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Subjetividade transcendental e deus: fundamentos da fenomenologia de Husserl

Transcendental subjectivity and god: fundamentals of Husserl's phenomenology

Rudinei Cogo Moor 1
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

Subjetividade transcendental e deus: fundamentos da fenomenologia de Husserl

Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 3, pp. 112-124, 2020

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 20 Abril 2020

Aprovação: 20 Setembro 2020

Resumo: :

A ciência fenomenológica procura tratar os fenômenos como puras possibilidades. Tudo o que se doa para a consciência tem a possibilidade de ser descrito tal e qual se mostra por si mesmo numa intuição. O sujeito transcendental é o fundamento receptivo para o que é dado e, é dele, que partem os raios intencionais, dos quais os fenômenos ganham um sentido de ser de algo. Deus para ter sentido de “Deus” precisa ser para um sujeito. Mas, como Deus se doa? Ele não é tal como os objetos que são dados de imediato para a consciência, mas mediado por uma teleologia da própria razão. O presente artigo se propõe pensar no tratamento que Husserl dá a sua fenomenologia como metafisica (ciência primeira), partindo da subjetividade transcendental e destacando se “Deus” não excede ou seria outro fundamento ao lado do ego puro. A partir daí, procura-se ressaltar como o “fenômeno Deus” aparece no seu sistema fenomenológico, verificando como isso se dá em seus escritos inéditos apresentados por Jocelyn Benoist e a abertura para uma fenomenologia metafísica com Jean Luc-Marion.

Palavras-chave: Fenomenologia, Ciência, Metafísica, Subjetividade Transcendental, Deus.

Abstract: :

The phenomenological science seeks to treat phenomena as pure possibilities. Everything that is donated to consciousness has the possibility of being described as it is shown by itself in an intuition. The transcendental subject is the receptive foundation for what’s given and it’s from him that intentional rays depart, from which phenomena gain a meaning of being of something. God for the meaning of “God” needs to be for a subject. But, how does God give himself? It isn’t like the objects that are immediately given to consciousness, but mediated by a teleology of reason itself. The present article proposes to think about the treatment that Husserl gives his phenomenology as metaphysics (first science), starting from the transcendental subjectivity and highlighting whether "God" does not exceed or would be another foundation alongside the pure ego. From there, we try to stand out how the “God phenomenon” appears in his phenomenological system, verifying how this happens in his unpublished writings presented by Jocelyn Benoist and the opening for a metaphysical phenomenology with Jean Luc-Marion.

Keywords: Phenomenology, Science, Metaphysics, Transcendental Subjectivity, God.

Considerações iniciais

Deus não precisa do homem para nada, exceto para ser Deus. Cada homem que morre é uma morte de Deus. E quando o último homem morrer, Deus não ressuscitará.

José Saramago no documentário José e Pilar (52:00).

A ideia de Deus deve ser tratada como uma possibilidade para a fenomenologia. Se a fenomenologia se propõe ser ciência primeira (metafísica e/ou a sua substituta), isto é, aquela que subordina todo conhecimento e todas as outras ciências pela essência de fundamento, então deverá servir de suporte para toda possibilidade de aparecimento ou ausência do mesmo, justificando suas direções e realizações de sentido.

A questão de Deus surge na fenomenologia em torno de sua doação, do que poderia ser intuído desse fenômeno. Reduzindo qualquer religião ou fé, bem como modificando a atitude crente da realidade do mundo natural, psicológica e espiritual, com Husserl, a fenomenologia deve encarar este desafio de descrever a possibilidade do fenômeno Deus por meio da sua fundamentação legitima do conhecimento na subjetividade transcendental, analisar o que não se apresenta imediatamente para a consciência, mas que coloca em questão a própria racionalidade, a teleologia da realização da essência humana.

A fenomenologia não se satisfaz com o conhecimento de Deus por meio de substruções vazias e formais, mas pela experiência. A intuição que torna possível a visibilidade dos fenômenos para a consciência teria condições de apresentar algum “dado específico” ou vestígio que permitiria o preenchimento significativo de Deus? Deus é um fenômeno complexo, e a fenomenologia, em seus primórdios, propõe-se constituir-se como uma ciência de rigor pautada na objetividade, ainda que por “objetivo” deva ser entendido tudo o que o sujeito pode ter como consciência de algo.

Este artigo se desenvolve da seguinte forma: na primeira seção descreve-se de um modo geral como Husserl desenvolve a fenomenologia como ciência primeira, fundamentada na subjetividade transcendental. Na seção seguinte, o tratamento da redução fenomenológica e como a suspensão abrange o problema de Deus. A terceira seção é a tentativa didática de reconstrução de Deus no sistema fenomenológico, apresentando a partir de textos inéditos de Husserl encontrados no artigo de Jocelyn Benoist – Husserl: além da onto-teologia?.

Por último, analisar-se-á com Jean-Luc Marion a possibilidade de uma fenomenologia metafísica, questionando seus limites e possibilidades, e a “doação por excelência” que torna Deus um ente abandonado.

Fenomenologia como filosofia primeira: a subjetividade transcendental como fundamento

Nas Meditações Cartesianas, Husserl resume sua fenomenologia como um projeto filosófico radical que lhe advém da filosofia cartesiana, cujo objetivo é fundar uma ciência numa evidência radical da qual servirá de fundamento para qualquer ciência que se possa estabelecer efetivamente e eideticamente, como a própria filosofia na fenomenologia. O projeto consiste em “voltar a si mesmo” (retorno à “consciência”), refletir seus vividos e direcionamentos intencionais no mundo e ver o que fundamenta a experiência enquanto sentido e manifestação2. Se este “voltar a si mesmo” for corretamente realizado, conduz a subjetividade transcendental, desde que todas as atitudes ingênuas da subjetividade sejam neutralizadas pelo método de redução fenomenológica, tais como pré-julgamentos ou crenças referentes à experiência ou existência (possível, hipotética e provável) do mundo. Mas esse neutralizar ou pôr entre parênteses não coloca o sujeito diante de um puro nada, pois o fenômeno de existência deixa a possibilidade de decisão para uma opção entre o ser ou a aparência do mesmo (cf. HUSSERL, 2001, p. 36-38).

