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O passado como rememoração e redenção em Walter Benjamin1
The past between remembrance and redemption em Walter Benjamin
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 3, pp. 164-181, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepção: 15 Maio 2020

Aprovação: 25 Setembro 2020

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i3.1848

Resumo: A intenção deste artigo é tematizar o pensamento de Benjamin sobre o passado, mostrando não somente como este é o verdadeiro centro propulsor das Teses, mas também como é somente através deste que um novo conceito de história se torna possível. De fato, o passado não somente não é algo concluído, mas é também revolucionário na medida em que permite vingar milhares de oprimidos em seu encontro com o presente. Um passado que contrasta com a versão oficial e com a tradição do continuum, um passado aberto, mas não de fácil leitura, implicado em sinais criptografados para descriptografar, sonhos para interpretar e instantes para segurar. Podemos definir o passado benjaminiano como um “passado próximo” apenas no sentido em que, no entanto, essa proximidade não indica uma adjacência temporal específica, mas apenas sua relevância e urgência sempre explosiva.

Palavras-chave: S: Passado, Rememoração, Redenção, Memória involuntária, Sonhos.

Abstract: The intention of this article is to theorize Benjamin's thinking about the past, showing not only how this is the true driving force of the Theses, but also how it is only through this that a new concept of history becomes possible. In fact, the past is not finished, but it also a revolutionary past insofar as it avenges thousands of oppressed people in their encounter with the present. A past that contrasts with the official version and the tradition of the continuum, an open past, but not easy to read, implied in encrypted signals to decrypt, dreams to interpret and moments to hold. We can define the Benjaminian past as a “near past” only in the sense that, however, this proximity does not indicate a specific temporal adjacency, but only its relevance and always explosive urgency.

Keywords: Past, Remembrance, Redemption, Dreams, Involuntary memory.

Introdução às teses

Nesta primeira parte, nos referiremos, em particular, às Teses sobre o conceito de história, verdadeiro legado testamentário de Walter Benjamin. No entanto, faremos também interagir entre si textos aparentemente distantes, como Imagem de Proust e Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire, tentando destacar como, em Benjamin, não apenas estes trabalhos contribuem na forma de sugestões, fragmentos e digressões para a posterior elaboração das TesesSobre o conceito de história, mas também constituem um verdadeiro continuum.

Seria inapropriado, na abertura deste artigo, entrar no mérito das Teses sem traçar um mapeamento delas. Nascidas entre o final de 1939 e o início de 1940, após a estipulação do pacto Molotov-Ribbentrop, elas representam uma summa de todo o pensamento do autor. Verdadeiro concentrado, cujo material explosivo não é apenas o estado de emergência de exílio de um judeu forçado a atravessar a fronteira de Portbou para tentar escapar dos nazistas, mas um acúmulo secreto de reflexões que constituem o verdadeiro ponto de apoio de todas as suas pesquisas filosóficas, confissões inconfessáveis até mesmo pelo próprio autor. Para alimentar essa aura de sigilo, os testemunhos contam sobre um Benjamin que com ciúmes guardava suas anotações em uma maleta preta como um verdadeiro talismã. Podemos ver a história do Benjamin como um daqueles casos particulares em que o destino de um autor está inextricavelmente ligado ao de sua própria obra. Eloquentes, nesse sentido, são as palavras que Benjamin escreve para Gretel Adorno: “[...] a guerra e a constelação que a trouxeram me levaram a escrever alguns pensamentos que posso dizer que guardei por pelo menos vinte anos guardados em mim, ou melhor, preservando-os de mim mesmo”. (ADORNO apud BONOLA, 1997, p. 12. Tradução nossa). A mesma relutância o faz temer, na mesma carta, as consequências de sua eventual publicação: “[...] não preciso lhe dizer que nada está mais longe de mim do que a ideia de publicar essas anotações. [...] Abriria portas e janelas para um mal-entendido exaltado”. (ADORNO apud BONOLA, 1997, p. 12. Tradução nossa).

Mas o que há de tão perigoso nessas Teses? O que se destaca nelas não é apenas um ataque feroz ao Reich Nacional do Terceiro Reich e uma denúncia da esquerda social-democrata que traiu sua missão, mas é acima de tudo um ataque ao historicismo como método historiográfico dominante, uma crítica corrosiva ao elogio do conceito de progresso evolutivo e sempre por vir através de um materialismo “embebido” de teologia e de um messianismo que emerge como cada vez mais profano. Assim, Benjamin, a esse respeito, escreve para Max Horkheimer:

[…] Acabei de escrever certo número de teses sobre o conceito de história. […] Constituem uma primeira tentativa de estabelecer um aspecto da história que deve estabelecer uma divisão irremediável entre nossa maneira de ver e os sobreviventes do positivismo que, em minha opinião, conotam até mesmo esses conceitos de história tão profundamente que, em si mesmos, são para nós mais vizinhos e familiares. (BENJAMIN, 1997, p. 9. Tradução nossa).

Nas dobras mais dramáticas de sua correspondência, emerge a consciência de um fracasso iminente, de uma geração que teme sua derrota e sente que está no ponto final. Uma geração, a de Benjamin, que vivenciou duas guerras mundiais. Significativas nesse sentido são as palavras que Benjamin escreve para Stephan Lackner:

[...] Apesar de tudo, trabalho incansavelmente. Concluí um pequeno ensaio sobre o conceito de história, um trabalho que não foi inspirado apenas pela nova guerra, mas pela experiência geral da minha geração, que deve estar entre os mais severamente assediados pela história. [...] É de se perguntar se a história não está por acaso forjando uma síntese brilhante entre dois conceitos nietzschianos, isto é, o bom europeu e o último homem. O último europeu pode resultar disso. Todos lutamos para não nos tornarmos este último europeu. (BENJAMIN, 1997, p. 11. Tradução nossa).

A natureza fragmentária das Teses, característica distintiva de toda a obra anti-sistemática de Benjamin, não deve levar a lê-las como algo inconcluso ou incompleto, mas a buscar em sua “micrologia” a pedra angular e o seu sentido mais profundo. A estrutura arquitetônica de quem trabalha em camadas neutraliza o aspecto mais “intermitente” e perturbador que hoje, assim como naquela época, contribuiu ainda mais a aumentar seu lado conspiratório e enigmático. Estes são os termos com os quais Benjamin fala com Gretel Adorno sobre as Teses: “[...] Até hoje eu os dou mais como um monte de ervas sussurrantes reunidas em caminhadas meditativas do que como uma coleção de teses”. (BENJAMIN, 1997, p. XII. Tradução nossa). A que coisa este aspecto “sussurrado” pode se referir, senão a um lado sibilino deste material ou ao seu potencial revolucionário a ser posto em prática? Nas Teses, ressoa incessantemente um “sino de martelo”, um “toque de tromba” que leva à necessidade de uma consciência imediata, de um encontro entre as gerações. Convida a uma esperança que, como tal, sempre será para aqueles que virão depois, mas também para uma herança que não está morta, mas que deve ser revirada, ou melhor, torcida para o lado daqueles que nunca participaram dessa transmissão: os dominados, a classe oprimida, os explorados. O que é evidente, não é, apesar da amarga consciência da catástrofe, um pessimismo cósmico imobilizador ou um apelo a um passado a ser ressuscitado em sua fixidez, mas uma instância que visa despertar, numa ruptura que rompe o horizonte do continuum, a ação.

