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As reviravoltas de um conceito: a crítica do “poder” em Michel Foucault

The twists of a concept: the critique of "power" in Michel Foucault

Renato Alves Aleikseivz 1
Universidade Federal do Paraná, Brasil

As reviravoltas de um conceito: a crítica do “poder” em Michel Foucault

Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 3, pp. 83-97, 2020

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 13 Abril 2020

Aprovação: 31 Agosto 2020

Resumo: Nesse artigo, empreenderemos uma reflexão sobre a analítica do poder em Michel Foucault. Nossa intenção é percorrer a produção foucaultiana a partir de meados dos anos setenta até início dos anos oitenta, buscando compreender os deslocamentos ou “reviravoltas” pelos quais o conceito de poder sofreu ao longo do tempo. Procuraremos mostrar que é possível identificar três momentos na pesquisa de Foucault. Em primeiro lugar, ao tentar se afastar da tradicional compreensão jurídica-discursiva do poder, ele introduz uma análise inédita a respeito da dinâmica do poder disciplinar e dos micropoderes que compõem o campo social. Pode-se considerar esse um deslocamento, de modo geral, em relação à tradição política ocidental. Com o curso Em defesa da sociedade encontramo-nos diante de uma modificação na compreensão do poder, ao identificá-lo como guerra ou luta. Por fim, com a introdução dos conceitos de biopoder/biopolítica, Foucault é levado a uma grande expansão de suas pesquisas, tematizando conceitos que não faziam parte de seu interesse até então, como, por exemplo, o conceito de Estado. É nesse contexto que o conceito de governo fará sua entrada nas reflexões de Foucault. Entendemos que o conceito de governo se configura como um refinamento e, igualmente, deixa mais ampla e complexa sua análise do poder a fim de dar conta do presente político.

Palavras-chave: Poder, Governo, Guerra, Diagnóstico do presente.

Abstract: In this article, we will undertake a reflection on the analytics of power in Michel Foucault. Our intention is to cover Foucault's production from the mid-seventies to the beginning of the eighties, seeking to understand the shifts or “twists and turns” through which the concept of power has suffered over time. We will try to show that it is possible to identify three moments in Foucault's research. First, when trying to move away from the traditional legal-discursive understanding of power, he introduces an unprecedented analysis of the dynamics of disciplinary power and the micro-powers that make up the social field. This can be considered a shift, in general, in relation to the western political tradition. With the course Society must be defended we are faced with a change in the understanding of power, when identifying it as war or struggle. Finally, with the introduction of the concepts of biopower / biopolitics, Foucault is led to a great expansion of his research, focusing on concepts that were not part of his interest until then, such as, for example, the concept of State. It is in this context that the concept of government will enter Foucault's reflections. We understand that the concept of government is a refinement and, likewise, makes its analysis of power broader and more complex in order to account for the political present.

Keywords: Power, Government, War, Diagnostic of the present.

Introdução

Sem dúvida devemos ser nominalistas: o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados, é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa situação dada.

Michel Foucault

Certamente, um dos aspectos mais conhecidos e discutidos da obra do filósofo francês Michel Foucault encontra-se em sua genealogia do poder2. Desenvolvida nos anos setenta, a reflexão sobre o poder em Foucault passará por alguns deslocamentos importantes, sempre visando uma expansão e um refinamento do conceito investigado. Nesse contexto, propomo-nos nesse artigo a apresentar, em linhas gerais, os deslocamentos que ocorreram na obra do pensador, bem como entender as motivações que o levaram a tais deslocamentos.

Em primeiro lugar, no entanto, é preciso compreender como o poder é comumente tematizado pelo pensamento político. De maneira geral, na história da filosofia política, o poder é pensado a partir da perspectiva do consenso ou da dominação. O cientista político Steven Lukes em sua obra Power: a radical view, retomando uma intuição de Robert Dahl, afirma que uma das concepções correntes de poder poderia ser sintetizada da seguinte maneira: “. tem poder sobre ., na medida em que ele pode fazer com que . faça algo que de outra forma não faria” (LUKES, 1974, p. 11-12, tradução nossa). Em outros termos, um ator coletivo ou individual . logra êxito em um objetivo . se os atores políticos . consentirem em buscar atingir o objetivo ..

A partir desse enunciado intuitivo retomado por Lukes, seria possível classificar a história da filosofia política em dois campos distintos. Seguindo o também cientista político Thomas Lemke, importante referência no estudo do pensamento foucaultiano e base teórica para nosso artigo, desse enunciado temos, de um lado, aqueles que veem o objetivo alcançado através do consenso estabelecido entre . e . e, de outro lado, aqueles que, ao contrário, percebem que o objetivo alcançado seria, sobretudo, resultado da coação/dominação de . sobre .. Conclui Lemke que “aquela tradição [do poder como consenso] inclui autores tão diversos quanto Platão, Hannah Arendt e Talcott Parsons, enquanto Thomas Hobbes, Max Webber e Karl Marx pertencem a esta [do poder como dominação]” (LEMKE, 2017, p. 11). Teríamos, então, no pensamento político um modelo que entende o poder como cooperação e consenso e, no campo oposto, um modelo que entende o poder enquanto dominação. Para Lukes, Foucault estaria inserido no segundo modelo.

No entanto, como pretendemos argumentar junto a Lemke, Foucault pretende ultrapassar essa divisão. Nosso pensador, de fato, questiona “a premissa subjacente a ambas as concepções” (LEMKE, 2017, p. 12). É como se ele colocasse a seguinte questão: por que deveríamos aceitar que as únicas maneiras de pensar o exercício do poder são restritas ao acoplamento do poder com o consenso ou dominação? Com isso em mente, podemos vislumbrar que as reviravoltas pelas quais o conceito de poder sofre durante os anos setenta são, na verdade, a cristalização da tentativa de dar conta de uma concepção de poder mais fiel à dinâmica das sociedades ocidentais.