Husserl diz: “a experiência transcendental não poderá servir de suporte a julgamentos apodíticos, a não ser que ela própria o seja” (HUSSERL, 2001, p. 39). A experiência transcendental do eu possibilita a acessibilidade originária a si mesmo, visando o núcleo de vivências da consciência e sua constituição intencional. O eu transcendental, revelado pela epoché transcendental como espectador imparcial de si mesmo, é o domínio da experiência imanente fenomenológica, em que o mundo objetivo e todos os seus objetos, o eu psicológico e suas experiências são dadas e se encontram “em mim”, orientando em si mesmo toda a unidade de sentido e valor existencial que isto tem para si. O eu transcendental, do ponto de vista do conhecimento, precede qualquer existência objetiva. O ego pode voltar seu olhar reflexivo para esta vida, seja aquela da percepção ou da representação, ou de julgamento de existência, de valor ou volição, e descrevê-la, tendo como observância inviolável a redução transcendental (Cf. HUSSERL, 2001, p. 49).

Ao se direcionar para a subjetividade transcendental como redescoberta de um “voltar a si mesmo” reflexivo, a fenomenologia encontra um campo no qual tudo se dá sob um horizonte de relação intencional, em que “as coisas mesmas” se doam numa transcendência intuitiva. A subjetividade transcendental é a base receptiva do que a intuição lhe doa para sua constituição intencional, ou seja, o mundo natural e tudo o que ele implica, bem como o eu e os outros, estão dados numa transcendência que se constitui formando um campo fenomênico de vivências. Por isso, a fenomenologia, enquanto ciência, propõe mostrar o que aparece e nos modos dos quais se dão estes fenômenos em sua unidade de sentido, fundamentando-se na consciência enquanto intencionalidade, isto é, considerando-a como implicativa de algo, no recebimento de algum dado intuitivo, entrelaçando-se assim uma correlação entre o modo que se recebe e o que se doa, mesmo que o recebimento seja um direcionamento para algo que não se objetiva intuitivamente na constituição, como no caso de um alter ego que se constitui como estranho, ou Deus que possui uma transcendência oposta à do mundo, um absoluto diferente do absoluto da consciência (Cf. HUSSERL, 2006, p. 134).

No parágrafo 24 das Ideias I, Husserl afirma que a intuição doadora originária é o princípio de todos os princípios e a fonte de legitimação do conhecimento (Cf. HUSSERL, 2006, p. 69). Isso significa que a fenomenologia da subjetividade transcendental está subordinada a essa ideia de intuição, pois deve tomar o que é oferecido pela intuição “tal como se dá, mas também apenas nos limites dos quais ele se dá” (HUSSERL, 2006, p. 69). E o que se dá não é restringido à experiência sensível – que, para a fenomenologia, seria o pressuposto sensual da consciência, sua hylé – mas, o que é ideal também se dá, tal como na imaginação de um “centauro tocando flauta” (sem a posição de existência) ou mesmo possibilidades ideais como formas puras geométricas. O que é dado não é uma invenção ou produção da mente, tampouco uma abstração de toda experiência empírica, mas a possibilidade de constituir sentido do seu próprio aparecimento e descrevê-lo no rigor e na evidência da qual algo aparece como puro aparecer.

Portanto, o rigor da ciência fenomenológica passa por aquilo que é doado na intuição. Para descrever adequadamente o que se mostra nesse dado é necessário desvencilhar sua aparição do que não é próprio do seu aparecer, ou seja, a função que é referida ao método fenomenológico é a da “libertação do aparecimento”. No entanto, tal libertação possui suas limitações3, pois está em correlação com a subjetividade transcendental que a constitui e a fundamenta e o horizonte do qual apontam as aparições. Tudo o que é doado tem como recebedor o sujeito transcendental num horizonte de sentido, do qual é responsável pelo preenchimento significativo do que recebe e intenta.

A ideia da fenomenologia, enquanto ciência eidética e descritiva, busca realizar a elucidação das possibilidades do conhecimento, a claridade intuitiva de sua essência, fazendo do conhecimento um dado evidente por si mesmo. Desse modo, a fenomenologia se propõe a realizar uma crítica do conhecimento na medida que busca fornecer “uma intelecção última, clara, por conseguinte, auto-concordante, da essência do conhecimento e da possiblidade de sua efetuação. – A crítica do conhecimento é, nesse sentido, a condição da possibilidade da metafísica” (HUSSERL, 1986, p. 22). A metafísica da qual Husserl se refere é aquela enquanto “filosofia primeira”. Em outra passagem, nas Ideias, Husserl afirma:

A fenomenologia tem por essência de reivindicar o direito de ser filosofia “primeira” e de oferecer os meios para toda crítica da razão que se possa almejar; e que, por isso, ela requer a mais completa ausência de pressupostos e absoluta evidência reflexiva sobre si mesma. Sua essência própria é a realização da mais perfeita clareza sobre sua própria essência e, com isso, também sobre os princípios de seu método (HUSSERL, 2006, p. 143).

“A fenomenologia quer ser ciência e método, a fim de elucidar possibilidades, possibilidades do conhecimento, possibilidades da valoração, e as elucidar a partir de seu fundamento essencial” (HUSSERL, 1986, p. 79). Para isso, a investigação das essências se dá a partir de sua concepção de intencionalidade e na consideração puramente intuitiva do que é dado, precisamente como autopresentação absoluta ao puro ver, após o processo de redução fenomenológica. Tudo o que se apresentar como possibilidade numa intuição que se doa – mesmo se houver um déficit na intuição, na qual ela se mostre como impossibilidade, absurdo, carência ou excesso – tem a fenomenologia como uma ciência potencial para a realização de seu conhecimento.