As Teses dessa maneira podem servir de alerta para cada geração, como Gianfranco Bonola e Michele Ranchetti escrevem na introdução à versão italiana:

A distância de mais de meio século e em épocas em que a aceleração das mudanças históricas parece produzir um desvio incapaz de qualquer dúvida sobre qualquer motivo que presida na vida dos indivíduos, acreditamos que as teses de Benjamin ainda sugeriam intacta a necessidade de uma consciência que dê sentido ao acontecimento ou ao precipitar dos eventos reconhecer aquele sinal que, como para Benjamin, pode indicar a presença de um significado. (BONOLA e RANCHETTI, 1997, p. X. Tradução nossa).

Detido no campo de prisão de Nevers, no outono de 1939, Benjamin é libertado pouco depois. De volta a Paris, ele tenta obter um visto para expatriação nos Estados Unidos, graças também ao interesse dos membros do “Instituto de Pesquisa Social”. Fugindo de uma Paris ocupada pelos nazistas, Benjamin tenta atravessar a fronteira dos Pirenéus e chega a Portbou, onde vê seu visto coletado. Prevendo uma captura iminente da polícia de fronteira na noite de 26 para 27 de setembro de 1940, ele tira a própria vida ingerindo uma forte dose de morfina3.

Devemos a Hannah Arendt o conhecimento desse legado que não era destinado a ser publicado. De fato, é para ela que Benjamin, antes de atravessar a fronteira, entregou uma cópia de seu texto datilografado para ser enviado a Adorno. Assim, ele deixou clara sua decisão de contrariar as intenções do autor: “A morte de Benjamin torna a publicação um dever. O texto se tornou um testamento. Sua forma fragmentada envolve a tarefa de manter a fidelidade à verdade desses pensamentos através do pensamento” (ADORNO, 1997, p. XII. Tradução nossa). A primeira impressão comemorativa das Teses publicada pelo “Instituto de pesquisa social” em Los Angeles editado por Adorno e Horkheimer em 1942 e a publicação de 1950 são caracterizadas pelo desinteresse quase total dos críticos, nos anos sessenta segue uma releitura que enfatiza seus lados distintamente revolucionários. Desde a década de 1980, sua recepção criou sempre brechas e controvérsias de ordem exegética entre seus intérpretes e estudiosos, entre aqueles que reivindicam os aspectos marxistas ou mais propriamente messiânicos e aqueles que lhe atribuem, em vez disso, uma mistura indistinta entre os dois. Nesse sentido, não foi apenas a estrutura de seu pensamento que criou cisões nos anos de sua recepção, mas também seu status acadêmico. De fato, não se fala apenas de um Benjamin revolucionário e, ao mesmo tempo, conservador; teólogo e, da mesma maneira, marxista; utópico e destruidor. Mas também de um ensaísta, crítico, escritor e não-filósofo. Mas o que levou a isso? É um mal-entendido por parte de seus críticos ou é o resultado desejado de seu trabalho anti-sistemático? Tentaremos no desenvolvimento deste artigo responder a essa pergunta, mostrando não apenas como todas as alternativas encontram um eco efetivo em Benjamin, mas como todas têm sua chance4.

Seu destino trágico, o charme enigmático de seu pensamento, o refinamento de sua linguagem, as obras esotéricas e fragmentadas são o que determinou, ao longo dos anos, sua total recusa ou exaltação sem escrúpulos. Dessa maneira, o filósofo alemão tornou-se um dos filósofos mais importantes e discutidos do século XX, de pensador desprezado pelo mundo acadêmico vira não somente escritor refinado e de “nicho”, mas fenômeno cult até a exasperação, nos anos sessenta, de suas características revolucionárias. O que é certo, além de suas várias interpretações, é como o pensamento de Benjamin não deixa seu leitor indiferente; mas o leva a uma tomada de posição necessária.

Nesse ponto, poderíamos nos perguntar sobre a relevância das Teses no mundo contemporâneo e do seu eco que, embora fraco em alguns momentos e perturbador em outros, nunca deixou de exercer sua influência e charme nos quase oitenta anos desde sua redação. Perguntar sobre a relevância delas, após o final das grandes narrativas descritas por Lyotard, o final da história proclamada por Fukuyama, o surgimento do desconstrutivismo e do pensamento fraco, por um lado, e a filosofia analítica, por outro; mas especialmente depois de Auschwitz, da guerra fria, do colapso do muro de Berlim e da vitória do capitalismo significa perguntar-se sobre a possibilidade de uma história diferente. Podemos encontrar a importância das Teses no fato delas serem, ainda hoje, testemunhos de um pensamento que se apresenta como “arborescência de alternativas” (Löwy, 2005, p. 147), abertura a possibilidades indefinidas, mas não infinitas. Abertura a histórias rejeitadas, descartadas pela versão oficial através daquela que Gagnebin define como uma “historiografia verdadeiramente militante”5. Assim como no caleidoscópio, o objeto tão querido por Benjamin, onde a cada rotação sempre aparece uma imagem diferente: uma nova ordem é sempre possível, o que deve mudar é, no entanto, o seu proprietário.

A lembrança como uma "força messiânica fraca" e a crítica ao historicismo

Neste primeiro tópico, trataremos do passado e veremos como é este a verdadeira força motriz de todas as Teses. Passado oprimido, passado para vingar, passado para resgatar, passado como passado inacabado, passado como lembrança não nostálgica, passado e origem, passado e apocatástase, passado como fundamento a ser destruído e salvado. Essas são apenas algumas das variações do paradigma benjaminiano que analisaremos neste artigo. Duas palavras se tornarão indispensáveis para entender e refletir sobre o passado: rememoração e redenção.

Após a famosa tese do jogador de xadrez de manequins, Benjamin apresenta, desde o início, sua imagem do passado. Verdadeiro catalisador de todas as Teses. A primeira coisa que impressiona são os termos e as “metáforas salvadoras” (BONOLA, 1994, p.145. Tradução nossa) com as quais o filósofo alemão alude a este. Refiro-me à segunda tese, onde a referência explícita é a Lotze e ao Microcosmo. Ideias sobre história natural e sobre a história da humanidade. Ensaio de antropologia. Se Lotze descreve uma alma humana cuja característica fundamental é “a ausência geral de inveja de cada presente em relação a seu futuro” (BENJAMIN, 1987, p. 222), para Benjamin a observação inevitável é que a felicidade que estimamos é essencialmente histórica, ou seja, é “totalmente marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência” (BENJAMIN, 1987, p. 223). Este seu ser “imbuída” de nosso tempo, faz a felicidade à qual aspiramos algo determinado e leva a buscar sua satisfação em algo que ainda precisa ser realizado. O que falta e que pode despertar inveja, no entanto, não é felicidade para o futuro desejável, utópico ou planejado, mas apenas no “ar que respiramos, nos homens com quais os quais poderíamos ter conversado, com as mulheres que poderiam ter possuído” (BENJAMIN, 1987, p. 223). Esta é uma das primeiras “reviravoltas” às quais o autor nos força, neste sentido, de fato, nós não invejamos o que virá, mas apenas o que poderia ter sido, mas não foi. A centralidade aqui assumida pelo passado não tem nada de “passatista”, não se refere a algo nostálgico, mas à ideia de redenção. Assim como a ideia de felicidade também o próprio conceito que a história tem do passado contém um “índice misterioso que o impele à redenção” (BENJAMIN, 1987, p. 223). Mas qual é a função deste índice? É para “um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa” (BENJAMIN, 1987, p. 223) que a estrela norteadora do passado guia. Isso significa que aqueles que vêm depois são encarregados de uma tarefa não fácil de silenciar: “Como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo” (BENJAMIN, 1987, p. 223). Esse passado incompleto pede para ser libertado de sua incompletude e nossa tarefa é reivindicar as batalhas daqueles que nos precederam, tornando-as nossas. Devemos dar uma chance ao passado. Nesse sentido, a abertura do passado e a abertura do futuro coincidem. Isso significa dar uma oportunidade a essas expectativas, àqueles tormentos que foram evitados ou pisoteados e que agora exigem justiça. Cabe a nós captar essa felicidade não realizada. De fato, o que se torna ora necessário é olhar para o passado como profecia de um futuro diferente. No entanto, nós não somos “repetidores” automáticos, não temos a tarefa de ressuscitar nada ou revivê-lo como foi no passado, apresentando-o novamente, mas precisamos “destruir” e “abrir espaço” para lembrar. Por outro lado, nesse processo, o passado não é passivo, mas “órgão vital” (BONOLA, 1997, p. 152. Tradução nossa) que, por meio de uma torção particular, é empurrado e se pro-tende: “Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tende dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história”. (BENJAMIN, 1987, p. 224). De fato, pode haver salvação, apenas para aquele passado que no momento do conhecimento encontrou o presente em uma “constelação”. Isso quer dizer, em outras palavras, que ocorre pensar o passado como confiado a uma imagem que relampeja irreversivelmente no momento em que é reconhecido. Tudo assim se refere a uma fugacidade, a algo efêmero para ser agarrado, a algo que no momento em que é preso corre o risco de ser inevitavelmente perdido:

