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Animalidade, loucura e biopolítica em Foucault
Animality, madness and biopolitcs in Foucault
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 3, pp. 154-163, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepção: 29 Abril 2020

Aprovação: 04 Setembro 2020

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i3.1832

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a loucura em seu aspecto mais vergonhoso da animalidade humana, particularmente da liberdade nociva e inútil. Assim, podemos encontrar na História da loucura alguns tópicos (ou alguns esboços) do que futuramente iremos designar no pensamento de Foucault como reflexões sobre biopolítica? A indagação não parece estranha se interpretarmos a loucura como grande experimento público em torno do controle da liberdade, do comedimento humano e a categoria da animalidade positiva, resultante da própria objetivação da loucura enquanto fenômeno que vincula o estado patológico e o estado animalesco.

Palavras-chave: Animalidade, Biopolítica, Loucura.

Abstract: The purpose of this article is to analyze madness in its most shameful aspect of human animality, particularly harmful and useless freedom. So, can we find in the History of Madness some topics (or some sketches) of what in the future we will designate in Foucault's thought as reflections on biopolitics? The question does not seem strange if we interpret madness as a great public experiment around the control of freedom, human restraint and the category of positive animality, resulting from the very objectification of madness as a phenomenon that links the pathological state and the animal state.

Keywords: Animality, Biopolitics, Madness.

Introdução

Segundo Vanessa Lemm, distingue-se três noções de biopolítica no pensamento foucaultiano: a primeira, presente na História da sexualidade, diz respeito a uma “transformação radical do conceito tradicional do poder soberano”; a segunda, presente em Defesa da sociedade, diz respeito a “emergência do racismo moderno” e a terceira, presente no Nascimento da biopolítica e em Segurança, território e população, diz respeito ao tipo de “governamentalidade liberal” (LEMM, 2013, p.172). Nesses textos de Foucault, encontram-se também exemplos extremos de modelos de biopolítica moderna que põem em jogo formas de vida “superiores e inferiores”, como por exemplo, a ideologia nazista. Nessa perspectiva, gostaria também de suscitar a seguinte questão: podemos encontrar na História da loucura alguns tópicos (ou alguns esboços) do que futuramente iremos designar no pensamento de Foucault como reflexões sobre biopolítica? A indagação não parece estranha se interpretarmos a loucura como grande experimento público em torno do controle da liberdade e do comedimento, como categoria da animalidade positiva, resultante da própria objetivação da loucura enquanto fenômeno que vincula o estado patológico e o estado animalesco.

Para melhor entender este argumento, gostaria de reproduzir aqui uma importante impressão de Robert Castel sobre a recepção da História da loucura em meados de 1960 nos círculos acadêmicos. Esta obra de Foucault já tinha sido reconhecida na cultura francesa como um “livro excelente”, uma “esplêndida conquista”, ressaltando-se, inclusive, a dimensão de sua “ruptura epistemológica” enquanto pesquisa histórica sobre a “natureza não-científica do conhecimento psiquiátrico” (CASTEL, 1992, p.66). Mas até mesmo este último e importante aspecto do reconhecimento não foi suficiente para transformar a experiência da loucura numa relação direta com a “prática política” (CASTEL, 1992, p.66). Ao mesmo tempo, a emergência política de maio de 1968 levou esta obra a um outro patamar de leitura e até um “contexto de ativismo político” marcado por “uma sensibilidade anti-repressiva” generalizada. Assim, as “temáticas da História da Loucura” apareceram como modelos desafiadores de toda prática da “segregação” e “tipos de exclusão” que iriam “desde asilos até prisões, de fábricas até escolas” ou de qualquer espaço que estabelece “limites para o desejo”(CASTEL, 1992, p.67). A loucura nesse novo contexto se transforma no “paradigma de uma subjetividade liberada das restrições de adaptação social”, de denúncia da “violência institucional” e do “caráter arbitrário do poder”(CASTEL, 1992, p.67).