Portanto, se numa doação algo se apresentar como impossível, a fenomenologia teria condições, enquanto ciência primeira, de mostrar o que não é possível mostrar? Quando o visível é excedido, a fenomenologia poderia descrever a possibilidade de uma experiência invisível? Como descrever Deus como fenômeno possível (ideia) uma vez que depende da subjetividade transcendental como fundamento? Ou, ao lado da subjetividade transcendental, Deus seria outro fundamento da fenomenologia transcendental?

Neutralidade metafísica e consciência absoluta4: a suspensão de Deus

A exigência do método fenomenológico está na suspensão metodológica que possibilita o ver intuitivo “voltar-se” para a consciência transcendental pura. Husserl inicia no parágrafo 56 das Ideias I colocando fora de circuito a esfera da natureza (tanto física como psicofísica) e tudo o que as ciências naturais e do espírito (estado, costume, direito e religiões) possuem como configuração de objetividades individuais, pois requerem a orientação natural para a provisão de seus conhecimentos. Com isso está incluso o ser humano, enquanto ser natural e social, bem como os animais. Nesta colocação fora de circuito, o mundo e o eu empírico passam aparecer como resíduos fenomenológicos ao eu transcendental, oferecidos numa “espécie própria de transcendência – não constituída – como uma transcendência na imanência” (HUSSERL, 2006, p.132). O eu transcendental5 se firma como necessário e impossível de ser reduzido, uma vez que é ele o fundamento que realiza todas as reduções. Ele não aparece como objeto, mas aquilo que torna possível a aparição e revelação de todo e qualquer objeto6.

Seguindo a linha de raciocínio do parágrafo 58 das Ideias, Husserl se depara com a transcendência de Deus, que não é dada em união imediata com a consciência reduzida, mas só chega ao seu “conhecimento de maneira bastante mediada, como que no pólo oposto da transcendência do mundo” (HUSSERL, 2006, p. 133). Mas, como se dá essa maneira mediada? Acontece que a transcendência do mundo é dada imediatamente, pois se mostra em correlato intencional na consciência pura (transcendência na imanência). Ali a classificação descritiva, pela qual as ciências podem realizar seus conhecimentos na consciência absoluta, deve-se a certo tipo de “nexo fático” entre os vividos da consciência em seu ordenamento, e sua materialidade pode ser tratada de modo formal e inferior pela matemática. Não obstante, em todo este processo de classificação e descrição está implicada uma “admirável teleologia”, pois todas as ciências se direcionam para suas respectivas finalidades teóricas ou práticas, ainda que, de um lado, “a racionalidade realizada pelo fato não é aquela inserida pela essência” (HUSSERL, 2006, p. 133), e de outro lado, porque a investigação de todas as teleologias das ciências ainda está por ser realizada, pois a teleologia inserida nelas tende a crescer infinitamente, ultrapassando aquilo que é assumido pelo dado fático de seus conhecimentos objetivos. Mas tudo isso é pertinente a vida da consciência, que pode ser descrita através de uma análise intencional que revelará as potencialidades implicadas nas atualidades desta vida racional e efetiva.

A transcendência de Deus não se trata de alguma objetividade do qual se pode contemplar na imanência da consciência pura em correlação intencional, tomando-a de modo imediato. A possibilidade de tratar Deus fenomenologicamente é mediado a um questionamento pelo fundamento da facticidade da consciência constituinte que corresponde a estas teleologias (Cf. HUSSERL, 2006, p.134). A pergunta não é pelo fato propriamente dito, “mas o fato como fonte de possibilidades e efetividades de valor crescendo ao infinito, que obriga a perguntar por esse ‘fundamento’ – que não tem, naturalmente, o sentido de uma causa-material” (HUSSERL, 2006, p.134). Deus apareceria mediante a pergunta pelo fundamento teleológico das ciências, como a própria orientação humana racional de esforço por atualizar-se, realizar sua essência, tornar-se verdadeira, no telos em que todo seu esforço é direcionando para o verdadeiro Ser, que é a razão absoluta ou Deus. Portanto, a luta do homem por seu telos7 é a intencionalidade em desenvolvimento interminável (Cf. BRAINARD, 2002, p. 17). Por esse motivo, no momento em que a fenomenologia transcendental leva a uma teleologia na qual o ego é subordinado a realizar uma obra, deve-se perguntar se a subjetividade transcendental pode ser o único fundamento. Para Jocelyn Benoist, a questão a saber é se esta obra é no sentido forte do termo – saber se ela excede o ego, ou se existe algo a mais que um ídolo – além do ego como princípio único e absoluto (Cf. BENOIST, 2019, p. 39).

Deus é “um ‘absoluto’ num sentido totalmente diferente do absoluto da consciência, assim como, por outro lado, um transcendente num sentido totalmente diferente do transcendente no sentido do mundo” (HUSSERL, 2006, p. 134). No entanto, ainda que Deus apareça como diferente, ele é a possibilidade de responder a pergunta pela finalidade da razão humana, seu esforço de realizar-se essencialmente, em sua busca de sentido. Mesmo assim, nesse parágrafo 58, Deus deve ser colocado fora do circuito, pois sendo Deus uma transcendência diferente do transcendente de qualquer objeto, não pode ser investigado no campo da consciência pura de suas Ideias I. Benoist, ao analisar este parágrafo constata um impasse: “Deus não pode ser transcendente à maneira de qualquer objeto, mas no final sua transcendência não excede a do objeto, porque permanece ordenada ao caráter absoluto do sujeito” (BENOIST, 2019, p. 38). Para Benoist, é possível que cada um que leia este parágrafo fique tentado a estender o julgamento de Levinas que diz que “é muito difícil levar a sério” estas breves indicações sobre Deus que Husserl trata ali. No entanto, pela necessidade interna e coerência de seu próprio pensamento nas Ideias I, Deus é colocado em suspensão por não ser dado de imediato à consciência. Não se trata aqui de desconsiderá-lo enquanto possibilidade, uma vez que parece ser um tema central do qual Husserl se interessa e se propõe dar um tratamento adequado8.

