Resumo: A presença dos acontecimentos enquanto fenômeno, e seu contraponto, o hábito, ecoam numa inter-relação contínua ao longo de todo o enredo do romance A Peste (1947) de Albert Camus. O presente artigo consiste na investigação do conceito de acontecimento e suas relações com a noção mediadora de linguagem - do mesmo modo que a ideia de resistência - à luz de uma leitura das reflexões de Gilles Deleuze, Slavoj Zizek e John Caputo acerca desse tema. Para tanto, estarão expostas correlações possíveis entre construção ficcional e filosofia na análise desta obra que é considerada uma das mais simbólicas do século XX.
Palavras-chave:Albert CamusAlbert Camus,PestePeste,AcontecimentoAcontecimento,LiteraturaLiteratura,FilosofiaFilosofia.
Abstract:
: The presence of events as a phenomenon, and its counterpoint, the habit, echo in a continuous interrelationship over the whole plot of the novel The Plague (1947) by Albert Camus. This article consists of investigating the concept of event and its relations with the mediating notion of language - in the same way as the idea of resistance - in the light of a reading of the reflections of Gilles Deleuze, Slavoj Zizek and John Caputo about this subject. Therefore, possible correlations between fictional construction and philosophy will be exposed in the analysis of this work, which is considered one of the most symbolic of the 20th century.
Keywords: Albert Camus, Plague, Event, Literature, Philosophy.
Artigos
Acontecimento e resistência em a peste de Albert Camus1
Event and resistence in the plague by Albert Camus
Recepção: 23 Abril 2020
Aprovação: 31 Agosto 2020
Pode-se ler A peste de três maneiras diferentes. Ela é ao mesmo tempo a narrativa de uma epidemia, o símbolo da ocupação nazista (e, aliás, a prefiguração de todo regime totalitário, seja ele qual for) e em terceiro lugar a ilustração concreta de um problema metafísico, o do mal (CAMUS, apud TODD, 1998, p. 346)
Todo acontecimento escandaliza um hábito. Qual um corte ou violação do curso normal dos fatos o acontecimento é um evento em movimento, desdobramentos, um acaso marcado sem aviso pois a sua dinâmica não pressupõe causalidade aparente. Trata-se, antes de mais nada, de um problema filosófico por excelência e do qual a ficção se serve para estampar a realidade. É nessa perspectiva que indaga S. Zizek: “Todas as coisas estão conectadas com vínculos causais? Tudo que existe deve sustentar-se em razões suficientes? Ou será que existem coisas que, de alguma forma, acontecem a partir do nada?” (ZIZEK, 2017, p. 09).
É importante, de início, demarcar uma distinção entre acontecimentos de ordem humana e aqueles de origem natural aos quais Zizek reporta e nos fala também em subespécies - no sentido de “estabelecer uma distinção entre acontecimentos materiais e imateriais” (ZIZEK, 2017, p. 11). No entanto, o que se pretende evidenciar aqui, são os acontecimentos de um ponto de vista social e metafísico, alegoricamente postos por Albert Camus, em seu romance, na feição de um mal como representação de um poder opressor. O mal chega sem causas e parte sem razão trazendo, nesse ínterim, por parte da comunidade, sentimentos4 diversos: de exílio, revolta, alienação, loucura e solidariedade. Afinal, todo acontecimento é sempre plural.
Essa característica é o que diferencia fato e acontecimento. O acontecimento não é o evento em si, mas o que dele se desencadeia. Sua noção se apoia na singularidade do seu aspecto múltiplo e insólito. Em contrapartida, um fato ou um evento, tanto quanto um hábito, se resguardam na abundância inumerável da sequência dos instantes, do presente temporal. Assim, de acordo com Zourabichvili:
o presente não dá conta de sua própria passagem; é preciso, portanto, que haja um aspecto temporal mais profundo, um mecanismo que explique que o tempo passa. Dizer que vivemos no presente não é suficiente. Sem dúvida, temos necessidade de um presente para a ação, mas quando passa o presente que nos constitui, eis-nos despojados do nosso poder de agir, aptos tão somente a uma obstinada pergunta contemplativa: Que se passou? A situação mudou, e bastaria, sem dúvida, contrair um novo hábito para poder reagir novamente; mas, no intervalo, surgiu algo mais profundo do que qualquer situação, pura cesura insistente, diferença entre duas dimensões inconciliáveis do tempo [...]. É o acontecimento (ZOURABICHVILI, 2016, p. 102).