Simona Forti relembra que Foucault, em suas últimas entrevistas, foi muito criticado sob o argumento de que sua filosofia política “não permitia espaço para resistência e liberdade”, onde tudo parecia se condensar numa “observação resignada” de que “tudo é poder”(FORTI, 2015,p.166). Ao mesmo tempo, Foucault estava decidido a se distanciar das teses ingênuas, principalmente da interpretação sartreana de que o “poder é mau” (FORTI, 2015,p.166). A questão é que não existe sociedade “sem relações de poder” e, na verdade, é preciso cada vez mais compreender o que ocorre “entre os sujeitos quando eles estão em uma relação de poder”(FORTI, 2015,p.165). Com efeito, Foucault analisa o poder com uma lente nietzschiana, pois foi “Nietzsche quem primeiro ensinou a Foucault que se deve desconfiar da representação exclusivamente coercitiva e repressiva da ideia de poder”, assim como, de persistir no entendimento do paradoxo do duplo vínculo entre as práticas de subjugação e os processos de subjetivação”(FORTI, 2015,p.165).

Foucault constatou que, historicamente, a loucura sempre embaraçou os legisladores e os reformadores sociais acerca da definição de como situá-la no “espaço social”, de defini-la corretamente entre o universo da “prisão, hospital ou assistência familiar”(FOUCAULT, 2012,p.426), assim como, a loucura foi um tema muito delicado não apenas para a Revolução Francesa, mas para os processos revolucionários que, de todo, sempre estabeleceram com ela uma “má relação”(FOUCAULT, 2012,p.427).

A natureza animalesca do louco

Essa má relação se justifica porque a loucura se “desdobra” [déploie] (FOUCAULT, 2012,p.427). Essa expressão foucaultiana se torna importante porque suscita o problema de quem é a figura do louco? No âmbito moral, o liberalismo inglês não ignorou o tema da loucura. Os cuidados para não identificar de modo injusto os indivíduos e tolerar crenças divergentes, pelo menos para a filosofia moral do início século XVIII, se tornou um debate de primeira ordem. Esse é o caso das reflexões sobre a tolerância religiosa de Pierre Bayle, onde as disputas entre “crentes” e “hereges” poderiam ser exemplificadas como casos específicos de loucura. A figura do herege poderia ser vista como um tipo de louco que acredita, obstinadamente, numa “falsa doutrina”, mas até mesmo a crença de um herege pode ser praticada com “sinceridade” e “boa fé”(BAYLE, 2005, p.583). Por outro lado, os cristãos que acreditam que Deus autorizaria o uso da força para impedir “a propagação de ideias perigosas”(BAYLE, 2005, p.583), não apenas do ponto de vista teológico como também do ponto de vista da ordem natural, se avizinham também ao louco.

Quando Hobbes diz que é “impossível fazer pactos com os animais, porque eles não compreendem a nossa linguagem” (HOBBES, 2014, p.119) não é difícil de deduzir que o louco se encontra nessa definição, especificamente naquilo que o louco tem de regressivo em sua natureza animalesca. Mas tanto os animais como os loucos compreendem bem a linguagem do castigo, uma espécie de pacto pelo “medo do castigo”(HOBBES, 2014, p.143). Ao mesmo tempo, na teoria clássica do soberano, especialmente no Leviatã de Hobbes, não são raras as descrições do reino da política como descrições patológicas, ora de uma República civil que perece “por causa de doenças internas”, ora de uma República cristã que precisa tratar de seus “doentes”(HOBBES, 2014, p.271). Em ambos os casos, o soberano age como um tipo de “arquiteto muito hábil” que é capaz de aplainar os “pontos ásperos e escabrosos”(HOBBES, 2014, p.314) do corpo natural e político, assim como de ofertar as “pílulas salutares” aos súditos que, segundo o próprio Hobbes, “quando são engolidas inteiras têm a virtude de curar, mas quando mastigadas voltam na sua maior parte a ser cuspidas sem nenhum efeito”(HOBBES, 2014, p.314).