A fenomenologia transcendental de Husserl abriu a possibilidade de se colocar como filosofia primeira em busca da fundamentação e de princípios, partindo do que está dado intuitivamente para a subjetividade transcendental e somente conhecida reflexivamente. Até mesmo Deus, se quisesse conhecer sua consciência, só poderia alcançá-la reflexivamente (Cf. HUSSERL, 2006, p. 179). Deus aparece no questionamento e sua resposta deve ser revelada na reflexão dada pela subjetividade transcendental. Entretanto, ao contrário de procurar Deus como uma causa de seu ser, no momento que a subjetividade quer conhecer Deus, e Ele se manifestando em uma transcendência diferente – enquanto um desenvolvimento teleológico dos conhecimentos e ciências da(s) subjetividade(s) – como apareceria em doação intuitiva?

A operação de minha consciência não significará, assim como o alter ego, que eu invente ou fabrique essa suprema transcendência. Mas se eu não ‘invento’ a Deus, como posso concebê-lo em sua radicalidade, se seu ser não precede o meu, mas se origina nele? (BENOIST, 2019, p. 39).

Do mesmo modo, se a intuição exige que algo seja dado para o preenchimento de um fenômeno para que possa haver sentido, então “qual fenômeno, dado na intuição, fará sentido para Deus?” (BENOIST, 2019, p. 35). Deus não é dado imediatamente na intuição, pois sua realidade “excede o fenômeno e, portanto, os recursos fenomenológicos” (BENOIST, 2019, P. 35). Assim, cabe investigar como se manifesta Deus na estrutura do pensamento de Husserl, especialmente nos escritos que tratam exclusivamente do tema.

Jocelyn Benoist: Deus nos textos inéditos de Husserl

No artigo “Husserl além da onto-teologia?” Jocelyn Benoist procura a partir dos manuscritos inéditos de Husserl, compreender a relevância destes textos para o alcance e o significado do conceito de Deus no sistema fenomenológico, bem como, a implicação e a distância com a metafísica clássica, chamada de onto-teologia. No sistema fenomenológico, Deus seria um fundamento ao lado da subjetividade transcendental. Benoist apresenta estes manuscritos nos quais Deus aparece num entrelaçamento dos conceitos a seguir, como: a) Enteléquia; b) Mônada; c) Eticidade; d) Transcendência, alteridade. Resumidamente cada um deles na forma que são colocados neste artigo.

a) Deus como enteléquia: Viu-se acima que Husserl trata o desenvolvimento humano (conhecimento, ciências e a própria subjetividade) em prol de uma teleologia, na direção de uma finalidade específica. Para Husserl, o eu não pode ser fabricado, mas desenvolvido em constante liberdade e motivação interna que, em termos absolutos e intersubjetivos, seria o desenvolvimento das mônadas em relação empírica constante com o mundo como um lugar objetivado ou objetivável – e isto é para todos os eus (Cf. HUSSERL apud BENOIST, 2019, p. 40). Mesmo que alguém não saiba disso ou duvide que exista essa finalidade, ainda assim está trabalhando nesse processo de realização de sua própria essência racional. Logo, surge a questão pelo fundamento desta finalidade – “faktum da racionalidade”, que por si só está inserida num trabalho infinito e indeterminado, que não se trata de um sentido causal-material, mas a possibilidade de um ser “extra-mundano” oculto em todo esse processo teleológico. “Deus se afirma como princípio oculto da fenomenologia transcendental nos textos de Husserl de natureza teleológica. Ali é definido essencialmente como “enteléquia” em conformidade com a tradição aristotélica” (BENOIST, 2019, p. 39). Para Aristóteles, cada ente na natureza está em movimento e em processo de desenvolvimento na direção da realização de sua enteléquia (ser em ato – potencial absoluto – realização plena). Com a influência de Leibniz, Husserl “assume os quadros do naturalismo aristotélico, mas para dar a eles um significado verdadeiramente transcendental” (BENOIST, 2019, p. 42).

Nesse sentido, “se Deus é enteléquia do ente, para a qual o ente é, então é do ente como subjetividade” (BENOIST, 2019, p. 42). A matéria aristotélica é tomada como camada sensual (hylé) da própria consciência intencional subjetiva no processo constitutivo que estrutura a teleologia. Deus anima (constitui) a matéria, fazendo “isso no sentido em que a intencionalidade anima a camada sensual da consciência” (BENOIST, 2019, p. 42). Assim, a própria consciência tem Deus como enteléquia em seu trabalho constituinte (sintética), uma vez que o todo constituído por ela, como realização plena – o todo do ser que tem Deus como ideia – é feito em Deus que é totalidade deste processo.

b) Deus como mônada: “Deus também é determinado como enteléquia por Husserl no contexto metafísico de uma monadologia, formalização metafísica da ideia de uma constituição universal” (BENOIST, 2019, p. 42). Na subjetividade transcendental, como mônada, realiza-se a constituição do mundo como tempo imanente e do corpo. A mônada está em conexão se comunicando com as outras mônadas, que constituem, nesta relação no mundo, como um todo unitário. Deus é a atualidade do resultado da constituição das infinitas consciências em conexão, não enquanto resultado da soma das partes constituídas das mesmas, mas na unificação das mônadas como constituição de uma mônada suprema (Cf. BEJARANO, 2019, p. 126-127). Deus orienta a pulsão volitiva das mônadas em vista de seus ideais absolutos. “Deus não é de modo algum o inteiramente outro, pois ele só pode ser pensado na forma do ego. Um análogo ao ego finito, mas que por sua vez é responsável pela constituição universal das mônadas” (BENOIST, 2019, p. 43).

