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O equívoco de Robert Nozick ao interpretar a questão da propriedade em Locke
Flávio Gabriel Capinzaiki Ottonicar
Flávio Gabriel Capinzaiki Ottonicar
O equívoco de Robert Nozick ao interpretar a questão da propriedade em Locke
Robert Nozick's mistake in interpreting the Locke property issue
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 3, pp. 145-153, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: Em Anarquia, Estado e Utopia (1974), Robert Nozick defende um Estado mínimo ao qual não deve ser dado o direito de redistribuir a propriedade que já foi distribuída pelos individuos. Nozick se apoia na ideia de estado de natureza tal como Locke propôs no Segundo Tratado Sobre o Governo (1689), aproveitando, inclusive, a maneira de Locke fundamentar a propriedade privada. Locke explicou o direito natural à propriedade por meio do trabalho para superar uma crítica que Robert Filmer havia dirigido a Hugo Grotius anos antes. Grotuis considerava haver, originalmente, um direito comum à posse dos bens e defendia que a propriedade privada surgiu a partir de um contrato entre os indivíduos. Filmer colocou em dúvida que um contrato para dividir a propriedade pudesse ter sido firmado entre todos ao mesmo tempo. Locke também defendia a propriedade privada a partir da propriedade comum, mas precisava superar a objeção que Filmer havia dirigido a Grotius. Nesse sentido surge a ideia de trabalho como fundamentador da propriedade privada, pois é o trabalho que a legitima em vez do contrato. Nozick, apesar de uma longa análise sobre a teoria da aquisição de Locke, em que discorre, inclusive, sobre o papel do trabalho no surgimento da propriedade privada, afirma que Locke pensava os bens naturais originalmente sem dono, quando, na verdade, para Locke eles eram propriedade comum a todos. O propósito do presente texto é elencar e avaliar algumas possíveis consequências desse pequeno equívoco interpretativo.

Palavras-chave:NozickNozick,LockeLocke,PropriedadePropriedade.

Abstract: In Anarchy, State and Utopia (1974), Robert Nozick defends a minimal State that should not redistributes property once distributed by the individuals themselves. Nozick relies on the John Locke’s state of nature idea from his work Second Treatise of Government (1689), using, also, Locke’s way to explain the private property. Locke’s explanation of the origins of the private property is based on the idea of labor because Locke needed to overcome a criticism that Robert Filmer directed to Hugo Grotius a few years before. Grotius said that there was, originally, a common right to the goods and defended that private property rises from a contract among all individuals. Filmer attacks the idea that a contract has split common property into smaller pieces because this contract could not be signed by all mankind in the same time. Just like Grotuis, Locke thought that private property came up from common property, but he needed overcome Filmer’s objection directed to Grotius. Thus, the idea of labor rises like foundation of private property, since labor legitimates it, instead of the contract. Despite a large analysis about Locke’s theory of acquisition, where Nozick even discusses the role of labor in the emergence of private property, Nozick affirms that Locke thought original property unowned when, in fact, for Locke it was a common property for all people. The purpose of present paper

Keywords: Nozick, Locke, Property.

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Artigos

O equívoco de Robert Nozick ao interpretar a questão da propriedade em Locke

Robert Nozick's mistake in interpreting the Locke property issue

Flávio Gabriel Capinzaiki Ottonicar1
Universidade Federal de São Carlos, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 3, pp. 145-153, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 12 Maio 2020

Aprovação: 25 Setembro 2020

O equívoco interpretativo de Nozick

Nozick (1991, p.193) afirma que Locke tentou “formular um princípio de justiça na aquisição de um bem”, e, para explicar como Locke fez isso, ele o filósofo britânico julga “os direitos de propriedade em um objeto sem dono como originário do fato de alguém misturar seu trabalho com o mesmo” (NOZICK, 1991, p.193-194, grifo nosso). E precisamente aí reside um equívoco interpretativo da explicação Lockeana da propriedade privada. No próximo tópico será analisado como Locke explica a origem da propriedade privada e, em seguida, quais as consequências argumentativas desse pequeno equívoco cometido por Robert Nozick.

