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Butler leitora de Beauvoir: o gênero como ato performativo
Butler a reading of Beauvoir: gender as a performing act
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 3, pp. 16-38, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepção: 29 Abril 2020

Aprovação: 04 Setembro 2020

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i3.1835

Resumo: Entre Beauvoir e Butler, questionaremos se o tornar-se mulher instaura a distinção entre sexo e gênero, convertendo-se num modo de aculturação que, aquém dos diferenciais anatômicos, designa uma performance em transformação. De Beauvoir, veremos: situada, a subjetividade se estabelece entre a civilização e as relações intercorpóreas. Assinalando a mulher como o segundo sexo, Beauvoir ratifica a ambiguidade como fator humano, tecendo reflexões à liberdade, opressão, reconhecimento e condição feminina. Disto, é interpelando Beauvoir que Butler interroga os gêneros. Rastreando no tornar-se mulher o uso incipiente do gênero, Butler sugere revisões às noções fenomenológicas de sujeito, corporeidade, situação e diferença sexual. Fomenta uma concepção performática onde o gênero é um constante devir. Descreve como se constituem os gêneros, considerando que não existem gêneros ideais. Assim, tornar-se gênero significa que, enquanto corpo, o dramatizamos e estilizamos. Crítica, esta performance personifica um modo de agir onde repetição, inovação, necessidade e contingência são ressignificáveis.

Palavras-chave: Beauvoir, Butler, Gênero, Atos Performativos.

Abstract: Between Beauvoir and Butler, we will question whether the "becoming woman" establishes the distinction between sex and gender, becoming a mode of acculturation that, in addition to the anatomical differentials, designates a performance in transformation. From Beauvoir, we will see: situated, subjectivity is established between civilization and intercorporeal relations. Marking the woman as the second sex, Beauvoir ratifies the ambiguity as a human factor, weaving reflections to the freedom, oppression, recognition and feminine condition. Of this, Beauvoir is questioning that Butler interrogates the genders. By tracing the incipient use of gender in "becoming woman," Butler suggests revisions to the phenomenological notions of subject, body, situation, and sexual difference. It promotes a performative conception where the genre is a constant becoming. It describes how the genres are constituted, considering that there are no ideal genres. Thus, becoming gender means that as a body we dramatize and style it. Criticism, this performance personifies a way of acting where repetition, innovation, necessity and contingency are re-signifiable.

Keywords: Beauvoir, Butler, Gender, Performative Acts.

Beauvoir e o reconhecimento do Outro: tornar-se mulher. Da mulher como segundo sexo, um discurso sobre gênero

Para Beauvoir, O Segundo Sexo (1949) foi o estudo que lhe “trouxe satisfações mais sólidas” (BEAUVOIR, 2009b, p. 150). Angulares, as proposições deste texto representam um importante marco na luta contra as arbitrariedades masculinas, que circunscrevem a mulher como um ser secundário e inessencial – o Outro.

Principalmente no que diz respeito ao ambiente norte-americano da segunda onda feminista, as contribuições de Beauvoir foram de grande valia. Todavia, em função da ascensão do pós-estruturalismo francês, os estudos de Beauvoir, em comparação ao auge das décadas de 1960 e 1970, perderam espaço. Neste interim, grande parte de suas produções migraram para os Estados Unidos. Na década de 1980, por exemplo, dez dos seus treze livros foram traduzidos e publicados naquele país (Cf. MOI, 1990, p. 25).

Com efeito, antes da publicação de Problemas de Gênero (1990), Judith Butler escreveu uma série de textos2 onde estruturou seu percurso até a concepção dos atos performativos e das reflexões sobre gênero. Neles, a estadunidense interpela questões levantadas pelo existencialismo francês e por Beauvoir, particularmente entorno da máxima “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009c, 361). Ela procurou aí seus significados implícitos, rastreando uma rede de pensamentos a partir da qual reorganizou suas teorias.

Da exclamação de Beauvoir, Butler detecta vários matizes. Para ela, é como se seus problemas acerca da distinção entre sexo e gênero já tivessem sido formulados por Beauvoir, ao se entender que “mulher” não é uma condição natural, mas um tornar-se. Ora, se o sexo é algo dado, o gênero “un conjunto de apreciaciones instauradas histórica y culturalmente” (DÍAZ, 2008, p. 40). Diante disto, é possível não só rastrear a multiplicidade dos significantes que amparam o discurso beauvoiriano, mas, a partir de Butler, questionar se a exclamação d’O Segundo Sexo (1949) é efetivamente capaz de instaurar a distinção entre sexo e gênero, convertendo-se num modo de aculturação corpórea mais-além da predestinação anatômica.

A subjetividade situada

Beauvoir reconhece que seu maior trabalho, O Segundo Sexo, representou o esforço de “descrever a condição da mulher” (BEAUVOIR, 2009b, p. 145). A filósofa examina as possibilidades que este “mundo masculino” recusou à mulheres e nota que “em todo caso, o homem se colocava como o Sujeito e considerava a mulher como um objeto, o Outro” (BEAUVOIR, 2009b, pp. 145-146). Se há uma forma humana, tal imagem é masculina, ao passo que a mulher “aparece como o negativo” (BEAUVOIR, 2009c, p. 16) – o segundo sexo.

Destituída de significação própria, a mulher é a encarnação daquilo que o “homem decide que seja” (BEAUVOIR, 2009c, p. 16). Perante a simbologia masculina, ela o símbolo ambíguo da diferenciação. Se o homem é pensado segundo sua autonomia, a mulher “é o inessencial perante o essencial” (BEAUVOIR, 2009c, p. 17). E se ele “é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro” (BEAUVOIR, 2009c, p. 17), fruto daquilo que as instituições fálica entendem por experiência feminina.

Em A Força da Idade (1960), Beauvoir ratifica sua escolha pela escrita, revelando que Sartre e ela viviam para escrever; e isso significava “emprestar a consciência ao esplendor da vida, e escrever para arrancá-la do tempo e do nada” (BEAUVOIR, 2009a, p. 15). Sem perceber, ambos aderiram ao otimismo “deves, logo podes” (BEAUVOIR, 2009a, p. 15). Vangloriavam-se pela conquista de uma liberdade constituinte de sua própria substância, sendo “pura consciência e pura vontade” (BEAUVOIR, 2009a, p. 16). Acreditavam, para a reconstrução de um humano autentico, ser preciso apenas fazê-lo coincidir consigo. Como consequência disto, há quem afirme que Beauvoir responsabiliza as mulheres por suas subordinações quando classifica a opressão cultural como um ato de má-fé3 que, negando a condição de liberdade4, se exime de responsabilidades.

Entretanto, uma leitura apurada logo sinaliza que Simone sempre esteve atenta aos impactos que as assimetrias civilizacionais acarretam sobre a liberdade. Junto com Sartre, ela apoiou tão vivamente o peso ontológico da liberdade que não raro ignorou “o peso da realidade” (BEAUVOIR, 2009a, p. 16). E é enfim questionando como seria possível a superação “para uma mulher encerrada num harém?” (BEAUVOIR, 2009a, p. 290) que admite ser preciso atentar à possibilidade da opressão aniquilar a liberdade.

Assumindo uma percepção mais dialética da realidade, Beauvoir reconhece os efeitos limitadores que os fatores sociais exercem sobre o indivíduo. Desde então, trata-se de entender que o humano tem a capacidade de escolher como viver, ainda que esteja imerso em constrangimentos (Cf. KRUKS, 1992, pp. 100-101). Diante das adversidades do mundo, não há sentido em atribuir ao oprimido plena responsabilidade por seu autoengano. Para Kruks, isso faz de Beauvoir uma pioneira a ser respeitada, cujas ideias remontam um feminismo longínquo (Cf. KRUKS, 1992, pp. 94-96), e que servem muito bem aos reclames atuais, quando se trata, por exemplo, de pensar a teoria dos atos performativos proposta por Butler. Destarte, podemos alegar a interpretação beauvoiriana da lida intersubjetiva e da corporeidade constitui a subjetividade situada, cuja relevância traz consequências “para a reflexão sobre liberdade, opressão, reconhecimento e a condição feminina” (CYFER, 2015, p. 66).

Com efeito, Beauvoir se destaca quando, acerca da reciprocidade entre liberdade e opressão, se posiciona sobre da pertinência do Outro em nossos atos. Para ela, se não há como reduzir o Outro a objeto de minha mundivivência, é necessário atentar às situações em que a opressão incide de tal modo sobre a subjetividade que não resta espaço para a ação. Visto que, diante de certas situações, o poder de decisão é parcial ou totalmente alienado, trata-se entender que não raro vigoram laços de reciprocidade entre sujeito e outrem e que, por isto, não se engajar em determinados casos não necessariamente é má-fé. Do ponto de vista beauvoiriano, existem situações capazes de modificar e condicionar a liberdade. O encontro com o Outro se trata, pois, de uma relação mediada por instituições assimétricas.

Este reconhecimento de Beauvoir anui que, se n’algum momento a liberdade for incondicional, o reconhecimento mutuo torna-se impossível. Para nós, isto revela que quando as instituições civilizacionais privilegiam uma das partes, tal vantagem tende a fixar a outra parte como um objeto secundário (Cf. KRUKS, 1995, p. 84); (Cf. BAUER, 2001, p. 216). Assim, ao sustentar que a mulher é o Segundo Sexo, Beauvoir infere não só que o feminino é o Outro, mas o outro desigual – o resultado de uma socialização sexista. Estamos falando de uma disparidade socialmente construída, situada na concretude do corpo feminino.