Assim, na ontologia husserliana, o ser da consciência deve ser tratada como vontade, uma vez que Deus não é apenas a ideia de uma consciência universal, mas o princípio realizador da própria consciência que constitui coisa e mundo enquanto são (Cf. BENOIST, 2019, p. 43-44). Para Husserl, a consciência unificadora não precisa ser absorvida pelas mônadas individuais, pois é um excedente de consciência que lhe caracteriza, descoberta mediada ao desenvolvimento de sua constituição universal e teleológica presente na vontade das mônadas, nas aspirações de sua realidade. “Deus não é senão a vontade das próprias consciências em relação a Deus. Ele é a unidade como unificação” (BENOIST, 2019, p. 45).

c) Deus como eticidade: Mas como essa especulação, que mais se parece como um “panteísmo da vontade”, pode ser traduzida como a experiência de Deus num estado de eventos fenomenológicos? Benoist sublinha a influência de Fichte no pensamento de Husserl, pois Deus é a absolutização das aspirações monádicas, que pode levar adjetivos como “ser perfeito”, “ideia de vida perfeita” no horizonte de uma consciência ética (Cf. BENOIST, 2019, p.46). Deus não pode ser reduzido ao todo das subjetividades, pois Ele é para esse todo sua ideia. A transcendência de Deus como ideia é a transcendência de um além, infinito. O problema é como esse além infinito pode ser dado em uma “doação originária”. Husserl vai procurar elaborar isso a partir do conceito de “dever absoluto” (absolutes sollen).

Para Husserl, o mundo não é desprovido de sentido e cada mônada procura efetivar-se racionalmente no cumprimento de um dever absoluto que lhe é dirigido individualmente, mas também em comunidade. Aqui o dever-ser vem antes do ser, pois antes de pensar em realizar-se, a mônada já está submetida no processo de desenvolvimento de si própria, e seus atos somente podem ser vistos como suficientes e em aperfeiçoamento, quando seguem os valores que estão relacionados ao dever absoluto na ética. No entanto, é necessário perguntar: existe uma autodoação (Selbstgegebenheit) possível deste dever absoluto? (Cf. BENOIST, 2019, p. 52). Esta autodoação é insuficiente como objetiva, de modo que torna impossível sua autodoação imediata. Benoist destaca que a noção de dever absoluto é incapaz de salvar a fenomenologia do imanentismo caso não pudesse revelar a estrutura da própria fenomenalidade.

d) Deus como transcendência, alteridade: a estrutura da fenomenalidade do dever absoluto é encontrada na intersubjetividade. “Para Husserl, a comunidade é o lugar concreto da manifestação da subjetividade total (em outras palavras, Deus): [...] ‘a vontade divina que pressupõe a intersubjetividade como uma camada estrutural sem a qual esta vontade não poderia ser concreta’” (BENOIST, 2019, p. 53). Husserl faz uma diferença entre dois tipos de transcendências: a radical e a dos “outros”. Enquanto a primeira tem a ver com a experiência interna do tempo na qual a consciência sai de seu centro e se transcende, inerente ao fluxo da própria consciência que é fundamentada com relação ao que ela “recebe” como dado novo de impressão (protensão originária), a segunda é descoberta no relacionamento dos outros. Ao lado disso, Husserl reflete sobre a relação sexual em que a consciência transcende a si mesma como pulsional, colocando a problemática da transcendência no âmbito da afetividade, pensável não em si mesma como um absoluto originário, mas como alteridade (Cf. BENOIST, 2019, p. 55-56). Assim, de modo análogo a consciência do tempo imanente que sai de si mesma num movimento em direção ao que a leva de agora em agora no presente, o eu sai de si mesmo em direção ao que lhe afeta para a sua própria constituição, na relação com o outro se constituir como ego.

O que se dá “é a comunidade, no sentido de uma comunidade originária, anterior a uma comunidade constituída e que se manifesta fenomenalmente na pluralidade. O Deus de Husserl não é outra coisa que a ideia desta comunidade” (BENOIST, 2019, p. 56). O conhecimento de Deus somente pode ser mediado pela relação entre os seres humanos, e

a universalização da razão não tem outro sentido senão a infinidade do encontro das mônadas, suscetíveis de um acordo que nunca se dá absolutamente. O ‘ponto de vista do absoluto’ não tem consistência, apenas sua investigação lhe dá um conteúdo fenomenológico (BENOIST, 2019, 58).

E a autodoação da transcendência de Deus? Para Benoist o que ainda intriga é o enigma da razão que ultrapassa a história da metafísica ocidental. E, a partir de uma investigação do fenômeno do fato da razão como uma fenomenologia do sagrado, é necessário pensar propriamente sobre o fenômeno da própria metafísica em questão.

Jean-Luc Marion e os limites da fenomenalidade: Deus e sua doação por excelência

Para Marion, toda metafísica idolátrica é uma forma de submissão de Deus às condições humanas. Na idolatria, a partir do que o ser humano experimenta, em seu desejo de compreensão, molda-se o divino, trazendo-o ao seu olhar o que não é apropriável em seu horizonte de limites. É preciso respeitar a distância (écart) entre o humano e o divino, que só pode ser revelado através do ícone que faz oposição ao ídolo, que proporciona a visibilidade do invisível (Cf. FABRI, 1997, p. 149). A fenomenologia com sua pretensão de ocupar o lugar da metafísica poderá ajudar a tratar do divino sem a necessidade de prendê-lo. Mas como pode fazer isso?

Marion parte da fenomenologia husserliana, sublinhando a intuição (Anschauung) como princípio de todos os princípios, pois ela é a “fonte de direito, justificadora por si mesma. A intuição se atesta por si mesma, e não a partir de uma razão ainda a dar. [...] Para justificar seu direito de aparecer, a intuição basta ao fenômeno, sem outra razão” (MARION, 2010, p. 41). A intuição precisa assegurar o direto de aparecer de todos os fenômenos. Em Husserl este aparecer está limitado pela ideia de um horizonte, que seria o pano de fundo do aparecimento de algo, dado para algum sujeito. Em outras palavras, não há possibilidade, na fenomenologia husserliana, de haver uma doação absolutamente incondicionada, pois o que aparece está delimitado a um horizonte e à correlação monádica constituinte. Para Marion, se a proposta da fenomenologia consiste na “libertação do aparecimento”, então essa limitação impede que o fenômeno se doe livremente a partir de si mesmo. Ademais, não é a intuição que limita a fenomenalidade, apenas que fica submetida por condições de possibilidades elas mesmas não intuitivas que estão presentes em todos os fenômenos.