Com efeito, identificamos três momentos de deslocamento na pesquisa foucaultina acerca do poder. Nos cursos que originaram Vigiar e punir (1975), a saber, Teorias e instituições penais (1971-1972), A sociedade punitiva (1972-1973), O poder psiquiátrico (1973-1974) e Os anormais (1974-1975) encontramos uma primeira elaboração do poder, centrado na identificação do poder disciplinar. Em um segundo momento, como mostraremos, está o curso Em defesa da sociedade (1975-1976). Este curso ocupa um lugar peculiar na genealogia do poder de Foucault, pois ele revela uma sutil transição do poder compreendido, em uma chave nietzschiana, como guerra, para uma primeira elaboração do biopoder/biopolítica. A questão da biopolítica também será apresentada ao grande público no primeiro volume de História da sexualidade I – A vontade de saber (1976). Por fim, temos o último deslocamento nos cursos Segurança, território, população (1977-1978) e Nascimento da biopolítica (1978-1979). Há nestes cursos a introdução do conceito de governo, entendido de um modo bastante amplo. Esse conceito é seminal no pensamento político de Foucault, afinal, permite responder às aparentes aporias de suas análises anteriores e, outrossim, permite revelar as ligações entre o governo dos outros com o governo de si3.

Adeus ao poder jurídico-discursivo

Desde o início de suas investigações, Foucault deseja liberar o pensamento político das visões demasiado assentadas na Lei, no soberano e em sua legitimidade. “O poder não existe” (FOUCAULT, 2002, nº 206, p. 302, tradução nossa), provoca nosso filósofo em entrevista. Não obstante, a intenção de Foucault é evidenciar que a dinâmica do poder é muito mais complexa do que disputas entre consenso ou dominação, o que não quer dizer, evidentemente, que tais questões não tenham sua razão de ser. Para captarmos melhor a potência da analítica do poder, precisamos definir, em um primeiro momento, o que ele compreende com a noção jurídico-discursiva do poder.

De um modo bastante resumido, o conceito jurídico-discursivo do poder revela-se nas abordagens centradas nos conceitos de legitimidade, soberania, lei, obediência e repressão. Tal concepção pode ser remetida aos filósofos contratualistas que identificam na Lei e no Soberano a essência do poder político. Thomas Hobbes é um personagem central para a construção dessa abordagem do poder4. Para além dessa alternativa que vê na transferência de um direito natural individual para um soberano, a fim de constituir um poder político legítimo, Foucault apresenta alguns postulados ou, em outros termos, uma outra direção da análise. Não se trata, para Foucault, de mostrar a falsidade dessa compreensão, mas, sobretudo, de apontar que essa não é a única forma pela qual o poder se manifesta em nossas sociedades ocidentais.

Seguindo Thomas Lemke, propomos, de início, uma inversão da análise do poder que convida-nos a prestar atenção nos seguintes pontos5. Em primeiro lugar, Foucault argumenta que o poder não é uma substância ou essência, mas deve ser visto em termos de relação. “Neste sentido, o poder não é um território a ser conquistado ou transferido, tampouco um bem que pode ser possuído ou trocado” (LEMKE, 2017, p. 12). Longe das noções jurídicas, Foucault utiliza um sentido estratégico. Em segundo lugar, o poder não pode ser identificado como centrado no Estado e em suas instituições. Antes, “é a pluralidade e a diversidade das relações de poder na sociedade que são responsáveis pela emergência e pelo funcionamento do Estado” (LEMKE, 2017, p. 14). Por fim, em último lugar, é preciso contestar a ideia de que o poder seja essencialmente repressivo. Em Vigiar e punir, por exemplo, nosso pensador apresenta uma dimensão produtiva de saberes e de práticas.

Após essa mudança no foco da abordagem do poder, analisaremos a primeira caracterização do poder em Foucault. Na esteira de Nietzsche, ele realiza uma investigação centrada na formação de práticas, discursos e métodos de exercício de poder, onde o poder disciplinar, surgido na modernidade, seria a primeira manifestação.

É em Vigiar e punir que essa investigação ganha forma. Foucault inicia sua obra narrando a cena de um suplício, forma de punir característico do poder soberano e de seu espetáculo. Frente ao suplício, ele apresenta uma forma nova de punir, mais discreta e, por isso mesmo, mais insidiosa. Trata-se daquilo que ficará conhecido como “microfísica do poder”, ou seja, um poder que não é espetacular, visível, grandioso etc.

Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter (FOUCAULT, 2010b, p. 29).

Como apresenta Foucault, entender o poder em termos de microfísica supõe, ou melhor, incita-nos a abandonar modelos e abordagens que, conforme afirmamos acima, podem ser descritos como modelos jurídico-discursivos de poder. A microfísica do poder, em suma, coloca-se para além das ideias de violência, ideologia, propriedade, contrato, lei, mesmo que muitas vezes faça alusão a alguns desses conceitos.

É, pois, neste sentido que Foucault apresenta a primeira inversão, isto é, não tomar o poder como uma substância. Ao tomarmos a terceira parte de Vigiar e punir, devotada ao tema da disciplina e dos corpos dóceis, acompanhamos a apresentação do funcionamento do poder disciplinar, isso porque o poder é algo que se exerce6. Desejando compreender com profundidade a dinâmica de poder nas sociedades ocidentais, Foucault cria as imagens do exercício do poder na forma de uma malha ou de uma teia. Ele não é, pois, centralizado, mas espalhado e relacional. A disciplina, por conseguinte, não é uma instituição tal como o Estado, é uma técnica. Por certo, ela pode fazer referência a instituições (prisão, escola ou hospital), ao aparelho de Estado judiciário (a polícia), mas não é redutível e nem identificável a nenhum deles7.

A disciplina é uma técnica que se direciona ao corpo, à construção de um corpo. Foucault inicia o capítulo descrevendo a fabricação do corpo do soldado, porém, por toda a obra, fica evidente o sentido de fabricação do indivíduo de forma geral. Ou seja, do soldado sim, mas igualmente do aluno, do operário, do enfermo, do prisioneiro. Na citação abaixo, a despeito de sua extensão, nosso pensador apresenta uma ótima síntese do poder disciplinar e sua relação íntima com produção do indivíduo.