O tema do acontecimento ressoa constantemente ao longo de todo o enredo de A Peste. Poderíamos enumerar diversas passagens, no entanto, citamos apenas algumas que julgamos serem importantes para o que estamos aqui tratando: “Os curiosos acontecimentos que são o objeto desta crônica ocorreram em 194... em Orã” (CAMUS, 2017, p.09). Em outra passagem lemos: “Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares...” (CAMUS, 2017, p. 67); e, finalmente: “como se o acontecimento tivesse sacudido o torpor em que o bairro adormecera, essas ruas afastadas enchiam-se de novo com o zumbido de uma multidão em festa” (CAMUS, 2017, p. 284)5.
Como se pode constatar, um acontecimento é, desse modo, “o efeito que parece exceder suas causas – e o espaço de um acontecimento é aquele que é aberto pela brecha que separa o efeito das causas” (ZIZEK, 2017, p. 09). Essa fenda, tornada espaço-tempo, é o campo onde todo acontecimento assume a marca de mediador formativo da realidade. Desse modo, os acessos, o tempo e as implicações que de um acontecimento derivam é o que em conta se tem dele, incluindo os nomes que a ele se dão, e não conseguem capturá-lo totalmente6.
Vejamos, assim, como se dão tais relações no texto camusiano. Para uma melhor exposição, dividiremos nosso trabalho nos seguintes tópicos: a) acontecimento: tempo e excesso; b) a dimensão kairológica do acontecimento. Como marco referencial teórico, além dos comentadores selecionados, nos pautaremos, fundamentalmente, nas análises filosóficas de G. Deleuze , S. Zizek e J. Caputo buscando, com isso, fundamentar os aspectos de abertura e irredutibilidade que norteiam a noção de acontecimento na obra camusiana.
Para Deleuze, em sua obra Lógica do sentido, “só o presente existe no tempo e reúne, absorve o passado e o futuro, mas só o passado e o futuro insistem no tempo e dividem ao infinito cada presente” (DELEUZE, 2017, p.08). Nessa perspectiva, o acontecimento será sempre um componente fomentador de intersecções temporais, por trazer em sua imanência o propósito de intercessor do real e do ficcional.
O que torna singular um acontecimento é a intransigência de sua ocorrência. Mesmo dois ou mais acontecimentos iguais sob um prisma físico, se conservam, ainda assim, inflexíveis numa ótica temporal. Logo, mesmo que se reforcem pelo caráter similar, ao se repetirem de maneira uniforme, eles preservam suas diferenças na repetição. O presente, do ponto de vista transitório, é o que Deleuze, segundo Zourabichvili, denomina um hábito:
Hábito em referência aos empiristas anglo-saxônicos, nós . somos mais do que estamos nele (são as nossas atividades que se desenrolam nele). Ele é a própria consistência, diferenciada e qualificada, de nossa existência. Esse presente é necessariamente finito, limitado, restringido por certa capacidade de contração [...]. Com efeito, há o relançamento e, portanto, a necessidade orgânica, porque a necessidade contrativa dos instantes (hábito) engendra numa pretensão ou uma espera, nossa espera de que ‘isso’ continue (ZOURABICHVILI, 2016, p. 100).
Isto significa que o presente enquanto hábito não passa, haja vista que não cessa de se produzir continuamente, se retroalimentando na lógica do devir, das rupturas que os acontecimentos acarretam. Assim, “o presente só é concebível se ele for presente e passado ao mesmo tempo, pois, sem isso, não se explicaria que um presente possa devir passado quando é suplantado por outro [presente]” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 106). Nossos atos, nossas condutas se definem no espaço-tempo, no meio que se determina por um hábito. Paradoxalmente, de acordo com Zourabichvili, essa noção de meio parece imprecisa, pois
ora nós agimos nele, ora nós somos. É que ele implica uma teoria da subjetividade, segundo a qual o ser ou a identidade se infere de um ter ou uma pretensão. Todos somos contemplações, logo hábitos. Eu é um hábito. Quem sou? Um hábito contemplativo, fixado em contrair elementos materiais ou sensoriais que compõem um meio no qual posso viver e agir (ZOURABICHVILI, 2016, p. 101).