A teoria clássica do soberano sempre foi uma teoria da animalidade. Se Foucault cita o filósofo Samuel Pufendorf no último capítulo da História da sexualidade I é porque esse autor, tanto quanto Hobbes, defendia que a submissão do animal político (o “bom cidadão”) a uma autoridade jurídica se baseava na constatação de que o homem é o animal que “ama a si mesmo” e, ao mesmo tempo, é a espécie mais “miserável dos animais” em matéria de associação com seu próximo (PUFENDORF, 1991, p.132). Segundo ainda Pufendorf, a transição da liberdade natural (estado de vícios perturbadores) para a sociedade civil não deixa de reconhecer que a animalidade humana era mesmo “repugnante”(PUFENDORF, 1991, p.133).

Repugnância que os relatórios dos intendentes, antes e durante os primeiros anos da Revolução Francesa, já evidenciam no dilema da loucura como experimento público, nem tanto pelo aspecto da “piedade esclarecida”, mas pelo lado mais vergonhoso da animalidade humana: “imbecilidade”, “furores” perigosos, liberdade “nociva” e “inútil”. Todavia, foi através da loucura que se aprendeu que as categorias da liberdade e do comedimento se ajudavam mutuamente no projeto de “semi-liberdade” não apenas do louco como também do próprio indivíduo comum (FOUCAULT, 2012,pp.438-439).

É, portanto, indubitável que o estatuto do louco se aproxima, se confunde e se mistura com o estatuto do animal: um animal indesejável que precisa ser capturado, isolado, segregado, não tolerado, estudado e usurpado. Essa é a lógica do “confinamento” descrito por Foucault no “mecanismo de segregação social no qual os loucos foram pegos”(FOUCAULT, 2013,p.155). No internamento clássico, o interesse do grande público pela loucura não deixou de se desenvolver como fascínio pelo espetáculo da animalidade: de como o homem pode ser contemplado em sua própria “bestialidade”, em sua “monstruosidade delirante”. Esse espetáculo atraia olhares pelo conteúdo daquilo que se via como “desumano”, do animal distante. A diferença é que, posteriormente, o louco vai se transformar em experimento moderno de descobertas humanas, um animal positivo, um objeto de verdade, absorvido pelo discurso da positividade. Essa reviravolta vai indicar que a relação entre o “louco” e o “não-louco” apresenta uma tênue fronteira, onde “não há mais nenhuma distância”, ambos estariam com o “rosto descoberto”(FOUCAULT, 2012,pp.438-439).

Loucura e onirismo burguês

A sociedade moderna quis, ao seu modo, proteger-se dos loucos. Não raro, a imagem social mais presente do louco esteve intimamente associada aos “animais daninhos e ferozes”(FOUCAULT, 2012,p.439). Eis, portanto, a grande questão que as teorias médicas vão lançar sobre a loucura: em meio aos desvios e desordens é possível encontrar uma “animalidade amena” no louco. Essa tese surge até mesmo antes da criação dos “hospitais para alienados”(FOUCAULT, 2012,p.439). De todo modo, esse problema da mansidão do louco colocou em evidência a situação de como o homem é um animal infeliz.

Se a loucura exigiu um estatuto público foi porque essa animalidade infeliz instaurou uma imagem antitética do indivíduo burguês privado. Na realidade, a moral burguesa privada deveria se proteger “diante da loucura”(FOUCAULT, 2012,p.443). Na figura do reformador Cabanis, bastante citado por Foucault, a loucura era vista como um problema de segurança pública. Quando Cabanis entrou em cena já era o primeiro ano da Revolução Francesa. Como tantos outros médicos ele testemunhou a desordem social, especificamente os “distúrbios camponeses”, a “queimação de igrejas”, a “pilhagem de castelos”, a “detenção” e “execução de instigadores”(STAUM, 1980, p.123). E devemos ressaltar que Cabanis conhecia muito bem as teorias do contrato social de Rousseau como também as teorias do fanatismo de Voltaire.