Publicado em 1974, Anarquia, Estado e Utopia, de Robert Nozick, tem como tema central, como o próprio autor esclarece no prefácio, “a natureza do Estado, suas funções legítimas e suas justificações” (NOZICK, 1991, p.9). O texto de Nozick é dedicado a defesa de teses libertarianas fundamentadas na suposição de que os seres humanos têm direitos (que podem ser chamados de “naturais”), e que, por isso, o Estado não pode ultrapassar uma área muito restrita de atuação, sem violar esses direitos.

Para analisar a origem do Estado, Nozick recorre à ideia de estado de natureza como foi defendida por Locke no Segundo Tratado Sobre o Governo (obra publicada em 1689). Nozick (1991, p.23) reconhece que “a descrição inteiramente precisa do ambiente moral [do estado de natureza], incluindo a descrição exata da teoria moral e sua base subjacente” é uma “tarefa crucial” que deixa um “vasto abismo” quando se parte da suposição do estado de natureza para compreender o Estado político. Embora Nozick note que o Segundo Tratado de Locke não forneça a descrição do ambiente moral do estado de natureza, ele mesmo se abstém de tentar descrevê-la sob a justificativa de estar seguindo a “respeitável tradição de Locke”.

Assim, se no contexto de Locke a evocação da lei da natureza e o estado de natureza carregava um significado de rompimento com a tradição2, Nozick se baseia nos mesmos argumentos para seguir o que ele chama de “respeitável tradição de Locke”. Portanto, nesse sentido, o apelo ao estado de natureza e à moralidade de tal estado (representada pela lei da natureza3), é flagrantemente oposto nos dois casos. Enquanto Locke usava essas ideias para romper tradições, Nozick utiliza as mesmas para perpetuá-las.

Mas é na parte em que trata da justiça distributiva que Nozick cometerá o deslize interpretativo de que este artigo trata. No capítulo 7 de Anarquia, Estado e Utopia, Nozick ataca a ideia de justiça distributiva como uma das razões que justificariam um Estado com maior amplitude de atuação. Para o autor, aquilo que está distribuído é “produto de muitas decisões individuais que os diferentes indivíduos envolvidos têm o direito de tomar” (NOZICK, 1991, p.171). Assim, o próprio Estado teria o poder de “redistribuir” os bens. “Redistribuir” porque os bens já foram distribuídos pelos próprios indivíduos, no uso de sua liberdade. Portanto qualquer redistribuição seria negadora da liberdade dos indivíduos, pois

é uma questão tão aberta se a redistribuição deve ocorrer, se devemos fazer mais uma vez o que já foi feito [pois] não estamos na situação de crianças que receberam fatias de bolo das mãos de alguém que, nesse momento, faz ajustes de última hora para corrigir o corte desigual da guloseima (NOZICK, 1991, p.170)

Segundo Nozick, no que se refere à propriedade, a justiça se configura em três ocasiões, são elas: a justiça na aquisição de um bem; a justiça na transferência de um bem de um indivíduo para outro; e a reparação nos casos em houver injustiça em uma das duas primeiras ocasiões (NOZICK, 1991, p.171-173). Para o propósito deste trabalho, é essencial o primeiro dos três tópicos em que justiça se manifesta em termos de propriedade, ou seja, a justiça na aquisição, que, segundo Morresi (2002, p.290, grifo nosso) “nada mais é senão uma versão enfraquecida da cláusula lockeana segundo a qual poderíamos apropriar-nos do que fora comum”. Seria uma versão enfraquecida porque enquanto para Locke o limite é dado pela necessidade de deixar tanto e tão bons bens aos demais indivíduos de forma que a apropriação privada de um não implique restrição para os outros (LOCKE, 2005, p.409, §27); para Nozick, (1991, p.195-198) a limitação da apropriação individual do bem original se traduz em que esta não pode deixar os outros em situação pior do que aquela em que estavam antes da apropriação.

Assim como Locke, Nozick defende que o Estado é resultado da necessidade de proteção à propriedade. Mas no argumento do pensador norte-americano, o Estado deve proteger o que foi espontaneamente distribuído e não deve se arrogar o direito de redistribuir os bens. Pois a distribuição é justa se respeitar os três mecanismos anteriormente citados, inclusive o mecanismo da reparação de possíveis injustiças.