Uma pretensão de agir, sim, legítima, mas sob a fluência do presente, do hábito, só pode ser compreendida enquanto liquidez e escoamento, pelo antagonismo da coexistência entre o que se passou e o que se quer atual. Essa ordem, do acontecimento, necessita não apenas do que vai se manifestar, o acaso dele, suas reverberações, mas, sobretudo, de uma acentuada concepção do tempo, pois é nele que o efeito do acontecimento se expande e excede as suas causas.
No segmento intitulado ‘Nome e Acontecimento’, de sua obra A debilidade de Deus: uma teologia do acontecimento, John Caputo propõe que, para além do nome de Deus ser um acontecimento, e a teologia ser a hermenêutica desse acontecimento, o objetivo dela é libertar o que sucede a esse nome e dar a ele, ao acontecimento, a sua autonomia, afastando assim as forças que poderiam ocultá-lo ou dispensá-lo.
Sem que aqui queiramos teologizar o conceito de acontecimento em A Peste, perseguindo conteúdos teológicos num possível percurso interpretativo, nos interessa sobremaneira as reflexões que Caputo realiza acerca da dinâmica estruturante do acontecimento, as experiências que dele são suscitadas, suas relações com o nome e como suas ideias estão alinhadas - ressalva feita às suas importantes considerações teológicas - com o pensamento de Deleuze e Zizek a propósito do sentido de devir.
Para Zizek, o acontecimento se caracteriza basicamente pelo “surgimento surpreendente de algo novo que solapa qualquer esquema estável [...] um trauma que desestabiliza a ordem simbólica em que existimos” (2017, p. 12). Uma desestabilização que reafirma a realidade em uma outra ordem simbólica ou advento. Segundo Deleuze:
O devir-ilimitado torna-se o próprio acontecimento, ideal, incorporal, com todas as reviravoltas que lhe são próprias, do futuro e do passado, do ativo e do passivo, da causa e do efeito. O futuro e o passado, o mais e o menos, o muito e o pouco, o demasiado e o insuficiente ainda, o já e o não: pois o acontecimento, infinitamente divisível, é sempre os dois ao mesmo tempo, eternamente o que acaba de se passar e o que vai se passar, mas nunca o que se passa (DELEUZE, 2017, p. 09).
Deleuze e Caputo, ainda ampliam a extensão do acontecimento para o campo do signo linguístico e suas relações com o devir, enquanto fluxo permanente, ininterrupto na sua força de transformação da realidade, e o por vir, como o que está para acontecer. No primeiro, “o acontecimento é coextensivo ao devir e o devir, por sua vez, é coextensivo à linguagem” (DELEUZE, 2017, p. 09).
Outro atributo do acontecimento é o seu excesso. O seu descomedimento provem da sua capacidade de nos suceder, nos alcançar e nos ultrapassar, e ainda que sejamos chamados a responder a eles não se trata de algo realizado por nós. Portanto irrompem, se manifestam, independentemente do sujeito e, por sua marca de advento, se apresentam como algo ao qual devemos fazer frente, queiramos ou não, pois requisitam uma resposta. Não se pode, assim, falar em acontecimento absoluto, visto que “cada acontecimento se produz num horizonte de expectativa que é quebrado. Mas se não é nada absoluto, um acontecimento é um excesso, um transbordamento, uma surpresa” (CAPUTO, 2010, p. 89).
Aqui, como desdobramento do seu caráter excessivo, o acontecimento não é sempre uma boa nova, por simplesmente não haver garantias sobre a trajetória dele. Todo acontecimento “desata uma cadeia ou série de substituições, não um processo de essencialização ou de desenvolvimento essencial. Em consequência, um acontecimento pode dar lugar a uma desestabilização que se desintegra e a uma recontextualização reduzida, capaz de criar um espaço aberto ao futuro” (CAPUTO, 2010, p. 90). Dessa maneira, cada promessa de um acontecimento é também uma ameaça, na medida em que o acontecimento por vir pode ser para o bem ou para o mal.
No tópico mais além do ser, Caputo atesta que um acontecimento jamais se refere a um ser ou ente reais, salvo por um impulso ou aspiração que é retido no interior dos nomes dos entes e do nome do ser,
como algo que clama por nascer, algo que não pode ser restringido à ordem ontológica em absoluto. Bem compreendido, o acontecimento excede qualquer ente, não descansa facilmente dentro dos limites do nome de um ser, à exceção de se mover sem descanso, sem parar, como um convite... (CAPUTO, 2010, p. 90).