Se Foucault cita constantemente o nome de Cabanis é porque seu projeto de reforma trazia algumas características muito importantes para se compreender uma nova linguagem sobre a loucura. Em primeiro lugar, a loucura não pode se reduzir ao silêncio, ela precisa nos internamentos de um “vocabulário que lhe é próprio”. Em segundo lugar, ela não pode cair no esquecimento, precisa de uma memória, de uma verdade: os diários devem proliferar com total exatidão com o propósito de formular, inscrever e constituir “regiões de verdade” para a loucura. Em terceiro lugar, a loucura se inscreve no “calendário cotidiano, dos homens, no qual se aprecia a história”(FOUCAULT, 2012,p.434). Que história? A história de que a loucura podia se inscrever não mais na ordem das perturbações públicas e, sim, de que através dela se ensinaria uma nova ordem da própria existência pública.

O que descrevemos anteriormente não deixa de ser o sonho burguês de normatizar a virtude e a natureza, ou melhor, de normatizar o indivíduo por meio de uma animalidade feliz, harmônica e saudável que não se esgotou com as políticas de internamento. Esse onirismo obsessivo sofreu constantes mutações enquanto mecanismo regulador da sociedade. Para Cabanis, a experiência da loucura traz uma “imensa fonte de riquezas” para a ciência moral(FOUCAULT, 2012,p.438). Muitas das ideias reformadoras de Cabanis sugeriam uma “arte social” para aumentar a felicidade pública e promover o espírito iluminista. Seu projeto estava intimamente associado a uma necessidade de “supervisionar a educação médica”(FOUCAULT, 2012,p.439).

Desse modo, a loucura vai expor cada vez mais o problema da moralidade; dos fenômenos que animalizam o próprio homem em sua imbecilidade, seus furores, sua inútil liberdade que o torna um animal perigoso e nocivo à sociedade. Se a história da loucura é a própria história da sujeição dos loucos; essa história da sujeição não deixou de ser absorvida pelas tramas de poder, ou como diz Foucault, do “obscuro poder”(FOUCAULT, 2012,p.417). Esse tipo de poder que silencia, que recorre a solidão, afinal, é o mesmo que individualiza o louco. Em relação a isso, Foucault parece deixar claro o seguinte: não é apenas a loucura, mas o próprio poder que precisa da “trama contínua do desatino”(FOUCAULT, 2012,p.417).

Com efeito, a descrição que Foucault fez do mundo correcional na História da Loucura é muito mais ampla, complexa e movediça do que se pode supor. A realidade do regime de internamento remonta “ao grande sonho burguês de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude”(FOUCAULT, 2012,p.79). Deve-se salientar que o internamento teve motivos mercantis, afinal, a eliminação dos “heterogêneos ou nocivos” correspondia a reclusão dos improdutivos (FOUCAULT, 2012,p.78).

A moralidade do mundo correcional já não mais lutava contra as “marcas do inumano” e, sim, contra um tipo obscuro de animalidade, um tipo de animal que se revela em suas fantasias mais rudes, que se caracteriza pelo “abandono do homem a si mesmo” e as leis mais “constrangedoras de sua natureza”(FOUCAULT, 2012,p.102). Foi assim que os libertinos desconcertaram a moral burguesa no século XVIII com suas opiniões acerca da verdadeira religião. Para eles, se o homem devia se devotar a algo, essa devoção devia ser regida, unicamente, pela “lei natural”(FOUCAULT, 2012,p.98). O mundo correcional sob esse prisma teve também um aspecto “quase pedagógico” contra a animalidade libertina, mas sobretudo foi uma casa de “coação moral”. No fundo, por detrás do regime correcional nunca se escondeu um interesse pelo “homem sóbrio, moderado, casto”(LA BRUYÉRE, 2012, p.100). Foi através dessa problematização moral da loucura que se buscou uma ordem, um “equilíbrio das paixões”, um projeto de felicidade cujo animal libertino era nesse sentido um entrave, pois a liberdade dos costumes era indício de um “estado de servidão no qual a razão se torna escrava dos desejos”(LA BRUYÉRE, 2012, p.101). Um escritor como La Bruyére, também citado por Foucault, argumenta que tornar os homens melhores é “libertá-los de seus vícios”(LA BRUYÉRE, 2012, p.64). Por isso o argumento contra os libertinos de que a agitação e a excitação deveriam ser coisas a ser corrigidas no estilo artístico, pois assim como no teatro, os trajes morais precisam ser “instrutivos e decentes” e a lei natural pode ser “insolente”(LA BRUYÉRE, 2012, p.82).

