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Recepção: 01 Maio 2020
Aprovação: 20 Setembro 2020
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i3.1837
Resumo: Este artigo apresenta uma análise comparativa de dois conceitos propostos e desenvolvidos em duas áreas muito distintas: o conceito de themata, proposto por Gerald Holton na área de história da ciência para dar conta dos processos de produção e difusão do conhecimento científico, e o conceito de Pathosformeln, proposto por Aby Warburg na área de história da arte para dar conta de importantes continuidades históricas e epocais da produção artística. Apesar dos contextos disciplinares tão distintos em que foram propostos, e apesar das especificidades que naturalmente asseguram a identidade própria de cada um dos conceitos, mostra-se neste artigo como themata e Pathosformeln têm inegáveis e importantes afinidades. De facto, ambos correspondem a entidades dotadas de longa persistência histórica, natureza cíclica e grande transversalidade disciplinar, cultural e epocal, em conjugação com uma grande capacidade de assumir formas específicas numa determinada época e num determinado contexto. Apesar de terem raízes em áreas muito distintas, as afinidades são suficientemente fortes para reconhecer aos themata e às Pathosformeln a pertença a uma mesma rede conceptual com grande potencialidade para a compreensão, não apenas da ciência e da arte, mas também das dinâmicas históricas e transdisciplinares da cultura em geral.
Palavras-chave: Themata, Pathosformeln, Persistência histórica, Transversalidade disciplinar e cultural.
Abstract: This article presents a comparative analysis of two concepts proposed and developed in two very different areas: the concept of themata, proposed by Gerald Holton in the area of the history of science and related to the processes of production and diffusion of scientific knowledge, and the concept of Pathosformeln, proposed by Aby Warburg in the area of history of art and related to some important historical and epochal continuities of artistic production. Despite the very different disciplinary contexts in which they were proposed, and despite the specificities that naturally ensure the identity of each of the concepts, it is shown in this article how themata and Pathosformeln have undeniable and important affinities. In fact, both correspond to entities that have a long historical persistence, a cyclical nature, and a great disciplinary, cultural and epochal transversality, in conjunction with a great capacity to assume specific forms at a given time and in a given context. Despite the roots in very different areas, the affinities are strong enough to recognize that themata and Pathosformeln belong to a conceptual network with great potential for understanding, not only the science and art, but also the historical and transdisciplinary dynamics of culture in general.
Keywords: Themata, Pathosformeln, Historical persistence, Disciplinary and cultural transversality.
Introdução
Segundo o físico e historiador da ciência Gerald Holton, a ciência não se faz apenas no plano teórico e experimental, ao contrário do que frequentemente se pensa. Além destas duas dimensões, Holton considera que existe uma terceira, que designa por eixo thematico. Aí se inscrevem conceitos, métodos e hipóteses, a que Holton chama themata (cujo singular é thema), que condicionam a atividade individual ou coletiva dos cientistas, estabelecendo orientações ou determinando polarizações da investigação desenvolvida por um cientista ou por uma comunidade científica de uma determinada época. Envolvendo valores e crenças, preferências e repulsas, os themata são tendencialmente inconscientes e raramente explícitos nas publicações científicas, mas condicionam fortemente a atividade científica interferindo, quer na construção de teorias, quer na reação (de aceitação ou rejeição) às teorias propostas na comunidade científica.
Um thema pode funcionar como entidade singular, mas, segundo Holton, na maior parte dos casos um thema funciona em par (ou díade), por antítese com um outro, o qual, por essa razão, se designa thema antitético ou antithema. Por exemplo, contínuo e descontínuo são themata opostos, adversários, e constituem um par thema.antithema (ou par antitético). Segundo Holton, a “natureza dialética da ciência como atividade pública e de procura de consenso” (HOLTON, 1975a, 331) está associada a uma dialética thematica, consistindo as controvérsias científicas em disputas entre themata e antithemata. Em casos mais raros, os themata também podem funcionar em tríades (por exemplo, evolução/estado estacionário/involução).
Holton nunca apresentou um conceito suficientemente preciso de thema. Mas, nas suas palavras, um thema é um “guia” (1998, p. 116) ou uma “noção orientadora fundamental” (1998, p. 182), uma “ideia orientadora” (1975, p. 100), uma “profunda convicção” (1998, p. 75), um “pressuposto fundamental” (1998, p. 116), uma “preferência” (1998, p. 183), um “preconceito” (1996, p. 201), uma “predisposição” (1998, p. 117), uma “crença” (1975, p. 117), um “fascínio” (1975, p. 122), um elemento que “modela o estilo” (1998, p. 185), um elemento que funda uma “base conceptual e mesmo emocional” (1998, p. 184) da produção do saber.
Ou seja, os themata são elementos com uma forte componente subjetiva, constituindo a nível individual, e voltando a citar Holton, um “mapa de themata” “que pode ser “idiossincrático” (HOLTON, 1998, p. 182) e em que os themata funcionam “como impressões digitais, caracterizam um cientista individual, ou parte de uma comunidade científica” (HOLTON, 1998, p. 184).