Segundo Beauvoir, “o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo” (BEAUVOIR, 2009c, p. 70). Não puramente natural, o corpo, sendo a situação do entrelaçamento entre mundo e vida subjetiva, “só tem realidade vivida enquanto assumido pela consciência através das ações e no seio de uma sociedade” (BEAUVOIR, 2009c, p. 70). Central ao entendimento da condição feminina, o corpo “não é uma coisa, é uma situação: é a nossa tomada de posse do mundo e o esboço de nossos projetos” (BEAUVOIR, 2009c, p. 67). Por isso, devemos buscar saber o que a humanidade fez da mulher, pois ser o Outro dentro de um contexto masculino não é apenas o efeito de constructos externos dos quais a mulher pode ser libertar; antes a situação de uma subjetividade encarnada, sujeita aos paradoxos da natureza e da cultura.

Como corpo submetido a tabus, o sujeito “toma consciência de si mesmo e se realiza” (BEAUVOIR, 2009c, p. 69). Mergulhado na sociedade que o aliena, ele se valora em nome de certos costumes que “refletem os desejos e os temores que traduzem sua atitude ontológica” (BEAUVOIR, 2009c, p. 69). Sem ser pura materialidade ou objeto da consciência, o corpo não é só o indivíduo em sua relação intencional de co-dependências, mas também a amarração das significações que tangenciam as vivências pessoais. Portanto, é no corpo onde se faz presente a dinâmica entre o nosso modo de viver no mundo e do mundo viver conosco.

A dinâmica do reconhecimento

Não obstante, a encarnação convive com o problema da alienação. Ser o segundo sexo “implica ser apartada de seu corpo” (CYFER, 2015, p. 69). Para nós, isto vem destacar o fato de que a cena cultural é capaz de reificar o corpo feminino ao ponto de deteriorar sua subjetividade. Distanciando-se do voluntarismo sem ceder ao determinismo social, é aqui onde Beauvoir abranda a má-fé sem deixar de incorporá-la à liberdade e à opressão femininas.

Com efeito, uma das passagens mais controversas d’O Segundo Sexo é o capítulo sobre o narcisismo. Nele, Simone sugere que “as circunstâncias convidam a mulher [...] a voltar-se para si mesma e a dedicar-se a seu amor” (BEAUVOIR, 2009c, p. 817). Ora, sendo o narcisismo um processo de alienação, a mulher se reúne na imagem que tem de seu corpo. Todavia, esta representação não é capaz de efetuar a síntese entre corporeidade e vida subjetiva, pois “o eu é posto como um fim absoluto e o sujeito nele foge de si” (BEAUVOIR, 2009c, p. 817). Diante disto, Beauvoir constata que, perante a civilização, a mulher pouco se realiza como corpo vivido/próprio/intencional. Ela raramente faz de si objeto de cultivo e idolatria. Assinalada a falta de reciprocidade entre os sexos, isto nos faz entender que o narcisismo circunscreve “uma forma de reação e cumplicidade com a opressão” (CYFER, 2015, p. 69) e que, por isto, restam poucas alternativas ao voluntarismo individual.

De fato, a ação voluntaria é vital, mas não suficiente para fazer com que as práticas civilizacionais sejam modificadas. Mais-além de um projeto individual, a mulher independente só pode surgir a partir de uma profunda transfiguração das instituições sociais. Sua situação não é invariavelmente sua, mas coparticipe do contexto global que excede suas vivências e enraíza a liberdade num mundo humano (Cf. KRUKS, 1995, p. 90). Sendo assim, não é gratuito que Beauvoir encoraje as mulheres a se engajarem em ações coletivas. Afinal, a luta contra a opressão também é “a luta pelo reconhecimento mútuo” (CYFER, 2015, p. 71).

Para nós, isso indica que, do ponto de vista beauvoiriano, a lida com a alteridade não se limita a sujeição do Outro perante o Eu. Não se trata, pois, de priorizar o confronto com o Outro, mas de revelar-nos que: 1) dada a pertinência do Outro, somos concomitantemente autônomos e determinados; 2) para além da hostilidade narcísica que o subjuga, o Outro não é um espelho daquilo que faço, mas alguém capaz de responder-me. Por conseguinte, a dependência entre indivíduo e alteridade acarreta a dinâmica do reconhecimento, cuja função é fazer-nos assumir que somos simultaneamente sujeito e objeto – ambíguos por excelência.

Sendo este o primeiro passo à constituição do sujeito, assumir tal verdade implica colocarmo-nos em risco e assentir ao outro sua alteridade. Trata-se de arcar com a possibilidade de desapegar-se de uma imagem cristalina de si para anuir ao Outro a condição de sujeito. Identificar-se não surge, portanto, como consequência do que falam de nós, mas do fato de estarmos dispostos a dar continuidade na conversação (Cf. BAUER, 2001, p. 236), visto que um diálogo pressupõe a renúncia de representações estáticas de nós e dos outros. Assim, faz-se necessário assumir a responsabilidade de constituir um mundo em coautoria. Para além da alienação, é preciso legitimar o lugar do limiar entre liberdade e opressão no sentido de fomentar vias de reciprocidade entres os sexos.

Apelando ao horizonte de entrelaçamento entre poder, igualitarismo, corporeidade e ação coletiva, Beauvoir, na cena do reconhecimento, não só delineia um caminho pelo qual torna-se possível suplantar a má-fé, como sugere direções à proporcionalidade entre homens e mulheres. Situável e contextualizável, tal igualdade é ajustada pelo conjunto das práticas e instituições sociais. Ela é construída por agentes que, corporificados, são “faticidade e liberdade, um corpo político” (CYFER, 2015, p. 74). A correspondência entre sujeito e alteridade requer que admitamos nossa fundamental ambiguidade:

Essa trágica ambivalência pela qual o animal e a planta apenas passam, o homem a conhece, ele a pensa. Assim se introduz um novo paradoxo em seu destino. [...] A cada instante ele pode apreender a verdade intemporal de sua existência; mas entre o passado que não é mais e o futuro que ainda não é, esse instante em que ele existe não é nada. Este privilégio que ele detém sozinho: ser um sujeito soberano e único no meio de um universo de objetos, eis o que ele compartilha com todos os seus semelhantes [...]. Desde que há homens e que eles vivem, todos experimentam essa trágica ambiguidade de sua condição; mas desde que há filósofos e que eles pensam, a maioria deles tentou mascará-la (BEAUVOIR, 2005, pp. 13-14)

Ora, encarnados, somos ao mesmo tempo sujeito e objeto das situações. Para além de uma narrativa em primeira pessoa, a ação pressupõe que renunciemos nosso ímpeto de tornar o Outro um espelho nosso e, aceitando a condição de objeto perante nossos semelhantes, recusemos a má-fé sem deixar de assumir as responsabilidades do agir. Em vista disto, o que Beauvoir aqui nos lega é a possibilidade da condição feminina e a cultura serem compreendidos pela via da alteridade. A autora mostra que tornar-se mulher não é conformar-se com as opressões, mas desafiar as imposições por meio de um discurso que contemple os paradoxos de um mundo inter-humano. Trata-se de uma “mentalidade outra” (SANTOS, 2010, p. 118) que atenta a um aspecto fundamental de nossa condição: a ambiguidade.

É entorno das dimensões possíveis que esta filosofia é capaz de exortar que podemos salientar os matizes implícitos identificados por Judith Butler. Para a estadunidense, o tornar-se mulher não só determinou sua distinção entre sexo . gênero, mas suscitou importantes questões relativas ao modo como se configuram as identidades de gênero diante da alternância entre centramento e descentramento dos comportamentos normativamente associados à masculinidade e à feminilidade. Vejamos.

Butler leitora de Beauvoir: nota introdutória

No início de sua carreira, Butler publica uma série de artigos nos quais dedica-se à compreensão dos impactos dos estudos de Beauvoir sobre as teorias feministas e de gênero. Butler acredita que boa parte dos significantes feministas contemporâneos advém da máxima “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009c, 361). Assinalando um emaranhado de possibilidades aptas a redimensionar sua compreensão acerca das configurações de gênero, a estadunidense reavalia parte dos axiomas adotados pelo existencialismo francês para, disto, refletir sobre os matizes da exclamação beauvoiriana. Assim, tanto acentua o cartesianismo e o dualismo ontológico tácitos em Beauvoir, quanto tece críticas à concepção existencialista de sujeito, sugerindo uma revisão das concepções de mundo e corporeidade. Reveladora, sua leitura atribui a Beauvoir o uso incipiente das categorias de gênero. Ela empenha-se em deslocar certas ferramentas do feminismo filosófico para dar lugar àquilo, no fim do século XX, denomina-se pós-feminismo.

Para Butler, as reflexões de Beauvoir giram entorno de um problema fundamental: o que é a mulher? Ora, se o sujeito só é livre enquanto ultrapassa a liberdade dos demais, então tornar-se mulher . chegar a ser – é definir-se como ser autônomo. Não obstante, a situação feminina é um paradoxo: se por um lado imperam reivindicações legalistas, paralelamente, resta às mulheres uma condição secundária e inessencial. Portanto, diz Butler, se Beauvoir exorta as mulheres à ação coletiva, o faz partindo do marco da diferença sexual.

Se os humanos são seres desejantes, somente uma parte, os homens, consegue realizar-se integralmente; à outra parte, as mulheres, resta a condição de Outro. Nascer mulher implica arcar com um conjunto de prescrições que condicionam as possibilidades de fazer-se sujeito. Neste contexto, vivenciáveis cultural e individualmente, os fatores biológicos estipulam “la inscripción socio-política de las mujeres con todas las consecuencias del caso” (FEMENIAS, 2003, p. 19). E por mais que encontremos nas mulheres o Mitsein de todo ser humano, é difícil reconhecer nelas as mesmas possibilidades conferidas aos homens.