A fenomenologia se condenaria assim a não cumprir quase que imediatamente o que a intuição doadora lhe fixa como seu fim próprio: libertar a possibilidade do aparecer como tal. Sublinhamos que não se trata evidentemente de considerar aqui uma fenomenologia sem Eu nem horizonte, o que imediatamente implicaria a impossibilidade mesma da fenomenologia. Trata-se, ao contrário, de tomar em consideração que, depois do ‘princípios de todos os princípios’, ‘mais alta que a efetividade está a possibilidade’ e de considerar radicalmente esta possibilidade (MARION, 2010, p. 44).

A possibilidade que Marion se refere é levar em consideração a realização da fenomenalidade numa doação intuitiva que não se condicione absolutamente ao horizonte, tampouco absolutamente irredutível a um eu constituinte. A subjetividade transcendental está sempre direcionada para a medição e apropriação do dado, para purificá-lo sobre o regime da redução fenomenológica. Marion quer libertar tudo o que se apropria do dado, inclusive a correlação que a doação tornou possível, pois sem dado não há possibilidade de correlação9. Por isso, a fenomenologia deve ir além dos seus limites, excedendo o conceito de horizonte que delimita a intuição e considerando um tipo de fenômeno que inverteria a condição de horizonte e redução, provando o que essa possibilidade quer dar. Isso é possível?

O fenômeno incondicionado e irredutível, sem horizonte de delimitação nem Eu que o constitua, Marion descreve-o como “fenômeno saturado”. Em termos gerais o fenômeno saturado seria um fenômeno que ultrapassa a capacidade receptiva, organizacional e de medida da subjetividade, pois diante deste fenômeno, ela vê mais do que poderia receber, excedendo os princípios e as categorias kantianas do entendimento. A intuição que dá esse fenômeno torna impossível a delimitação, pois não pode contê-lo. Dessa forma, o fenômeno saturado se recusa a deixar-se ver como objeto, pois acaba excedendo e anulando o poder de constituição da subjetividade. Ademais, tal fenômeno apresenta a impossibilidade de se aplicar uma síntese, pois não é a soma de suas partes. Podem ser destacados vários fenômenos que entram na definição de fenômeno saturado: admiração10, surpresa, estranheza, acontecimento, morte, amor, beleza, vida, bem, consciência, Deus...

A possibilidade de tratar a doação do fenômeno saturado se deve necessariamente ao modo como a fenomenologia lida com os fenômenos em geral. Para ela não há determinação alguma de algum a priori que condicione os fenômenos, mas o que torna possível essencialmente a sua abordagem é o a posteriori que é dado na intuição, o que é visível nesta doação11. Por isso, a fenomenologia “ganhou, contra a metafísica, o direto de usar para si mesma a ‘volta das coisas mesmas!’ – o que se poderia glosar por ‘proibido proibir’! (...) O que se mostra se justifica por este mesmo fato” (MARION, 2010, p. 89). Assim,

retornar às coisas mesmas, e eventualmente às mesmas coisas para deixá-las aparecer não mais segundo a figura de fundamento, mas segundo a doação, não mais – no caso – segundo a eficiência (ente efeito, causa sui), mas segundo o ente dado. Porque os três entes que a metaphysica specialis privilegiava, a saber, o mundo (cosmologia rationalis), o espírito finito (psychologia rationalis) e Deus (theologia rationalis), merecem, cada um a título de “coisa mesma”, que se prove a possibilidade (ou a impossibilidade) de sua aparição fenomenal; portanto, da intuição que poderia (ou não) inscrevê-los no ente dado. Esta exigência não poderia em nenhum caso ser recusada, uma vez que ela resulta diretamente da redução fenomenológica – suspender toda transcendência, precisamente para medir o que se encontra assim dado na imanência” (MARION, 2010, p. 89-90).

Deus enquanto fenômeno saturado – do tipo da revelação – aparece como um “ente dado por excelência”, identificado como uma possibilidade da própria doação. No entanto, essa “excelência não indica nem suficiência, nem eficiência, nem a primazia; ela atesta pelo contrário o fato de que ele se dá e se deixa dar mais do que todo outro ente dado. Em resumo, com “Deus”, trata-se do ente abandonado” (MARION, 2010, p. 92). A doação por excelência traz várias consequências: a) faz com que “Deus se encontre dado sem restrição, sem reserva, sem retenção. ‘Deus’ não se dá parcialmente, [...] mas ele se dá absolutamente” (MARION, 2010, p. 93). Dessa maneira, “‘Deus’ se descobre sem reserva na medida em que ele se dá sem retenção. Sua evidência se desprega então na tonalidade átona do deslumbramento” (MARION, 2010, p. 93); b) “A doação por excelência implica um êxtase fora de si, no qual o si permanece tanto mais ele mesmo quanto ele se extasia” (MARION, 2010, p. 93); c) também “o modo absoluto da presença que se segue satura todo o horizonte, todos os horizontes, de uma evidência deslumbrante” (MARION, 2010, p. 93). Segue que Deus se apresenta aqui sem alusão a um horizonte, como uma presença sem limites, que não ocupa espaço, não fixa atenção alguma, nem atrai nenhum olhar. “‘Deus’ brilha, em seu deslumbramento, por sua ausência [...] se torna invisível não apesar de sua doação, mas em virtude dessa doação” (MARION, 2010, p. 93).