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma- se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina (FOUCAULT, 2010b, p. 133-134).

Ao passo que a disciplina atua, o indivíduo é fabricado enquanto corpo “dócil”. Desse modo, é preciso reconhecer que tratar de relações de poder é, do mesmo modo, tratar da constituição do sujeito8. Em outros termos, uma abordagem do poder enquanto relação coloca evidência na preocupação do filósofo em dar conta do sujeito, alvo dos poderes.

Importante atentar para uma característica salutar dessa primeira compreensão do poder enquanto microfísica, a saber, que ela é um poder individualizante. Tomemos como exemplo as técnicas que “não cessaram, desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro” (FOUCAULT, 2010b, p. 134). Foucault apresenta um diagrama, utilizando um termo de Deleuze, para especificar essa nova anatomia política distante da lógica da soberania. Segundo o filósofo, não se trata de uma invenção, mas de uma multiplicidade de processos que encontramos em escolas, colégios, no espaço hospitalar, na organização militar, nas prisões.

O poder disciplinar é uma arte do detalhe, ele realiza um enfoque político nas pequenas coisas. Algumas de suas técnicas são: a distribuição dos indivíduos em espaços determinados; o controle das atividades, isto é, o controle dos horários; a vigilância sempre constante; a sanção, ou seja, o castigo que tem por finalidade a normalização; exames meticulosos que servem, ademais, para o estabelecimento de conhecimentos.

“Recusar” a concepção jurídico-discursiva do poder em favor da lógica microfísica, clarificada na dinâmica do poder disciplinar, evidencia que o poder se exerce em rede. Ele é um poder complexo, na medida mesma que se espalha, tal como a imagem da malha ou rede, por todo o tecido social. “Devemos ainda nos admirar”, escreve Foucault, “que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?” (FOUCAULT, 2010b, p. 214). Em suma, o poder não é algo da ordem da substância ou essência, mas algo que se exerce em redes e que toca os indivíduos9.

Em conformidade com o diagnóstico das relações de poder, faz-se mister explorar o segundo deslocamento em relação ao pensamento jurídico-discurso de poder, isto é, aquele que identifica o poder no Estado ou em suas instituições. Nosso pensador é enfático ao afirmar que “é preciso estudar o poder fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição do Estado; trata-se de analisá-lo a partir das técnicas e táticas de dominação” (FOUCAULT, 2010a, p. 30). Ora, Foucault identifica precisamente no poder disciplinar essa dinâmica de poder que se distingue da forma da soberania. Por certo, seu desejo é livrar a análise política das grandes categorias, quais sejam, o Estado, o capitalismo, a burguesia etc. Na verdade, uma análise ascendente, isto é, partindo de baixo, dos micropoderes que pululam no corpo social, seria mais eficaz na tarefa de compreender os mecanismos pelos quais essas grandes entidades – o capitalismo, a burguesia – eventualmente viriam a se interessar. Nas palavras de Foucault,

Creio que é preciso [...] partir dos mecanismos infinitesimais, os quais têm sua própria história, seu próprio trajeto, sua própria técnica e tática, e depois ver como esses mecanismos de poder, que têm, pois, sua solidez e, de certo modo, sua tecnologia própria, foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, inflectidos, transformados, deslocados, estendidos, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global (FOUCAULT, 2010a, p. 27).

Destarte, se quisermos analisar a burguesia é preciso tomar algumas precauções. Isso porque, como demonstra Foucault, “a burguesia” por si só não possui um conteúdo real, isto é, próprio. Para nosso pensador, as coisas se passam primeiramente em um nível capilar, em um nível onde as técnicas e os mecanismos se formam e, após isso, são acopladas por mecanismos maiores. É nesse sentido que a burguesia, segundo Foucault, nunca se interessou pelos loucos ou pela sexualidade da criança. Porém, seu interesse reside, sobretudo, no poder que incide sobre os loucos ou pelos mecanismos e técnicas de poder que controlam a sexualidade da criança. Ela se interessa, em suma, não pelo delinquente, mas pelos mecanismos que o controlam, o vigiam, o punem, o reformam. Em virtude do exposto, fica evidente que o poder é onipresente: ele provém de todos os lados e não é restrito a uma única instituição, tal como o Estado e seus aparelhos.

Por fim, a última contestação é a postulação de que o poder não é essencialmente repressivo. A aposta de Foucault é a de que o poder, na verdade, não reprime, mas cria realidades, sujeitos e verdades. Em Vigiar e punir ele expõe essa noção diretamente:

Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção (FOUCAULT, 2010b, p. 185).

O indivíduo é fabricado por todos os mecanismos disciplinares que são minuciosamente explorados na obra de 1975. No ano seguinte, ao dissertar sobre a sexualidade, Foucault vai opor-se fortemente ao discurso repressivo sobre a mesma, o que ele chama de “hipótese repressiva”. Essa hipótese afirma que a partir do século XVII entramos em um período de repressão do qual, talvez, ainda não nos tenhamos libertado completamente. Ao contrário, segundo ele, houve uma crescente incitação ao discurso no campo do exercício do poder. A profusão de discursos sobre o sexo não teria como objetivo central reprimir ou excluir as sexualidades desviantes. Assim é que desde a confissão cristã até os consultórios de análise, desdobra-se um imperativo de confissão, de incitação ao discurso.

Não somente foi ampliado o domínio do que se podia dizer sobre o sexo e foram obrigados os homens a estendê-lo cada vez mais; mas, sobretudo, focalizou-se o discurso no sexo, através de um dispositivo completo e de efeitos variados que não se pode esgotar na simples relação com uma lei de interdição (FOUCAULT, 1988, p. 29).