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. (BENJAMIN, 1987, p. 224).

A referência polêmica está aqui para Keller que no slogan “A verdade nunca nos escapará” (BENJAMIN, 1987, p. 224), vê no passado algo definitivamente concluído e fixo ao qual podemos recorrer, mas, além dessa referência isolada à afirmação do romancista suíço, a constituir o verdadeiro objetivo crítico de Benjamin é o historicismo de Ranke e a tradição que acredita poder compreender o passado “como ele de fato foi”. (BENJAMIN, 1987, p. 224). O que Benjamin propõe não é uma concepção fechada do passado, segundo a qual o que acontece tem que se referir ao que aconteceu antes em uma linha vetorial projetada para frente. Esta linha deve ser revertida. De fato, o que está em jogo para Benjamin não é uma transmissão asséptica do que foi, não consiste em “remexer no passado como em um armário de exemplos e analogias”. (BENJAMIN, 1997, p. 85. Tradução nossa). O historiador materialista é, de acordo com a definição de Schlegel adotada por Benjamin, aquele “profeta revirado”, do qual o Angelus novus nada mais é do que a versão espiritual; ele é “o arauto que convida os mortos para a mesa” (BENJAMIN, 1997, p 129. Tradução nossa), o que ele anuncia são as lascas e as faiscas de uma possível redenção. Isso porque conhecer o passado significa tomar posse de uma imagem assim como ela pisca em um momento de perigo. O historiador materialista, portanto, tem a missão não apenas de desmascarar a tradição da classe dominante infligindo um golpe mortal ao inimigo de todos os tempos, mas também de romper com a tradição dos vencedores e desmascarar seu conformismo que sempre corre o risco de obscurecer e imobilizar qualquer intenção revolucionária. Assim Benjamin descreve a tarefa do histórico materialista: “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilegio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer e esse inimigo não tem cessado de vencer” (BENJAMIN, 1987, p. 224).

Outro princípio do historicismo criticado por Benjamin é o da “identificação emocional”, que tem seus próprios objetivos polêmicos em Fustel de Coulanges e Benda. Essa nasce do desejo de uma aparência, de um olhar puro para o passado, não contaminado pelos eventos que ocorreram entre o período considerado e o que se está vivendo. Sua origem é, no entanto, segundo o autor: “a inércia do coração, a acédia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz” (BENJAMIN, 1987, p. 225). O que a domina é uma espécie de impotência que leva à paralisia e que tem seu aspecto mais negativo no fato de que a identificação do historiador inevitavelmente leva a uma repetição acrítica do passado e, portanto, à sua identificação com o ponto de vista dos vencedores, ou seja, com quem a história a escreveu:

A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que no momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. (BENJAMIN, 1987, p. 225. Tradução nossa)

Diante disso, o historiador materialista não pode deixar de olhar criticamente para os “espólios” do patrimônio cultural; na sua transmissão, de fato, só pode ter a exploração dos inomináveis, dos oprimidos. O historiador, portanto, tem a tarefa, como uma espécie de transferência coletiva, de despertar um presente ainda não consciente do que foi, despertá-lo do “narcótico” do historicismo. Somente em certa época, no entanto, isso pode acontecer, apenas em um presente que reconheceu os brotos do futuro com os quais o passado foi carregado. É assim que este momento é descrito: “Na imagem dialética, o ocorrido de uma determinada época é sempre, simultaneamente, o ocorrido desde sempre” (BENJAMIN, 2018, p. 770). Contudo, esta manifesta-se, de tempos em tempos, como tal apenas aos olhos de uma era absolutamente determinada: “aquela na qual a humanidade, esfregando os olhos, percebe como tal justamente essa imagem onírica. É neste instante que o historiador assume a tarefa de interpretação dos sonhos”. (BENJAMIN, 2018, p. 770).

A rememoração, a felicidade e a dialética do despertar

Não somente vimos como em Benjamin o historiador vira um interprete dos sonhos, mas também podemos vislumbrar como, para o filósofo, a imagem sugestiva do sonho e sua dialética de vigília-despertar-sono é fundamental no processo da rememoração. Passado e sono, memória e despertar, vigília e presente são os termos em campo. O despertar, em seu ser “meio”, é caracterizado como uma espécie de “estranhamento” brechtiano. Aquele momento de desorientação e trauma, no qual estamos acordados, mas ainda presos nas “malhas” do sono. O despertar, nessa perspectiva, não é uma pausa, mas limiar (Schwelle). Não é um simples desencantamento, mas um ato do sonho, uma rememoração do passado através da qual o sonho pode ser revolucionado em nossa vigília presente6. Devemos redesenhar o passado como despertar e buscar nele os traços e sinais com os quais podemos lê-lo de maneira diferente e transformá-lo no presente. Podemos traçar essa imagem onírica da história somente através da operação dialética da lembrança:

O método novo, dialético, de escrever a história apresenta-se como a arte de experienciar o presente como mundo da vigília ao qual se refere o sonho que chamamos de ocorrido. Elaborar o ocorrido na recordação do sonho! – Quer dizer: recordação e despertar estão intimamente relacionados. O despertar é, como efeito, a revolução copernicana e dialética da rememoração. (BENJAMIN, 2018, p. 660).

De fato, é apenas através do despertar que podemos realizar a recuperação das imagens dos sonhos e podemos ver no presente os sinais de um passado possível diferente. Mas por isso é necessário ler a “atualidade” nas malhas do passado. Este não é mais fixo, mas poderíamos dizer “ponto móvel”, que só pode ser conhecido em um determinado momento7. A supremacia da política sobre a história é justamente o poder desse “momento de conhecimento” que agora, através da dialética sono-vigília, nos preocupa e nos pressiona por uma intervenção e que afasta drasticamente a “herança cultural” do conformismo da carruagem dos vencedores. A política, assim, com sua ação, pode separar esse momento e não permitir a repetição do passado mítico. Mas é um terreno escuro e intrincado aquele de onde temos que “extrair” a lembrança e traze-la à superfície:

[...] O despertar é o caso exemplar da lembrança: o caso no qual conseguimos recordar aquilo que é mais próximo, mais banal, mais ao nosso alcance. O que Proust quer dizer com a mudança experimental dos móveis no estado de semidormência matinal, o que Bloch percebe como a obscuridade do instante vivido, nada mais é do que aquilo que se estabelecerá aqui no plano da história e coletivamente. Existe um saber ainda-não-consciente do ocorrido, cuja promoção tem a estrutura do despertar. (BENJAMIN, 2018, p. 660).