Dito desse modo, o acontecimento não é uma circunstância ontológica no plano do ser, mas uma perturbação dos nomes do ser. No que concerne à questão da verdade, Caputo alega que o acontecimento se constitui na verdade de um nome; e no que diz respeito à verdade de um acontecimento ele se refere
ao que o acontecimento é capaz de realizar, o futuro aberto que os nomes albergam, suas possibilidades incontidas, que podem conter más notícias. Porquanto sejam incontidos, os acontecimentos são essencialmente imprevisíveis; o que significa que sua verdade é mais como uma noite que como uma luz, e o acontecimento em si é tão arriscado quanto prometedor (CAPUTO, 2010, p. 91).
Logo, a verdade de um acontecimento é algo para o qual deve-se ter a coragem para confrontar e se opor. No dizer desse autor, uma forma de resistência é enfrentar honestamente a verdade do acontecimento. Por fim, a última categoria abordada por Caputo, e que nos interessa aqui, diz respeito à noção de tempo, tendo em vista um acontecimento possuir um caráter irredutivelmente temporal, uma vez que “viver com o acontecimento é uma maneira de viver o tempo, uma forma de temporalização, mas que é mais kairológica que cronológica” (2010, p. 91); pois a dinâmica do acontecimento, mais qualitativa que quantitativa, não pode ser medida pelo tempo ordinário. Trata-se de um movimento que tem mais relação com um momento oportuno de transformação do sujeito, ou de uma coletividade, que o liberta dos liames do presente e abre o futuro para um novo começo, novo nascimento temporal, permitindo uma reinvenção, um outro modo de agir no mundo.
A guerra, ou a besta, como Camus a chamava, o transformava também em agente corrente, ao seu tempo, de recomeço pelo modo dele agir através da sua escrita. Nos anos em que elaborava seu romance sobre o flagelo da ocupação, mantinha alimentado de percepções sobre a realidade, sobre a sua criação artística, os seus Cadernos de 1939-42: A guerra começou, onde está a guerra? Segundo Pino,
no labirinto de viagens de Camus nesse período, a besta escondida não é o tédio, como em Orã, mas a guerra. Para onde ele fosse, tinha de viajar novamente: jornais eram fechados, precisavam mudar de sede, reduziam funcionários. Tudo por um mesmo motivo: a guerra. No início do caderno, Camus procura por ela, mas não reconhece os sinais; sabe que faz parte de um grande acontecimento, mas o que fazer? Por onde começar? O que combater? (CAMUS, 2014, p. 120).
Camus registra:
A guerra começou. Onde está a guerra? Fora das notícias em que se deve acreditar e dos anúncios que se deve ler, onde encontrar os sinais do absurdo evento? Ela não está nesse céu azul sobre o mar azul, nesses cantos estridentes de cigarras, nos ciprestes das colinas. Não é esse recente aumento de luz nas ruas de Argel. Queremos acreditar nela. Procuramos seu rosto e ela nos recusa. Somente o mundo é rei e seus rostos magníficos. Ter vivido no ódio dessa besta, tê-la diante de si e não saber reconhecê-la. Tão poucas coisas mudaram. Mais tarde, sem dúvida, surgirão a lama, o sangue, a imensa repugnância. Mas por hoje provamos que o início das guerras é parecido com os princípios da paz: o mundo e o coração os ignoram (CAMUS, 2014, p. 21).
Procurar o rosto da besta, ela recusando-se a se revelar nos leva de volta ao princípio de incontinibilidade exposto por Caputo. De outra feita, como podemos pensar a relação entre acontecimento em A Peste de um ponto de vista da percepção temporal?
Em A peste a comunidade de Orã vivencia as duas temporalizações descritas por J. Caputo. Sabemos que todo o tempo de duração da epidemia segue do mês de abril até a libertação da cidade, quando as suas portas serão reabertas em fevereiro do ano seguinte. Esse tempo, serve de baliza cronológica, para o leitor, por fornecer a dimensão de um tempo extratextual representado na narrativa.