Argumenta nosso filósofo que essa aparelhagem de produção de discursos não pode ser resumida à censura. Poder-se-ia objetar que o importante não é a quantidade de discursos que se proliferam, mas antes, o objetivo da proliferação, que é o afastamento de todas as formas desviantes de viver a sexualidade. Contudo, fala-se cada vez menos da família heterossexual. Em contrapartida, “o que se interroga é a sexualidade das crianças, a dos loucos e dos criminosos; é o prazer dos que não amam o outro sexo; os devaneios, as obsessões, as pequenas manias ou as grandes raivas (FOUCAULT, 1988, p. 46). Por certo, pondera Foucault, essas existências não são menos condenas por virem à luz; mas, são agora escutadas.

O nome dado a essa profusão de discursos solicitados acerca da sexualidade não é da ordem da repressão, mas sim da implantação. Foucault chamará de implantação perversa. As sexualidades múltiplas são, com efeito, correlatas de procedimentos de poder. Estes comportamentos, desde a sexualidade da criança, passando pelo fetichista e chegando ao prazer homossexual foram consolidados e “mediante múltiplos dispositivos de poder, foram solicitados, instalados, isolados, intensificados, incorporados” (FOUCAULT, 1988, p. 55). No entanto, seria errôneo enxergar aí o poder de repressão.

À titulo de exemplo, Foucault enfatiza que essa implantação, essa criação de realidades e sujeitos, pode servir como estratégia de resistência ao poder. Ainda permanecendo no âmbito da história da sexualidade, ele indica que os movimentos de liberação sexual podem ser compreendidos como movimentos de afirmação “a partir” da sexualidade. Isto é, a partir desse lugar e dessa identidade que foi paulatinamente sendo construída pelos rituais de poder. Os movimentos partem da “sexualidade” e se deslocam em relação a ela, possibilitando até mesmo sua ultrapassagem. Em entrevista, ele nos convida a tomar como exemplo a homossexualidade. Segundo sua análise, foi por volta de 1870 que ela se transforma em problema, isto é, objeto de análise e intervenções médicas.

Mas tomando ao pé da letra tais discursos e contornando-os, vemos aparecer respostas em forma de desafio: está certo, nós somos o que vocês dizem, por natureza, perversão ou doença, como quiserem. E, se somos assim, sejamos assim e, se vocês quiserem saber o que nós somos, nós mesmos diremos, melhor que vocês (FOUCAULT, nº 200, p. 260).

É a inversão estratégica dos mecanismos, jogos e técnicas de poder nos quais todos estamos inseridos. É possível substituir o exemplo por qualquer minoria ou mesmo sobre os discursos sobre a mulher. A partir dessa inversão é possível conquistar tanto um outro discurso sobre algo quanto um ultrapassamento, no sentido de construção de uma cultura outra.

Do exposto, resta evidente que a compreensão do poder é muito mais complexa do que uma escolha entre o consenso ou a dominação, tal como a fórmula recuperada por Steven Lukes.

O modelo da guerra como decifrador do poder

No curso de 1976, Em defesa da sociedade, acompanhamos um sutil deslocamento na compreensão e investigação do poder. Para alguns, talvez não poderia nem mesmo ser lido como um deslocamento propriamente dito. No fundo, entretanto, a pesquisa acerca do poder passa por pequenos refinamentos e, em alguns momentos, significativas mudanças. Em nossa perspectiva, esse curso ocupa um lugar peculiar na genealogia do poder em Foucault. Ao mesmo tempo em que ele continua falando em relações de poder, é introduzida a noção de que o poder político seria a guerra continuada por outros meios. Em outras palavras, Foucault pretende tomar a guerra como grade de inteligibilidade para o poder. “A guerra”, pergunta ele, “pode valer efetivamente como análise das relações de poder e como matriz das técnicas de dominação”? (FOUCAULT, 2010a, p. 40). Certamente, a intenção de Foucault continua sendo a mesma de antes, ou seja, liberar a análise política das ilusões da soberania e da lei. De fato, durante o curso, ele empreende uma fina análise contra Hobbes, Maquiavel e as concepções que enxergam na soberania a única maneira de analisar o poder.

Há, então, um acoplamento da noção de microfísica do poder, disseminada por sobre o tecido social, com a ideia da guerra como esquema de compreensão do poder. Como veremos, ao fim e ao cabo, Foucault está preocupado com a construção de uma compreensão combativa de poder, isto é, que propicie instrumentos para as lutas cotidianas. A noção de guerra, deslocada da soberania, evidencia o caráter local da crítica10. Ao correr do curso, Foucault mostra que esse discurso da guerra favorece lutas muito esparsas, lutas que seriam esquecidas pela história oficial, isto é, pela historicidade de tipo romana11.

De início, ele substitui a abordagem em termos de legitimidade/consenso acentuando a guerra naquilo que chama de “hipótese Nietzsche”. Segundo essa hipótese, “o fundamento da relação de poder é o enfrentamento belicoso das forças” (FOUCAULT, 2010a, p. 16). Percebemos, então, que o deslocamento em relação às suas elaborações anteriores mostra-se na medida em que as relações de poder são remetidas, agora, ao modelo da guerra. Nas primeiras aulas, ele retoma algumas observações sobre a compreensão do poder que apresentamos acima.

O inédito de Em defesa da sociedade é este sutil e rápido descolamento em relação à compreensão microfísica do poder. Ele é rápido pois, tão logo Foucault utiliza a guerra como modelo para as relações de poder, introduz o tema da biopolítica/biopoder, e não voltará a falar em relações belicosas. É a partir das aulas de 21 e 28 de janeiro de 1976 que nosso pensador explora essa hipótese em linhas gerais, ou seja, não procedendo nenhuma análise específica. O projeto geral seria, grosso modo, partir das relações de poder e das guerras subterrâneas, extraindo os operadores de dominação. É um adeus à teoria da soberania. O que significa, então, ressaltar as múltiplas relações de lutas, guerras e sujeições? Precisamente

[...] não tentar segui-las naquilo que constitui sua legitimidade fundamental, mas tentar, ao contrário, procurar os instrumentos técnicos que permitem garanti-las [...]. Eu acho que temos de adotar o ponto de vista tríplice das técnicas, da heterogeneidade das técnicas e de seus efeitos de sujeição, que fazem dos procedimentos de dominação a trama efetiva das relações de poder e dos grandes aparelhos de poder. A fabricação dos sujeitos muito mais do que a gênese do soberano: aí está o tema geral (FOUCAULT, 2010a, p. 39).