Essa referência a Bloch e às “trevas do momento vivido” indica a condição de falta e precariedade do homem que tenta agarrar seu presente fugaz. Este já se tornou passado. Mas tudo o que o homem é incapaz de segurar naquela hora não está perdido, mas constitui precisamente aquele “conhecimento ainda não consciente”, para o qual ele só se pode direcionar através da memória. Essa “escuridão” é contrabalançada pela esperança de uma atualização dos possíveis perdidos. Salienta-se como este conhecimento ainda não consciente é um traço de união entre Benjamin e Bloch que se, no primeiro caso, porém, faz com que um movimento centrífugo nos direcione a um passado a ser resgatado; no segundo, mais acentuado, é o objetivo da libertação no futuro utópico. Além disso, a referência à comunidade não deve ser interpretada como uma referência a um tipo de inconsciente junguiano coletivo, composto por arquétipos e tradições geneticamente compartilhadas, mas na maneira através da qual as vanguardas literárias e artísticas do início do século XX e, de certa forma, Proust compreenderam essa dimensão.

O interesse de Benjamin, de fato, estava reservado em particular aos surrealistas. Na embriaguez e na realidade onírica, eles viam o afundamento da consciência individual em favor da consciência coletiva. Isso é o que o filósofo alemão diz em seu ensaio Surrealismo. O último instantâneo da inteligência europeia:

A vida só parecia digna de ser vivida quando se dissolvia a fronteira entre o sono e a vigília, permitindo a passagem em massa de figuras ondulantes, e a linguagem só parecia autêntica quando o som e a imagem, a imagem e o som, se interpenetravam, com exatidão automática, de forma tão feliz que não sobrava a mínima fresta para inserir a pequena moeda a que chamamos “sentido”. (BENJAMIN, 1987, p. 22).

O que interessava os surrealistas era precisamente o aspecto “sur-real” e transformador das coisas. E é precisamente esse lado eminentemente político que mais fascinava Benjamin neles. Este lado se materializava na recuperação do kitsch e do não mais útil, no que se mostrava desatualizado em seu aspecto mais revolucionário e out of joint8. De fato, se os homens, segundo Benjamin, possuem uma força messiânica fraca, os objetos têm a chance de se transformarem através de um “niilismo revolucionário”9. Assim Benjamin escreve a este respeito:

Estes autores compreenderam melhor que ninguém a relação entre estes objetos e a revolução. Antes destes videntes e intérpretes de sinais, ninguém havia percebido de que modo a miséria, não somente a social como a arquitetônica, a miséria dos interiores, as coisas escravizadas e escravizantes, transformavam-se em “niilismo revolucionário” (BENJAMIN, 1987, p. 25).

Isso significa, em outras palavras, que todo objeto que não está mais carregado de sua atualidade, “imbuído de seu próprio tempo”, é como se “escapasse” da sua própria época e mostrasse seu significado revolucionário. Esse objeto “fora do tempo” conspira contra a ordem existente e suas leis de consumo apontando para um presente anacrônico no qual podemos enxergar as indicações de um futuro do passado possível. É neste sentido que podemos ler e interpretar a paixão do nosso autor pelas antiguidades e pelas coleções. Isso porque é na recuperação do desperdício do capitalismo, nos livros para crianças e de patologia mental, naquilo que vem considerado “negativo” e sem sentido que podemos encontrar os sinais de uma possível “reintegração” das coisas. É através destes sinais que podemos resumir uma nova ordem e modificar o que foi no passado. A relação entre negativo e positivo e como o primeiro é fundamental para a constituição de uma ordem diferente e de uma “apocatástase histórica” é assim explicada por Benjamin nas Passagenwerk:

[...] toda negação, por sua vez, tem o seu valor apenas como pano de fundo para os contornos do vivo, do positivo. Por isso, é de importância decisiva aplicar novamente uma divisão a esta parte negativa, inicialmente excluída, de modo que a mudança do ângulo de visão (mas não de critérios!), faça surgir novamente, nela também, um elemento positivo e diferente daquele anteriormente especificado. E assim por diante, ad infinitum, até que todo o passado seja recolhido no presente em uma apocatástase histórica. (BENJAMIN, 2018, p. 763. Tradução nossa).

Hegelianamente podemos dizer que, é necessário encontrar “a rosa na cruz”. Se para Hegel isso equivale a dizer, porém, que todos os escombros do passado são compreensível e justificável em vista do desenvolvimento do Espírito Absoluto, para Benjamin isso significa, ao contrário, precisamente questionar esse desenvolvimento, através de uma “mudança do ângulo de visão” que possa finalmente levar a compreender esse negativo e encontrar nessa lacuna um positivo que possa lançar luz sobre um futuro do passado que seja “colocado no presente em uma apocatástase histórica”.

Chegamos agora a segunda das duas principais referências de toda a pesquisa benjaminiana: Proust. Se a referência não continua nas Teses, é assim que Benjamin define a imagem dialética nos fragmentos do Material preparatório das teses: “lembrança involuntária da humanidade redimida” (BENJAMIN, 1997, p. 96. Tradução nossa). Podemos observar, no entanto, como a comparação com Proust não é redutível a algo episódico, mas é o resultado de um estudo aprofundado do autor que levou Benjamin a empreender em 1926 o projeto, depois deixado inacabado, da tradução alemã de Em busca do tempo perdido com Franz Hessel. Para os fins do nosso estudo do passado como rememoração, é importante notar como, para nosso filósofo, o trabalho do escritor francês é a obra mais significativa sobre a memória. Não apenas uma autobiografia, mas a história da vida assim como o autor a lembra. Assim, o filósofo alemão fala sobre isso em Imagem de Proust:

Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. [...] Pois o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. [...] Cada dia, com suas ações intencionais e, mais ainda, com suas reminiscências intencionais, desfaz os fios, os ornamentos do olvido. Por isso, no final Proust transformou seus dias em noites para dedicar todas as suas horas ao trabalho, sem ser perturbado, no quarto escuro, sob uma luz artificial, no afã de não deixar escapar nenhum dos arabescos entrelaçados. (BENJAMIN, 1987, p. 37).

Lembrança-memória espontânea e esquecimento- memória involuntária, esse é o quiasmo que Benjamin entrevê. No trabalho de Proust, ele vislumbra o fruto de um trabalho intermitente da memória involuntária. De fato, é somente através dessa que Proust pode entrar novamente no tempo perdido. Ele assim não apenas chega à compreensão desse passado perdido, mas, através da interação passado-presente, ao que o primeiro se tornou e que agora corre o risco de escapar irremediavelmente. A memória involuntária surge e se apresenta como um reservatório de erros, possibilidades não realizadas, oportunidades inexploradas. De fato, através dela, não apenas lembramo-nos de como um evento foi ou de como o vivenciamos, mas também de todas as variantes possíveis que não ocorreram e que somente agora, atualmente, podemos entender e projetar diferentemente. Podemos ver essa afinidade explicitamente no livro Infância de Berlim. É no passado, e precisamente em sua infância, que Benjamin vê capturas instantâneas de um futuro ainda não cumprido, de quadros em que uma felicidade prometida ainda é encapsulada. E é apenas olhando para trás e partindo de uma idade madura que, com um olhar retrospectivo, onírico e atual, ao mesmo tempo, podemos ver no passado os traços do ainda possível. É somente através dessa “anamnese” que o homem de hoje pode ver em lugares, objetos, sabores de infância algo que pede para ser salvado. Um futuro dos esquecidos pede para ser pego e “atualizado”. Neste ponto é interessante notar como, tanto para Proust quanto implicitamente para Benjamin, é metaforicamente no escuro que os fios do esquecimento são tecidos na “memória involuntária” e como, em vez disso, são a luz do dia e a “práxis” que inviabilizam seu trabalho. Somente com exercícios, com uma “luz artificial” ou um choque, podemos tentar acessar essa memória novamente. É no escuro que a história de Proust começa e é através da luz de uma lâmpada que ele tenta decifrar os “arabescos” tecidos do esquecimento. Luz, crepúsculo e “folha da lembrança” são esses termos que, não por acaso, Benjamin utiliza em um fragmento inacabado de Crônica de Berlim (1932):