Nozick (1991, p.193) afirma que Locke tentou “formular um princípio de justiça na aquisição de um bem”, e, para explicar como Locke fez isso, ele o filósofo britânico julga “os direitos de propriedade em um objeto sem dono como originário do fato de alguém misturar seu trabalho com o mesmo” (NOZICK, 1991, p.193-194, grifo nosso). E precisamente aí reside um equívoco interpretativo da explicação Lockeana da propriedade privada. No próximo tópico será analisado como Locke explica a origem da propriedade privada e, em seguida, quais as consequências argumentativas desse pequeno equívoco cometido por Robert Nozick.

Origem da propriedade privada segundo Locke

É sobretudo no capítulo V do Segundo Tratado Sobre o Governo que Locke explica a origem da propriedade privada. Logo no início do capítulo, Locke deixa claro que sua intenção é “mostrar de que maneira os homens podem vir a ter uma propriedade em diversas partes daquilo que Deus deu em comum à humanidade, e isso sem nenhum pacto expresso por parte de todos os membros da comunidade” (LOCKE, 2005, p.405-406, §25, grifo nosso). Esta citação, quando olhada de perto, já mostra o erro de Nozick, que será mais bem explicado a seguir.

Há um elemento fundamental na defesa que Locke faz da propriedade privada: ela existe no estado de natureza ainda que sem o consentimento dos demais indivíduos. Mas por que razão o consentimento dos demais indivíduos seria importante para a aquisição privada de uma propriedade? A resposta é clara: isso ocorre porque os demais indivíduos são originalmente coproprietários de todos os bens existentes na terra. Locke foi preciso ao afirmar que é possível a propriedade privada “daquilo que Deus deu em comum à humanidade (LOCKE, 2005, p.405-406, §25, grifo nosso). Ou seja, ao contrário do que afirmou Nozick, a possibilidade de apropriação privada ainda no estado de natureza não se dá “em um objeto sem dono” (NOZICK, 1991, p.193-194) mas naquilo que é propriedade de todos.

Locke escreveu os Dois Tratados Sobre o Governo para refutar as teses absolutistas de um escritor muito popular em sua época, Robert Filmer. Embora no Primeiro Tratado o enfrentamento às ideias de Filmer apareçam com mais clareza, no Segundo Locke se dedicou mais a propor sua própria explicação da origem, fundamentos e extensão do poder político. Alguns comentadores chegaram a supor que o Segundo Tratado fosse dirigido contra Hobbes, em vez de Filmer, mas hoje a opinião predominante é de que o alvo de Locke tanto no Primeiro quanto no Segundo Tratado era de fato Robert Filmer5.

E certamente não foi por acaso que Locke deu tanta ênfase, já nas primeiras linhas do capítulo do Segundo Tratado em que trata da propriedade privada, em deixar claro que seu propósito era justificar a propriedade privada no estado de natureza sem que preciso fosse o consentimento dos demais indivíduos. Era Filmer que Locke tinha mente aqui.

No texto Observations Concerning the Originall of Government, de 1652, Filmer havia refutado a ideia de que a propriedade privada pudesse ser resultado de um contrato firmado por todos os coproprietários originais. Filmer encontrou essa ideia em Grotius.

Grotius, em O direito da guerra e da paz, de 1625, propunha que a terra e os bens naturais foram dados a toda a humanidade em comum. Assim, originalmente nenhum indivíduo possuía qualquer direito à propriedade privada. Entretanto, este “estado primitivo da comunidade de bens” (GROTIUS, 2005, p.313) foi substituído pela possibilidade da apropriação privada dos bens. A copropriedade original “poderia ter durado se os homens tivessem vivido na prática de mútua e perfeita caridade” (GROTIUS, 2005, p.310), porém, segundo Grotius, a ambição rompeu a concórdia da propriedade comum original (GROTIUS, 2005, p.313).