Em contrapartida, a desmedida de um outro tempo, kairológico, nos dá a ideia do devir, de um tempo onde o acontecimento do flagelo deflagra sua força contra os hábitos da comunidade de Orã, arrastando seus habitantes para o transbordamento, para o excesso, do qual nos fala Caputo. Acontecimentos desencadeadores de condutas e sentimentos, entre os quais o primeiro que a peste trouxe foi a sensação de exílio e separação, ao que Rieux, testemunha ocular dessa trágica rota coletiva, registra:
E o narrador está convencido de que pode escrever aqui, em nome de todos, o que ele próprio sentiu então, já que o sentiu ao mesmo tempo que muitos dos nossos concidadãos. Sim, era realmente o sentimento de exílio esse vazio que trazíamos constantemente em nós, essa emoção precisa, o desejo irracional de voltar atrás ou, pelo contrário, de acelerar a marcha do tempo, essas flechas ardentes da memória [...] sabíamos então que a nossa separação estava destinada a durar e que devíamos tentar entender-nos com o tempo. A partir de então, reintegrávamo-nos, afinal, à nossa condição de prisioneiros, estávamos reduzidos ao nosso passado e, ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo renunciava, ao experimentar as feridas que a imaginação finalmente inflige aos que nela confiam (CAMUS, 1917, p. 71).
Aqui temos as primeiras averbações do Dr. Rieux referentes às atitudes dos habitantes de Orã no início do segundo capítulo, uma vez que ao final do primeiro, com a peste instalada, “Bernard Rieux olhava o telegrama oficial que o prefeito lhe estendera exclamando: “Estão com medo!”.
O telegrama dizia: “Declarem o estado de peste. Fechem a cidade” (CAMUS, 2017, p. 64). O trecho anteriormente citado, acerca do sentimento7 em comum relacionado ao flagelo nos mostra, em relação ao O homem revoltado, o tipo de costura que Camus estabelece entre as proposições analisadas em seu tratado sobre a revolta e sua contrapartida literária, A Peste. É o que desponta no seguinte trecho do referido ensaio:
Eis o primeiro progresso que o espírito de revolta provoca numa reflexão inicialmente permeada pelo absurdo e pela aparente esterilidade do mundo. Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do movimento de revolta, ele ganha a consciência de ser coletivo, é a aventura de todos. O primeiro avanço da mente que se sente estranha é, portanto, reconhecer que ela compartilha esse sentimento com todos os homens, e que a realidade humana, em sua totalidade, sofre com esse distanciamento em relação a si mesma e ao mundo. O mal que apenas um homem sentia torna-se peste coletiva (CAMUS, 1997, p. 35).
Camus, em A Peste, extirpa o princípio de causalidade da praga enquanto acontecimento, e por não ter dado nomenclatura ou terminologia humanas ao mal da epidemia fez abalar a impressão historicista que Sartre, e mesmo Barthes8, tiveram do seu romance. Assim, em certa passagem final da carta amistosa, porém resistente em seus argumentos, que Camus escreveu a Barthes9 em resposta à resenha que este último escreveu sobre o livro, lê-se:
[...] a questão que o senhor propõe (Que fariam os combatentes d`A Peste frente à feição demasiado humana do flagelo?), é injusta, uma vez que deveria ser formulada no passado, ocasião em que recebeu resposta – positiva. O que esses combatentes, cuja experiência parcialmente traduzi, fizeram, eles o fizeram justamente contra os homens e a um preço que o senhor conhece bem. Eles o repetirão, sem dúvidas, frente a qualquer terror e qualquer que sejam suas feições – pois o terror tem várias -, o que justifica uma vez mais a escolha de não nomeá-lo precisamente a fim de poder melhor atingir a todos. É sem dúvida isso mesmo que me reprovam: que A Peste possa servir a qualquer resistência contra qualquer tirania. Mas não há como reprovar-me, não há sobretudo como acusar-me de recusar a história [...]10.
A bem da verdade, Camus não compartilhava com a exigência de Sartre, para quem toda literatura deveria ser engajada11, e assim tornada refém de uma só ideia, caso do realismo socialista na antiga União Soviética. Nesse sentido, em uma das sequências de diálogos mais significativas presentes em A Peste, encontram-se Tarrou, Rieux e Rambert a confabular sobre o tema do engajamento e do que seria o heroísmo em situações-limite. Com a licença da extensão textual, diz Rambert:
- Sabe, doutor, pensei muito na sua organização. Se não estou nela, é porque tenho as minhas razões. Quanto ao resto, creio que saberia ainda sacrificar a minha vida: fiz a guerra na Espanha.
- De que lado? – perguntou Tarrou.
- Do lado dos vencidos. Mas, desde então, pensei um pouco.
- Em quê? – insistiu Tarrou.
- Na coragem. Agora sei que o homem é capaz de grandes ações. Mas, se não for capaz de um grande sentimento, não me interessa.