Esta noção não é nova, já estava presente nas análises anteriores a Vigiar e punir e, igualmente, nos cursos que lhe deram origem. A originalidade que o curso introduz refere-se à guerra funcionando sob e nas relações de poder. Foucault fala em inverter o princípio de Clausewitz, para quem a guerra seria a política travada por outros meios. Trata-se, agora, de imaginar que a política é a guerra continuada por outros meios. Não obstante, é preciso alguma precaução, a saber, não entender a guerra como Thomas Hobbes. De fato, na guerra de todos contra todos hobbesiana, ela é entendida visando sempre a constituição desse organismo poderoso que é o soberano. Como vimos, é importante desvincular-se das teorias centradas no soberano e no Estado para apreender a dinâmica real das relações de poder.

A guerra, vista como modelo, comporta-se como o motor da política e das instituições. Contra o senso comum que entende, por exemplo, a lei como a pacificação, Foucault mostra que:

A lei não nasce da natureza junto das fontes frequentadas pelos primeiros pastores; a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror; a lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo (FOUCAULT, 2010 a, p. 43).

Se aceitarmos essa ideia, precisamos aceitar também que uma frente de batalha perpassa e constitui a sociedade inteira. Em outras palavras, estamos sempre em guerra contra alguém, somos sempre adversários de alguém. Por conseguinte, aquele que se dispõe a lutar está forçosamente visando uma vitória, uma vitória particular. Em um plano filosófico, tal análise se distancia, por exemplo, de Hegel e do pensamento dialético, porque este, segundo Foucault, operaria uma pacificação autoritária dos conflitos existentes no tecido social12.

Qual seria o ganho em aceitar e adotar a guerra como grade ou modelo de inteligibilidade para as relações de poder? Afinal, aparentemente, a sociedade ficaria dividida em uma estrutura binária. Desse modo, há uma possível contradição nas elucubrações de Foucault, afinal, se há muitas técnicas de poder, porque falar, nesse momento, em estrutura binária? Não seria uma redução simplificadora?

Pelo contrário, para Foucault, aceitar a guerra como modelo de análise política significa liberar uma profusão de discursos, práticas e saberes sujeitados. Dito de outro modo, na medida mesma em que a história é hegemonicamente entendida como história romana, ou seja, centrada na soberania, em seus rituais e mitos, ela exclui uma quantidade enorme de lutas e saberes. Com efeito, nosso pensador chama essa abordagem histórica das relações de poder de “história-reinvindicação” ou ainda “história-insurreição”. Por isso Foucault recorre a Boulainvilliers para apoiar sua análise, afinal, para ele, há uma guerra generalizada.

Até o século XVII a guerra era mesmo, essencialmente, a guerra de uma massa contra outra massa. Boulainvilliers, por sua vez, faz a relação de guerra penetrar em toda a relação social, vai subdividi-la por mil canais diversos e mostrar a guerra como uma espécie de estado permanente entre grupos, frentes, unidades táticas, de certo modo, que se civilizam uns aos outros, se opõem uns aos outros, ou, ao contrário, se aliam uns com os outros (FOUCAULT, 2010a, p 137).

O ganho dessa abordagem assenta-se, portanto, no fato de que ela não recorre a elementos gerais e centralizadores (o Estado, a burguesia etc.), mas expõe que os enfrentamentos são sempre locais, parciais. Ademais, a partir de Boulainvilliers, Foucault mostra que mesmo enfrentamentos maiores, entre nações, por exemplo, ocorriam por intermédio da educação, da economia, dos saberes etc. Em consonância com todo seu trabalho, aqui fica mais uma vez patente que o interesse de Foucault é pelo detalhe.

Então, para sintetizar, acreditamos que há um ganho neste sutil deslocamento da compreensão do poder. Esse ganho está no caráter libertador, de resistência que subjaz a essa abordagem. Ao localizar inúmeros focos de luta e disputa no tecido social, é possível conceder existência a muitas vozes. Tal análise possibilita uma insurreição dos saberes sujeitados.

E, por “saber sujeitado”, entendo duas coisas. De uma parte, quero designar, em suma, conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais. [...] Em segundo lugar, [...] por “saberes sujeitados”, eu entendo igualmente toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos (FOUCAULT, 2010a, p. 08).

Em síntese, tal abordagem permite o reaparecimento de saberes e de lutas, lançados para a sombra da noite pelos saberes e história oficiais. No entanto, por outro lado, esse sutil deslocamento não traz muitas novidades e não resolve alguns problemas, que abordaremos em seguida. De fato, a análise da luta de raças, entendida de modo bastante amplo, vai levar Foucault, na última aula do curso, a elaborar rapidamente seu importante conceito de biopoder ou biopolítica. Em uma formulação muito geral, o biopoder interessa-se pela população, ou seja, é um poder mais amplo que visa uma intervenção no conjunto de seres vivos. Desse modo, argumenta ele:

Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi, é o que se poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico (FOUCAULT, 2010a, p. 201).

