um particular estado político que não é mais do que a expressão oficial da sociedade civil (MARX, 1977, p.448) 23.
As pessoas pertencem à sua época, ninguém o contradiz, contudo, esta não é estanque, pelo contrário, desenvolve-se a partir de uma base e pode seguir diferentes caminhos. As relações sociais de então (e de agora) – capitalistas – eram diferentes das relações esclavagistas e feudais que as antecederam. As classes correspondentes arrumavam-se de forma diferente e relacionavam-se de uma forma diferente entre elas, embora não diferisse o facto de estarem “divididas” quanto ao trabalho e à posse privada da propriedade (dos meios de produção, porém, estes eram outros).
Cada nova geração herda o que a geração anterior deixou. Serão as relações materiais (rapports matériels) desta a formar a base de todas as relações, aquelas não são mais do que as formas necessárias nas quais se realiza a sua atividade material e individual (cf. MARX, 1977, p.448). Tais relações materiais mudam quer naturalmente, quer com intervenção humana, quer com uma certa casualidade, em maior grau numas e menor grau noutras conforme o momento histórico. Assinalava Marx:
[…] as formas da economia sob as quais os homens produzem, consomem e fazem as suas trocas, são transitórias e históricas .transitoires et historiques]. Ao adquirir novas faculdades produtivas, os homens transformam o seu modo de produção e com ele modificam as relações económicas, relações necessárias àquele modo de produção determinado (MARX, 1977, p.449) 24.
Continua Marx umas páginas adiante:
[…] [Proudhon] não soube compreender que os homens produzem as relações sociais conforme a sua produção material [productivité matérielle], produzem também as ideias, as categorias, isto é, as expressões abstratas ideais dessas mesmas relações sociais. Portanto, as categorias são tão pouco eternas quanto as relações que expressam. São produtos históricos e transitórios (MARX, 1977, p.455) 25.
Posto isto, para Marx a dimensão “transitória” e “histórica” dos estádios sociais da humanidade (em nada desenvolvidos por alguma “mecânica” social, mas dialeticamente superados), das suas relações económicas e, consequentemente, das suas “ideias” e das suas “categorias”, escapariam ao autor francês. Para o autor alemão não havia espaço a qualquer “dualismo” que separasse as ideias (até um certo ponto) das primárias relações económicas.
O economista e anarquista francês, de acordo com Marx, havia compreendido tão pouco a história, mas em especial a “divisão do trabalho”, que «[…] para o Sr. Proudhon esta separação [da cidade e do campo] deve ser uma lei eterna, uma vez que ele não conhece nem a sua origem nem o seu desenvolvimento» (MARX, 1977, p.450-451) 26. Quer dizer, para ele a “divisão do trabalho” no geral existiria desde sempre e para sempre. Tal posição de Proudhon levá-lo-ia a considerar na “divisão do trabalho” um “lado bom” (bon côté), que o autor alemão iria pungentemente criticar na sua obra especialmente produzida para a réplica do mesmo 27.
Dadas algumas das considerações fundamentais da crítica de Marx a Proudhon, resta saber o que tudo isto tem que ver com o autor americano.
Ora, Rawls destacava a importância da preservação da justiça de fundo de uma geração para outra, o que parecia demonstrar alguma preocupação com o desenvolvimento das relações sociais-geracionais, aliás, o problema quanto a uma “justiça distributiva” não poderia ser outro, como declara:
O problema da justiça distributiva na justiça como equidade é sempre este: como é que as instituições da estrutura básica serão reguladas como um esquema unificado de instituições para que um sistema de cooperação social equitativo, eficiente e produtivo se possa manter ao longo do tempo, de uma geração para outra? (RAWLS, 2001, §14, p.50) 28.
O autor continua pouco depois:
[…] as instituições de fundo [background institutions] têm de funcionar no sentido de manter a propriedade e a riqueza suficientemente partilhadas ao longo do tempo para preservar [preserve] o valor equitativo das liberdades políticas e a igualdade equitativa de oportunidade entre gerações. Elas [as instituições] fazem-no por meio de leis que regulam os legados e as heranças de propriedade, e por meio de outros mecanismos tais como impostos, para evitar concentrações excessivas de poder privado (RAWLS, 2001, §14, p.51) 29.
Todavia, podemos considerar que, a partir da primeira passagem, aquilo que sobressai, mais do que alguma “justa” preocupação geracional, é a ideia de que o “problema da justiça distributiva” não passa de uma aplicação, o quanto possível a-histórica, de um pretenso “sistema de cooperação social equitativo”, porquanto descura precisamente aquilo que Marx assinalava – o caráter transitório e histórico das relações vigentes. Ou seja, para Rawls tratava-se de manter um sistema de justiça que perdurasse independentemente de tais “transições históricas”.