Disto, resulta que ninguém vive de boa-fé às margens do próprio sexo. Ser “mulher” é ter-se tornado mulher a partir de uma prévia inscrição mundana. Por conseguinte, entende Beauvoir, trata-se de descrever a condição feminina para atentar aos modos como civilização a subordina. E é apoiando-a e constestanto-a que Judith Butler encontra em Beauvoir um suporte aos estudos sobre gênero e feminismo, mas conclui que isto possui limitações.

De fato, Butler não é uma exegeta de Beauvoir. Ela não pretende elucidar todos os horizontes do tornar-se mulher. Sua leitura toma Beauvoir como “punto de anclaje para desarrollar su propia teoría y así fundamentar una concepción performativa” (FEMENIAS, 2003, p. 20). Todavia, isso não implica desconsiderar as contribuições e inovações empreendidas em relação a filósofa d’O Segundo Sexo. Portanto, trata-se aqui de evidenciar os limites e os axiomas adotados por Simone para, assim, atentar à originalidade de Butler, sem desconsiderar suas insuficiências. Neste intuito, subdividiremos cinco tópicos: 1) veremos como Butler rastreia em Beauvoir o uso implícito da noção de gênero, de modo a lhe atribuir uma teoria voluntarista. 2) Rastrearemos na autora de O Segundo Sexo a mesma estrutura egológica da tradição cartesiana, bem como uma série de vícios dualistas. 3) Da crítica à corporeidade, imputaremos à Beauvoir um posicionamento biologicista. 4) Observaremos que Butler não está isenta de críticas. 5) Se Beauvoir incita as mulheres à condição de sujeitos livres, notaremos que Butler a censura por sugerir que se tornem homólogas aos homens.

Gênero e voluntarismo

Influenciada por Beauvoir, Butler examina os nuances implícitos daquilo que significa tornar-se mulher. Sua leitura insinua caminhos voltados não só à superação da destinação anatômica, mas a diferenciação entre sexo . gênero, entendendo que a máxima beauvoiriana sugere que o gênero é um aspecto adquirido da identidade (Cf. BUTLER, 1986, p. 35). Para Butler, é possível aí reconhecer que enquanto o sexo representa uma constante correlata dos aspectos fáticos do corpo, o gênero apela às representações civilizacionais que um corpo adquire. Sendo assim, tornar-se mulher indica que, se existe algo biológico, é o sexo, ao passo que o gênero designa um agrupamento de apreciações instauradas historicamente.

Como consequência disto, outro mérito conferido por Butler à Beauvoir é o reconhecimento de que não é a anatomia quem define como podemos ser. Antes de mais nada, é a interpretação cultural dos traços anatômicos que estabelece a separação dos gêneros e seus lugares na sociedade. Os valores sociais atribuídos às mulheres não dependem de atributos físicos. Se assim o fosse, “ser mujer sería algo inmediato, directo, inmutable” (DÍAZ, 2008, p. 41). O gênero, então, é um modo de realizar as possibilidades do corpo, dando-lhe uma forma cultural. Por conseguinte, tornar-se mulher não trata de uma atestação natural, mas dos processos de apropriação, interpretação e reinterpretação do si perante as instituições. E se não há, portanto, uma maneira fixa de assumir um gênero, então, segundo Butler, Beauvoir, acerca da constituição da identidade, dá a entender que tornar-se mulher assume um sentido voluntarista (Cf. BUTLER, 1986, pp. 35-36).

Segundo Butler, “ser mulher” não é um dado natural, pois não se é mulher desde o início; torna-se. Isto quer dizer que “tornar-se” subentende uma ação tética: “una construcción que designa la variedad de modos en los que se puede adquirir significado cultural o reconocer inteligibilidad al proceso de auto-construcción del género al que se devine” (FEMENIAS, 2003, p. 21). Enquanto verbo, tornar-se assume, neste sentido, uma significação ambígua, pois aponta ao processo pelo qual é possível, em detrimento do sujeito, chegar numa ficção fundamentalista do termo “mulheres”. Polivalente, tornar-se pressupõe noções como eleição e projeto. Ao processo de aquisição do gênero, isto parece suscitar um trabalho de incorporação de uma escolha voluntária. Contudo, se o gênero implica uma escolha, como pode ser um constructo social? Ora, ou as mulheres se subordinam segundo suas escolhas, ou, sem qualquer via de libertação, são submetidas às instituições que as oprimem: “nos construimos como mujeres o somos construidas como mujeres” (DÍAZ, 2008, p. 42).

Para Butler, tornar-se mulher indica um agrupamento de atos voltados para um projeto. Na contramão das interpretações que veem o gênero como algo determinado, tal noção só pode ser concebida como um processo pelo qual se assume “um certo estilo corporal” (FEMENIAS, 2003, p. 22). Em vista disso, Butler atribui a Beauvoir o mérito de compreender o gênero como uma estrutura dinâmica. Posto que tornar-sepode ser entendido ou como escolha ou como modo de aculturação, tornar-se um gênero pressupõe, então, uma tensão entre os conceitos de projeto e constructo. E é desejando preservar a ambiguidade deste verbo que Bulter alega: Beauvoir converteu o gênero num locus corpóreo de possibilidades culturais tanto recebidas quanto inovadas. Destarte, “escolher um gênero” é optar por uma performance inscrita numa intrincada rede de normativas pré-estabelecidas (Cf. BUTLER, 1987, p. 198). Mergulhados na cultura, é estilizar um corpo e optar por leva-lo a cabo. Eis aí a primeira crítica butleriana à Beauvoir.

De fato, caso a distinção entre sexo . gênero seja consistente, Simone não deixa claro se um sexo torna-se um gênero determinado. Ora, se tornar-se mulher consiste na adoção de uma performance daquilo que, culturalmente, significa “ser fêmea”, então nem todo corpo é capaz de estilizar o locus do gênero “mulher”, pois se trata, desde a diferença sexual, de um corpo já definido. Assim, a separação entre sexo e gênero rastreável em Beauvoir acarreta não só uma sujeição dos corpos às imposições extrínsecas, como dá a entender que o gênero é construído de tal modo que “ser feminina” e “ser mulher” são duas formas distintas de ser.

Não obstante, se o gênero designa uma variante cultural do sexo, então devemos reconhecer que tal conceito deixa em aberto a configuração da identidade. Tornar-se gênero consiste em engajar-se num campo performativo de interpretações culturais. Dado que o gênero aponta à possibilidade de se inscrever sobre o corpo, Bulter entende que Beauvoir: 1) esquece de explicitar em quais situações o corpo faz-se passivo; 2) passa por alto o modo como se reproduzem e se reconstroem as maneiras de “ser gênero”; e 3) não percebeu a função que a agência .agency)pessoal tem sobre a constituição do gênero. Assim, mesmo que implícitas, as formulações de Beauvoir impõem vários desafios às teorias de gênero. Atribuindo à autora d’O Segundo Sexo parte do seu voluntarismo, Butler indaga em que proporção o gênero é um constructo auto-reflexivo e, se personificamos uma construção por nós empreendida, como tornamo-nos um gênero (Cf. BUTLER, 1986, pp. 36-37)?

Dualismo ontológico e o fantasma do cartesianismo

Para Butler, a tese da eleição do gênero parece supor um quebra-cabeças ontológico (ontological puzzle). De fato, se o gênero é um constructo, então supõe um agente capaz de apropriar-se do gênero desde um âmbito pré-genérico. Contudo, é fato que não somos extrínsecos ao gênero. Não há sentido escolher o que já somos. Portanto, se tornar-se parte de certo voluntarismo, então as teses beauvoirianas dão ao Eu uma roupagem cartesiana.

Na medida em que supõe um agente prévio apto a escolher o gênero escolhido, Beauvoir parece adotar uma egologia que vive e cresce antes de inserir-se na linguagem e na cultura: um “proto-sujeto previo a toda elección posible” (FEMENIAS, 2012, p. 24). Ora, tal como acontece no dualismo corpo-mente, a estrutura da consciência destaca-se, em Beauvoir, como um sistema descoporizado e independente da sintaxe e do contexto onde o gênero se inscreve. Para Butler, esta sistematização do Eu não apenas vai na contramão das teses segundo as quais a linguagem dispõe o agente pessoal, como sugere que a diferença entre fala e vida cultural extingue sua atestação. E se é verdade que torna-se mulher pressupõe um conjunto de atos apropriativos, “entonces la agencia personal parece un pre-requisito lógico para poder asumirlo” (FEMENIAS, 2012, p. 24). E uma vez estabelecido que tal agente não é desencarnado e que tornamo-nos nossos gêneros, não nossos corpos, é por estes motivos que Butler questiona se Beauvoir reedita certos dualismos e, em detrimento do corpo, atribui à consciência um estatuto próprio (Cf. BUTLER, 1986, pp. 11-12).

Partindo de Butler, notamos que estas indagações ganham em profundidade quando, sem deixar de reconhecer sua originalidade, assumimos que o pensamento beauvoiriano é debitario das filosofias de Sartre e Merleau-Ponty. Para a estadunidense, o problema encarnação representa uma maneira de transportar o tornar-se mulher à distinção entre sexo e gênero. Teçamos, pois, breves comentários ao existencialismo implícito em Beauvoir.