A linguagem utilizada na citação acima pode “estranhar” o leitor pois, como veremos, a partir desse momento, Foucault cada vez mais fará referência ao Estado. Ao acompanharmos o curso de 1976 notamos um pensamento em movimento. Ou seja, presenciamos a tentativa de Foucault de se afastar da figura do Estado e, ao fim do curso, encontrar-se diante da necessidade de tematizá-lo. Essa referência ao biológico e ao Estado, ainda que de forma não sistemática, aparecerá também, para o grande público, com A vontade de saber, primeiro volume de História da sexualidade. Por isso, quem sabe, Lemke afirme que Foucault tem sucesso apenas parcial no objetivo de construção de uma abordagem do poder positiva e não jurídica (cf. LEMKE, 2013, p. 14-15). Talvez por isso Deleuze fale que “depois de A vontade de saber ele [Foucault] atravessou vários tipos de crise: política, vital, de pensamento” (DELEUZE, 2013, p. 109), que revelaram a necessidade de mudanças no percurso teórico. De todo modo, o fato é que o curso de 1976 e a publicação de A vontade de saber configuram-se como importantes deslocamentos muito próximos no tempo.

Biopolítica e governo

Em 1977 Foucault não dita nenhum curso no Collège de France. Apresentamos anteriormente o caminho que levou Foucault de uma compreensão do conceito político de poder enquanto guerra para a introdução do conceito de biopolítica. Segundo Duarte, “a introdução do conceito de biopolítica impôs uma primeira mutação ou deslocamento no curso de suas pesquisas genealógicas precedentes” (DUARTE, 2010, p. 223). Em nossa visão, essa sentença é apenas parcialmente correta, haja vista que, como quisemos mostrar anteriormente, a noção de “guerra” já constitui um deslocamento na pesquisa foucaultiana. Mudança, evidentemente, sutil, mas um importante deslocamento que logo é eclipsado ou mesmo “abandonado”. Em outros termos, nossa leitura é a de que não podemos compreender a noção de política como guerra simplesmente como um componente das relações de poder que eram tematizadas a partir do marco geral dos micropoderes disciplinares. A guerra foi, grosso modo, uma tentativa de refinar e expandir a investigação sobre o poder nas sociedades modernas.

Cabe ainda uma explicitação maior do importante conceito de biopolítica/biopoder13. O biopoder é, então, a entrada da vida dos indivíduos e da população nos cálculos do poder. Nesse sentido, pode ser inserido no conceito de biopoder tanto as disciplinas (anátomo-político do corpo individual) quanto a biopolítica (as medidas de conjunto que visam regular os fenômenos do conjunto de indivíduos reunidos em populações). Com este conceito, é permitido a nosso filósofo responder aos críticos que apontam em suas pesquisas uma recusa ou impossibilidade teórica de tematizar a figura do Estado. De fato, a partir da introdução deste conceito, “Foucault viu-se às voltas com um tipo de poder normalizador que não poderia ser entendido sem referência ao Estado e ao seu poder, que ele pusera entre parênteses a fim de compreender o modus operandi dos micropoderes disciplinares” (DUARTE, 2010, p. 223).

Desta feita, em A vontade de saber Foucault apresenta uma assimetria entre o poder soberano e o novo locus biopolítico em que se encontra a modernidade. “Por muito tempo”, escreve ele, “um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte” (FOUCAULT, 1988, p. 147). Esse direito de vida e morte é o direito do soberano de “causar” a morte ou “deixar” viver. O gládio é seu símbolo. Em suma, o poder nessa chave era o poder de apreensão (das coisas e corpos) e tinha o privilégio de se apoderar da vida para eliminá-la. Não obstante, a partir dos séculos XVII e XVIII, a chamada Época Clássica por Foucault, ocorre uma profunda modificação nos mecanismos de poder.

O “confisco” tendeu a não ser mais sua forma principal, mas somente uma peça, entre outras com funções de incitação, de reforço, de controle, de vigilância, de majoração e de organização das forças que lhe são submetidas: um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a barra-las, dobrá-las ou destruí-las. Com isso o direito de morte tenderá a se deslocar ou, pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordenar em função de seus reclamos (FOUCAULT, 1988, p. 148).

O poder assume a função positiva de gerir a vida. Nesse momento preciso, o biológico se reflete no político.

Em 1978 Foucault dita o curso Segurança, território, população e que, em nossa visão, configura-se como um grande e importante deslocamento na pesquisa foucaultiana. Ele inicia sua primeira aula afirmando o desejo de continuar a estudar o biopoder. Ou seja, “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégica política, numa estratégia geral de poder” (FOUCAULT, 2008a, p. 04). É nesse sentido que Foucault tematiza o problema da segurança, conceito que compõe o próprio título do curso. Em síntese, a segurança é um conceito operatório para compreender as medidas que visam o corpo da população. A segurança, ou dispositivo de segurança, é o nome/expressão de uma tecnologia de poder que reúne dispositivos individuais e coletivos; ou seja, tanto a disciplina quanto a estatística, por exemplo. Apesar de não eliminar as práticas disciplinares, estas ainda são muito centradas em instituições específicas e visando a fabricação de subjetividades específicas, como apresentamos no início do artigo. E, por seu turno, o que caracteriza os dispositivos de segurança é ser algo mais amplo. A partir do curso de 1978 o interesse de Foucault passa ser os espaços abertos, a cidade e sua circulação. Afinal

Não se vive em um espaço neutro e branco; não se vive, não se morre, não se ama no retângulo de uma folha de papel. Vive-se, morre-se, ama-se em um espaço quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras e sombras, diferenças de níveis, degraus de escada, vãos, relevos, regiões duras e outras quebradiças, penetráveis e porosas. Há regiões de passagem, ruas, trens, metros; há regiões abertas de parada transitória, cafés, cinemas, praias, hotéis, e há regiões fechadas do repouso e da moradia (FOUCAULT, 2013a, p. 19).