Contudo, embora tenham uma forte componente subjetiva, individual, os themata têm também uma componente objetiva, contextual e histórica, estabelecendo pontes entre a atividade científica e o contexto histórico e cultural em que os cientistas se formam e desenvolvem a sua atividade. Por outras palavras, os themata são elementos que ligam transversalmente cada ciência a outras ciências, a outras áreas disciplinares não científicas e a toda a cultura em geral, inscrevendo a atividade científica e não científica naquilo que Holton designa por “estilo de pensamento da época” (HOLTON, 1975, p. 93). Os themata são ainda elementos com longevidade histórica, ligando a atividade desenvolvida numa ciência em determinada época à história dessa ciência e de outras ciências, assim como à história da cultura em geral. Com efeito, um thema caracteriza-se por ser um “motivo persistente” (HOLTON, 1975, p. 63) dotado de grande “universalidade” (HOLTON, 1975, p. 150), persistindo ao longo de séculos ou até milénios e atravessando disciplinas e áreas muito distintas do saber e da cultura.
Na sua persistência temporal, um thema está sujeito a ciclos de ascensão e declínio, de acordo com a utilidade ou a moda intelectual (HOLTON, 1975, p. 62), de modo que cada época tem os seus themata dominantes, modeladores de um certo estilo de pensamento que percorre diversas áreas disciplinares e culturais.
Holton identificou cerca de uma centena de themata, Apesar de ter trabalhado exclusivamente em casos das ciências físicas, Holton insistiu sempre na ideia de que os themata atravessam todas as áreas disciplinares e culturais. O mesmo thema pode atravessar diversos domínios científicos, tão distintos como a física e a psicologia, por exemplo; mas pode também atravessar todos os domínios do saber e da cultura, das ciências da natureza à arte, da religião à política, das ciências sociais à vida quotidiana, assumindo em cada domínio uma forma de expressão muito específica. O conjunto de themata é bastante estável ao longo da história. O aparecimento de um novo thema numa determinada área é raro e o facto de um thema aparecer numa determinada área não significa que não existisse já anteriormente numa outra área disciplinar ou cultural.
Segundo Holton (1998, pp. 149-150), um thema () é o somatório de todas as suas manifestações em cada disciplina ou, mais em geral, em cada área da cultura (:
Um thema é assim uma entidade universal (transversal). Mais: é uma entidade abstrata e potencial que se concretiza ao atualizar-se em cada domínio numa forma específica. E poderemos dizer igualmente: um thema é uma entidade abstrata e potencial que se concretiza em cada sujeito ao atualizar-se como conceito orientador da atividade cognitiva desse sujeito.
A ideia de universalidade thematica é uma hipótese indutiva, elaborada por Holton a partir de alguns casos. Mas a solidez dos casos de universalidade identificados por Holton, as frutuosas utilizações que tem tido a análise thematica em diversas áreas2 e a possibilidade de, numa certa área, começar a manifestar-se um thema que já era importante noutras áreas (como aconteceu, por exemplo, com a complementaridade em física quântica, um thema que já existia e era fundamental numa grande diversidade de domínios não científicos; HOLTON, 1998, pp. 99-145) dão força a esta ideia de universalidade.
Por exemplo, além da sua importância nas ciências físicas, a simetria é um thema fundamental na arquitetura e nas artes plásticas; a harmonia é um thema fundamental na saúde, na arquitetura, nas artes plásticas, na música, na psicologia, em certas religiões; elementar, construído e entidade são importantes themata em numerosas áreas do saber e da cultura em geral; a unidade é um thema fundamental em inúmeras áreas, desde a matemática às religiões monoteístas e à arte; simplicidade e complexidade estabelecem orientações divergentes em inúmeras disciplinas científicas e áreas artísticas; constância e mudança são themata que se opõem em numerosas áreas do saber e da atividade humana.
Podemos dizer, em síntese, que um thema é um conceito, um método ou uma hipótese de natureza metafísica, estética, lógica ou epistemológica, com grande longevidade histórica e ampla transversalidade cultural, que, por apropriação subjetiva, funciona como importante orientador individual ou coletivo na produção e na receção do saber ou de outras criações culturais.
Ao comparar o conceito de thema com outros que, de alguma forma, se podem inscrever na sua rede conceptual (ou seja, numa rede de conceitos limítrofes que disputam uma similar capacidade explicativa), o conceito de Pathosformel proposto pelo historiador de arte Aby Warburg revela grandes afinidades: longa persistência histórica, natureza cíclica, grande transversalidade disciplinar, cultural e epocal, em conjugação com uma grande capacidade de assumir formas específicas numa determinada época e num determinado contexto.
À partida, estas afinidades podem parecer surpreendentes, uma vez que Holton é um físico e historiador de ciência enquanto Warburg foi historiador de arte, mas, como veremos de seguida, são afinidades reais.
Uma visão transversal
Gerald Holton e Aby Warburg comungam de uma visão universal de cultura. Holton denunciou sempre a superficialidade das separações disciplinares, muito especialmente as separações que tradicionalmente opõem as ciências às letras e às artes. A análise thematica, ao identificar themata que se manifestam transversalmente em todas as áreas culturais, científicas e não científicas, e que assumem formas específicas em cada uma dessas áreas, exprime bem um entendimento contextualista de ciência, em que esta é assumida como atividade profundamente integrada na cultura da sua época e como tal deve ser vista, analisada, compreendida e ensinada3. Aby Warburg, por seu lado, procurou também, através de aturados estudos sobre a arte, contribuir para uma Kulturwissensschaft unitária, uma “ciência universal da cultura” que substitui as rígidas divisões disciplinares por uma organização interdisciplinar capaz de promover uma rede de ligações entre os saberes (GUERREIRO, 2006, p. 529).