O que parece completar-se com a segunda passagem, uma vez que, nesta, o autor também parece colocar de parte o desenvolvimento histórico, neste caso, da própria propriedade que faz parte daquele. Para o autor americano parece não importar de onde veio a propriedade (apenas para onde vai e onde fica). Daí que lhe seja possível atestar, “institucionalizar”, a “divisão do trabalho”, dada a pretendida satisfação dos “princípios de justiça”, eles mesmos, necessariamente, a-históricos 30. Estes são considerados tendo em conta uma continuidade (não realmente transitável) daquilo que se crê como “democracia”.
A despeito das considerações marxianas acerca dos impostos, confirma-se agora o elogio rawlsiano aos mesmos enquanto “mecanismo de regulação” para evitar uma concentração excessiva de poder privado, contudo, os problemas resultantes de uma “divisão do trabalho” parecem subsistir. Lembra-se que, de acordo com Marx, esta “divisão” impossibilita as melhores e contributivas intenções, uma vez conservadas as mesmas relações sociais de desigualdade e “escravização”.
No entanto, ainda resta algum lugar para a história na teoria do autor americano, mas apenas no que serve uma evolução social até uma sociedade de “democracia de propriedade privada” tal como preconiza. Afora isso, é como se a transitoriedade histórica tivesse pouco que ver com as relações sociais-económicas e com as ideias que a partir daí se desenvolvem e refletem.
É caso para apontar que a crítica fundamental contida na Lettre de Marx aqui confrontada, em nosso entendimento, assoma como a derradeira objeção face ao exposto e da seguinte maneira:
No mundo real, ao contrário, a divisão do trabalho . todas as demais categorias do Sr. Proudhon [e acrescentaríamos, e do Sr. Rawls,] são relações sociais que, em seu conjunto, formam aquilo que atualmente se denomina propriedade; fora destas relações a propriedade burguesa não passa de uma ilusão metafísica ou jurídica [illusion métaphysique ou juridique]. A propriedade de outra época, a propriedade feudal, desenvolve-se numa série de relações sociais completamente diversas. Quando estabelece a propriedade como uma relação independente, o Sr. Proudhon [e o Sr. Rawls novamente] comete algo mais do que um simples erro de método: demonstra claramente que não apreendeu o vínculo que liga todas as formas da produção burguesa, que não compreendeu o caráter histórico. transitório das formas da produção em uma determinada época (MARX, 1977, p.452) 31.
§ 5. Apontamentos conclusivos
Devemos concluir, não mais do que por intermédio de alguns apontamentos, dado o que foi considerado até ao momento.
Rawls anunciava a “superação” da “divisão do trabalho” sob o capitalismo tal como considerava objetada por Marx – “restritiva” e “humilhante” –, através da realização de uma “democracia de propriedade privada” tendo em conta os princípios de justiça enunciados – direito irrevogável de cada pessoa a um esquema adequado de liberdades básicas iguais…; e, as desigualdades sociais e económicas deveriam satisfazer duas condições: estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos… e beneficiar maximamente as pessoas menos favorecidas da sociedade…
Mas, dada a relação com as reflexões críticas constantes no “Programa de Gotha” e, principalmente, através da confrontação com a crítica de Marx a Proudhon, o autor americano, tal como o autor francês, também parece descurar o caráter transitório e histórico do capitalismo (como reiteradamente Marx assinalava), do tipo de propriedade privada burguesa (dos meios de produção e consequente produção de capital), isto é, Rawls parece descurar o próprio desenvolvimento da “divisão do trabalho”. Por seu turno, atesta-a, “institucionaliza-a”, como um dado adquirido e a manter, parte essencial para o exercício das “liberdades básicas”.
Assim, a defesa de uma “divisão do trabalho” parece residir num equívoco, isto é, Rawls fá-la coincidir com as “diferenças das pessoas” e procede a uma defesa (dado o exposto, aparentemente bem-intencionada) das mesmas, não percebendo que estas vêm sendo acentuadas ao longo da história, precisamente, por aquela “divisão”. Ou seja, não se realizam “talentos naturais” em dadas relações tão desiguais (salvo raras exceções), bem como tais “talentos” também estão historicamente circunscritos 32.
Porventura, tal como a Proudhon, também ao autor americano parece adequar-se a crítica que Marx aponta àquele no sentido de um “dualismo”, uma vez que Rawls parece destacar um certo tipo de “esforço voluntarista”, dentro de uma pretensa “união social”, apartada, como tem sido visto, do desenvolvimento histórico, das relações sociais e económicas, da vida prática humana, e, de acordo com o autor alemão, tal não passará de uma “ilusão metafísica ou jurídica”.