Todos podem perceber que o período de tempo em que estamos expostos a várias impressões não tem significado para seu destino na memória. No centro dessas imagens raras, no entanto, somos sempre nós mesmos. E isso não é tão enigmático, porque esses momentos de exposição repentina à luz são ao mesmo tempo momentos de estar fora de nós e enquanto nosso ego acordado, habitual e adequadamente diurno atrapalha, agindo ou sofrendo com a ocorrência, nosso eu mais profundo permanece quieto em outro lugar e é atingido pelo choque quando a pilha de pó de magnésio é tocada pela partida em chamas. Nesse sacrifício do nosso eu mais profundo em choque, nossa memória deve suas imagens mais indestrutíveis. (Benjamin, 1997, p. 267. Tradução nossa).

É no choque, no pó ardente de magnésio, que a imagem da memória é impressa. Somente com algo artificial e externo a nós podemos acessar a memória involuntária. Como não pensar neste caso as Teses e as suas “metáforas explosivas”: fusível, relâmpago, faísca? Os protagonistas dessa imagem somos nós, nosso próprio passado, que no “instante do conhecimento” repentinamente surge na luz como em uma explosão10. Essa memória flash é uma laceração que, no céu do presente, ilumina uma situação perigosa com uma imagem do passado. A metáfora do passado como laje também está presente nos materiais preparatórios das Teses, quando Benjamin, referindo-se a um texto de André Monglond, diz:

Se você quer considerar a história como um texto, o que um autor recente diz sobre textos literários é válido para ela: o passado depositou imagens que poderiam ser comparadas àquelas fixadas por uma placa fotossensível. Somente o futuro possui ácidos fortes o suficiente para desenvolver esta placa, para que a imagem apareça em todos os seus detalhes [...]. (BENJAMIN, 1997, p. 83. Tradução nossa).

Somente o futuro terá ácidos tão fortes que poderão dissolver todas as incrustações do passado e que impediam uma visão correta. Apenas salvando esse passado dos ácidos corrosivos de um presente que não se reconheceu compreendido nele, que podemos deixar para o futuro a possibilidade de ver nele os “pixels” até então não visíveis.

Voltando ao texto Imagem de Proust, é significativo observar como Benjamin já destaca a relação memória-felicidade expressada posteriormente na Tese sobre Lotze. O que Benjamin e Proust têm em comum é a ideia da felicidade como “espera” de sua realização. De fato, a memória involuntária não apenas recupera o passado, apresentando-o de outra forma, mas naquele momento apreende a promessa de uma felicidade até então perdida e que pode ser realizada. Se, no entanto, Proust procura no passado uma promessa de felicidade no futuro, Benjamin, por outro lado, procura na infância uma promessa de felicidade para aquele passado que não foi11. Assim Benjamin a descreve:

[...] Mas existe um duplo impulso de felicidade, uma dialética de felicidade. Uma forma de felicidade é o hino, outra é elegia. A felicidade como hino é o que não tem precedentes, o que nunca foi, o auge da beatitude. A felicidade como elegia é o eterno mais uma vez, a eterna restauração da felicidade primeira e original. É essa ideia elegíaca de felicidade que também podemos chamar de eleática que, para Proust, transforma a existência na floresta encantada da recordação. (BENJAMIN, 1987, p. 37).

Essa “ideia elegíaca” e a referência à “felicidade primeira e original” parecem se referir, nesse sentido, à ancestralidade judaica que Scholem atribui ao tikkun: “[...] na mente de Benjamin, existe o conceito cabalístico de tikkun, da restauração e reparo messiânico, que reconstitui e restaura a essência original das coisas, e também da história, quebrada e corrompida pelo ‘esmagamento dos vasos’” (SCHOLEM, 2015, p. 61); mas também à teoria da apocatástase adotada por Orígenes, segundo a qual no final dos tempos haverá uma restauração da situação original antes da expulsão do homem do paraíso e uma redenção universal de todas as criaturas. A felicidade como missão redentora do homem tem aqui como seu espelho a teológica do advento do messias. Essa diferença entre as capacidades “redentivas” da felicidade ressoa assim no fragmento teológico-político:

Se uma flecha direcional indica a meta na qual o dínamysis do profano opera e outra a direção da intensidade messiânica, a busca pela felicidade da humanidade livre certamente diverge dessa direção messiânica; mas, como uma força, com seu caminho, pode promover uma outra direta na direção oposta, também a ordem dos profanos pode promover o advento do reino messiânico. (BENJAMIN, 1982, p. 170. Tradução nossa).

Há uma felicidade terrena pela qual devemos lutar, aspirar e esperar que, mesmo não sendo na mesma direção daquela messiânica, promove ou “antecipa” a vinda do Reino. Nessa “a ideia de redenção ressoa”, precisamente porque sua realização plena e completa só é possível no dia final. A restitutio in integrum espiritual tem sua correspendência mundana. No entanto, somente a ação do Messias “cumpre o acontecer histórico e precisamente no sentido que ele somente redime, cumpre e produz a relação entre este e o messiânico mesmo. Por isso nada de histórico pode se referir por si mesmo ao messiânico” (BENJAMIN, 1982, p. 171), ele não aparece ao fim de um desenvolvimento, mas o interrompe. A intervenção do Messias não atua em nenhuma categoria histórica, aquilo que cabe ao homem, ao contrário, através de sua frágil força messiânica não é a recomposição do estilhaçado, mas uma ação sobre a história que atue no “momento do conhecimento” sobre a vida dos indivíduos e que nesse fragmento possa subtraí-los do acontecimento mítico do sempre igual12. Essa pode ser definida como uma verdadeira “auto-redenção” (LÖWY, 2005, p. 51).