Com esta comum preocupação (e ocupação) integradora, Holton, no lado da ciência, e Warburg, no lado da arte, aproximaram áreas tradicionalmente desligadas (ou melhor, tradicionalmente entendidas como desligadas), dissolvendo uma cultura recortada por numerosas fronteiras superficiais num vasto campo cultural atravessado por raízes comunicantes. Não se trata de substituir fronteiras superficiais por relações superficiais, semelhanças formais ou evocações mútuas, mas de procurar, identificar e compreender uma comunidade de mecanismos e elementos profundos.
Trata-se, em ambos os casos, de procurar e valorizar uma universalidade transversal, de recusar divisões rígidas entre diferentes áreas, de identificar e reconhecer elementos que são comuns e ao mesmo tempo fundamentais, estruturantes, em toda a diversidade cultural4. Arte, ciência, literatura, filosofia, política, economia, religião, mitologia… E dentro da arte, as diversas artes; dentro da ciência, as diversas ciências; e assim por diante. Tudo integra o mesmo universo a que chamamos cultura. O olhar de Holton e o olhar de Warburg são olhares integradores que se focalizam em elementos transversais – os themata e as Pathosformeln – que interligam áreas diversas e que tecem padrões do tecido cultural.
Notemos que não há qualquer ligação direta de Holton com Warburg – não foram contemporâneos, não se conheceram, não se relacionaram, nem tão-pouco Holton, que viveu posteriormente, alguma vez se referiu a Warburg ou manifestou qualquer influência do pensamento deste. Mas Holton esteve atento a trabalhos de Erwin Panofsky, importante historiador de arte pertencente ao chamado “círculo Warburg” (GUERREIRO, 2006, p. 510), em que se incluem conhecidos autores influenciados pela obra de Warburg (LINS, 2009) e pelo seu “método contextualista” (TEIXEIRA, 2010, 138). Num estudo sobre Galileu, Panofsky descobriu, segundo Holton, a resposta para o facto de Galileu não ter aceite as elipses de Kepler. Este caso é um caso de relações entre ciência e arte, duas dimensões importantes na vida e no pensamento de Galileu, tendo como pano de fundo o ambiente cultural de matriz neoclássica de Florença (HOLTON, 1998)5. Segundo Panofsky, o ambiente artístico florentino, que cultivava a simplicidade das formas e identificava simplicidade com perfeição, marcou tão profundamente as conceções estéticas de Galileu que estas acabariam por influenciar decisivamente o seu pensamento científico a ponto de recusar a linha “deformada” (logo, imperfeita) da elipse que Kepler descobrira em cada órbita planetária. É, segundo o estudo de Panofsky, um caso paradigmático de profundas relações entre áreas aparentemente muito distantes como a ciência e a arte.
Ora, segundo Holton, estas relações profundas e pouco óbvias de que fala o prestigiado historiador de arte operam-se através dos themata. Panofsky não identifica entidades que corporizem aquelas relações, mas trabalha numa base transversal e contextual, na linha de Warburg. E, assim, de forma indireta, Warburg e a sua arte contextualizada encontram-se com Holton e a sua ciência contextualizada.
Ao contrário de Holton, que chegou a falar em “arte da imaginação científica” (HOLTON, 1996, pp. 183-208), Warburg não estudou casos de relações entre ciência e arte, mas trabalhou casos de relações entre diversas áreas como pintura e literatura (nomeadamente poesia). Foi o que aconteceu quando estudou os quadros de Botticelli:
Este trabalho pretende comparar os conhecidos quadros mitológicos de Sandro Botticelli, O Nascimento de Vénus e A Primavera, com as representações equivalentes que contemporaneamente surgiram na teoria da arte e na literatura poética, exemplificando assim os aspectos da antiguidade que “interessaram” ao artista do Quattrocento. (WARBURG, 1999, p. 89)
A ideia subjacente é a mesma: em cada época, as diversas áreas culturais estão profundamente interligadas. E se a história da arte é, para Warburg, uma parte integrante da história da cultura (TEIXEIRA, 2010, p. 138), também para Holton a história da ciência é parte integrante da história da cultura.
E assim, vindos de dois lugares da cultura tradicionalmente afastados (e mais do que afastados, quantas vezes considerados opostos), os caminhos de Warburg e Holton convergem e protagonizam um encontro feliz num vasto campo de comunicabilidade cultural. Universalidade, transversalidade, intercomunicabilidade – eis, logo à partida, a proximidade de Warburg e Holton.
Uma visão longitudinal
Tanto para Warburg como para Holton, as relações entre um autor e a sua época são cruciais para compreender uma obra. Ou seja: em qualquer área, as obras estão profundamente ligadas aos seus autores mas também às suas épocas e, por esta via, às mentalidades, às modas intelectuais, às grandes questões existenciais, a outras áreas da cultura, às heranças culturais. Seja na arte, seja na ciência.