Aparentemente, só seria possível derivar a propriedade privada a partir da propriedade comum se todos os coproprietários consentissem na divisão dos bens. Por isso Grotius defendeu que a propriedade privada nasceu por meio de um contrato entre os coproprietários6, para ele, a propriedade privada é “resultado de uma convenção, seja expressa através de partilha, seja tácita através, por exemplo, de ocupação” (GROTIUS, 2005, p.314).

Filmer atacou a explicação de Grotius sobre a origem da propriedade privada de uma maneira tão incisiva que obrigou Locke a procurar outra saída para explicar a propriedade privada a partir da propriedade comum, que representa a igualdade natural entre os indivíduos. Segundo Filmer, se todos têm o direito original aos bens naturais, tais bens só poderiam ser privatizados mediante o consentimento expresso de toda a humanidade:

Certamente foi uma rara felicidade que todos os homens do mundo, em um mesmo instante de tempo, concordaram conjuntamente em transformar a comunidade natural de todas as coisas em domínio privado, pois, sem tal unanimidade não era possível que a comunhão dos bens fosse alterada. Se um homem no mundo tivesse discordado, essa alteração teria sido injusta porque aquele homem, pela lei da natureza, tinha direito ao uso comum de todas as coisas no mundo, de maneira que, entregar a propriedade de qualquer coisa à uma pessoa significa roubar-lhe o direito ao uso comum7 (FILMER, 1949, p.273)

O argumento de Grotius de que, assim como o poder político, também a propriedade privada surgiu a partir do contrato entre todos os indivíduos, é colocado em xeque por Filmer, ao questionar que se indivíduo tem direito original à propriedade comum, qualquer indivíduo pode, a qualquer momento, descumprir o contrato que dividiu a propriedade e retomar a parte que originalmente lhe pertencia8.

Se qualquer homem no mundo, embora nunca tenha sido avarento ou egoísta, apenas mude de ideia, ele retomará seu direito natural ao coletivismo dos bens e a sua liberdade. Consequentemente, apropriar-se-á do que lhe agrada e fará o que bem quiser. Quem pode afirmar que tal homem está mais do que correto? E assim será lícito para todo homem, quando quiser, dissolver todo o governo e destruir todas as propriedades (FILMER, 1949, p.274)

Fica agora mais claro o motivo pelo qual Locke inicia o capítulo sobre a propriedade no Segundo Tratado com a seguinte afirmação:

Não me contentarei em responder que, se é difícil conceber a propriedade, com base na suposição de que Deus deu o mundo a Adão e à sua descendência em comum, é impossível que qualquer homem, a não ser um monarca universal, tenha qualquer propriedade [...] esforçar-me-ei para mostrar de que maneira os homens podem vir a ter uma propriedade em diversas partes daquilo que Deus deu em comum à humanidade e isso sem nenhum pacto expresso por parte de todos os membros da comunidade (LOCKE, 2005, p.406, §25, grifo nosso)

Ou seja, Locke muito provavelmente tinha clareza da necessidade de responder à crítica que Filmer fez à teoria de Grotius. E a saída que Locke encontra para superar o argumento de Filmer sem repetir Grotius é precisamente propor a propriedade privada baseada no trabalho.

Locke, como Grotius, acreditava que originalmente havia propriedade comum da terra: “Deus, que deu o mundo aos homens em comum” (LOCKE, 2005, p. 406, §26). Porém, como os bens existem para suprir necessidades humanas, era preciso que de alguma forma e em algum momento esses bens comuns pudessem ser transformados em propriedade individual: “é, contudo, necessário, por terem sido essas coisas dadas para uso dos homens, haver um meio de apropriar parte delas [...] para que possam ser de alguma utilidade ou benefício para qualquer homem em particular” (LOCKE, 2005, p.407, §26). E se é preciso que haja um meio para tornar o bem comum propriedade particular de um único indivíduo, esse meio é o trabalho que incide sobre o bem:

Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa [...] o trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriedade dele (LOCKE, 2005, p.407-409, §27)

Apesar dos bens pertencerem originalmente a todos, para que exista no mundo um direito à propriedade, ao contrário da opinião de Filmer, não é necessário haver consentimento de todas as pessoas. Isso por que, para Locke, o mero ato de apanhar um fruto ou abater uma caça já configura o trabalho necessário para conferir o direito de propriedade privada.