Rememoração e correspondances

Outro ensaio importante para destacar a relação rememoração-passado é: Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire, escrito entre 1938 e 1939. Neste texto, a intenção de Benjamin é mostrar como memória e consciência involuntárias são incompatíveis; Proust e Baudelaire serão aqui os dois interlocutores privilegiados. O ensaio começa com a denúncia, pelas chamadas “filosofias da vida”, de uma perda da “verdadeira experiência” nas metrópoles e nas sociedades industrializadas do século XIX. O que essas filosofias têm em comum é a descrição de uma inadequação, de uma impotência do homem em relação a uma realidade moderna que o ultrapassa e o domina em um tempo cada vez mais “cronometrado” e “mecanizado”. Tentativa de resposta aos truques do moderno é a famosa diferença entre experiência como Erfahrung e experiência vivida em Dilthey e durée, como período qualitativo de pura memória em Bergson. O problema neste último, porém, reside para o crítico alemão, em não ter sublinhado a dimensão eminentemente histórica dessa memória. De fato, o elemento da tradição é fundamental no acúmulo dos dados da “verdadeira experiência”. E é exatamente neste ponto que Benjamin introduz Proust enquanto verdadeiro experimentador da teoria de Bergson. Isso porque se este último parece ter acesso imediato ao fluxo vital, isso não se aplica a Proust. A memória bergsoniana pura torna-se, de fato, memória involuntária. É no sabor da madeleine que as memórias ressurgem e não no fruto da atenção da memória. Essa enquanto voluntária e consciente dá vida a sua “pobreza”, de fato, nada dessa memória pode nos levar ao passado verdadeiro. A diferença entre as duas é entre o homem que busca conscientemente em seu passado algo a recuperar, perdendo sua essência e aquele que, por outro lado, é permeado por uma sensação repentina e onipresente através de imagens de sonhos, mais frequentemente em aromas e sabores do que em “imagens despertas”. Na memória involuntária temos:

[...] imagens visuais ainda em grande parte isoladas, apesar do caráter enigmático de sua presença. Mas por isso mesmo, se quisermos com pleno conhecimento de causa a vibração mais íntima dessa literatura, temos que mergulhar numa camada especial, a mais profunda, dessa memória involuntária, na qual os momentos de reminiscência, não mais isoladamente, com imagens, mais informes, não-visuais, indefinidos e densos, anunciam-nos um todo, como o peso da rede anuncia sua presa ao pescador. (BENJAMIN, 1987, p. 49).

Pontos de contato entre memória involuntária e memória consciente são cultos e cerimônias. Somente aqui a dimensão mais privada do homem é combinada com uma memória coletiva do passado podendo se referir assim a uma dimensão antecipatória e salvífica do tempo. Nesse ponto, voltando à relação de Proust-Bergson, Benjamin introduz Freud e em particular o ensaio Além do princípio do prazer de 1921. Ele enfatiza como para o pai da psicanálise onde há “consciência”, não pode haver “traços de memória”; de fato, eles estão em uma ligação de exclusão mútua. Os “traços de memória” estão localizados em uma memória que não é consciente. A consciência, por outro lado, tem um papel “preventivo”, pois evita possíveis choques com sua ação. A sua tarefa é anestesiar o que acontece na “experiência vivida”. E é precisamente através dessa diferença freudiana que se esclarece a relação, destacada por Benjamin, entre o filósofo do espiritualismo e o escritor francês. Em busca do tempo perdido é o emblema do trabalho da memória involuntária, ou seja, de uma experiência do que não foi vivido conscientemente e, portanto, não “conscientizado”. Ao contrário de qualquer “experiência vivida” (Erlebnis) que, através do filtro da consciência, se torna “memória consciente”. Dessa forma, ele define essa memória em.

A lembrança é o complemento da ‘vivência’. Nela se sedimenta a crescente auto-alienação do ser humano que inventariou seu passado como propriedade morta. [...] A relíquia provém do cadáver, a lembrança, da experiência morta, que eufemisticamente se intitula vivência. (BENJAMIN, 2000, p. 172).

A memória assim entendida “cataloga seu passado” e o priva totalmente de sua pulsão alteradora-revolucionária e antecipadora, fazendo com que ele se torne simples experiência extinta. Por outro lado, existe, segundo Benjamin, certo desconhecimento da memória involuntária. Para Proust e também para Benjamin, de fato, não é uma escolha livre que leva à memória involuntária; sua manifestação depende, ao contrário, do caso e da ação de um objeto externo. Se o evento vivido como memória consciente é caracterizado por uma única realidade unidimensional; a memória, como a memória involuntária é, em vez disso, caracterizada por um atraso temporal. Próprio desta memória é o tempo das “correspondências” baudelairianas, uma verdadeira máquina temporal: “Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois”. (BENJAMIN, 1987, p. 37).

Em uma situação como a que acabamos de descrever, em que todo evento é esterilizado e enfraquecido pela ação da consciência, tornando-se uma experiência vivida, o tempo em que a poesia lírica foi possível parece ser definitivamente encerrado. É aqui que o poeta Baudelaire entra em cena. Sua tentativa de responder aos lampejos da sociedade moderna é representada, por Benjamin, no seu sofrer diretamente os golpes e o impacto da multidão, deixando-se deslumbrar com a “fantasmagoria dos bens” e sua “flânerie”. Tentativa de “aparar” os choques também são suas “correspondências”. Assim, Benjamin as descreve: “As correspondências são os dados de rememoração. Não são dados históricos, mas da pré-história. Aquilo que tornam grandes e significativos os dias de festa é o encontro com uma vida anterior” (BENJAMIN, 2015, p. 213). As correspondências têm algo de “aurático” e idílico, estas são nostalgia e analogia com uma vida anterior. As “correspondências” buscam abrigo “no encontro com uma vida anterior”, seu fracasso é contrabalançado em outra época, a do Spleen em que: “o tempo reifica-se; os minutos cobrem o homem como flocos de neve. Esse tempo é a-histórico, tal como o da mémoire involontaire. Mas no Spleen a percepção do tempo aguça-se de forma sobrenatural, cada segundo encontra a consciência pronta para amortecer o seu choque” (BENJAMIN, 2015 p. 222). O Spleen é a dor de viver do poeta, sua ansiedade e tormento é a resposta do poeta para uma sociedade moderna que o domina. Este é contrastado pelo tempo do Ideal, tempo perfeito, cujos valores de beleza e arte não podem mais voltar, mas apenas ser lembrados. É na dialética entre o tempo do Spleen e do Ideal que Baudelaire encontra a “verdadeira experiência histórica”, onde Bergson, em sua concepção de durée, a evita completamente. Podemos vislumbrar, neste ponto, como na dialética das correspondências e na memória involuntária, Benjamin vê uma temporalidade muito próxima da buscada por ele em suas Teses com o Jetztzeit. De fato, essa concentração rapsódica e a imagem do relâmpago são as mesmas com as quais a “imagem dialética” é descrita nas Passagens:

A imagem dialética é uma imagem que lampeja. É assim, como uma imagem que lampeja no agora da cognoscibilidade, que deve ser captado o ocorrido. A salvação que se realiza deste modo – não pode se realizar senão naquilo que estará irremediavelmente perdido no instante seguinte. (BENJAMIN, 2018, p. 784).

Rememoração e redenção

A experiência mais “antropológica” da rememoração analisada até agora é acompanhada pela mais especificamente teológica:

Esta [a rememoração] pode tornar o inacabado (a felicidade) em algo acabado e o acabado (o sofrimento) em algo inacabado. Isso é teologia; na rememoração, porém, fazemos uma experiência que nos proíbe de conceber a história como fundamentalmente ateológica, embora tampouco nos seja permitido tentar escrevê-la com conceitos imediatamente teológicos. (BENJAMIN, 2018, p. 781).

Na lembrança e na rememoração experimentamos a teologia buscando o originário, segundo nosso filósofo, no incompleto e fragmentado. Mas isso não significa ser capaz de escrevê-lo nesses mesmos termos, mas apenas ser capaz de pensar sobre isso. O que Benjamin quis dizer com isso? Isso significa que, embora ao dar voz àquele eco, àquele lamento, àquele sopro de vento que permaneceu silencioso, experimentamos o que foi removido naquele passado e que ora pede justiça; ao mesmo tempo, porém, isso acontece em um plano histórico e profano que não pode ser “teologizado”. Essa relação é bem expressada pela metáfora do “papel absorvente”, através da qual Benjamin descreve seu pensamento como imbuído da tinta da teologia. A tinta, de fato, é destinada a ser cancelada se for apenas pela “absorvência” do papel. A lembrança, contudo, continua sempre permanecendo aquele “fio de palha” à qual o homem pode se apegar, a “garantia” de que a redenção pode ser antecipada. Ela permite pensar em uma história diferente do positivismo e de suas leis que, através do “princípio de identificação com o que foi”, elimina qualquer “eco de reclamação” e “qualquer coisa que lembre o destino original da história como rememoração” (BENJAMIN, 1997, p. 100. Tradução nossa).