Como muitos notaram, nomeadamente alguns comentadores das conceções de Warburg, “as impressões deixadas pelos artistas nas suas obras contam uma história” (LINS, 2009, p. 4). Na perspetiva thematica do trabalho científico, também os themata do cientista se projetam no seu pensamento, nas suas teorias, na sua obra geral, como escolhas e como impressões digitais, contando uma história. E que história contam? A história pessoal do cientista, a história das relações entre o cientista e a sua época, o seu contexto social e cultural, mas também a história das heranças culturais que recebeu de um longo passado. Ou seja: os mapas thematicos individuais, como as impressões artísticas individuais, contam histórias pessoais mas também contam histórias que, em larga medida, transcendem os autores, têm vida própria, são independentes dos interesses, do génio, da sensibilidade e de quaisquer idiossincrasias pessoais, fundando-se exclusivamente em elementos de natureza objetiva.
No caso dos themata, esta objetividade manifesta-se, não apenas através de uma universalidade transversal, mas também de uma persistência histórica. Vejamos que no caso das Pathosformeln, de Warburg, também isso acontece.
Nas suas pesquisas, Warburg descobriu “uma rede de fórmulas expressivas universais e trans-históricas (sujeitas, muito embora, a determinações históricas na sua vida póstuma, pois elas não são pura e simplesmente transmitidas como algo a imitar: cada época tem a sua maneira de as selecionar, reanimar e intensificar), presentes em todas as produções simbólicas da humanidade e não apenas na arte” (GUERREIRO, 2006, p. 512).
Warburg chamou Pathosformel (fórmula de pathos, associada a emoções) a cada uma destas fórmulas expressivas universais e trans-históricas (WARBURG, 1999, p. 555). A sua universalidade manifesta-se transversalmente, na medida em que estão presentes em todas as áreas disciplinares. E a sua trans-historicidade manifesta-se pela persistência, pela longevidade, pela sobrevivência ao longo da história humana. Por exemplo, no referido estudo sobre as pinturas de Botticelli, Warburg identificou as mesmas Pathosformeln presentes na pintura e na literatura renascentistas (manifestação de universalidade transversal), assim como na Antiguidade e no Renascimento (manifestação de trans-historicidade). E a propósito da mesma linguagem gestual expressa numa variedade de desenhos renascentistas sobre a morte de Orfeu, poeta da mitologia grega, Warburg escreveu que esses mesmos desenhos
fornecem provas quase idênticas do vigor com que esta fórmula emotiva autenticamente arqueológica {Pathosformel}, baseada num antigo Orfeu ou Penteu, se enraizou nos círculos artísticos da Renascença. (WARBURG, 1999, p. 555)
Estas Pathosformeln, como todas as Pathosformeln, não são conteúdos, não são motivos figurativos, mas fórmulas que traduzem certos valores expressivos (GUERREIRO, 2006, p. 513). Nas palavras de Warburg, são “fórmulas emotivas”6.
No caso concreto da época renascentista, as Pathosformeln identificadas por Warburg estão associadas a movimentos e gestualidades expressivas do corpo, recuperados da Antiguidade greco-romana. Estes movimentos e gestos são diversos e podem expressar-se de diversas formas, carregadas de simbolismo, como acontece, por exemplo, com a figura da Ninfa, um símbolo de beleza sensual e êxtase que se tornou um dos elementos mais atrativos para os artistas do Renascimento WARBURG, 1999, p. 381). Ou seja: as Pathosformeln são fórmulas para a expressão de certos valores emotivos sob determinadas formas simbólicas.
Ora, os themata não se manifestam, em geral, através de símbolos, e a sua análise (a análise thematica) não tem de interpretar linguagens simbólicas. Há aqui, portanto, uma clara diferença entre os themata de Holton e as Pathosformeln de Warburg.
No entanto, alguns casos, como o da circunferência como símbolo de perfeição, por oposição à elipse como símbolo de imperfeição, mostram que, mesmo em domínios não artísticos como a astronomia, a física e a geometria, os themata (estéticos e metafísicos) podem expressar-se de forma simbólica, ainda que esta não seja admitida e apresentada pelos autores.
Mas casos como este aconteceram num passado já distante. Na história da física mais recente, Holton não detetou qualquer presença do simbólico na atividade científica. Assim como não detetou traços religiosos, ao contrário do que aconteceu com importantes teorias científicas do passado (de Kepler a Newton, por exemplo). Se o abandono do simbólico e o abandono do religioso, ambos ocorridos ao longo dos últimos séculos da história da ciência, são simples coincidências históricas ou se, pelo contrário, fazem parte de algum processo comum, eis uma questão a solicitar profundo estudo.
Voltando às Pathosformeln, importa reconhecer que são fórmulas antigas, recorrentes, que sobrevivem à passagem do tempo histórico e ressurgem em certas épocas. Esta propriedade é designada por Warburg como Nachleben, palavra alemã de difícil tradução, mas que pode designar vida póstuma, sobrevivência, pós-vida,7 e que justifica plenamente aquilo que Warburg entende como “psicologia histórica da expressão humana” (LINS, 2009, p. 1) – uma análise que procura revelar a presença da história, ou melhor, da memória histórica nas obras dos autores de uma determinada época.