Assim como no final do século XVIII o debate público em torno do tema do louco e do criminoso se estabeleceu através de uma “relação confusa de complementaridade, de vizinhança e de exclusão”(FOUCAULT, 2012,p.449), o mundo da correção da loucura e o mundo da correção do trabalho foram sonhados como formas intercambiáveis. Manter a serenidade do louco como também do trabalhador sempre foi uma problemática para os regimes asilares e para os regimes laborais.

Foucault e a sociedade da cura

Pode-se dizer que o medo é a sensação primeva do homem e do animal. Mas o medo da loucura tal como Foucault a descreve como sintoma do século XVIII é ainda algo mais peculiar na história, está intimamente associado à precariedade da razão. Sobre essa precariedade do cogito humano, a literatura médica analisada por Foucault já indica que onde existe progresso ocorre também o mal, ou melhor dizendo, o mal seria uma “doença dos nervos”. Na realidade, o homem é o animal dotado de sistema nervoso, de imaginação e de paixões, ele está, portanto, propenso mais do que outros animais ao ambiente exterior. Não é difícil de supor que o discurso médico reinventou e reivindicou para si um domínio particular sobre o mal. Evidentemente, isso é o que mostra Foucault ao dizer que a loucura foi “devolvida a uma espécie de solidão”(FOUCAULT, 2012, p.417). A solidão patologizada, com efeito, ganha terreno, fenômeno que Nietzsche já tinha denunciado em oposição ao espírito livre.

Num certo sentido pode-se dizer também que existe uma visão idílica da loucura (assim como se tem dos animais e das crianças), uma vez que o louco é o indivíduo livre de suas tarefas e responsabilidades. Mas essa visão idílica da liberdade do louco é apenas aparente. O internamento, enquanto espaço em que o louco fala, é uma advertência contra um mundo onde está em jogo a “pobreza”, a “libertinagem” e a “doença”(FOUCAULT, 2012, p.425). No fundo da história da loucura se percebe que a liberdade é um jogo perigoso. Mas novamente o discurso médico se encarrega de redimensionar esse jogo, opondo-se a visão do louco como similar aos “animais daninhos e ferozes” é preciso reconhecer uma “animalidade amena”(FOUCAULT, 2012,p.420).

Essa dicotomia entre uma animalidade maligna e uma dócil animalidade foi superada, ou melhor, foi curada? Façamos aqui uma breve incursão sobre a “sociedade da cura” que é um dos temas do filósofo germano-coreano Byung-Chul Han em seu pequeno e polêmico livro sobre Psicopolítica. Segundo Han (2015), vivemos uma nova etapa de evolução da ideologia neoliberal e suas “formas mais refinadas de exploração”. Na “otimização pessoal” da psicopolítica o homem se converte em “objeto de exploração” (HAN, 2015, p.39). E para quê? Para descobrir com eficiência e rendimento a imagem do animal feliz: que seus “bloqueios, debilidades e erros” podem ser eliminados “terapeuticamente”. Estaríamos assim diante de um novo soberano, caracterizado pela “auto-exploração total”, que não é outra coisa senão o animal feliz que “luta consigo mesmo como inimigo”, para extrair de sua natureza todos os seus “pensamentos negativos”, pois só lhe interessa as “emoções positivas”. E assim, a cura se transforma em próprio assassinato com toda sua “violência da positividade”(HAN, 2015, pp.40-41).