A rememoração e não o futuro dos adivinhos, como “essência” da concepção judaica da história, é o meio através do qual podemos antecipar a vinda do Messias porque “cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias” (BENJAMIN, 1987, p. 232). É evidente que tal formulação de apreensão do passado reverte qualquer conceitualização historiográfica tradicional, mas isso não vale para o historiador materialista que tem a teologia a seu serviço, que de fato “pratica em sua maneira uma espécie de análise espectroscópica. Assim como o físico vê um raio ultravioleta no espectro solar, ele também vê uma força messiânica na história” (BENJAMIN, 1997, p. 101. Tradução nossa). É através da rememoração que os inacabados, os imperfeitos da história e aqueles que Hannah Arendt chamou de “párias” podem escapar de seu determinismo e através do historiador materialista e do revolucionário se vingar. A história fragmentada deles pode se tornar um todo coletivo, somente se essa também é uma história do que não aconteceu, mas do que permaneceu aberto o máximo possível e exige sua salvação13. É na teologia que podemos experimentar a categoria metahistórica da justiça. É esse aspecto que fez Horkheimer falar em uma carta de 1937 de uma reivindicação “idealista” dessa concepção de história:

A afirmação do não inacabamento é idealista, se nela não está contido o acabamento. A injustiça passada aconteceu e está consumada, acabada. As vítimas de assassinato foram assassinadas de fato... Se levarmos o inacabamento a sério, teremos que acreditar no Juízo Final... Quanto ao inacabamento, talvez exista uma diferença entre o positivo e o negativo, de forma que a injustiça, o terror, e as dores do passado são irreparáveis. (BENJAMIN, 2018, p. 781).

O fato de a força messiânica do homem ser fraca significa afirmar que esta não é suficiente. Mesmo que através da lembrança essa força se torne o ponto de união entre as instâncias antecipadoras do Reino e as revolucionárias, ela só pode mostrar seu lado melancólico14. A redenção do futuro do passado é, em última análise, a resposta que Benjamin dá à catástrofe do presente, à visão de uma infinita perfeição humana e ao mito do progresso. Ele não olha aqui para o futuro das cartomantes, mas olha para o passado de ruínas diante dele, assim como o anjo da história. A redenção, portanto, não é algo a ser procrastinado em um futuro incerto, mas é caracterizada pela iminência de cada momento que pode ser o último, o decisivo: “cada segundo era a pequena porta pela qual o messias poderia entrar”. Este conceito adotado do Rosenzweig na Estrela da Redenção assume uma mudança de perspectiva. Se para o teólogo: “é o poder ser o último que torna o momento eterno. [...] Sem essa antecipação e a restrição interior para realizá-la, sem “querer levar o Messias antes do tempo” e sem a tentação de “fazer violência ao reino dos céus”, o futuro não é um futuro, mas apenas um passado arrastado por um tempo infinito e projetado para frente” (ROSENZWEIG, 2008 p. 235), para Benjamin, no entanto, sem “fazer violência ao reino do céu” não é o futuro que provavelmente se perderá, mas o passado no qual foram espalhadas “faíscas” de um futuro não expresso. Somente através de uma humanidade que redimiu seu passado, pode haver redenção para as gerações vindouras.

Resgatar o passado por Benjamin enfim significa também poder citá-lo. A citação, de fato, tem um exemplo salvífico que rasga e destrói e, ao mesmo tempo, purifica. A citação com um poder quase taumatúrgico faz justiça a esse passado em retrospecto. O revolucionário Robespierre cita a Roma antiga em sua luta, cita a classe vingadora por excelência, a classe dos oprimidos15. Isso até o ponto em que a miragem do progresso seduziu todos e a social-democracia traiu sua própria tarefa, revertendo os termos e fazendo das gerações sucessivas a classe a ser libertada e não a anterior16. Mas citar em Benjamin não significa repetir o que já aconteceu na história e nem mesmo celebrar, emblema do modus operandi da classe dominante17, mas vingar com um salto o continuum da história:

A celebração ou apologia está empenhada em encobrir os momentos revolucionários do curso da história. Ela almeja intensamente a produção de uma continuidade [...] Escapam a ela os pontos nos quais a tradição interrompe e, com isso, escapam-lhe as asperazes e as saliências que oferecem um apoio àquele que pretende ir além (BENJAMIN, 2018, p. 785).

É significativo como, de fato, o sinônimo usado pelo filósofo alemão para celebração seja “apologia”, quase como se essas encenações não pudessem prescindir, aos olhos de Benjamin, de celebrar também o luto pelo que cometeram. Mas é apenas em frente à “corte marcial” de Kafka, no entanto, que a redenção “completa” reside, é apenas na plenitude de cada momento vivido que se torna citável que o julgamento final chega. Os calendários nesse sentido agem como precursores e testemunhas; neles, de fato, através da lembrança, antecipamos a redenção. Os feriados judaicos são um exemplo, o Shabbat, na verdade, nada mais é do que a “antecipação semanal” do advento do messias, Lo Yom Kipur, o Dia da Expiação, no sábado aos sábados. Assim Rosenzweig define essas festas da lembrança:

Sábado é a festa da redenção e é duplamente verdade, em ambos os seus fundamentos, tanto como um lembrete da obra do começo, porque celebra o descanso divino do sétimo dia e como um dia comemorativo da libertação da casa da escravidão no Egito, pois seu propósito é que o servo e o servo descansem como seu senhor. Nela, a criação e a revelação fluem para o restante da redenção. (ROSENZWEIG, 2008, p. 367. Tradução nossa).

Aceleradores históricos assim são definidos por Benjamin os calendários. Eles sempre marcam um novo começo, um novo começo que sempre retorna diferente e que pode, no entanto, ser decisivo. Rosenzweig: “Sábado é o sonho da realização, mas é apenas um sonho. [...] É também e acima de tudo a antecipação da redenção” (ROSENZWEIG, 2008, p. 322. Tradução nossa).

Concluindo este artigo, podemos dizer que o passado em Benjamin não é concluso, de-finito, algo pré-fechado para nós e para o qual podemos virar as costas sem serem perturbados. Mas este quebra e interrompe o silêncio de um presente que, de outra forma, seria eternamente dilatado e projetado para frente. É na interseção entre um passado próximo sempre iminente e um passado como futuro anterior que, nesse sentido, situa-se a particular temporalidade benjaminiana.

Referências

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BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política – Obras escolhidas; v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas; v. 3. São Paulo: Brasiliense, 1989.

BENJAMIN, W. Parque Central. In: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas; v. 3. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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BONOLA, G.; RANCHETTI, M., Introdução. In: BENJAMIN, W. Sul concetto di storia, trad. it di Bonola e Ranchetti. Torino: Einaudi, 1997.

BRETAS, A., A constelação do sonho em Walter Benjamin. São Paulo: Humanitas, 2008.

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DESDERI, F. Il tempo e le forme. Roma: Editori Riuniti, 1980.

GAGNEBIN, J. M, Walter Benjamin – Esquecer o passado? In: Walter Benjamin. Experiência histórica e imagens dialéticas. São Paulo: UNESP, 2015.