Como fica claro, diferentemente do que afirmou Nozick, para Locke a propriedade privada não nasce daquilo que originalmente não tinha dono, mas daquilo que originalmente pertencia a todos. Analisaremos em seguida as implicações teórico argumentativas desse equívoco de Nozick na defesa que o próprio Nozick faz do direito à propriedade privada.

Consequências teórico argumentativas do equívoco de Nozick

Como mencionado, a teoria de Nozick (1991, p.173) supõe que a aquisição de propriedade deve ser sancionada pelo “princípio de justiça na aquisição” e, ainda segundo o autor, os “indivíduos têm direitos” (NOZICK, 1991, p.9). Dito isto, a pergunta que fica é: por que, aos indivíduos que têm direitos, não foi reconhecido o direito à propriedade original comum, se a própria aquisição individual deve respeitar um princípio de justiça? Ou seja, os indivíduos têm direitos naturais, mas não têm o direito natural à copropriedade da terra. Ainda assim, quando, em estado de natureza, um indivíduo resolve se apropriar de algo, ele deve observar se sua decisão não deixará ninguém em situação pior. A resposta parece ser que Nozick acreditava que os indivíduos têm direitos frente ao poder do Estado, mas não têm direitos frente àqueles que se apressaram em tornar-se proprietários dos bens que estavam originalmente disponíveis a todos.

Locke justificou a propriedade privada pelo trabalho porque, primeiramente, se repetisse o argumento de Grotius de que a propriedade privada se deu através de contrato, não teria superado a objeção que Filmer dirigiu contra o pensador holandês. Em segundo lugar, Locke recorreu ao trabalho como gerador da propriedade privada porque acreditava, assim como Grotius, na igualdade original de todos os indivíduos. Além da igualdade original política, manifesta na ausência de direitos naturais especiais ao exercício do poder político, há também em Locke uma espécie de igualdade original que poderia ser chamada de “econômica”, representada pelo fato de Deus ter doado o mundo aos seres humanos em comum. A copropriedade do mundo, além de tornar os indivíduos iguais do ponto de vista econômico, torna ainda os indivíduos iguais em direitos, no direito de ser o proprietário do mundo. Portanto, para Locke, os indivíduos são iguais por terem originalmente os mesmos direitos, em vez não terem direito algum.

A diferença entre ter e não ter originalmente direito à copropriedade do mundo consiste em que, se o mundo pertence a todos, em princípio tenho o direito de impedir que o outro de tudo se aproprie para si, além de exigir que essa apropriação não me seja danosa; de outra forma, se o mundo não pertence a ninguém, não tenho direito de impedir que o outro dele se aproprie como bem entender, desde que isso não me prejudique; por isso, seria no mínimo prudente que eu me apresse em ser o primeiro a me apropriar da maior quantidade de bens ou da maior extensão de terra possível. Nozick, portanto, enfraqueceu o papel do outro, através da necessidade de consentimento, no processo de apropriação individual.

No caso dos bens sem dono, não é preciso justificar sua apropriação, nem pelo contrato, nem mesmo pelo trabalho. Ao se apropriar daquilo que não pertence a ninguém, não se comete, do ponto de vista do direito, qualquer injustiça contra quem quer que seja. Assim, não seria necessária qualquer justificativa muito elaborada para apropriação individual, pois um possível direito dos demais indivíduos de reclamar a má distribuição seria menos significativo9. Esse dado também inviabilizaria o terceiro tópico da justiça na distribuição de propriedade, que se refere à reparação de uma possível injustiça na distribuição dos bens. A injustiça se dá mediante fraude, roubo, violência ou coisas do tipo; mas a mera apropriação original enquanto tal – desde que respeitado o “princípio de justiça na aquisição” – não representa ferir o direito de outrem. Além disso, afirmar que o bem natural originalmente não tem dono pode sugerir que esse bem não era útil ou necessário para a conservação de ninguém e por isso não suscitava interesse. Portanto, apropriar-se de um bem que não tinha dono é apropriar-se de um bem que não fazia falta a nenhum outro indivíduo e, por isso, sua apropriação individual não piora a situação de ninguém e não pode nunca ser reparada.