Por outro lado, Han empreende sua reflexão através de um diálogo crítico com o pensamento de Foucault. Para Han, o filósofo francês se aferrou por demais aos conceitos de biopolítica e população e deixou escapar o fato de que para o novo neoliberalismo já não conta tanto o “biológico”, o “somático”, o “corporal” e, sim, de que se otimiza processos psíquicos e mentais como forças produtivas, cujo desenvolvimento se baseia em formas imateriais e incorpóreas. Em outras palavras, a reflexão foucaultiana sobre o neoliberalismo no final dos anos setenta não conseguiu realizar o “giro para a psicopolítica”(HAN, 2015, pp.40-41).

Não há dúvidas de que o argumento geral de Han é bastante instigante para se problematizar as novas formas de subjetivação, ou para ser mais preciso, as novas formas neoliberais de animalidade. Contudo, a questão é: o argumento de Chan é assim tão original sobre o animal feliz? Nesta época de deslumbramento enganoso e perigoso em relação à felicidade, não seria o caso de empreender também uma leitura mais política da História da loucura? O método de Han acaba por se enredar nas teias cartesianas ao separar corpo e alma na psicopolítica. Embora seja essa a promessa do neoliberalismo (e como o próprio Han descreve tão bem ao analisar os “centros de fitness”, das “cirurgias plásticas”, dos “sexness” como recursos econômicos), a ilusão estaria no fato da psicopolítica não analisar a função do corpo no próprio neoliberalismo.

O “tratamento humano dos alienados” já era uma descoberta científica e política de que a liberdade controlada podia “metamorfosear-se”(FOUCAULT, 2012,p.423).O que Byung-Chul Han chama de violência da positividade por intermédio da otimização psíquica como força produtiva, Foucault já havia delineado o argumento de que o tratamento das “formas psicológicas e morais” da loucura serviram de base para justificar a ideologia do trabalho como arquétipo da felicidade: a cura contra a doença e a pobreza. Aliás, são esses arquétipos que, de certo modo, alimentam a fantasia de que a “sociedade burguesa” se sinta sempre “inocente”(FOUCAULT, 2012,p.424).

Delírios neoliberais: biopolítica e animalidade

Nessa maravilhosa economia, o trabalho adquire uma dupla eficácia: produz ao destruir, com o trabalho necessário à sociedade nascendo da própria morte do trabalhador que lhe é indesejável (FOUCAULT, 2012, p.449).

Essa citação poderia muito bem ser uma descrição irônica do mito da felicidade neoliberal. Contudo, ela é extraída da terceira parte da História da loucura para descrever, como se fosse uma pausa, não os delírios dos loucos, mas os delírios daqueles que desejavam curar os loucos com o trabalho. Assim, quando Foucault descreve o grande projeto das casas de correção (projeto que combina ao mesmo tempo arquitetura e moralidade para saber lidar com o mal em suas várias formas), nada se compara ao modelo de trabalho como fonte correcional e de sua utilidade pública frente aos indivíduos libertinos e perturbadores da ordem social.

Muito se sonhou na própria época em que o internamento perdia seu sentido, com as casas de correção ideais, funcionando sem obstáculos nem inconvenientes, numa perfeição silenciosa. Bicêtres oníricas, onde todos os mecanismos de correção poderiam funcionar em seu estado puro; aí tudo seria ordem e castigo, medida exata das penas, pirâmide organizada de trabalhos e das punições - o melhor possível de todos os mundos do mal (FOUCAULT,2012,p.425).

Com efeito, todo mito de uma sociedade feliz e harmoniosa traz em seu núcleo uma tentação para o banimento, para o confinamento. Mas o que aconteceria se esse antigo sonho do trabalho como correção dos vícios da alma humana, muito mais do que uma ambição de tornar o louco interno em algo útil à sociedade, se tornasse em si mesmo uma tendência da própria ideologia do trabalho, do qual não escapa nenhum tipo de trabalhador? O que Foucault descreve na História da loucura como grande sonho das “casas de correção ideal” não seria atualmente a própria descrição do que hoje é o trabalho?