- Tem-se a impressão de que o homem é capaz de tudo – disse Tarrou.
- Não. É incapaz de sofrer ou de ser feliz por muito tempo. Portanto, não é capaz de nada que preste. – Olhou para eles e continuou: Vejamos, Tarrou, você é capaz de morrer por um amor?
- Não sei, mas parece-me que não, agora.
- Está vendo? Você é capaz de morrer por uma ideia, isso é visível a olho nu. Pois bem, estou farto das pessoas que morrem por uma ideia. Não acredito em heroísmo. Sei que é fácil e aprendi que é criminoso. O que me interessa é que se viva e que se morra pelo que se ama.
Rieux escutara o jornalista com atenção. Sem deixar de olhar para ele, disse, suavemente:
- O homem não é uma ideia Rambert.
O outro saltou da cama com o rosto inflamado de paixão.
- É uma ideia, e uma ideia curta, a partir do momento que se desvia do amor. E, justamente, nós já não somos capazes de amar. Resignemo-nos doutor. Esperemos vir a sê-lo e, se verdadeiramente não for possível, esperemos a libertação geral sem brincar de herói. Não irei mais longe.
Rieux levantou-se com um ar de súbito cansaço.
- Tem razão, Rambert, tem toda a razão, e por nada deste mundo eu gostaria de demovê-lo do que vai fazer, que me parece justo e bom. Mas devo dizer-lhe uma coisa: tudo isso não se trata de heroísmo. Trata-se de honestidade. É uma ideia que talvez faça rir, mas a única maneira de lutar contra a peste, é a honestidade (CAMUS, 2017, p. 152).
A afirmação de Rieux segundo a qual o homem não se reduz a uma ideia, nos leva ao seu empenho em direção à realidade da experiência humana, num embate contra a criação tal qual ela se apresenta. Em outras palavras, trata-se da revolta histórica e metafísica, a um só tempo, das quais Camus nos fala em O homem revoltado; pois o médico se debate frente à ideia do homem como uma idealização, perpassa ela, e diante da peste se apresentando como uma abstração, luta contra esta porque, de acordo com ele, “para lutar contra a abstração, é preciso assemelhar-se um pouco a ela” (CAMUS, 2017, p. 89), o que se coaduna com um raciocínio anterior do mesmo Rieux quando ele profere: “Sim, havia na desgraça uma parte de abstração e irrealidade. Mas quando a abstração começa a nos matar, é necessário que nos ocupemos da abstração” (CAMUS, 2017, p. 87).
Reduzir o homem somente ao peso da história através da arte narrativa fazia Camus vislumbrar, paradoxalmente, na atitude incondicional de Sartre ao engajamento literário, prisão criadora e aniquilamento artístico:
Por outras palavras, o verdadeiro objeto do realismo socialista é justamente o que não tem ainda realidade. A contradição é bastante imponente. Mas, afinal de contas, a própria expressão de realismo socialista era contraditória. Como é possível, com efeito, um realismo socialista quando a realidade não é por inteiro socialista? [...] essa estética que pretendia ser realista, transforma-se então em um novo idealismo, tão estéril, para um verdadeiro artista, como o idealismo burguês. A realidade não é ostensivamente colocada em lugar de honra senão para mais facilmente ser liquidada. A arte fica reduzida a nada. Serve e, servindo, é escravizada (CAMUS, s/d, p. 160).
Se o primeiro concordava com o segundo na recusa à “arte pela arte”12, em alternativa, Camus afirmava preferir homens engajados a literaturas de engajamento13. O certo é que estavam resistindo e respondendo aos mesmos acontecimentos históricos durante a Segunda Guerra. Mas, Camus, bem antes que Sartre, já estava nesse combate. O autor de O Muro chegou a comparar o franco-argelino a Voltaire. Em vista disso, segundo Aronson, o relacionamento entre os dois autores durante esse período possuía um outro aspecto:
Seria uma coincidência que o curto roteiro Résistance, de Sartre, escrito quando ele e Camus estavam se tornando íntimos, focalizasse um jovem que editava um jornal clandestino? Em duas ocasiões posteriores, Sartre foi explícito com relação ao que Camus significava para ele [...] A mais famosa delas foi, paradoxalmente, na sua carta de 1952, rompendo com a amizade. Um tributo ao Camus daqueles dias iniciais apareceu sob a denúncia do Camus de O homem revoltado. Sartre escreveu que durante a ocupação ‘você se deu incondicionalmente à Resistência. Você viveu um combate austero’ [...] Sartre reconheceu que Camus viveu esta história ‘mais profundamente e mais completamente do que muitos (inclusive do que eu mesmo)’. Camus se tornou ‘a admirável conjunção de uma pessoa, de uma ação e de uma obra’. Sartre, como Camus, havia escrito importantes trabalhos, mas obviamente se via como menos evoluído (ARONSO, 2007, p. 69).