Com efeito, mais do que reavaliar a doutrina existencial, Butler entende que a autora de O Segundo Sexo busca afastar-se do cartesianismo quando pensa a corporeidade para além do paradigma das almas incorpóreas. Neste sentido, é preciso reconhecer alguns fatores: o existencialismo sartreano reedita certos fantasmas ao afirmar 1) que, enquanto liberdade absoluta, é a ação nulificante da consciência quem a une aos objetos no mundo e 2) que o corpo “ou bem é coisa entre coisas, ou bem é aquilo pelo qual as coisas a mim se revelam” (SARTRE, 2014, p. 386). De fato, se a percepção é constituinte dos atos reflexivos, não há como negar que “sou meu corpo na medida em que sou” (SARTRE, 2014, p. 412). Contudo, é fato que Sartre deixa transparecer que “não sou meu corpo na medida em que não sou o que sou; pois dele escapo por minha nadificação” (SARTRE, 2014, p. 412). Para Sartre, o corpo é o ponto de partida para aquilo que sou, mas só é necessário enquanto o encaro como um “obstáculo a ser transcendido para ser no mundo” (SARTRE, 2014, p. 412). Portanto, apesar de ratificar a dialogia do em-si e do para-si como expressão da realidade humana, Sartre focaliza a identidade pessoal num ponto fixo quando torna o corpo algo a ser transcendido pela ação da consciência.

Para Butler, na contramão do cartesianismo, Sartre visa compreender o aspecto desencarnado da identidade sobre o corpo, mas sempre repete o vício de aceitar que o corpo só existe enquanto fator a ser superado pela consciência (Cf. BUTLER, 1986, p. 38) e que, por isto, “la consciencia de algún modo está más allá del cuerpo” (DÍAZ, 2008, p. 43). Segundo ela, Sartre não só não aprofunda a questão da consciência perceptiva, como dá a entender que a consciência “no está comprometida en lo que percibe” (FEMENIAS, 2012, p. 26). Para dar conta destes problemas, entende-se que Merleau-Ponty é o autor a priorizar uma filosofia da percepção onde o para-si e o em-si são co-dependentes.

De fato, ao vislumbrar os modos como o ser interage com as coisas, é através da percepção e da corporeidade que Merleau-Ponty sutura o hiato da ontologia sartreana. Para ele, não vivenciaríamos as coisas sem partir de certos supostos que, se comparados à antinomia sujeito-objeto, remetem a uma espécie de envolvimento irrefletido que mantemos com os outros. Como uma presença inalienável, “se para mim um projeto e uma interpretação do real são possíveis, é porque estou ligado com o real num sentido radical” (WAELHENS, 2006, p. XII). Entendida como um trazer à tona certas experiências de um mundo que mescla existência e essência, e cuja meta é restituir o contato ingênuo com as coisas, é somente por uma conexão entre vida perceptiva, corpo e mundaneidade que o humano consegue projetar-se. É na estrutura corporal onde encontramos o sentido de nossas experiências.

Para Merleau-Ponty, a principal característica da consciência intencional é a encarnação. Enquanto estrutura anônima, “o corpo é o veículo do ser no mundo” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 11). Ter um corpo é juntar-se à um meio, difundir-se entre certos projetos e engajar-se neles. Ser corpo é “a potência de se juntar às coisas e se sincronizar com elas” (DUPOND, 2010, p. 13). Em unidade com outrem, o corpo constitui uma entidade fenomênica que, enquanto experiência para mim, sou eu presente em meu campo perceptivo. Sendo assim, expressa um estado primordial que, desde a percepção, não presta contas à consciência, sugerindo não só que Merleau-Ponty abrandou os radicalismos sartreano, mas que as máximas beauvoirianas se valem destas contribuições.

Isto posto, nos é facultado alegar que a hipótese butleriana segundo a qual Beauvoir foi seguidora acrítica de Sartre deve ser revisada. Por alguma razão, a estadunidense “toma menos en cuenta la herancia merleau-pontyana en Beavoir sobre la corporalidad sexuada de los individuos que la sartreana” (FEMENIAS, 2012, p. 27). Contudo, não há como negar: seguindo alguns dos passos de Merleau-Ponty, Butler difunde a sexualidade na existência ao ponto de não diferenciá-la de outras motivações. Reconhecendo a pertinência de Merleau-Ponty sobre os supostos beauvoirianos, a estadunidense entende que o erotismo não é uma cogitação (cogitatio) que visa um cogitado (cogitatum); ele se faz no mundo, não numa consciência laborativa. Ambígua, a sexualidade é coextensiva à vida, expressando nosso ser por inteiro. Neste sentido, se não há uma essência que nos preceda, se somos contingentes e efeito daquilo que escolhemos e se tais afirmações não consideram as diferenças do “estar-mundo” de homens e mulheres, então, ainda que não refute por completo o projeto sartreano, Beauvoir defende uma concepção antidualista do corpo, pela qual adota “una actitud fenomenológica hacia el cuerpo y sus diferencias sexuales” (HEINAMAA, 1998, p. 41). E é sua interpretação do corpo sexuado que salienta um modo vir a ser específico das mulheres.

Em contrapartida, devemos reconhecer que Beauvoir adota o vocabulário sartreano, ainda que, em função da corporeidade, retome noções como sujeito e situação. Ora, se a existência não possui atributos fortuitos, então não é possível assumir a liberdade como determinante absoluto de nossos compromissos. Antes de mais nada, devemos admitir, para cada sujeito, um anteparo mundano que o sustém. Em vista disto, salta aos olhos como Beauvior constata que nossas vivências advêm sobretudo de uma inscrição corporal que é ao mesmo tempo “uma coisa do mundo e um ponto de vista sobre esse mundo” (BEAUVOIR, 2009c, p. 39). Para nós, isso significa que, se é vital assinalar os limites da leitura butleriana, não há como passar por alto que Beauvoir assume a ótica segundo a qual o sujeito, sendo decorrência do entrecruzamento de atos intencionais prévios, se constitui por “posturas o actitudes corporales que se adoptan en situaciones específicas” (HEINAMAA, 1998, p. 29). Em função disto, notamos não só que Beauvoir se distancia dos dualismos sujeito-mundo, mas que Butler força a leitura num sentido auspicioso às suas teorias5.

Isto posto, é quando comenta a situação das mulheres que, segundo Butler, Beauvoir concretiza um posicionamento aquém de implicações excessivamente voluntaristas. Ora, visto que a situação não é a “outra face” da liberdade, trata-se aqui de entender que, n’alguns casos, a autonomia jamais é exercida e que, por isto, existem situações intransponíveis. Partindo de Beauvoir, Butler entende que, longe de sermos absolutamente livres, somos alicerçados por um contexto posicional que constantemente nos interpela.

Em verdade, sob o risco de perdermos nossa existência mesma, os processos de aculturação nos reivindicam a adoção de um gênero “en consonancia com las normas establecidas” (DÍAZ, 2008, p. 46). Para Butler, Beauvoir, em função da diferença sexual, dá especial ênfase à condição do sujeito como transcendência. A pensadora francesa “proyecta la idea de que se puede ir más allá del género desarrollando un modelo de libertad no generizada” (DÍAZ, 2008, p. 47). E é por isso que, na compreensão da estadunidense, Beauvoir insta as mulheres a alcançarem uma situação escolhida não por elas mesmas, mas por indivíduos que, colocando-se como essenciais, enquadram-nas como o segundo sexo.

Ora, ainda que os sexos sejam dois, é preciso reconhecer que “la construcción histórica de los géneros convirtió a unos (los varones) en sujeto-uno autónomo e las otras (las mujeres) en lo Otro” (FEMENIAS, 2012, p. 30). Ao suscitar a construção do gênero conforme um paradigma diferencial, Beauvoir, reitera Butler, impeliu as mulheres a assumirem um programa de liberdade pelo qual se identificam “con esa actividad de transcendencia que han practicado los hombres en la creencia de que no dependían de sus cuerpos” (DÍAZ, 2008, p. 47). Assim, se concedemos à Butler a premissa de que Simone reeditou certos dualismos, nada resta às mulheres senão reivindicarem o plano da consciência constituinte, por vezes entendida como ação transcendente ao corpo e às diferenças sexuais.

De fato, ainda que a corporeidade seja instrumento de liberdade, Butler entende que a noção beauvoiriana é “limitada pela reprodução acrítica da distinção cartesiana entre liberdade e corpo” (BUTLER, 2003, p. 32). Para ela, mesmo quando propõe uma síntese entre em-si e para-si, “Beauvoir mantém o discurso mente/corpo” (BUTLER, 2003, p. 32), fazendo que não se rompa por completo com as relações hierárquicas entre os gêneros. Isto posto, salta aos olhos o quanto Beauvoir passou por alto os mecanismos e as opressões concretas que dão vida ao gênero enquanto estilo corporal de existência. Sua controversia é pensar “la materialidad del cuerpo y su capacidad de acción transformadora, bajo presupuestos que inhabiliten el dualismo ontológico de la tradición filosófica y la oposición binaria entre los géneros” (DÍAZ, 2008, p. 53). Sob a ótica butleriana, isso indica que Beauvoir instigou as mulheres a assumirem um protótipo de corporeidade pautado por um modelo masculino, desde o qual deveriam adaptar-se. E por mais que tenha descrito o corpo enquanto inscrição mundana capaz de inquerir a liberdade feminina, ocorre que não raro sugere às mulheres que se tornem homólogas ao sujeito que as colocou na condição de Outro.