Nozick afirma que a distribuição original da propriedade é “produto de muitas decisões individuais que os diferentes indivíduos envolvidos têm o direito de tomar” (NOZICK, 1991, p.171). Entretanto, se a propriedade originalmente não pertence a ninguém, essas decisões referem-se apenas a adquirir ou não adquirir; adquirir mais ou adquirir menos bens; ou ainda, adquirir uma área maior ou menor. Se, por outro lado, a propriedade originalmente pertence a todos em comum, as decisões tomadas pelos indivíduos referem-se não apenas ao que foi enumerado acima, mas também a consentir que o outro adquira tudo o quanto deseja adquirir. Portanto, nas palavras de Morresi (2002, p.293), Nozick passa “por cima do consentimento” que teria que ser levado em conta caso a propriedade originalmente fosse considerada comum a todos.

O elemento “consentimento” perderia força em um estado de natureza tal como imaginado por Nozick. Isso significa que a coparticipação de todos os indivíduos nas decisões do que pode ser feito os bens originais também é diminuída. Ao diminuir ou anular a importância do consentimento, Nozick diminui a importância do outro e reduz a apropriação a um processo que, de alguma forma, está mais restrito e diz respeito a uma só individualidade.

Entretanto, diminuir a relevância do consentimento não significa que Nozick não leve em conta os outros indivíduos no que diz respeito à justiça na aquisição. Como afirma Morresi (2002, p.290), Nozick leva em consideração a “cláusula lockeana” de limitação do direito de aquisição, apresentando uma versão “enfraquecida” da mesma. Enquanto para Locke o indivíduo em estado de natureza poderia se apropriar do tanto necessário para sua conservação desde que deixado tanto e de tão boa qualidade para os demais (LOCKE, 2005, p.409, §27); para Nozick, o limite para que a aquisição original seja considerada justa é que ela não deixe os demais indivíduos em situação pior do que aquela em que estariam caso o bem permanecesse sem dono (NOZICK, 1991, p.195-198).

Como mencionado, a teoria de Nozick (1991, p.173) supõe que a aquisição de propriedade deve ser sancionada pelo “princípio de justiça na aquisição” e, ainda segundo o autor, os “indivíduos têm direitos” (NOZICK, 1991, p.9). Dito isto, a pergunta que fica é: por que, aos indivíduos que têm direitos, não foi reconhecido o direito à propriedade original comum, se a própria aquisição individual deve respeitar um princípio de justiça? Ou seja, os indivíduos têm direitos naturais, mas não têm o direito natural à copropriedade da terra. Ainda assim, quando, em estado de natureza, um indivíduo resolve se apropriar de algo, ele deve observar se sua decisão não deixará ninguém em situação pior. A resposta parece ser que Nozick acreditava que os indivíduos têm direitos frente ao poder do Estado, mas não têm direitos frente àqueles que se apressaram em tornar-se proprietários dos bens que estavam originalmente disponíveis a todos.

Considerações Finais

Finalmente, é no mínimo curioso que Nozick defenda a existência de direitos naturais, enquanto nega a existência de um direito natural à propriedade comum. Sua preocupação era, sobretudo, estabelecer limites drásticos para a atuação do Estado demonstrando a injustiça em ultrapassar direitos que seriam inerentes ao ser humano. Mas apesar de ter esboçado um ser humano com direitos frente ao Estado, Nozick não concedeu ao homem em estado de natureza qualquer direito frente aos recursos naturais, exceto aquele que garantiria não ficar em situação pior devido à ação alheia. Portanto, no mundo elaborado por Nozick em Anarquia, Estado e Utopia, há direitos frente ao Estado, mas não há direitos frente aos proprietários individuais.