As Pathosformeln são “cristais de memória histórica”8 – também dita “memória coletiva” ou “memória da humanidade” (GUERREIRO, 2006, p. 513), assim como “memória cultural” (TEIXEIRA, 2010, p. 136). E a sua recorrência corresponde a um processo trans-histórico de renascimentos, “mecanismo inconsciente, próprio da memória colectiva” (GUERREIRO, 2006, p. 513). O chamado Renascimento teria sido justamente um ressurgimento de certas Pathosformeln da Antiguidade, uma manifestação concreta de Nachleben dessas Pathosformeln9, uma manifestação concreta da “memória colectiva europeia enquanto poder formador de estilo” (GUERREIRO, 2006, p. 513) de uma época específica, num contexto geográfico e cultural específico.
Por vezes, as Pathosformeln são referidas como sendo «as Nachleben» (GUERREIRO, 2006, p. 518), o que, não sendo totalmente preciso, por confundir a entidade (Pathosformel) com a sua capacidade de sobrevivência (Nachleben), não é uma classificação de todo incorreta porque entende as Pathosformeln como as sobreviventes. Esta forma de referir as Pathosformeln relaciona-se com o facto de as mesmas serem frequentemente entendidas como imagens: imagens que migram, que sofrem deslocações históricas e geográficas, permanecendo como “vida em movimento” (GUERREIRO, 2006, p. 513), imagens primordiais (TEIXEIRA, 2010, p. 143), imagens persistentes, imagens vivas, imagens sobreviventes (as sobreviventes, as Nachleben) à efemeridade dos indivíduos e das épocas. Como diz Agamben:
As imagens que compõem a nossa memória [...]são vivas, mas sendo feitas de tempo e de memória, a sua vida é sempre já Nachleben, sobrevivência, estando sempre já ameaçada e prestes a assumir uma forma espectral. (TEIXEIRA, 2010, p. 143)
Uma forma espectral que garante a sua potencialidade, a sua latência, isto é, a sua possibilidade de posteriormente reviverem e assumirem novas formas – “de um ponto de vista morfológico [...], a vida póstuma das imagens consiste em variações fenoménicas de uma invariante que é o Pathosformel.” (GUERREIRO, 2006, p. 516). É como se as Pathosformeln fossem entidades imortais, adormecidas e esquecidas quando o contexto não lhes é propício ou não sente a sua falta, mas sempre prontas, nesse estado de potencialidade, a regressar e a contribuir, sob pequenas variações, para a cultura de uma nova época.
Ora, esta persistência e esta potencialidade das Pathosformeln podem ser postas em paralelo com a longevidade e a potencialidade abstrata que permitem a um mesmo thema persistir na história e assumir diferentes formas concretas em diferentes épocas. Por exemplo, o thema do descontínuo (ou discreto) tem atravessado toda a história da física, tendo começado por assumir a forma de partícula material indivisível (significado literal de átomo) na Antiguidade grega, ressurgindo cerca de dois milénios mais tarde na forma de corpúsculo material ou luminoso, e assumindo posteriormente a forma de átomo (mas agora divisível), de partícula material subatómica, de partícula elementar, de quantum de energia, de molécula… O núcleo conceptual e original é sempre o mesmo: o thema do discreto, uma invariante que ao longo das épocas se vai manifestando em diferentes variações fenoménicas. Como se o discreto fosse uma espécie de Pathosformel da física.
Em Warburg, as Pathosformeln funcionam como “energias psíquicas primordiais” (TEIXEIRA, 2010, p. 144) “ativadas pela memória cultural” (TEIXEIRA, 2010, p. 136) que, na sua persistência temporal, implicam uma conceção de história em que “o passado nunca é tempo concluído, pois está constantemente a emergir no presente sem que este o possa dominar” (GUERREIRO, 2006, p. 514). Por isso, cada obra é dotada de um certo anacronismo (LINS, 2009, p. 4), participando de várias épocas porque contém elementos próprios da época em que é produzida mas também de épocas passadas. Anacrónica mas não a-histórica; pelo contrário, a obra é carregada de história, não uma história linear, progressiva, mas uma história recorrente, uma história de sobrevivência, de permanência, uma trans-história.
Como acontece na análise thematica de Holton, estamos perante entidades fundamentais com origens remotas (tão remotas que não se consegue localizar a sua origem no tempo) que persistem ao longo da história e se manifestam em determinadas épocas e em obras individuais. E só se manifestam, ou ressurgem, porque a humanidade, como cada um dos humanos, tem uma memória. Uma memória coletiva que assegura tanto a persistência das Pathosformeln como a dos themata. Uma memória que garante tanto a potencialidade das Pathosformeln como a dos themata. Em ambos os casos, a memória coletiva é um continuum longitudinal impregnado de potencialidade thematica e nachleben pathica.