A preocupação com o espaço e com os indivíduos que pertencem a este espaço vai levar Foucault a tematizar os dispositivos de segurança, ou seja, as práticas de governamento do mercantilismo, do cameralismo, do liberalismo e do neoliberalismo. Tomemos como exemplo o crime. O poder entendido na abordagem jurídica formula proibições na forma da lei, operando o binário permissão/proibição. Com os mecanismos disciplinares temos um complexo que visa “evitar as condutas criminais (educação cívica e moral, patrulha de ruas, vigilância mútua)” (CASTRO-GÓMEZ, 2010, p. 68, tradução nossa). Ela também opera, como mostramos acima, através de técnicas de correção e punição do comportamento. Como o mecanismo jurídico, a disciplina também é compreendida em um binário, o normal/anormal. Com os dispositivos de segurança, por sua vez, o crime é alvo de gestão, não de proibição. Com a segurança, realiza-se por meio de taxas estatísticas, medições, desenho urbano etc., um cálculo de custos e riscos. Em suma, com os dispositivos de segurança temos o par “aceitável/inaceitável em termos de um cálculo econômico e político” (CASTRO-GÓMEZ, 2010, p. 68, tradução nossa).

Neste aspecto, é preciso colocar a questão: como surge a questão do governo? Como ficou evidenciado até aqui, não se trata de cortes profundos ou mudanças bruscas. Aliás, uma tecnologia política não substitui outra, antes, elas se complementam ou coexistem. Na aula do dia 1º de fevereiro de 1978, Foucault introduz a problemática do governo. No fundo, como ele apresenta, é muito mais a tríade segurança-população-governo que está em jogo, afinal, é esse conjunto que permitiria compreender a biopolítica.

Assim é que para Stival, na dinâmica de deslocamento de sua pesquisa, Foucault percebe que o conceito de poder – tal como compreendido até então, isto é, como relações de poder mais ou menos belicosas - não parece ser mais operatório, ou seja, não dá conta a realidade política de um modo satisfatório. Em outros termos, não dá conta dos efeitos de produção de realidades políticas, verdades e subjetividades sempre novas. Segundo ela, “Foucault traz ao primeiro plano o conceito de ‘governo’ para alcançar a formação das relações de poder, que são certo corte nas relações de força” (STIVAL, 2016, p. 108). Com o problema do governo assumindo o primeiro plano temos uma das últimas reviravoltas do conceito de poder, uma das mais significativas.

Não queremos neste artigo desdobrar toda a novidade que este conceito comporta. Não é este o objetivo. De todo modo, indicamos que com este conceito Foucault consegue explicar como o poder opera em uma chave mais ampla. Seguimos, assim, Thomas Lemke quando este indica que “primeiramente, uma analítica do governo oferece uma visão do poder além de uma perspectiva que foca ou em consenso ou em violência; em segundo lugar, ela ajuda a diferenciar o poder da dominação; em terceiro, ela esclarece as relações entre a política e a ética (LEMKE, 2013, p. 23). Desse modo, o poder é mais da ordem da orientação do que da luta, tal como queria a hipótese Nietzsche. Lemke opõe essa hipótese ao que ele denomina “hipótese Foucault”.

Com a nova compreensão do poder na grade de inteligibilidade do governo ou da governamentalidade14, a ênfase recai no poder enquanto orientação ou condução de condutas. Em O sujeito e o poder, texto escrito já na década de oitenta, Foucault aponta que o exercício do poder

É um conjunto de ações sobre ações possíveis: ele opera sobre o campo de possibilidades em que se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou dificulta, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, coage ou impede absolutamente, mas é sempre um modo de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações (FOUCAULT, 2013b, p. 288).

Quando ele caracteriza o poder governamental como “ação sobre ações” evidencia-se o caráter dinâmico, relacional e apartado da simples dominação15. É somente com essa definição das relações de poder que podemos compreender a governametalidade liberal e, principalmente, a neoliberal, objeto de estudo no curso do ano seguinte Nascimento da biopolítica. Em síntese, a partir da noção geral de “interesse”, fundamental para o pensamento político liberal/neoliberal, Foucault mostra que a governamentalidade que nasce no século XVIII e que chega até nós, baseia-se na entrada na ordem do dia de “um jogo complexo entre interesses individuais e coletivos, a utilidade social e o benefício econômico, entre o equilíbrio do mercado e o regime do poder público” (FOUCAULT, 2008b, p. 61). Em outras palavras, trata-se de compreender o poder como relações de poder que se apoiam em técnicas e saberes (a economia política, as técnicas comportamentais) que pretendem direcionar, fazer a gestão, regular o comportamento dos indivíduos.

Em suma, com o governo não se trata apenas de fabricar corpos dóceis, nem de enxergar as relações de poder na grade da guerra/luta. Sobretudo, seu aprimoramento teórico consiste em complexificar a análise a fim de dar conta de fenômenos políticos cada vez mais contemporâneos com a introdução dos conceitos de governamentalidade/governo16.

Considerações finais

“Foucault sempre invoca”, escreve Gilles Deleuze, “a poeira ou o murmúrio de um combate, e o próprio pensamento lhe aparece como uma máquina de guerra (DELEUZE, 2013, p. 132). Assim como afirma Deleuze, quisemos mostrar neste artigo que a importância de pensar a questão do poder em Foucault reside em sua potência crítica. Em outros termos, para além da compreensão da própria obra de Foucault, acreditamos que uma boa compreensão dos mecanismos de poder em nossa sociedade pode ensejar lutas e resistências com possibilidades maiores de vitórias.

No fundo, não é fortuito que Foucault passe do governo dos outros (década de setenta) para uma análise do governo de si (década de oitenta). Não se trata, outrossim, de um corte, de uma recusa a continuar tematizando a política. O governo de si possui uma relação umbilical com o governo político dos outros. Afinal, como pontua Foucault, “não se trata, para nós, apenas de uma questão teórica, mas de uma parte da nossa existência” (FOUCAULT, 2013b, p. 275). Isto é, não podemos viver fora das relações de poder e governo, então, é preciso buscar novas armas, teóricas e práticas, para pensar a resistência.