No Segundo Tratado Sobre o Governo, Locke explicou o direito natural à propriedade por meio do trabalho para superar uma crítica que Robert Filmer havia dirigido a Hugo Grotius anos antes. Grotuis considerava haver, originalmente, um direito comum à posse dos bens e defendia que a propriedade privada surgiu a partir de um contrato entre os indivíduos. Para atacar essa ideia, Filmer colocou em dúvida que um contrato para dividir a posse dos bens pudesse ter sido firmado entre todos os indivíduos em um curto espaço de tempo.

Como Locke, tal qual Grotius, queria defender a propriedade privada a partir da propriedade comum, precisava, para isso, superar a objeção que Filmer havia dirigido a Grotius. Nesse sentido surge a ideia de trabalho como fundamentador da propriedade privada em Locke. É o trabalho, ligado intrinsecamente à pessoa, que legitima a propriedade privada, em vez do contrato. Por isso é claro o argumento de Locke em que o trabalho surge para que o direito original à propriedade sobreviva à crítica de Filmer.

Nozick, apesar de uma longa análise sobre a teoria da aquisição de Locke, em que discorre, inclusive, sobre o papel do trabalho no surgimento da propriedade privada, afirma, em vários momentos de Anarquia, Estado e Utopia, que Locke pensava os bens naturais originalmente sem dono, em vez de constituírem propriedade comum a todos. O propósito do presente texto foi elencar e avaliar algumas possíveis consequências desse pequeno equívoco interpretativo.

Em um primeiro momento, Locke propunha como limite para apropriação a necessidade de deixar tantos bens e de tão boa qualidade para os demais indivíduos, de modo que a apropriação por alguém não prejudicasse os demais. Nozick também defende um limite para a apropriação privada, para ele, a privatização do bem que originalmente não tem dono deve respeitar “princípios de justiça”. O limite para apropriação consiste em que o ato de privatizar um bem ou uma parte da terra, não pode deixar os demais indivíduos em situação pior do que aquela em que se encontravam antes que a apropriação individual fosse levada a cabo.

Dessa forma, pode-se apontar como consequência dessa alteração do status da propriedade original de “comum a todos” (em Locke) para “não pertencente a ninguém” (Nozick) a o enfraquecimento do papel do consentimento no processo de apropriação privada. A grande diferença reside no fato de os indivíduos portarem ou não direitos no que diz respeito ao uso da terra e dos demais bens naturais. Assim, se todos são igualmente proprietários dos bens naturais, cada um pode reclamar a apropriação alheia como sendo injusta. Por outro lado, se a apropriação alheia respeita o tal princípio de justiça na aquisição, não há o que ser reclamado pois não se possui qualquer direito sobre o bem que foi privatizado. Essa situação parece sugerir que seria no mínimo prudente que cada um se apressasse para tornar-se proprietário do maior número de bens antes que algum outro indivíduo o faça.

Pensar os bens como originalmente sem dono, além disso, não requer uma justificação muito elaborada para a privatização. Grotuis precisou recorrer ao contrato porque pensou o mundo como propriedade de todos. Locke recorreu ao trabalho pelo mesmo motivo. Assim, quando essa ideia de copropriedade é invertida para ausência de propriedade, a única restrição para a privatização dos bens sem dono é de natureza de uma moral simples que pode ser expressa pelo dito popular “onde começa o direito de um, termina o direito do outro”. Assim, a apropriação de um não pode prejudicar o outro, não pode deixar o outro em uma situação que seja, de alguma forma, pior do que aquela em que já se encontrava. Cumprido este requisito, não se reconhece ao outro nenhum direto em relação àquilo que foi tornado privado.

Nesse ponto pode-se ressaltar ainda a diferença que existe entre propor a igualdade dos indivíduos por serem originalmente portadores dos mesmos direitos, e propor a igualdade dos indivíduos por não serem originalmente portadores de direito algum10. O direito à copropriedade do mundo não permitiria uma privatização de qualquer parte da terra sem o consentimento dos coproprietários, ainda que esse consentimento seja apenas tácito. A saída que Locke encontrou para não precisar defender o consentimento foi basear o direito de propriedade no trabalho. Nozick, por sua vez, evita ter que levar em conta o consentimento supondo a propriedade original sem dono, em vez de comum. Assim, o papel do consentimento é enfraquecido na forma como Nozick supôs que se daria a relação do homem com o meio em estado de natureza.