Notemos que, para Warburg, a importância dessa memória coletiva é tão fundamental, que grande parte da sua vida foi dedicada à criação e à consolidação da sua original biblioteca, à entrada da qual colocou o nome Mnemosyne, palavra grega que significa Memória, onde pretendeu “mostrar a função da memória colectiva europeia enquanto poder formador de estilo, assumindo como constante a cultura da Antiguidade pagã.” (GUERREIRO, 2006, p. 513)
Holton, por seu lado, nunca se refere à existência de uma memória coletiva para defender a persistência dos themata. Aliás, a longevidade histórica destes nunca foi equacionada por Holton como um problema a analisar, despreocupação teórica que não é certamente alheia ao facto de, para Holton, o problema da origem e da natureza dos themata ser essencialmente uma questão psicológica, não histórica. Mas, a meu ver, não há razões para recusarmos aos themata a inscrição numa memória coletiva, numa memória cultural da humanidade, ao estilo warburgiano.
De facto, os ciclos de ascensão e declínio dos themata, ligados a estados de latência à espera de um contexto favorável ao seu ressurgimento, são razões fortes a favor do reconhecimento de uma memória coletiva ao estilo de Warburg (como entidade sujeita a mecanismos de transmissão históricos). Por exemplo, o ressurgimento do discreto como thema forte no estudo da composição (material e energética) do mundo químico e físico, assemelha-se a um renascimento, no sentido warburgiano, de uma ideia (metafísica e científica) que ficara adormecida durante milénios mas que, qual Nachleben, sobreviveu e, tendo encontrado contextos históricos propícios, regressou ao labor científico. Neste regresso, até a palavra átomo, cunhada na Antiguidade grega, renasceu. E foi tal o ímpeto transformador com que o átomo (no sentido thematico de entidade discreta) irrompeu na dinâmica descobridora e criadora da ciência moderna, que são hoje conhecidos milhões de diferentes átomos (no sentido thematico, desde os quarks às macromoléculas, naturais ou sintetizadas). Como se, à semelhança do que acontece com as Pathosformeln, o atomismo (outro nome possível para o thema do discreto) funcionasse como energia primordial capaz de provocar ou, pelo menos, favorecer, uma grande dinâmica na atividade científica.
A memória coletiva que assegura a sobrevivência das Patosformeln é uma memória de experiências emotivas da humanidade (GUERREIRO, 2006, p. 518). Por seu lado, em Holton, o que assegura a longevidade histórica dos themata parece, à partida, nada ter que ver com experiências emotivas da humanidade mas sim com possibilidades metafísicas, estéticas, lógicas ou epistemológicas relativas à própria realidade (seja natural ou humana) e aos processos de conhecimento. Podemos dizer, nesse sentido, que é na realidade e nas modalidades de conhecimento de que a humanidade dispõe que estão inscritos os themata (mais precisamente a sua componente objetiva). Contudo, é preciso assinalar que, quando se trata de themata estéticos, o que está em jogo também é de ordem emotiva; e a relação com tais themata também pode ser uma experiência emotiva (pessoal ou coletiva), sendo as preferências thematicas condicionadas por valores emotivos associados à sensibilidade estética. Aliás, como Holton observou algumas vezes, a defesa ou a recusa de um thema pode ser uma atitude mais emotiva (quantas vezes verdadeiramente apaixonada) do que racional. É nessa emotividade pessoal que reside grandemente (para o melhor e para o pior) a força de um thema. Pelo que, independentemente de podermos ou não falar de uma memória coletiva como garante da longevidade histórica dos themata, também nesta persistência as experiências emotivas são relevantes.
A polaridade e a antítese
As Pathosformeln não são recebidas e adotadas de uma forma passiva. Ao herdar a memória coletiva e as suas Pathosformeln, cada época transforma a herança de acordo com as suas exigências:
Cada época selecciona e elabora determinadas Pathosformeln à medida das suas necessidades expressivas, regenerando-as a partir da sua energia inicial. Em contacto com a «vontade selectiva» de uma época, elas intensificam-se, reactivam-se, carregam-se de um significado que entra em conflito com um pólo oposto, isto é «polarizam-se». (GUERREIRO, 2006, p. 514)
Para Warburg, a polaridade é uma categoria interpretativa dos fenómenos culturais, ao considerá-los enredados em relações bipolares: cultura antiga versus cultura moderna, cristianismo versus paganismo, pensamento lógico versus pensamento ilógico, etc. (GUERREIRO, 2006, p. 514).
É por isso que a tradição não é, para Warburg, “uma corrente linear em que o que vem depois imita ou é influenciado pelo que está antes (a ideia mais comum de influência perde, aliás, todo o sentido), mas um mecanismo que implica conflito, discussão entre o presente e o passado.” (GUERREIRO; 2006, p. 515)
Por exemplo, a ninfa que podemos observar no quadro renascentista Nascimento de São João Baptista, de Domenico Ghirlandaio, constitui, na perspetiva warburgiana, uma manifestação de uma Pathosformel pagã numa cena cristã. Esta bipolaridade (cristianismo face a face com paganismo), esta antítese interna da obra, é ilógica: a ninfa é uma espécie de intruso, a sua presença não bate certo, não joga logicamente, com o acontecimento que se pretende representar e com o contexto em que aparece. Este exemplo, de um dos pintores renascentistas estudados por Warburg, mostra que a adesão às Pathosformeln resulta de uma espécie de fascínio que, ao colocar “forças inconscientes em conflito” (TEIXEIRA, 2010, p. 143), conduz a elaborações intrinsecamente conflituosas, elaborações onde o impulso se pode sobrepor à razão e onde o sentido pode ser mais simbólico do que lógico. Da mesma maneira, também a fidelidade aos themata introduz um elemento de irracionalidade no trabalho do cientista.