O Camus denunciado estava, porém, mais interessado em conciliação, buscando uma medida na desmedida14, na análise do sentimento de exílio e solidariedade dos insurgentes que se rebelam. Mas todo equilíbrio que ele prezava se tornava um alvo num pós-guerra polarizado ideologicamente. Lutava praticamente isolado, abatido depois das duras críticas que recebeu do grupo de Sartre, através de artigos virulentos, na revista Les temps modernes, onde o acusavam de idealista pelos argumentos de O homem revoltado, e de repositório de uma “moral da cruz vermelha”, pelo enredo de A Peste.
Após a publicação de O homem revoltado, em 1951, Camus acolheu um silêncio jamais visto nele, do qual também foi muito criticado. Ele recrudesceu num exílio auto imposto resistindo como une pierre qui pousse, para lembrar uma metáfora de um de seus contos de O exílio e o reino (1957), que se passa em Iguape/SP, onde se avolumava tal ‘pedra’ qual seu discernimento do mundo, àquela época, a meia distância entre um equilíbrio helênico e um excesso cristão.
Seu pensamento mediador, no entanto, expresso na seção “Medida e Desmedida”, das últimas páginas de O homem revoltado, marca dois tipos distintos de revolta15, uma metafísica e outra histórica, através de uma evolução intelectiva vinda desde O mito de Sísifo em direção ao que poderia ser vislumbrado no ciclo de Nêmesis, ao qual ele estava se dedicando com os manuscritos de O primeiro homem, quando do seu falecimento em 1960. Aqui está o seu pressuposto:
Não se pode dizer que nada tem sentido porque, com isso, estamos afirmando um valor consagrado por um juízo; nem que tudo tenha um sentido, porque a palavra tudo não tem um significado para nós. O irracional limita o racional, que por sua vez lhe dá a sua medida. Algo, finalmente, tem sentido, algo que devemos obter da ausência de sentido. Da mesma forma, não se pode dizer que o ser exista apenas no nível da essência. Onde captar a essência, senão no nível da existência e do devir? Mas não se pode dizer que ser é apenas existir. Algo que está sempre em devir não pode existir, deve haver sempre um começo. O ser só pode se provar no devir, o devir não é nada sem o ser. O mundo não se acha numa condição de estabilidade pura, mas ele não é somente movimento. Ele é movimento e estabilidade [...] Heráclito, inventor do devir, fixava, entretanto, um marco para esse processo contínuo. Esse limite era simbolizado por Nêmesis, deusa da medida, fatal para os desmedidos. Uma reflexão que quisesse levar em conta as contradições contemporâneas da revolta deveria procurar a sua inspiração nessa deusa (CAMUS, 1997, p. 339).
Obter algum significado na ausência de sentido tornou-se a síntese inicial da sua reflexão sobre a natureza absurda da existência, na medida em que nessa escassez se faz criar por uma conquista da consciência - pois deve haver sempre um começo, e esse início está nela - o propósito de uma essência em direção a um paradoxo: aquele de uma vida que será melhor vivida se não houver uma explicação final. É desse ponto que Nilson Guimarães Silva, em O lugar dos cadernos na obra de um escritor, nos diz:
Para Camus, é um erro supor que recusar um sentido à vida conduz necessariamente à conclusão de que ela não vale a pena ser vivida; a ausência de sentido só faz aumentar a “dignidade” da vida, que é vista como um valor em si mesmo, independentemente de qualquer finalidade, sentido ou ideologia religiosa, filosófica ou política. Se a vida merece ser vivida, deve ser vivida por ela mesma e não por causa de alguma ideia que a ultrapassa ou a sublima e, assim, a trai (SILVA, 2014, p. 97).
Portanto, tendo em vista que o mundo não tenha esse significado absoluto algo nele deve possuir. É o que encontramos na quarta e última das missivas presentes em Cartas a um amigo alemão: “Acho que o mundo não tem sentido final. Mas sei que algo nele tem sentido, e é o homem, porque é o único ser que reclama um sentido” (CAMUS, s/d, p.46).