Finalmente, é no mínimo curioso que Nozick defenda a existência de direitos naturais, enquanto nega a existência de um direito natural à propriedade comum. Sua preocupação era, sobretudo, estabelecer limites drásticos para a atuação do Estado demonstrando a injustiça em ultrapassar direitos que seriam inerentes ao ser humano. Mas apesar de ter esboçado um ser humano com direitos frente ao Estado, Nozick não concedeu ao homem em estado de natureza qualquer direito frente aos recursos naturais, exceto aquele que garantiria não ficar em situação pior devido à ação alheia. Portanto, no mundo elaborado por Nozick em Anarquia, Estado e Utopia, há direitos frente ao Estado, mas não há direitos frente aos proprietários individuais.

Material suplementar
Referências
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BERLIN, Isaiah. Two Concepts of Liberty. In: BERLIN, I. Four Essays on Liberty. Oxford: Oxford University Press. 1969.
BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Trad. Sérgio Bath. Brasília: UnB, 1997.
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GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Trad. Ciro Mioranza. 2°ed. Ijuí: Unijuí, 2005.
LASLETT, Peter. A teoria social e política dos Dois tratados sobre o governo. In: LOCKE. John. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Julio Fischer. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. 2° ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro, Jorge Zahar: 1991.
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STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Trad. Miguel Morgado. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2009.
Notas
Notas
2 A ideia de que o direito natural que emerge com os pensadores políticos da modernidade cumpre o papel de romper com a tradição é defendida por Leo Strauss em Direito Natural e História, onde afirma que “a “ideia de direito natural pressupõe [...] que se duvida da autoridade” (STRAUSS, 2009, p.74); e “a procura do modo reto ou das coisas primeiras é [...] a procura do bem por contraposição ao ancestral (STRAUSS, 2009, p.75). Nesse sentido, pode-se compreender porque para Locke o ensino da lei da natureza não faz parte da obrigação que os pais têm de educar seus filhos (LOCKE, 2005, p.443, §69); pois a lei da natureza deve ser descoberta pela razão por aqueles que já atingiram “a idade da razão” em vez de ser ensinada pelos pais.
3 Dão suporte à afirmação de que a lei da natureza é uma lei moral no pensamento político de Locke: Polin, (1969, p.1 e p.17); Ashcraft (1986, p.188) e Gough (1994, p.25).
4 Nozick propõe aqui, assim como Berlin (1969), a liberdade em seu sentido negativo, ou seja, a liberdade no sentido de estar livre da coação estatal.
5 Ratificam essa posição Bobbio (1997, p.163) e Laslett (2005, p.103)
6 Sahd (2007), assim sintetiza o argumento de Grotius sobre a origem da propriedade: “Grotius acreditou encontrar a fórmula mais idônea e correta para justificar a propriedade, a saber: a propriedade como um direito inatacável ao ser fundada numa lógica contratual que os homens deviam respeitar porque haviam consentido livre e racionalmente à sua introdução”.
7 A tradução dos escritos de Filmer é sempre nossa.
8 Observe-se que, segundo Sahd (2007), essa crítica de Filmer “não é justa com a posição de Grotius, é mesmo imprecisa [...] Grotius falou do consentimento, mas de um consentimento que podia ser manifestado expressamente segundo uma divisão pactuada que atribuísse partes aos homens, ou realizado tacitamente mediante a aceitação recíproca do que cada um ocupasse”.
9 Talvez por esse motivo Bobbio (1997, p.193-195) proponha que se pode legitimar a propriedade de duas formas: pela ocupação ou pela especificação (transformação pelo trabalho para tornar-se um item específico). Para defender o direito à propriedade pela mera ocupação, seria preciso considerar que originalmente o bem não pertencia a ninguém, já para defender o direito à propriedade pela especificação através do trabalho, seria preciso considerar que originalmente o bem pertencia a todos.
10 Ao menos no que tange à questão da propriedade, pois, para Nozick, os indivíduos têm direitos, exceto à copropriedade do mundo.
Autor notes
1 Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), São Carlos – SP, Brasil.
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