Em Warburg, a polaridade fundamental é de inspiração nietzshiana: o apolíneo e o dionísico (GUERREIRO, 2006, p. 154)10 – ou seja: a harmonia, o equilíbrio, a serenidade, por um lado, e o desequilíbrio, o excesso, o erotismo, a violência, por outro. Sendo “a erupção de uma emoção primitiva através da crosta do autocontrolo cristão e decoro burguês” (TEIXEIRA, 2010, p. 142)11, a ninfa é um elemento dionísico. E assim, no exemplo em causa, a presença da ninfa acaba por criar uma tripla polaridade: cristianismo versus paganismo, lógico versus ilógico, apolíneo versus dionísico.
Ora, uma grande parte dos themata também funciona por antítese, manifestando uma ontologia bipolar: contínuo/descontínuo, finitude/infinitude e por aí adiante. Mais: a dinâmica que anima alguns profundos debates dentro de uma certa área disciplinar é, segundo a análise thematica, uma manifestação de disputa entre themata antitéticos. E tal como estas profundas oposições thematicas podem animar o saber e conduzir a novos resultados (relembremos o caso da disputa entre contínuo e descontínuo na mecânica quântica que acabou por conduzir ao princípio da complementaridade), também as tensões bipolares que Warburg associou à dinâmica das Pathosformeln animam a história e produzem resultados interessantes, porque
quando equilibradas no interior de um mesmo indivíduo – quando em vez de se aniquilarem uma à outra, se fecundam mutuamente e ampliam o alcance da personalidade – têm o poder de conduzir às mais nobres conquistas da civilização. Foi esse o solo em que desabrochou o Renascimento florentino inicial. [...] Os produtos artísticos nascidos da conciliação entre Igreja e Mundo, entre antiguidade clássica e presente cristão, exalam todo o imenso entusiasmo de uma nova e ousada experiência. (WARBURG, 1999, pp. 190-191)
A diferença é que a dialética thematica opõe uns autores a outros e não se manifesta, portanto, dentro de um mesmo indivíduo e dentro de uma mesma obra (obra que, thematicamente, tende a aproximar-se de uma unidade coerente), ao contrário do que acontece nas dialéticas em que as Pathosformeln participam. Aí o conflito opõe não autores mas mundividências e, ao atuar no interior da mente de um autor, pode dar a ver-se numa mesma obra, como no referido exemplo da pintura de Ghirlandaio.
Cada época acolhe certas Pathosformeln e ignora ou recusa outras. A recorrência das Pathosformeln indicia a existência de preferências, a nível coletivo, porque expressa uma escolha de certas fórmulas em detrimento de outras possíveis. Essas preferências são duplas preferências: referem-se, por um lado, aos valores emotivos escolhidos e, por outro, à forma de os exprimir simbolicamente.
E, assim, sendo dotadas de Nachleben, as Pathosformeln acabam por estar sujeitas a ascensões e declínios ao longo da história, tendo cada época as suas Pathosformeln dominantes. Como já vimos, este fenómeno acontece também com os themata, mas convém assinalar uma nuance.
Vimos atrás que as Pathosformeln funcionam, enquanto entidades de memória coletiva, como modeladoras de estilo. Mas esse estilo é um “estilo público” (IMBERT, 2003, p. 16), partilhado, social, epocal; não um estilo pessoal. Por exemplo, a ninfa enquanto Pathosformel está presente em diversos artistas do Renascimento, constituindo por isso uma marca artística dessa época; não é uma marca pessoal e distintiva deste ou daquele artista renascentista, de alguma forma ligado a outros artistas do passado, mas um elemento epocal e distintivo da arte de uma época em profunda ligação com outra época (a Antiguidade). As relações são temporais (entre épocas históricas) mais do que sociais (entre indivíduos).
Assim, na perspetiva de Warburg, um autor é mais mediador do que sujeito criador – um “mediador físico de figuras em que a sociedade civil aclimata as suas audácias, os seus medos e as suas festas propiciatórias” (IMBERT, 2003, p. 13). Os impulsos, os interesses, os pathos, os valores emotivos, expostos nas suas obras, não são verdadeiramente seus, mas da memória coletiva que se manifesta na sua época através de si e das suas produções intelectuais. Mais do que uma psicologia, cada obra manifesta uma “cosmologia mental” (IMBERT, 2003, p. 16) epocal.
Este fenómeno nachlebeniano tem paralelismo com a manifestação objetiva dos themata ao longo da história. Mas Holton não valoriza a persistência histórica objetiva em detrimento da personalização dos themata. Na sua perspetiva, e embora nunca o diga explicitamente, um thema é sempre simultaneamente (e igualmente) subjetivo e objetivo.