SCHOLEM, G. Walter Benjamin e il suo angelo. Milano: Adelphi: 2007.

SZONDI, P. Speranza nel passato. Su Walter Benjamin. In: Aut Aut, n. 189-190 p. 10-24, 1982.

Notas

3 Com essas palavras Bertolt Brecht, após a morte do “corpo torturável”, comentando as teses, diz: “B[enjamin] se volta contra os conceitos de história como desenvolvimento, progresso como empreendimento vigoroso de mentes descansadas, trabalho como fonte de moralidade e classe trabalhadora como protegidos da tecnologia etc. Zomba da frase, que frequentemente se ouve repetir, do fato de que é surpreendente que algo como o fascismo tenha aparecido novamente neste século (como se não fosse fruto de todos os séculos). Em suma, o breve trabalho é claro e esclarecedor [apesar de todas as suas metáforas e seu judaísmo] […]”. (BRECHT, 1980, p. 307. Tradução nossa).
4 Como Cases diz a esse respeito: “Benjamin é bom para todos: para o pensamento negativo, para o marxismo anti-hegeliano e utópico, para a estética da recepção, para o que quer transformar o receptor em produtor, para bordadeiras de elzevir e destiladores de aforismos, para os revolucionários moleculares de roda livre, bem como para a filosofia bizarra, que o confunde com Hermann Hesse porque ambos provaram um pouco de drogas”. (CASES, 1987, p. 59. Tradução nossa).
5 Assim Jeanne Marie Gagnebin escreve a respeito do particular historicismo de Walter Benjamin: “Benjamin coloca algumas balizas para uma historiografia verdadeiramente “militante”; não porque militaria em favor de um partido ou de uma tendência, mas porque milita por uma memória do passado que permite não só salvar a memória dos vencidos, mas também liberar outras possibilidades de luta e de ação no presente do historiador – no seu caso, um presente paralisado pelo fascismo e pelos dogmatismos tanto da historiografia burguesa quanto do marxismo ortodoxo e stalinista”. (GAGNEBIN, 2015, p. 8).
6 Assim Alexia Bretas escreve sobre a importância do sonho em Benjamin: “Apesar de toda a ambiguidade inerente a formulação, isso não quer absolutamente dizer que Benjamin seja um “sonâmbulo” – na acepção metafórica do termo. Pelo contrário. Aqui, sua intenção é claramente metódica: mostrar a presença de aspectos considerados oníricos, no âmago mesmo da realidade tida como “vigília”. Esta, aliás, é uma de suas realizações”. (BRETAS, 2008, p. 27).
7 Assim Benjamin escreve a este respeito: “A revolução copernicana na visão histórica é a seguinte: considerava-se como o ponto fixo “o ocorrido” e conferia-se ao presente o esforço de se aproximar, tateante, do conhecimento deste ponto fixo. Agora esta relação deve ser invertida e o ocorrido, tornar-se a reviravolta dialética, o irromper da consciência dialética”. (BENJAMIN, 2018, p. 660).
8 A este respeito Benjamin escreve: “Ele [o surrealismo] pode orgulhar-se de uma importante descoberta. Foi o primeiro a ter pressentido as energias revolucionarias que transparecem no “antiquado”, nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas primeiras fotografias, nos objetos que começam a extinguir-se, nos pianos de cauda, nas roupas de mais de cinco anos, nos locais mundanos, quando a moda começa a abandoná-los”. (BENJAMIN, 1987, p. 25).
10 Assim também nas Passagens é descrito esse momento explosivo operado pelo materialismo histórico: “O materialismo histórico precisa renunciar ao elemento épico da história. Ele arranca, por uma explosão [sprengt ab]”, a época da ‘continuidade da história reificada’. Mas ele faz explodir [sprengt auf] também a homogeneidade dessa época, impregnando-a com ecrasite, isto é, com o presente. (BENJAMIN, 2018, p. 785)
11 Sobre a comparação entre Proust e Benjamin, é interessante observar o que Szondi escreve: “Proust busca no passado escapar, na coincidência do passado e do presente – uma coincidência provocada por experiências semelhantes –, na época, para escapar primeiro do futuro, seus perigos e ameaças, entre os quais o último é a morte. Benjamin, por outro lado, olha para o futuro no passado. [...] Proust ouve os sons que vêm do passado, Benjamin aqueles que antecipam um futuro que, entretanto, se tornou passado. Ao contrário de Proust, Benjamin não quer se livrar da temporalidade, ele não quer contemplar as coisas em sua essência a-histórica, mas visa a experiência e conhecimento históricos; no entanto, é rejeitado no passado, em um passado que não está concluído, mas é aberto e promete um futuro”. (SZONDI, 1982, p. 9. Tradução nossa).
12 Desta forma Benjamin fala sobre isso nas Passagens: “A crença no progresso, em sua infinita perfectibilidade – uma tarefa infinita da moral -, e a representação do eterno retorno são complementares. São as antinomias indissolúveis a partir das quais deve ser desenvolvido o conceito dialético de tempo histórico. Diante disso, a ideia do eterno retorno aparece como o “racionalismo raso”, que a crença no progresso tem a má fama de representar, sendo que esta crença pertence à maneira de pensar mítica tanto quanto a representação do eterno retorno”. (BENJAMIN, 2018, p. 223).
13 Salienta-se aqui a dimensão eminentemente coletiva da rememoração em Benjamin. Assim Jeanne Marie Gagnebin escreve a este respeito: “Devemos observar que a rememoração é coletiva e politica, mesmo que tenha suas fontes numa teologia do lembrar”. (GAGNEBIN, 2015, p. 9).
14 Como Schiavoni escreve a este respeito: “A força messiânica que atua na história parece muito fraca; e a expectativa do Messias (que terá que resolver as distorções e interromper o continuum histórico) é quase desesperadora”. (SCHIAVONI, 2001, p. 264. Tradução nossa).
15 Em relação ao papel persistente desempenhado pela lembrança em Benjamin, é interessante notar o que Löwy escreve: “A insistência de Benjamin nos antepassados derrotados pode parecer surpreendente. [...] Sugere o imperativo judaico: Zachor!, “lembra”. Lembre-se de seus ancestrais escravos no Egito, massacrados por Amaleque, exilados na Babilônia, escravizados por Tito, queimados vivos pelos cruzados e assassinados nos pogroms”. (LÖWY, 2005, p. 110).
16 Assim Benjamin a este respeito diz: “É na tradição dos oprimidos que a classe trabalhadora aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora e libertadora. Essa consciência foi abandonada pela social-democracia desde o início. Ele atribui à classe trabalhadora o papel de gerações por vir”. (BENJAMIN, 1997, p. 81. Tradução nossa).
17 Assim Jeanne Marie Gagnebin esclarece como a rememoração não tenha nenhum elemento comemorativo: “ Agora, se a ‘rememoração’ (Eigedenken) é coletiva e política, ela não é de jeito nenhum uma ‘comemoração’ oficial, organizada com bandeiras, desfiles ou fanfarras para comemorar uma vitória, ou então, pedir perdão, imposto ou de uma ‘memória impedida’, como Paul Ricouer definiu muito acertadamente o conceito de anistia. (GAGNEBIN, 2015, p. 12).
1 Este texto compõe parte da tese intitulada “Tempo e origine in Walter Benjamin”, sob orientação do professor Dr. Pierfrancesco Fiorato, defendida na Università degli Studi di Sassari (UNISS), Sassari, Itália.

Autor notes

2 Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo – SP, Brasil. Bolsista do(a): Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil.


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