Biologicismo e corporeidade

Na busca por distanciar-se de possíveis dualismos, Beauvoir, segundo Butler, propõe que as mulheres assumam um modelo masculino de transcendência. Ora, mas isto significa que a autora olvidou a descrição do corpo feminino? Se aceitarmos que Simone cede à ótica voluntarista, então ela concebe a corporeidade partindo de suposições que endossam a possibilidade de a ultrapassarmos, visto trata-se de apenas um dos horizontes na busca por realizações (Cf. BUTLER, 1986, p. 38). Para Butler, se somos uma escolha dentre situações, então Beauvoir toma o corpo como o locus das escolhas que o transcendem.

Contudo, não devemos esquecer que a filósofa de O Segundo Sexo conceitua o corpo como uma consciência encarnada diluída na existência. Em vista disso, o corpo natural não é um substrato do gênero. Ele é uma ficção que nos permite vislumbrar o gênero não como um dado anatômico, mas como um fator cultural da existência que assume distintas performances conforme sua inscrição carnal. Neste sentido, se o humano é uma ideia histórica, o gênero não é senão o instrumento pelo qual captamos e enfrentamos as situações. Diante disto, Beauvoir insinua que a situação não é um fatum natural. Nada há na natureza que justifique a mulher como segundo sexo. É a cultura que a impede de transcender.

Para Butler, não obstante, as mulheres não são seres descoporizados. Nada há na liberdade que disfarce a encarnação. Se os homens despossuem seus corpos, é porque “los proyectan como lo ‘Otro’, haciendo de sí mismos un ‘yo’ descorporizado” (FEMENIAS, 2012, p. 33). De fato, os homens se convencem de que habitam uma realidade não corpórea. Acreditam que não são seus corpos e que tampouco precisam prestar contas à esta evidencia. A corporeidade lhes soa como algo secundário. Assim, há pouquíssimas diferenças entre a crença de que o corpo é algo inecessencial e a conclusão de que os Outros são simples corpos objetificáveis.

A constituição masculina concebe a encarnação como um fato a ser suprimido ou projetado para reemergir como um Outro-material que em tudo se opõe ao Eu-Uno, cuja meta é instauração imagética do Eu. Não obstante, adverte Butler, há de se entender que esta tautologia imóvel, conjurável desde a dialética do Senhor (Uno) e do Escravo (Outro)6, não apenas traz à baila os limites da liberdade absoluta, mas reforça as críticas aos normativismos de gênero. Assim, resta admitir que a ideia de uma consciência descorporizada tende ao fracasso. O fenômeno da encarnação não pode ser suprimido. Por mais que o reprimam, sua negação é a corporificação de uma negação, o que o faz emergir como condição para uma existência reificada (Cf. BUTLER, 1986, p. 44).

Butler diz que é possível rastrear em Beauvoir um duplo sentido à corporeidade. Enquanto locusdas interpretações culturais, é uma materialidade socialmente identificável. Mas também é a situação das transvalorações feitas a partir das interpretações recebidas. De todo modo, sempre será um campo de possibilidades aberto às mais antagônicas interpretações históricas impressas sobre a pele. Neste sentido, o corpo surge como o pivô da relação entre as facultações pessoais e as determinações culturais. Sua persistência ratifica os modos pelos quais é possível assumir e reinterpretar as normativas de gênero. Por conseguinte, as normas concernentes ao gênero são menos limitadas pela anatomia do que pelas forças civilizacionais que as cristalizaram como tais (Cf. BUTLER, 1986, p. 45).

Para Butler, a sexualidade é um atributo necessário ao humano. Não há indivíduos não sexuados pois “ser sexuado e ser humano são condições coextensivas e simultâneas” (BUTLER, 2003, p. 163). Não obstante, devemos entender que não é o sexo quem dá origem ao gênero, que o gênero tampouco é a expressão especular do sexo e que, portanto, constitui equívoco delimitar o sexo como um fato imutável. Ora, se de Beauvoir é possível dizer que “o gênero é adquirido, ao passo que o sexo não pode ser mudado” (BUTLER, 2003, p. 163), Butler trata como insuficiente a leitura segundo a qual o gênero é uma variante cultural do sexo e um horizonte de significantes inscritos num corpo. Para ela, as contribuições de Beauvoir supõem que “se nace con un sexo físico inmutable, pero el sexo no es la causa del género. Sexo y género están separados” (DÍAZ, 2008, p. 52). Suas máximas sugerem que a anatomia não possui um significado inerente, mas deixam de teorizar sobre a possibilidade da desconstrução do corpo e do gênero para além das categorias supostas na diferença sexual.

Em verdade, por mais que este não seja seu objetivo, não fica claro, em Beauvoir, se o gênero está vinculado ao sexo ou se este vinculo é só cultural. Mas se o gênero é um estilo de existir e o corpo é o horizonte pelo qual lidamos com as possibilidades sociais, então – interpela Butler – o gênero é uma questão cultural. Por isso, tornar-se gênero possui mais implicações do que a distinção entre sexo e gênero. A anatomia não só não determina o gênero, como não lhe impõe limites, visto que o corpo nunca é igual a si mesmo. Trata-se de entender que a anatomia já não é mais seu destino.

Quando um corpo humano vê-se como sujeito, suas relações afetivas não se limitam mais a aspectos orgânicos. Se o “existente é um corpo sexuado” (BEAUVOIR, 2009c, p. 79) e se a sexualidade está sempre envolta por outros existentes, é pela concretude de suas relações que as sexualidades masculina e feminina são descobertas. E se o corpo é uma modalidade interpretativa, então trata-se de enfatizar as rupturas introduzidas por Beauvoir, na medida em que revisam o âmbito pré-reflexivo7 e insinuam a necessária ruptura entre sexo e gênero.

Aproximando-se de um dos seus principais problemas, Butler extrai de Beauvoir a ideia de que os gêneros promovem a proliferação e variação de estilos corporais (Cf. BUTLER, 1987, p. 134). Ainda que negue os binarismos ontológicos, Beauvoir não aponta à existência de mais de dois gêneros. Butler, pelo contrário, assume de esta variável, alegando que o corpo sexuado está aberto às múltiplas elaborações de gênero e que, por isto, não se limita aos estereótipos culturais. Ora, se o gênero é um ato transformador, “no tiene por qué quedar reducido a la supuesta dualidad de sexos” (DÌAZ, 2008, p. 52). Por conseguinte, elegê-lo é atuá-lo. É estiliza-lo. É transvalorar a história do corpo que o usa e que, desde então, tornar-se “una elección, un modo de actuar e reactuar las normas de género recibidas, sufriendo muchos estilos de piel” (FEMENIAS, 2012, p. 35).

Mas se é verdade que não há um sexo natural, então qual o sentido da distinção entre sexo e gênero? Afinal, para que o gênero? Com efeito, se é verdade que Beauvoir não se preocupou com parte das consequências rastreáveis na corporeidade, Butler diz que é preciso contestar o modelo naturalista, denunciando aí a discriminação que se estabelece a partir do binarismo e da heterossexualidade compulsiva. Isto se deve pois o uso político do gênero só tem lugar enquanto as imposições civilizacionais exigirem que a compressão da sexualidade seja didática, estável e hétero-normativa. Butler assinala sexo e gênero no escopo “dos discursos pelos quais eles são enquadrados e formados, de modo a tornar evidente o caráter construído de ambas as categorias” (SALIH, 2015, p. 46). Diante disto, não é gratuito que tente desvencilhar-se do gênero enquanto modo de organização das imposições culturais, segundo os termos de um estilo ativo de viver a corporeidade. Para ela, o entrelaçamento do corpo com a cultura é uma tarefa que o indivíduo constantemente executa, e de modo quase natural. Sendo assim, as diferenças anatômicas não só não antecedem as normas culturais, como já são uma interpretação cultural balizada por supostos normativos naturalizados. E se sexo e gênero são incorporações culturais, ambos são intercambiáveis.

Isto posto, ainda que Beauvoir não trabalhe tais questões, Butler entende que o tornar-se mulherabre campo para uma via radical do gênero. Sua definição do corpo como um horizonte performativo de possibilidades torna-o mundano. Por isso, se entendemos que o gênero existe, então estamos reinterpretando as imposições civilizacionais incidentes sobre a corporeidade. Isto significa que os gêneros não só apelam à subversão do binarismo sexual, como faculta novas maneiras de reformular as disparidades entre masculino e feminino.

Ao escopo desta análise, isto indica que o gênero adota diferentes formas, sendo capaz de se proliferar como um “fenómeno múltiple para el que se deberá encontrar nuevas palabras ‘clasificatorias’” (FEMENIAS, 2012, p. 39). Ora, por mais que Beauvoir não reconheça a possibilidade de existirem performances alternativas aos dados naturais, é quando define a corporeidade a partir de termos históricos que traz à baila a denúncia segundo a qual o binarismo de gênero “no es ontológica y necessariamente ‘dado’” (FEMENIAS, 2012, p. 39). Se homens e mulheres são formas moduladas de existência, nada há de significativo no dimorfismo sexual exceto o interesse cultural em mantê-lo.

Diante disto, notamos que, se as possibilidades relativas ao gênero devem ser abrangentes, é quando conceitua o corpo como o nexo das interpretações situacionais que, segundo Butler, Beauvoir faculta-nos uma definição do gênero segundo os termos de uma cena culturalmente sedimentada de significados e modalizações inventadas. Portanto, se ser um sexo significa assumir e transvalorar a cultura, a proposta butleriana parte de uma concepção dialética cuja meta é recuperar, inventar e assegurar a autonomia corporal (Cf. BUTLER, 1986, p. 48).