Na segunda justaposição do seu pensamento, dito revoltado, Camus sustenta que esse movimento faz o ser se lançar no mundo - “revoltar-se é colocar-se diante da vida” (CAMUS apudTODD, 1998, p. 58), assim se provando no devir do acontecimento que por sua vez não encontraria, certamente, ressonância alguma na ausência do ser que lhe quer atribuir sentido. Todavia, se assim o encontrasse, resvalaria, possivelmente, numa equação não concluída por ele: uma trajetória que viria do absurdo para a revolta, e desta para uma razão que sucumbiria ao amor, perfazendo os três ciclos arquitetados, e inacabado, do seu projeto artístico-filosófico.
O sentimento de revolta proposto por Camus se ajusta, nesse sentido, com a reflexão acerca do caráter acontecimental que tratamos ao longo deste texto. Repensar o flagelo como acontecimento implica numa reconfiguração das relações entre o mal e os hábitos que constituem o modus vivendi humano. De acordo com Caputo, bem como para Camus, trata-se de um espaço criado e aberto ao futuro imediato das ações humanas. Nessa circunstância, o sentido da revolta também se relaciona com uma outra categoria elaborada pelo filósofo, segundo a qual o acontecimento se constitui na verdade de um nome, algo para o qual deve-se ter a coragem de se opor e combater sob pena que reduzir o irredutível à palavra. Sendo assim, uma forma de resistência é enfrentar abertamente a realidade do acontecimento em sua condição de imprevisibilidade e irrupção.
É preciso esclarecer que o franco-argelino estava na contramão de um pensamento reinante, baseado no realismo político, naquele momento inicial da Guerra Fria, e mais depositava sua expectativa em um humanismo laico, contra a lógica perversa da moral dos meios que justificam os fins.
Se encontramos em O homem revoltado, um chamado político de moderação, baseado num entendimento mediterrâneo de medida e afirmação da dignidade humana, em A peste, romance que se configura como uma contrapartida teórica ao O homem Revoltado, teríamos, como observa Pinto:
a presença algo abstrata do flagelo sugeriria que os males da história deveriam ser combatidos por valores que não eram determinados pelos acontecimentos (já que estes eram desarrazoados e gratuitos como uma epidemia), mas que os precediam. Agora, em O Homem Revoltado, Camus desvelava o fundo poético – e imagético – do qual nasciam aqueles valores, o cenário do qual brota essa “civilização de dupla fisionomia”, a civilização mediterrânea – berço daquela contradição entre natureza e história” (PINTO, 1998, p. 115).
À vista dessa compreensão, Camus presumia que os valores deveriam estar preservados antes dos acontecimentos e, recrudescidos pelo por vir deles, se reforçariam no combate aos mesmos. Quais valores seriam esses em A Peste? Certamente aqueles da fraternidade e da solidariedade entre os homens em tempos de opressão, de terror ou de guerra. Para Alfredo Bosi, na seção nomeada O romance e o tratamento dos valores, do seu livro Literatura e resistência, “A peste, obra-prima de Albert Camus, é de 47, e pode ser lida como a súmula de um prometeísmo estóico e ao mesmo tempo fraterno: no perigo coletivo de uma epidemia o homem descobre que a sua solidão é a solidão de cada um, logo de todos” (BOSI, 2002, p. 127). Ainda de acordo com Bosi, “o valor é objeto da intencionalidade da vontade, é a força propulsora de suas ações. O valor está no fim da ação, como seu objetivo; e está no começo dela enquanto é sua motivação” (BOSI, 2002, p. 120).
Em A peste os acontecimentos são portadores de uma exigência segundo a qual o absurdo, manifestado pela epidemia, encontra uma resistência de direito ou de dever que, enquanto tal, permite, diante da desconcertante falta de sentido de um acontecimento, permear uma concepção de mundo que se justifica, a partir da resistência e da afirmação da vida, como criação. Com efeito, a realidade é transfigurada, diante do insólito acontecimento, abre espaço para que os valores justifiquem uma existência baseada na ética e na solidariedade16; com isso, podemos dizer que, a partir da obra camusiana, podemos, em tempo de temor e calamidades, pensar na literatura como uma afirmação da vida, ilustrada por sua vez pelo exercício da linguagem ficcional transmitida no livro, como um rito de passagem do absurdo e, através da revolta, para o sentido do amor.
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