Foucault afirmava que o papel da filosofia não era outro senão a compreensão e o diagnóstico de nosso presente. Entretanto, “o papel da filosofia é também vigiar os excessivos poderes da racionalidade política” (FOUCAULT, 2013b, p. 275). Ora, na medida em que o exercício do poder possui uma relação direta conosco, nossos corpos e subjetividades, é essencial, em primeiro lugar, compreender como age tal poder. Para além dessa tarefa, o objetivo maior talvez seja não tanto descobrir o que somos, mas, como afirma o filósofo francês, recusar o que somos.

Referências

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CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Historia de la gubernamentalidad. Rázon de Estado, liberalismo y neoliberalismo en Michel Foucault. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2010.

DARDOT, Pierre.; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal, trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

DELEUZE, Gilles. Conversações, trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013.

DELEUZE, GILLES. Foucault, trad. Claudia Sant‘Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2005.

DREYFUS, Hubert; RANINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica, trad. Vera Porto Carrero e Gilda Gomes Carneiro, 2.ed., rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

DUARTE, André. Vidas em risco: Crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

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HOBBES, Thomas. Leviatã, trad. João Paulo Monteiro, Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

LUKES, Steven. Power: a radical view. London: Macmillan Press, 1974.

STIVAL, Monica Loyola. Governo e poder em Foucault. Trans/Form/Ação, Marília, v. 39, n. 4, p.107-126, Out./Dez., 2016.

Notas

2 Inicialmente, podemos citar alguns autores para os quais a investigação sobre o poder de Michel Foucault constitui referência, tanto no sentido de apoio quanto no sentido de crítica. São eles Judith Butler com Problemas de gênero (1990), Wendy Brown em Undoig the demos (2015), Negri e Hardt em Império (2000), Lebrun em seu livreto O que é poder (1984).
3 O tema do governo de si, empreendido nos oitenta, é visto por muitos como o período da pesquisa foucaultiana devotado à questão da ética. Apesar de interessante e importante, não vamos nos deter nesse período.
4 Em sua obra Leviatã, Hobbes afirma: “Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembleia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembleia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens” (HOBBES, 1974, p. 111, grifos no original).
5 Essa inversão na direção da análise sobre o poder pode ser encontrada, outrossim, na obra de Gilles Deleuze intitulada Foucault (2013). Referência completa ao fim do artigo.
6 “O poder não existe. Quero dizer o seguinte: a ideia de que existe, em um determinado lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um poder, me parece baseado em uma ideia enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um número considerável de fenômenos” (FOUCAULT, 2002, nº 206, p. 302, tradução nossa).
7 Para uma boa síntese deste remetemos o leitor ao estudo de Dreyfus e Rabinow Michel Foucault: uma trajetória filosófica (2013), principalmente o capítulo VII. Referência completa ao fim do artigo.
8 No texto O sujeito e o poder Foucault afirma que “não é o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral de minha pesquisa (FOUCAULT, 2013b, p 274).
9 Apesar desse quadro que pode parecer assustador, Foucault afirma que não devemos enxergar no poder disciplinar uma dominação exaustiva. De fato, segundo ele, onde há relações de poder existe também resistências. As relações de poder “não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a preensão. Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder. Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande Recusa – alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder” (FOUCAULT, 1988, p. 106, grifo no original).
10 O filósofo identifica em seu tempo “a imensa e prolífera criticabilidade das coisas, das instituições, das práticas, dos discursos; uma espécie de friabilidade geral dos solos, mesmo, talvez sobretudo, os mais familiares, os mais sólidos e mais próximos de nós, de nosso corpo, de nossos gestos de todos os dias; é isso que aparece” (FOUCAULT, 2010a, p. 07).
11 De modo simples, a história do poder político de tipo romana é aquela que explora as noções de poder enquanto fascínio, medo, imobilidade, brilho, esplendor etc. O modelo deste tipo de história é, evidentemente, Roma e seu império. É, em suma, um tipo de discurso que vincula os compromissos, a lei, os juramentos, o soberano. Na história política ao qual almeja Foucault, temos, ao contrário, “um entrecruzamento de corpos, de paixões, de acasos” (FOUCAULT, 2010a, p. 46).
12 Escreve Foucault que “a dialética é a pacificação, pela ordem filosófica e talvez pela ordem política, desse discurso amargo e partidário da guerra fundamental” (FOUCAULT, 2010a, p. 50).
13 Apesar de algumas tentativas de diferenciar biopoder de biopolítica, Foucault nunca se preocupou em oferecer uma diferença exata entre os dois conceitos. De modo geral, tradicionalmente, diz-se que o biopoder seria a forma mais geral do poder, isto é, a incidência de poder sobre a vida, seja na forma das disciplinas, seja nas regulações do conjunto dos indivíduos em população. Com efeito, a biopolítica seria precisamente as formas específicas de regulação. Ou seja, como medidas são implantadas visando a segurança, a saúde, a longevidade etc. de uma população. Para uma investigação mais aprofundada desses temas cf. Candiotto, 2011.
14 Conforme nossa apresentação, Michel Foucault compreende o governo de uma forma bastante ampla, não apenas como governo em sua forma mais reconhecida, isto é, a política. Conforme aponta Lemke, “governo era um termo discutido não somente em tratados políticos, mas também em textos filosóficos, religiosos, médicos e pedagógicos” (LEMKE, 2017, p. 16-17, grifo no original).
15 Lemke é muito perspicaz ao aponta que nas reflexões iniciais de Foucault os leitores poderiam ter a impressão de que a dominação seria um fato universal. Ele lembra que em Nietzsche, a genealogia, a história o filósofo francês apresenta a progressão da humanidade “de dominação em dominação”. Com efeito, neste momento, “Foucault ficou convencido de que era necessário diferenciar cuidadosamente o poder da dominação” (LEMKE, 2017, p. 26).
16 Remetemos o leitor ao estudo de Dardot e Laval intitulado A nova razão do mundo (2016), referência completa ao final do artigo. Nesta obra, os autores elaboram uma importante reflexão sobre a dinâmica do poder neoliberal a partir de Foucault e para além dele.

Autor notes

1 Doutorando em Filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba – PR, Brasil.
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