E sonha-se com essas fortalezas ideais que não manteriam contato com o mundo real: inteiramente fechadas sobre si mesmas, viveriam apenas dos recursos do mal,numa suficiência que evita o contágio e dissipa os terrores. Elas formariam, em seu microcosmo independente, uma imagem invertida da sociedade: vício, coação e castigo, refletindo assim a virtude, como num espelho, bem como a liberdade e as recompensas que constituem a alegria dos homens (FUCAULT, 2012,p.426).

Liberdade, alegria e, ao mesmo tempo, um fundo de terror. Mais do que pensar o trabalho como fonte de cura do mal, o mesmo que torna o louco mais dócil, até que ponto essa obra clássica de Foucault pode nos ajudar a entender a relação entre o trabalho e o mal? De como algumas passagens dessa obra, articulada com outros textos da biopolítica pode nos ajudar a perceber de como a promessa neoliberal do trabalhador produtivo, do homem como animal feliz não seria uma espécie de desdobramento da loucura?

Através da loucura se aprendeu que o “confronto absoluto” não é propriamente o melhor jogo do poder. Mas que esse jogo pode se tornar “sempre relativo, sempre móvel, entre a liberdade e seus limites”(FOUCAULT, 2012,p.426). É justamente sob esse ponto de vista que Foucault esclarece que não “se deve conceber a camisola como a humanização das correntes”(FOUCAULT, 2012,p.426). O que Foucault já anuncia é que por intermédio da loucura apreende-se que não será mais a punição a forma sistemática do internamento e, sim, o experimento com o “uso das liberdades e das restrições”, cujo efeito principal é a própria “alienação da liberdade”. Na verdade, não é apenas o louco em sua luta com a camisa de força, mas o próprio indivíduo em sua experiência social que, portanto, deve ter a sensação de que seus movimentos em prol da liberdade deve incomodá-lo.

Essa exposição foucaultiana acerca do mal-estar da liberdade, simbolizada na figura do louco e sua luta contra a camisa de força, teve importante ressonância nos debates acerca da biopolítica e do biopoder. Segundo Han, o neoliberalismo inaugurou um novo bestiário social. De um lado teríamos a toupeira - animalidade já superada - como representante da “sociedade disciplinar” (HAN, 2015, p.27). A toupeira é a imagem tradicional do trabalhador ou de sujeitos em “um meio de reclusão”. Esse tipo de animalidade receia profundamente o mundo das aberturas, “submete-se por isso a limitações espaciais”(HAN, 2015, p.28). É isso que torna a toupeira num animal disciplinado e ao mesmo tempo num animal emblemático do medo.

Em oposição ao modelo da toupeira, teríamos à figura da serpente: animal que simboliza a transição da sociedade disciplinar para a “sociedade de controle neoliberal”. A serpente é o animal do movimento, que gera espaço, que evolui para a produtividade, que institui a “otimização” como “uma rivalidade interminável”, entretanto, essa mesma “competição saudável” se transfigura em “culpa” que é a própria natureza desse tipo de animalidade no capitalismo. Daí que a tese central de Han se desloque justamente por meio dessa oposição animal. Enquanto a toupeira representa a biopolítica: a forma de dominação disciplinar do corpo, a serpente por sua vez, representa a psicopolítica que consiste na dominação do regime neoliberal da “alma” (HAN, 2015, pp.27-28).