Em defesa de Beauvoir

Por mais prolífera que seja a leitura butleriana, sua abundância não está isenta de críticas. Com efeito, no artigo ¿Que es ser mujer? Butler y Beauvoir sobre los fundamentos de la diferencia sexual (1997), Heinämaa sugere que a estadunidense interpretou equivocadamente os objetivos de Beauvoir ao alegar que ela ocupa-se das relações entre sexo e gênero. Heinämaa demonstra, contra Butler, que Beauvoir não quis explicar fatos, acontecimentos ou estados de coisas, mas desvelar a polifonia de significantes como “mulher”, “fêmea” e “feminino”. Em detrimento de definições ideológicas, Beauvoir levou a cabo uma análise fenomenológica do “fenómeno llamado diferencia sexual” (HEINAMAA, 1998, p. 29).

Para a Heinämaa, Beauvoir teoriza sobre as causas, origens ou formas comuns de ser mulher. Sua meta é descrever as práticas que configuram o “ser mulher”, considerando que este estilo ser “no es una constelación de cualidades o acciones fijas, sino una estructura abierta, incompleta” (HEINAMAA, 1998, p. 35). Diante disto, é possível não só limitar a conclusão butleriana segundo a qual Beauvoir viabiliza uma teoria de gênero, mas entender que as tramas voluntaristas e construtivistas são inadequadas para compreender o que significa ser mulher diante das diferenças sexuais. Em Beauvoir, nem o sexo é um anteparo natural do gênero, nem o gênero é uma interpretação social do sexo; ambos são constructos teoréticos que se organizam conforme as experiências. Por isto, quando Beauvoir indaga o que é tornar-se mulher, questiona como é possível que um corpo sexuado possa, em relação ao mundo e aos outros, “repetir ciertas posturas [...] y, asimismo, cambiarlos y modificarlos. Su respuesta a este interrogante quizá no sea del todo coherente. Sin embargo, para criticar su resolución, habría que comprender correctamente la pregunta” (HEINAMAA, 1998, p. 41).

Outra insuficiência refere-se ao modo como, em favor de sua leitura, Butler interroga, nas teses de Beauvoir, noções como consciência e liberdade. Ora, se entendemos que em Beauvoir a aculturação não precede os fatores biológicos, então seus comentários não são voluntaristas nem segundo o cartesianismo, nem no sentido da escolha existencial. De fato, não só é um equívoco valer-se da distinção sexo-gênero para compreender Beauvoir, como “tampoco es adecuado el uso del marco existencialista [...] como clave de acceso” (DÍAZ, 2008, p. 53). A leitura butleriana apropria-se inadequadamente do tornar-se gênero ao focalizá-lo como “una reelaboración de los planteamientos de Descartes y de Sartre sobre el sujeto y el cuerpo” (DÍAZ, 2008, p. 58). Assim, se desejamos ser justos, precisamos entender que a noção beuvoiriana de sujeito não se iguala nem ao cógitocartesiano, nem ao para-si de Sartre. Segundo Heinämaa, Beauvoir “se acerca, más bien, al sujeto-corporal entrelazado con el mundo, de Maurice Merleau-Ponty” (HEINAMAA, 1998, p. 29). Trata-se, então, de admitir que as decisões individuais não devem ser tomadas como consequência de atos absolutamente livres. Em Beauvoir a liberdade só se concretiza por meio de “posturas o actitudes corporales que se adoptan en situaciones específicas” (HEINAMAA, 1998, p. 29). Portanto, ainda que n’alguns escritos Butler retifique seus posicionamentos e teça análises mais positivas, ela sempre supõe que “el propósito de Beauvoir es proporcionar una explicación para las diferencias de género" (HEINAMAA, 1998, p. 38).

Isto posto, a última incongruência encontrada por Heinämaa diz respeito ao modo como Butler aprecia o interesse de Beauvoir pela sexualidade. Coincidindo com a análise de Le Doeuff, a finlandesa argumenta que uma boa maneira de ler Beauvoir é partindo da ideia de que somos componentes de uma ordem biológica culturalmente interpretada e que, por isto, a autora de O Segundo Sexo visa um estudo fenomenológico da diferença sexual, cuja meta é suplantar a imagem de uma opressão sem causa (Cf. LE DOEUFF, 1980, p. 286); (Cf. HEINAMAA, 1998, p. 31). É evidenciando a ambiguidade das narrativas beauvoirianas que ratifica-se a diversidade de interpretações entorno do tornar-se mulher, deixando transparecer que, por ser primária, a diferença sexual é uma condição irredutível. Seja como dado biológico ou social, a diferenciação é primária: é aquilo que “no se transforma por el voluntarismo performativo, como parece sostener Butler” (FEMENIAS, 2012, p. 41).

Para além da diferença sexual

Em Problemas de Gênero, Butler interroga se existem as mulheres, se elas possuem ou não sexo e se é a função civilizatória quem institui o dimorfismo sexual. Com isto, a estadunidense não só examina noções como mulher e sexo, como aprofunda suas críticas à Beauvoir e tece comentários acerca dos limites da ideia de representação política. Acentua-se aí a importância, as consequências e as ambiguidades de conceitos como gênero, mulher, sexo e representação, principalmente no que tangem suas possibilidades de transvaloração.

Dirigindo-se à Beauvoir, Butler investiga o termo mulheres, supondo que a ideia do sujeito autolegitimador é questionável. Ora, visto que muitas mulheres não se sentem representadas pelas instituições, então faz-se necessário “un cuidadoso examen tanto de la categoría mujeres cuanto de la noción de representación” (FEMENIAS, 2012, p. 46). De fato, questiona a autora, há entre as mulheres algo anterior à opressão ou só são mulheres enquanto oprimidas? Existem especificidades na cultura feminina que sejam independentes das normativas hegemônicas? Se sim, contradizem o status quo? Isto sugere que o binarismo sexual continua sendo o único marco regulatório ou já se trata de um dado debilitado? Não existem, quiçá, outros eixos de poder, tais como raça, etnia, classe e sexualidade?

De fato, se interpretada de modo universal, a categoria mulheres tende a alienar as relações humanas a partir de um heteronormativismo prescritivo, cuja consequência é tornar relevantes apenas as representações dos sujeitos conformados ao statu quo. Para Butler, tratar a diferença sexual como fundadora da civilização exclui não só a possibilidade de interpelarmos a constituição da dife­rença sexual, mas de questionarmos seu processo de reinterpretação, seja pela via das instituições fálicas, seja pela via dos posicionamentos que instauram a termo mulhe­res como caminho à libertação de uma classe subjugada (Cf. BUTLER, 1988, p. 530). Em função disto, a representatividade social pouco se diferencia de um mecanismo de exclusão, pois deixa de lado aqueles sujeitos que não satisfazem as normas não-explicitas. Sendo assim, a preocupação de Butler quanto a diferença sexual é que tal conceito se transforme num manual de reificações capaz prescrever tanto um binarismo identitário, quanto um quadro de referências heteronormativas destinadas à descrição do gênero, da identidade e da sexualidade (Cf. BUTLER, 1988, p. 530). Assim, por mais que mulheres não seja uma categoria problemática, “al introducir la distinción entre sexo y género, se abrió una fisura a resolver” (FEMENIAS, 2012, p. 47).

Isto posto, Butler inquere em que sentido o sexo está dado? Ainda é possível trata-lo como um dado natural? Se sim, as diferenças sexuais dependem da anatomia ou da identidade psíquica? Se não, qual a história do sexo e em que medida a cultura influenciou na aceitação heteronormativismo? Afinal, é possível vislumbrar sexo e gênero como constructos da sócio-identitários? Se assim o for, intende-se que é inviável sustentar a analogia segundo a qual o gênero é correspondente da cultura e o sexo, correlato da natureza. Para Butler, é preciso indagar em que medida o sexo é pré-discursivo, independente e politicamente neutro. Em suma: é viável aceitar o tornar-se mulher como um dado natural? Negativa, a resposta de Butler sugere o ser mulher se constrói por meio de atos performativos que constrangem o status quo na medida em que produzem o corpo no amago do dimorfismo sexual. Ser mulher, então, é um sedimento de práticas políticas “que exceden el sexo binario, el género y el cuerpo, incluyendo otras categorías fundantes de la identidad” (FEMENIAS, 2012, p. 48).

Mas e a identidade? Seria fruto da imaginação? Ora, se o gênero é um constructo, conservá-lo não só suplanta o paradigma da destinação anatômica, como favorece várias alternativas aos binarismos sexuais. Portanto, preservá-lo significa que, enquanto constructo identitário, o gênero assume a forma de um artifício flutuante, cujo corolário aponta à possibilidade das formulas “homem = masculino” e “mulher = feminino” não coincidirem.

Não obstante, Butler alega que muitas explicações entram em desacordo quando indagam se o gênero é um atributo pertencente ao sujeito ou se se trata daquilo que ele diz ser. Em verdade, como podemos encará-lo se o definirmos como um constructo social? Para a estadunidense, ainda que Beauvoir não tenha se colocado este problema, nada impede de toma-lo como fio condutor para verificar se existem normativas capazes regular as variantes de gênero de acordo com o dimorfismo sexual. Se não existem, é possível assumir tais variantes sem valer-se de uma ontologia prévia? Segundo Butler, boa parte das teorias de gênero sucumbem aos determinismos sexuais quando encaram o corpo como um recipiente passivo às regulações externas. Hegemônicas, tais leis recusam a formula “biologia institui destino”, mas constroem o gênero com base na ideia de que “a cultura determina destino”.