Neste seguimento, a Rawls pouco parece interessar de onde veio a propriedade e de como se desenvolveu a “divisão do trabalho”, não se tratando de acabar com as condições que conduziram à desigualdade real ou de “demonstrar com precisão de que modo, na atual sociedade capitalista, são finalmente criadas as condições materiais” que para o caso “restringem” e “humilham” os trabalhadores. Senão observe-se o que diz o autor:
Numa sociedade bem-ordenada, em que todos os direitos e liberdades básicos e iguais dos cidadãos e as suas oportunidades equitativas estão assegurados, os menos favorecidos são os que pertencem à classe de rendimento com expectativas mais baixas. Dizer que as desigualdades de rendimento e riqueza devem ser dispostas de modo que elevem ao máximo os benefícios para os menos favorecidos significa simplesmente que temos de comparar esquemas de cooperação e verificar a situação dos menos favorecidos em cada esquema, e em seguida escolher o esquema no qual os menos favorecidos estão em melhor situação do que em qualquer outro esquema (RAWLS, 2001, §17, p.59) 33.
Em momento algum tratava-se, para Rawls, de superar realmente as condições, as relações, que conduziram à exploração de uns por outros, mas apenas garantir que o possam fazer de uma forma mais “justa”, consentida…
O que parece conduzir a uma espécie de “glorificação” da “divisão do trabalho”, ou seja, a uma consagração final da propriedade privada dos meios de produção (capitalista), mesmo que não num sentido “capitalista selvagem”, como usualmente tem sido usado para definir um chamado “capitalismo mau” em favor da ideia de um pretenso “capitalismo bom”, um pouco como Proudhon anunciava e Rawls parece ter perfilhado 34.
Por conseguinte, o “programa” de Rawls para uma “justiça distributiva”, como o próprio dá a entender – «A resposta é que estamos principalmente preocupados com a teoria ideal: a descrição da sociedade bem-ordenada de justiça como equidade» (sublinhado nosso, RAWLS, 2001, §18, p.65) 35–, talvez não passasse de um surfar (a despeito das conhecidas preferências basquetebolísticas do autor) da crista da onda do “fim da história” (end of history), quer dizer, qualquer “programa” político não poderia desencostar-se de um respaldo liberal-capitalista “eternizado” (já não-histórico) 36.
Ao invés, de acordo com Marx, não se pode refletir acerca da histórica “divisão do trabalho” sem se curar do “movimento real”: «Cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas» (MARX, 1987a, p.13) 37. A história não finda.
É, quanto ao nosso entendimento, esta a causa principal das dificuldades surgidas na reflexão rawlsiana – “nenhum regime com propriedade privada dos meios de produção pode satisfazer os dois princípios de justiça” e a “democracia de propriedade privada não considerou a importância da democracia no local de trabalho e na conformação do curso geral da economia”. Tal se deve porque Rawls não considera o desenvolvimento histórico das relações de produção capitalistas, descurando necessariamente a principal contradição resultante da sua “divisão”, a saber, a que opõe, por um lado, o trabalho (a maioria produz) e, por outro, o capital (uma minoria apropria-se deste, produzido por aquele).
Tal como, quanto às suas pistas num sentido cooperativo na esteira de Stuart Mill pode-se, à guisa conclusiva, a partir das considerações de Marx, apontar a impossibilidade de um tal sentido, porquanto “empresas geridas por trabalhadores” mantendo a “divisão do trabalho”, isto é, as mesmas relações de propriedade capitalistas, estariam sempre (como aliás sempre estiveram…) votadas ao fracasso, dado o desequilíbrio das suas forças na sociedade (do capital) entre uns e outros, ademais, de impossível equilíbrio (mesmo que em caso de subsídio) 38.
Não obstante, mesmo em Marx a “divisão do trabalho” não seria por completo “abolida”, nem os indivíduos deixariam de depender de certa maneira uns dos outros, mas aquela seria superada no sentido das relações de propriedade privada dos meios de produção capitalista (estas sim, abolidas). Ora, com o controlo comum da produção acabaria o seu despotismo, as suas “restrições” e “humilhações”, a dependência entre as pessoas deixaria de ser dada a partir da propriedade, mas a partir das suas capacidades e necessidades (onde haveria sempre lugar para as naturais, mas também sociais, diferenças, todavia, não por meio da detenção da produção do viver alheio) 39.
Em suma, a “divisão do trabalho” (pelo menos tal como se apresenta atualmente) não pode ser “eternizada” (como de resto nada pode) e ainda menos servir de base a qualquer justiça, principalmente tendo em conta que um tal problema assoma, precisamente, por haver tal “divisão”. Não se pode descurar a sua história. Enfim, em relação a Rawls não iríamos tão longe quanto Marx em relação a Proudhon 40, no entanto, deixaremos ao autor alemão, em apontamento final, uma das suas passagens que nos parece suficientemente concludente:
Todos eles querem a concorrência sem as consequências funestas da concorrência. Todos querem o impossível, quer dizer, as condições burguesas de vida sem as suas consequências necessárias. Nenhum deles compreende que a forma burguesa de produção é uma forma histórica e transitória, como o era a forma feudal. Este erro deriva de que para eles o homem burguês é a única base possível de toda a sociedade, deriva de que não podem imaginar um estado social em que o homem deixe de ser burguês (sublinhados nossos, MARX, 1977, p.456) 41.
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