A doação por excelência faz com que Deus se torne um ente abandonado em vista de sua doação por abandono. Com isso, Deus se assenta em indisponibilidade radical, uma vez que se coloca o risco de se ver negado o direito à fenomenalidade. Ou seja, os olhos humanos, acostumados a ver somente objetos, podem ignorar ao ver a doação que se abandona a ponto de se retirar e desaparecer como objeto visível. “A doação por excelência se expõe, com efeito, a parecer (por falta) precisamente porque ela se dá sem reserva (em excesso). Estranho mas inevitável paradoxo” (MARION, 2010, p. 94).

Considerações finais

Fica evidente que Deus é um fenômeno extraordinário, pois transcende a constituição subjetiva, e toda a possibilidade de uma doação objetiva é prender a figura divina na idolatria. A fenomenologia garante a dignidade da filosofia tratando este fenômeno como pura possibilidade e não efetividade. Ao realizar a função de ciência primeira, que era destinada a metafísica, a fenomenologia se vê as voltas de suas próprias limitações, e paira sobre seus recursos metodológicos a pergunta sobre seu alcance. A excelência da doação que põe Deus indisponível provoca uma carência receptiva de sua presença, pois a própria doação originária se oculta no momento mesmo que se realiza a doação, abandonando-se invisivelmente.

A carência é radicalizada e desprendida na pura transcendência do sensível, nas possibilidades que se doam em tudo o que é essencial para a realização da obra comunitária, que se preenche e se doa em excesso, apontando para a síntese da continuação do todo universal. O bem universal, expresso na doação da estrutura intersubjetiva do dever absoluto, e concisa de sua manifestação pura, efetiva-se teleológicamente no bem comum disposto da finalidade da realização racional (inter)monádica, organizada e desprendida na devolução de seu dom, agora mais aprimorado e sintético, constituindo sua obra que se direciona além de si mesmo, ou do que se presenciar como obra em continua realização.

A tese que se poderia colocar como apontamento de uma síntese é a seguinte: a carência objetiva de Deus, por parte de uma totalidade subjetiva, eleva-se para a constituição de uma síntese comunitária das mônadas na passividade radical do presente, que deve levar em consideração a manifestação ética e inclusiva na própria unidade de manifestação universal do todo como um bem, como aspiração volitiva. A base das relações intersubjetivas, verificadas intencionalmente e responsivamente por uma reflexão imparcial do que se mostra na doação de suas ações, devem ser evidentes e visíveis para a constituição absoluta que envolve o todo comunitário. O todo comunitário se desenrola num infinito que impossibilita a objetividade imediata, deixando-se abandonado invisivelmente na concretização humana de sua obra racional.

Referências

BEJARANO, Julio C.V. El Dios de Husserl: entre la creencia religiosa y idealización. In: KORELC, Martina; SANTORO, Thiago Suman (org). Husserl: questões metafísicas. Goiana: Gráfica UFG, 2019, p. 123-148.

BENOIST, Jocelyn. Critique du donné. Archives de Philosophie. Tomo 73, p. 9-27, 2010. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-archives-de-philosophie-2010-1-page-9.htm. Último acesso em novembro de 2019.

BENOIST, Jocelyn. Husserl: ¿Más allá de la onto-teología? Edición, traducción y notas de Jimmy Hernández Marcelo. Aporia Revista Internacional de Investigaciones Filosóficas. Segundo Número Especial, Santiago de Chile, p. 34-61, 2019. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/334459624_HUSSERL_MAS_ALLA_DE_LA_ONTO-TEOLOGIA_1_HUSSERL_BEYOND_THE_ONTO-THEOLOGY. Último acesso em dezembro 2019.

BRAINARD, Marcus. Belief and is neutralization: Husserl´s system of phenomenology in Ideas I. New York: State University of New York Press, 2002.

FABRI, Marcelo. Desencantando a ontologia: subjetividade e sentido ético em Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

HUSSERL, Edmund. A ideia da fenomenologia. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1986.

HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tradução de Márcio Suzuki. 6 ed. São Paulo: Ideias e Letras, 2006.

HUSSERL, Edmund. Investigações Lógicas: investigações para a fenomenologia e a teoria do conhecimento. Tradução de Pedro M. S. Alves, Carlos A. Morujão. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas: introdução à fenomenologia. Tradução Frank de Oliveira. São Paulo: Madras, 2001.

JOSÉ e Pilar. Direção: Miguel Gonçalves Mendes. Documentário: biografia, 2010. 2:08:34. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7gtRxhfcFi0&t=3221s. Acesso em dezembro de 2019.

MARION, Jean-Luc. O visível e o revelado. Tradução Joaquim Pereira. São Paulo: edições Loyola, 2010.

SACRINI, Marcus. A cientificidade na fenomenologia de Husserl. São Paulo: Edições Loyola, 2018.

ZAHAVI, Dan. A fenomenologia de Husserl. 1ª ed. Rio de Janeiro: Via vérita, 2015.