Tenhamos presente que, também para Holton, cada época tem as suas questões e conceções características, “que lhe conferem a sua inconfundível modernidade” (HOLTON, 1975, p. 115). Essa modernidade corresponde a um certo “estilo de pensamento pessoal e social contemporâneo” (HOLTON, 1975, p. 101) – de tal forma que, ao longo da história, “a existência de uma relação estilística entre os diferentes trabalhos de um certo período mantém-se constante.” (HOLTON, 1975, p. 95) Trata-se de uma conceção muito semelhante à perspetiva de Warburg. A diferença é que Holton enfatizou sobretudo o papel dos themata enquanto modeladores de estilo pessoal (ou, quando muito, de um grupo profissional muito restrito), um estilo que se define a partir de um mapa thematico específico e se distingue pelas diferenças, por vezes finas, entre um mapa thematico e os mapas thematicos de outros autores (ou pequenos grupos) contemporâneos. Ao contrário do que acontece com as preferências expressas na recorrência das Pathosformeln, que são preferências coletivas, históricas, epocais, as preferências thematicas são, na perspetiva holtoniana, essencialmente de natureza pessoal e psicológica. Ou seja: o indivíduo, e o seu contributo, são mais valorizados nos themata de Holton do que nas Pathosformeln de Warburg. Mas, independentemente da importância atribuída ao sujeito, tanto os themata como as Pathosformeln conseguem atuar inconscientemente, funcionando como forças psíquicas involuntárias que dominam o indivíduo nas suas conceções e produções intelectuais.
Nota final
No caso dos themata, as particularidades individuais assumem uma importância crucial e podem criar profundas diferenças e oposições dentro de uma mesma época, de uma mesma área disciplinar, de um mesmo contexto histórico e cultural.
Contudo, tanto os themata como as Pathosformeln são dotados de continuidade diacrónica e sincrónica, atravessam os tempos e as culturas, estão sujeitos a ciclos de ascensão e declínio, recebem a adesão dos indivíduos enquanto sujeitos com histórias de vida particulares mas que, ao mesmo tempo, se inscrevem num determinado contexto histórico e cultural.
Longa persistência histórica, natureza cíclica, grande transversalidade disciplinar, cultural e epocal, e capacidade de assumir formas específicas numa determinada época e num determinado contexto, eis o que há de comum nos themata e nas Pathosformeln.
Apesar de terem sido propostos e desenvolvidos em áreas muito distintas, um na história das ciências físicas, para dar conta dos processos de produção e difusão do conhecimento científico, e outro na história da arte, para dar conta de importantes continuidades históricas e epocais da produção artística, themata e Pathosformeln têm afinidades suficientemente fortes para lhes reconhecermos a pertença a uma mesma rede conceptual com grande potencialidade para a compreensão, não apenas da ciência e da arte, mas também das dinâmicas históricas e transdisciplinares da cultura em geral.
E se o conceito de Pathosforlmen parece ter ficado confinado ao âmbito onde nasceu, o da história da arte, o mesmo não aconteceu com o conceito de themata, que acabaria por extravasar largamente o âmbito da história das ciências físicas no qual havia nascido.
Com efeito, a análise thematica (assente no conceito de themata) começou por ser, com Holton, um método de análise desenvolvido através de estudos de caso com o intuito de compreender, por um lado, os processos de construção de teorias e, por outro, os processos de aceitação ou rejeição de teorias, mas sempre no âmbito das ciências físicas – o que se compreende porque Holton era físico. Mas, na esteira de Holton, outros autores aplicaram a análise thematica em diversas áreas.
A abordagem thematica foi bem acolhida em sociologia12, tendo também chegado à ciência da informação13 e à economia14. Ainda no âmbito das ciências da natureza, mas não das ciências físicas, são também conhecidos alguns exemplos de acolhimento, como o de Michael B. Shermer, que publicou um estudo analítico acerca da obra do biólogo Stephen Jay Gould (SHERMER, 2002) onde, a par de uma análise de conteúdo, apresenta uma análise thematica da obra de Gould sustentada em dicotomias thematicas (como teoria/dados, tempo linear/tempo cíclico, adaptacionismo/não-adaptacionismo, pontualismo/gradualismo, contingência/necessidade), enfatizando as interações entre themata e objetos de estudo.
O próprio Holton deu conta do eco que a análise thematica teve em investigadores e autores de diversas áreas disciplinares, como refere no pós-escrito da edição revista de Thematic Origins of Scientific Thought (1988), onde apresenta outros exemplos que abrangem áreas tão distintas como história e filosofia das ciências (nomeadamente das ciências físicas e da biologia), crítica literária, literatura comparada, linguística, psicologia, sociologia da ciência ou organização de enciclopédias (HOLTON, 1988, pp. 473-475).
O conceito de themata, através da análise thematica, tem dado, pois, boas provas de vitalidade e de fecundidade. Os resultados dos estudos de caso realizados por Holton e a aplicação que outros autores têm feito da análise thematica em diversas áreas constituem razões bastante fortes para acreditarmos que os themata e a análise que possibilitam possuem realmente um potencial muito interessante, não apenas para a compreensão das ciências da natureza, mas também para a análise do saber em geral e das dinâmicas históricas e transversais da própria cultura.
Referências
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Notas
Autor notes