Isto posto, Butler propõe que caracterizemos o gênero feminino: 1) enquanto dimensão pessoal, fala-se dele como um traço linguístico, biológico ou cultural; 2) em relação aos atravessamentos que se lhe opõem, é uma significação que o corpo sexuado assume; 3) considerando, segundo a tradição masculinista, que só o feminino é sexuado, é o Outro da diferenciação; 4) por fim, é o que não é tematizado. Assim, ou é – como em Beauvoir – um atributo secundário das pessoas, ou a própria “persona se posiciona en el lenguaje como sujeto masculino, excluyendo estructural y semánticamente toda posibilidad de un sujeto femenino” (FEMENIAS, 2012, p. 50). Em vista disto, Butler propõe que repensemos a noção de identidade segundo as relações polivalentes das categorias de gênero. Isto se deve pois os gêneros não se produzem como reais, aparentes, unívocos ou essenciais, mas como efeitos quase naturais dos discursos de uma identidade supostamente estável.

Definindo a sexualidade a partir de termos culturais, Butler diz que, paródicas, as configurações de gênero não são nem descritivas, nem prescritivas, nem beneficiadas pelos dados naturais. Para ela, é o gênero que constitui o sexo, não o contrário: “no hay identidad de género por debajo de las expresiones performativas de género” (FEMENIAS, 2012, p. 51). Viciado, o dimorfismo sexual é, então, uma instituição aglutinável no sentido da diferença reificada. Por isto, trata-se só de desarticular as tendências naturalizantes do binarismo sexual, mas de entender que as narrativas de gênero podem assumir-se paródicamente, visto que o corpo é capaz de personificar os sujeitos constituídos em gêneros. Segundo Butler, o corpo não é independente do gênero. Todavia, é necessário desconstruí-lo e atualizá-lo conforme a performance de gênero desejada; e isto para que o corpo exista com . através dos marcos regulatórios, de modo a conferir um efeito verdadeiro sobre os discursos hegemômicos.

Isto posto, Butler interroga o conceito de representatividade. Ora, se não há mais indivíduos do sexo-gênero mulher, a quem a sociedade representa? Para a estadunidense, as instituições operam de modo a normalizar-nos em benefício de categorias que constroem o indivíduo que elas desejam representar. Politicamente, a representatividade só abrange quem se conforma com as leis estabelecidas. Os sistemas jurídicos “produzem os sujeitos que subsequentemente passam a representar” (BUTLER, 2003, p. 18). Assim, antes de reclamarem a condição de cidadãs voluntariosas, é fundamental que as mulheres transgridam os critérios de representação política que por vezes adotam. Para isto, é preciso não só que saibam “quién es su ‘sujeto’” (FEMENIAS, 2012, p. 53), mas entendem que o termo “mulheres” só pode vigorar enquanto força reguladora a ser transvalorada.

Segundo Butler, a libertação só será possível se as mulheres repugnarem as estruturas fálicas. Antes de interpelarem o status quo em busca de emancipação, precisam questionar em que sentido são lapidadas por tais estruturas. Para além de uma crítica ao patriarcado, trata-se de entender que examinar “as operações políticas que produzem e ocultam o que se qualifica como sujeito jurídico do feminismo é precisamente a tarefa da genealogia feminista8” (BUTLER, 2003, p. 23). Neste sentido, é preciso que as mulheres se reconheçam como “el lugar de la apertura y de la permanente resignificación” (FEMENIAS, 2012, p. 53). Se o dimorfismo sexual se autoproclama fundador da inteligibilidade ocidental, resta transgredi-lo. Para isto, é vital pressupor a adoção de sexos-gêneros paródicos e performáticos.

Conclusão: os gêneros performativos

Por mais controversa que seja, entendemos, através de Beauvoir que a subjetividade se estabelece a partir da relação intercorpórea entre sujeito e alteridade, e que isto carrega importantes consequências às reflexões sobre a liberdade, opressão, reconhecimento e condição feminina. Na contramão tanto de uma liberdade voluntarista quanto de um determinismo social, Beauvoir atenta aos laços de reciprocidade existentes entre os indivíduos. Disto, defende que o encontro com a alteridade não se trata de um “revidar” de olhares, mas de uma relação mediada por instituições parciais e assimétricas. A filósofa sugere que existe situações onde não se engajar não necessariamente é má-fé.

Tornar-se mulher surge, neste interim, para ratificar a ideia de que, opressoras, as instituições fálicas reificam o corpo feminino ao ponto de deteriorar sua subjetividade. Para além do suposto de uma liberdade incondicional, trata-se dizer que, dada a persistência do outro sobre os atos individuais, somos ao mesmo tempo autônomos e determinados. Ora, o Outro não é um espelho nosso, mas alguém que nos responder. Em Beauvoir, isto acarreta a dinâmica do reconhecimento, cuja função é fazer-nos desapegar da imagem cristalina que temos de nós para, assim, assumir que somos sujeito e objeto das situações que nos interpelam. Assinalando a mulher como o segundo sexo, a autora acentua um dos traços fundamentais da condição humana: a ambiguidade. Mas é interpelando o torna-se mulher que Butler não só infere sua distinção entre sexo . gênero,como tece importantes questões ao modo como se constituem os gêneros face a alternância entre centramento e descentramento dos comportamentos associados à masculinidade e à feminilidade.

Anuindo que boa parte dos signos feministas contemporâneos advém de Beauvoir, Butler reavalia os impactos que tais acepções possuem. Não exegética, a estadunidense interroga os axiomas adotados pelo existencialismo francês no intuito de investigar o que há de implícito nas exclamações beauvoirianas. Neste sentido, tanto acentua o cartesianismo e o dualismo ontológico tácitos em Beauvoir, quanto tece críticas à concepção de sujeito, sugerindo revisões às noções de corpo e mundaneidade. Polêmica, a leitura de Butler rastreia em Beauvoir o uso incipiente das categorias de gênero. Deslocando certas ferramentas, a autora empenha-se em questionar se o tornar-se mulher é capaz de instaurar a distinção entre sexo e gênero, convertendo-se modo de aculturação fugídio às predestinações anatômicas. Sendo assim, trata-se de entender que o gênero é um constructo temporal; uma realização performativa aberta à transformação (Cf. BUTLER, 1988, p. 520).

Implícito nos matizes do verbo tornar-se, o gênero designa um processo ambíguo de autoconstrução que, por seu turno, abarca um conjunto de atos passivos e propositais relativos ao sujeito que, culturalmente estruturado, assume um estilo corpóreo. Na contramão de pretensas coisificações da identidade, o propósito de Butler é desvencilhar-se do gênero enquanto estatuto natural. Em função disto, viabiliza uma compreensão performática segundo a qual o gênero é assimilado como uma realização de possibilidades face aos processos de interpretação, apropriação e reinterpretação das situações culturais. Por conseguinte, se Beauvoir assegura-nos que nenhum destino biológico “define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade” (BEAUVOIR, 2009c, p. 361), Butler deduz que tornar-se gênero é um “processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim” (BUTLER, 2003, pp. 58-59).

Ora, enquanto prática discursiva, o gênero está aberto “a intervenções e re-significações” (BUTLER, 2003, p. 59). Por mais que, reificado, tenda a se solidificar em formas naturais, “o gênero é um processo que não tem origem nem fim, de modo que é algo que ‘fazemos’, e não algo que ‘somos’” (SALIH, 2015, p. 45). Não-natural, revela-nos não só que não há relação imediata entre corpo, sexo e gênero, mas que é possível assumir um corpo sem os traços sexuais que lhe são socialmente atribuídos. É possível “ser uma fêmea ‘masculina’ ou um macho ‘feminino’” (SALIH, 2015, p. 46). Todavia, isso não significa que a materialidade do corpo é suprimida; ela só não coincide com o processo onde o corpo adota seus significados culturais. E é função disto que Butler alega ser preciso ampliar as considerações fenomenológicas relativas tanto ao modo como o corpo carrega seus significantes, quanto à maneira como os mesmos são dramatizados. Portanto, resta reconhecer que a consideração dos atos performativos como correlatos dos atos corporais favorece tanto a compreensão do modo como se constituem os gêneros, quanto a ideia de que o corpo dramatiza o gênero na medida em que materializa suas possibilidades.

Assinalando estes problemas, Butler propõe que o gênero seja compreendido como um ato intencional e performático. Apesar propor-lhes uma intensa revisão, a estadunidense reconhece que as noções de intencionalidade e projeto servem à liberdade, tal como serviram para Beauvoir. Mas é o conceito de performatividade quem diz não haver um Eu anterior ao gênero. Paródicos, os atos de gênero criam o gênero, ocultam-no de sua própria origem e facultam a ilusão de que o gênero é um dado natural (Cf. BUTLER, 1988, pp. 521-522).

Sem abandonar a intencionalidade, Butler entende que a performatividade está mais próxima da teatralidade do que da dimensão discursiva, que assume a corporeidade, mas dificulta as considerações sobre “la existencia de un yo anterior que gobierna su actuación” (DÍAZ, 2008, p. 64). Nisto, indaga se o existencialismo serve de sustentáculo às discussões sobre a naturalidade do gênero, do sexo e da sexualidade. De fato, as teorias dirigidas à análise do modo como os corpos são constituídos em gênero encontram vasto apoio nas teses fenomenológicas segundo as quais os corpos são culturalmente atravessados. Mas a fenomenologia caduca quando, ao pensar a condição feminina, toma os atos individuais como ponto de partida, pouco considerando as condições e os agentes que perpetuam a opressão.