Notas

2 ZAHAVI chama atenção que não se deve considerar Husserl um fundamentalista no sentido tradicional e epistemológico da palavra. Embora Husserl busque uma espécie de fundamentação, esta não pode ser compreendida como definitiva e fechada; tampouco compreender a fenomenologia como uma ciência dedutiva, mas descritiva. “Na medida em que é um filósofo transcendental, Husserl busca uma espécie de fundamento. Ele apontaria para o fato de que uma clarificação da subjetividade transcendental consistiria em uma investigação do quadro referencial, que torna compreensível todas as outras ciências. Pois a fenomenologia transcendental investiga as condições de possibilidade para a experiência, sentido e manifestação, e, com isso, também o quadro, no interior do qual se movimentam todas as outras ciências. Apesar disso, há algo com certeza que induz fortemente em erro em designar Husserl um fundamentalista, ao menos se esse termo for usado em seu sentido epistemológico tradicional” (2015, p. 98-99).
3 “Até onde se estende o que em si está dado? Está encerrado no [âmbito do] dar-se da cogitatio e das ideações que genericamente a captam? Até onde ele se estende, “estende-se” nossa esfera fenomenológica, a esfera da claridade absoluta, da imanência no sentido autêntico” (HUSSERL, 1986, p. 30)
4 “Husserl destaca que, além de absoluta, a consciência é intencional e, nesse sentido, envolve o mundo todo (do qual é independente em sua essência mais geral), abarcando todas as transcendências em si mesma. Dessa forma, o mundo natural inteiro faz parte do campo da consciência pura, mas não como um mundo real existente em si e por si (o que foi suspenso pela epoché), e sim como correlato intencional, como noema” (SACRINI, 2018, p. 148).
5 Conforme BRAINARD (2002, p. 71), além do ego puro, Husserl considera três transcendências abertas pela redução - Deus, assim como as esferas formal-eidética e material-eidética.
6 Embora na primeira edição das Investigações Lógicas Husserl trata de uma consciência anônima (Cf. BENOIST, 2010, p. 14), e na segunda edição escreva muito pouco sobre o eu puro, e sustentando como um tema irrelevante para suas Investigações, ele reconhece a relevância desta questão para a fenomenologia. Em uma pequena parte da obra, no adendo da segunda edição, ele descreve que “o eu puro pertence essencialmente ao fato do ‘viver subjetivo’ ou da consciência. ‘Estar-consciente é a relação com o eu’, e o que nesta relação será um conteúdo de consciência. [...] “Ser eu não significa ser objeto, mas, perante todo e qualquer objeto, ser aquele para quem qualquer coisa é um objeto. O mesmo vale para a relação com o eu. Ser para a consciência significa ser objeto para um eu: este ser-objeto não se deixa, por seu turno, converter num objeto” (HUSSERL, 2015, p. 309). A obra Investigações Lógicas é conhecida também por sua neutralidade metafísica (Cf. BENOIST, 2019, p. 37).
7 Brainard alerta que para Husserl, mesmo que o ser humano não saiba, pretenda ou não essa teleologia, ele ainda assim está trabalhando para ela, pois essa teleologia domina toda e qualquer atividade e projeto de um ego, mesmo estando no âmbito da doxa dogmática ou no ceticismo. “Mas é apenas na medida em que ele está consciente e deseja seu telos, apenas na medida em que ele reflete e é responsável consigo mesmo, que ele é capaz de alcançar uma maior autocompreensão e se aproximar de sua atualização; pois, caso contrário, ele simplesmente considera o Ser um dado adquirido e se move apenas cegamente em direção ao seu objetivo mais íntimo. E é aí que entra a crença de Husserl, bem como o perigo de ceticismo. Quando o homem realmente acredita na razão, ele acredita em si mesmo; quando ele acredita, ele deseja sua atualização; e quando ele quer, ele luta para se tornar verdadeiro. Por causa disso, Husserl diz que, ao querer ser racional, o homem já é racional. No entanto, a crença na qual se baseia essa vontade de racionalidade e o consequente devir do homem não deve ser confundida com a fé religiosa” (BRAINARD, 2002, p. 17).
8 Jocelyn Benoist cita alguns depoimentos de autores, entre eles alguns alunos, além do próprio Husserl, que o pensamento de Deus na fenomenologia husserliana seria o “problema fundamental”. Por exemplo, o franciscano Van Breda, que salvou os manuscritos de Husserl após sua morte em 1938, transferindo-os de Friburgo (Alemanha) para Lovaina (Bélgica) – onde foram criados os arquivos Husserl, diz que “o problema de Deus ocupa um lugar central, e até mesmo secreto na arquitetura do pensamento de Husserl. Essa afirmação dá crédito a palavra do próprio Husserl, quando perguntado por Igarden sobre qual seria o problema fundamental da filosofia, ele respondeu: o problema de Deus, evidentemente” (BENOIST, 2019, p 35).
9 No artigo “Critique du donné”, Benoist analisa a linguagem e sintaxe do verbo dar. No sentido comum dar significa que “alguém dá algo a alguém”, pois requer um sujeito pessoal. Na fenomenologia o conceito de dado (Gegebenheit) remete, a saber, que “este dado não é dado por ninguém”, não é necessário a figura do doador. “Nesse sentido, haveria um anonimato essencial desse "dom" ao qual a fenomenologia está interessada. Este é um aspecto do chamado radicalismo do conceito fenomenológico de "dados". Esse ponto surgiu recentemente no debate contemporâneo sobre a natureza ("teológica" ou não) da fenomenologia. Dominique Janicaud suspeita Jean-Luc Marion de querer, pelo papel central que ele dá ao que chama de "doação" (que se apresenta como uma reinterpretação maximizada dos "dados" de Husserl) em sua própria fenomenologia, para indicar o pré-requisito de um corpo doador. Jean-Luc Marion respondeu perfeitamente correto, que de acordo com o conceito fenomenológico de dado ou "doação", nenhum doador é necessário. Pode-se dizer que, nessa perspectiva, o dom em si é mais radical do que qualquer doador: se existe, ele deve ser constituído fenomenologicamente desde o primeiro fato dom. O conceito de um possível "doador" depende do conceito de doação, e não o contrário” (BENOIST, 2010, p. 12).
10 “Todo fenômeno que produz admiração se impõe ao olhar na medida (mais exatamente, na desmesura) mesma em que ele não resulta de nenhuma soma previsível de quantidades parciais. Com efeito, causa admiração porque surge sem medida comum com os fenômenos que o precedem, sem anunciá-los nem explicá-los. [...] Assim o fenômeno saturado não poderia se prever a partir das partes que o comporiam por soma, [...] porque a intuição que o satura sem cessar o impede distinguir e somar um número finito de partes finitas, anulando assim a possibilidade de prever o fenômeno; [...] Em segundo lugar porque o fenômeno saturado não pode se suportar (MARION, 2010, p. 58-9).
11 “A fenomenologia ultrapassa, pois, sem ambiguidade a metafísica na medida estrita em que ela se desfaz de todo princípio a priori, para admitir a doação, originária mesmo enquanto a posteriori para quem recebe” (MARION, 2010, p. 85).

Autor notes

1 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria – RS, Brasil.
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