Por outro lado, se analisarmos o evolucionismo como primeira roupagem do racismo moderno, encontraremos, ao mesmo tempo, a concepção de que o homem é tanto um animal que pode evoluir além de todas as espécies como também a mais perecível de todas elas, que, com suas doenças, indisciplinas, pode acarretar problemas incalculáveis para a coletividade. Temos, assim, o fenômeno da naturalização da morte pelo biopoder

No fundo, o evolucionismo, entendido num sentido lato - ou seja, não tanto a própria teoria de Darwin quanto o conjunto, o pacote de suas noções (como: hierarquia das espécies sobre a árvore comum da evolução, luta pela vida entre as espécies, seleção que elimina os menos adaptados) -, tornou-se, com toda a naturalidade, em alguns anos do século XIX, não simplesmente uma maneira de transcrever em termos biológicos o discurso político sob uma vestimenta científica, mas realmente uma maneira de pensar as relações da colonização, a necessidade das guerras, a criminalidade, os fenômenos da loucura e da doença mental, a história das sociedades com suas diferentes classes, etc. Em outras palavras, cada vez que houve enfrentamento, condenação à morte, luta, risco de morte, foi na forma de evolucionismo que se foi forçado, literalmente, a pensá-los (FOUCAULT, 2016, p.216).

Não obstante, o que as interpretações políticas tradicionais, de cunho naturalista, não conseguiram compreender por causa de seus determinantes biológicos e leis antihistóricas foi o problema de que a vida “emerge como o centro das estratégias políticas” ou, para dizer mais claramente, como a “biopolítica denota uma forma moderna específica de exercício do poder”(LEMKE, 2011, p.33). Entretanto, não devemos ignorar, como bem analisa Lemke (2011), que Foucault “mantém uma distância crítica de teorias que vêem a vida como objeto da política”.

A biopolítica significa uma constelação na qual as modernas ciências humanas e naturais e os conceitos normativos que emergem delas estruturam a ação política e determinam seus objetivos. Por esta razão, a biopolítica de Foucault não tem nada a ver com a crise ecológica ou com uma crescente sensibilidade às questões ambientais; nem tampouco poderia ser reduzido ao desenvolvimento de novas tecnologias. Em vez disso, a biopolítica significa uma transformação na ordem política (LEMKE, 2011, p.33-34).

Nessa mesma perspectiva, Melinda Cooper (2008) observa que o discurso de que a vida pode ser “reinventada, regenerada, revalorizada” tem sido uma máxima perigosa. Esse mesmo discurso tem tornado frenético as estratégias dos escritórios de patentes e comércio dos Estados Unidos. As descobertas na microbiologia, na biologia celular, coincidiram com a era da revolução neoliberal nas esferas social, política e econômica. É uma era de aliança entre a reprodução biológica e a acumulação de capital. Para Cooper, “o conceito de delírio” é um modo de entender “o projeto biotecnológico de reinventar, além do limite, a vida” (COOPER, 2008, p.147). A questão é que as economias pós-fordistas não se interessam mais por modelos de “mão de obra” como “máquina esgotável”. Surge assim o interesse pelos “modos biomédicos de produção”. O que significa dizer que vem ocorrendo um fenômeno de ressignificação da “subjetividade do trabalho” e seus modos de produtividade (COOPER, 2008, p.9).

Atualmente, o discurso da bioética reivindica para si o domínio das “ciências da vida”. Todavia, esse discurso não se desvinculou daquele velho delírio que menciona Foucault, o delírio que “só fala do mal” (FOUCAULT, 2012, p.436). Afinal, assim como os valores burgueses distinguiam entre a “boa e a má loucura”, entre a inocência e a perversão, distingue-se hoje entre a boa e má vida. É essa reivindicação que, inclusive, Petra Gehring vai denominar de “valorização duvidosa da vida” [zweifelhalften Mehrwert des Leben], que carrega consigo a promessa da “individualização” e que, todavia, não deixa de se auto-elaborar sob os riscos do “pitoresco” [malerisch] e sob “determinadas zonas críticas” como, por exemplo, a “fórmula simétrica” que indica onde começa e onde termina a vida, assim como, o conceito de “qualidade de vida” [Lebens qualität] que associa “intimamente os sujeitos a biopolítica”(GEHRING, 2006, p.132).

Referências

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Autor notes

1 Doutor pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém – PA, Brasil. Professor da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC/PA), Belém – PA, Brasil.


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