Para Butler, o existencialismo desconsidera o quão reincidentes são as regulações sociais sobre certos modos de opressão. Ora, se todo ato pessoal é também um ato político, é só com o acréscimo dos atos paródicos à intencionalidade que tornar-se-á possível uma explicação ampla à ação coletiva e, assim, entender que a dramatização do gênero não é absolutamente individual (Cf. BUTLER, 1988, p. 525). Não particularizáveis, os géneros se realizam em função “de matizaciones personales y singulares pero a la vez en relación con las sanciones y normas imperantes que desalojan el género de la reclusión” (DÍAZ, 2008, p. 65). Engajado, o gênero não só não se deixa limitar pelas escolhas individuais, como é aquilo que, em sua performance, jamais se impõe de modo cristalino e absoluto.

Posta em cheque, a habitual distinção entre realidade e aparência assume, desde então, uma faceta diferenciada, visto que a teoria butleriana dos atos performativos dissocia os gêneros daquilo que tradicionalmente chamamos de essência interna ou natural. Trata-se de acentuar que não existem gêneros mais ou menos verdadeiros. Não estamos falando de uma identidade mais autêntica que as outras. Noções clássicas como essência, verdade e interioridade nada são senão “creaciones culturales que encubren el mecanismo de la constitución performativa del género” (DÍAZ, 2008, p. 67).

Para Butler, um grave problema das pautas feministas é pressupor que o termo “mulheres” expressa o real interesse das mulheres. Embora tenha servido à promoção da visibilidade feminina, tal presunção mascara as disputas e assimetrias existentes. Contudo, estrategicamente falando, estas pautas ver-se-iam beneficiadas se, em determinadas situações, utilizassem desse universal como um recurso “consciente del carácter ficticio de la ontología de las mujeres” (DÍAZ, 2008, p. 68). Ora, diz Butler, não é que não possamos confiar nessa categoria, mas sua problematização não pode deixar de acontecer. Assim, trata-se de considerar que a constituição do sujeito é vital, pois somos produto das práticas de exclusão fomentadas pelas estruturas jurídicas hegemônicas.

Notamos que Butler põe em cheque a articulação e a consolidação de uma essência própria às mulheres. Indagando se há um ponto de vista das mulheres (Cf, BUTLER, 1988, p. 529), a autora atenta aos limites do dimorfismo sexual. Para ela, ao se colocar como fundante da cultura, a diferenciação esmaece a investigação sobre sua própria estrutura. Seja voltando-se às cristalizações masculinas, seja adotando um termo unívoco que expresse o ponto de vista das mulheres, o dimorfismo sexual acarreta problemas à configuração da identidade. Seus efeitos são restritivos, pois preservam o marco hetero-normativo destinado tanto à descrição do gênero e da sexualidade, quanto à legitimação da exclusão. Sociais, estas práticas jurídicas incidem sobre a subjetividade, condenando certos indivíduos à exclusão. E por mais que alguns movimentos assumam um papel crítico, é fato que os representantes de uma causa também são produto das relações de poder que visa combater.

a formação jurídica da linguagem e da política que representa as mulheres como ‘o sujeito’ do feminismo é em si mesma uma formação discursiva e efeito de uma dada versão da política representacional. [...] Em tais casos, um apelo acrítico a esse sistema em nome da emancipação das ‘mulheres’ estaria inevitavelmente fadado ao fracasso (BUTLER, 2003, p. pp. 18-19).

Em função disto, Butler defende que em momento algum o gênero está passivamente inscrito sobre o corpo, a natureza, a linguagem, o simbólico ou mesmo a história do patriarcado. Enquanto constructo corpóreo-cultural, o gênero é aquilo que se supõe sob coerção, diária e incessantemente, com angústia e prazer (Cf. BUTLER, 1988, p. 531). É somente através de uma teoria de gênero apta a reconhecer sua faceta performativa que tanto podemos admitir os gêneros existentes, quanto lutar contra as penalizações impostas às configurações alternativas. Na contramão de uma identidade autêntica, Butler interpela as práticas e discursos “que geram identidades, mas que designam estas últimas como sua causa e origem” (CYFER, 2015, p. 46). Portanto, assegura-nos que ser reconhecido como homem ou mulher é, antes, uma condição dada pela manifestação pública e paródica de condutas associadas à masculinidade e à feminilidade.

Para além do suposto de um sujeito autodeterminante, se trata de pensar uma identidade em processo, “construída no discurso pelos atos que executa” (SALIH, 2015, p. 44). Argumentando em favor de constructos paródicos, Butler põe em cheque a noção estática de sujeito alegando que existem modos de construir identidades transbordantes aos dimorfismos já existentes. A autora não busca a verdade; antes descrever as condições pelas quais a identidade é fabricada no seio de certos discursos. Uma análise desta magnitude parte do princípio de que, enquanto sujeitos, não causamos as práticas que nos condicionam, mas que elas nos criam na medida em que determinam nosso sexo, nossa sexualidade e nosso gênero. Por conseguinte, se há essências “masculinas” ou “femininas”, estas são apenas produtos de uma performance que, reiterada, cria a ilusão de que sua origem é natural e precede o social.

Isto posto, se não há quem escape dos poderes hegemônicos, então a concepção de gêneros performativos considera que os gêneros são produzidos no interior de tal contexto. Todavia, se críticas, estas performances, ao invés de endossarem o status quo, o problematizam, de modo a desestabilizar a quase natural coerência entre conduta pessoal, orientação afetiva e identidade de gênero. Centrando e descentrando as normas vigentes, esta dinâmica aponta não só à instabilidade das regulações jurídicas, mas ao fato de que o conceito de performance integra um modo de ação a partir do qual a repetição, a inovação, a necessidade e a contingência são articulações passíveis de ressignificação. Isto, diz Butler, “subverte a distinção entre os espaços psíquicos interno e externo, e zomba do modelo expressivo do gênero e da ideia de uma verdadeira identidade do gênero” (BUTLER, 2003, p. 195). Portanto, admitindo a importância sem deixar de ir além daquilo que Beauvoir supôs, Butler atenta à possibilidade da transvaloração crítica que põe em que cheque os axiomas de gênero tão naturalmente assumidos como reais ou naturais.

Referências

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Notas

2 Optamos por catalogar estes escritos nas referências bibliográficas.
3 Em Sartre, a má-fé corresponde a tentativa de fuga do sujeito dando a si um determinismo. Não se trata, pois, da fuga decorrente da vontade de negar o que sou. O sujeito da má-fé, busca no mundo algo que possa determiná-lo, e cujas propriedades negam sua condição negativa. Assim, não só nega sua liberdade, mas abre mão de si enquanto projeto. Segundo Leopoldo e Silva, “quando a consciência nega sua indeterminação original e procura se determinar em um ser poderíamos dizer que ela se nega para ser” (LEOPOLDO E SILVA, 2003, p.159). A má-fé refere-se, então, à tentativa do indivíduo em se autodeterminar. Diferentemente do mentiroso ciente de sua ação, a má-fé é a conduta na qual o sujeito mente para si mesmo – uma mentira intima, um autoengano. Por conseguinte, se a toma como uma de suas possibilidades, será, num só tempo, enganado e enganador (mentiroso). Para nós, o problema da má-fé expressa a possibilidade da consciência enganar a si mesma. E considerando que a consciência é sempre intencional, a má-fé é o que escapa da intenção do sujeito.
4 Para Sartre, o homem “nada é além do que ele se faz” (SARTRE, 2014, p. 19). Intencional, é livre para assumir e projetar sua existência. Ora, se a existência precede a essência, então não há, para o sujeito, condições que pré-definam suas decisões. Casual, a consciência jamais ultrapassa a condição de ser sem essência, pois nada há além da contingência. Sendo assim, no que tange a liberdade, ela assume em Sartre um estatuto ontológico. O sujeito está condenado à ação negativamente da liberdade.
5 Mais adiante retomaremos esta discussão.
6 Para Butler, o fenômeno da encarnação é vital em Beauvoir. Sem ele não é possível compreender nem a conceituação da mulher como o Outro nem a crítica ao projeto de uma consciência sem corpo. Não obstante, a estadunidense diz que a relação entre indivíduo e alteridade é similar à dialética hegeliana do senhor e do escravo. Com efeito, se em Hegel o senhor só é autônomo enquanto encontrar no escravo uma parte alienada de si, em Beauvoir “el amo es el hombre descorporalizado y el esclavo la mujer determinada por su cuerpo” (DÍAZ, 2008, p. 48). Nestes termos, os homens só se veem como seres descorporizados na medida em que recluem as mulheres de sua plenitude cultural, tratando-as apenas como seres secundários, cujos projetos são urgências do corpo, não da mente. As mulheres são o Outro pois são colocadas na “esfera del cuerpo por los hombres y con el fin de pensarse a sí mismos como […] almas descarnadas” (DÍAZ, 2008, p. 48).
7 Sobre isto, Butler entende que Beauvoir retoma a escolha pré-reflexiva. Para ela, Beauvoir conferiu a esta questão um significado cultual, pois a concebe como uma escolha espontânea que se realiza sem termos consciência dela. Por este motivo, trata-se de entender que adotamos um gênero “de acuerdo con un proyecto laborioso en gran medida encubierto que consiste en la progresiva interpretación, reinterpretación, de las normas y restricciones otorgadas por nuestra cultura” (DÌAZ, 2008, p. 45).
8 Em Butler, a análise genealógica é a investigação sobre as condições de emergência das “identidades de gênero, alternando o centramento e o descentramento nas normas que as constituem, uma vez que é essa alternância que abala sua normalização e as exclusões que delas decorrem (CYFER, 2015, p. 46).

Autor notes

1 Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis – SC, Brasil. Bolsista do(a): Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, Brasil.


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