Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


A crítica à democracia liberal em Carl Schmitt e Robert Kurz: um estudo comparativo
The criticism of liberal democracy in Carl Schmitt and Robert Kurz: a comparative study
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 3, pp. 194-210, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepção: 20 Junho 2020

Aprovação: 05 Outubro 2020

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i3.1902

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar comparativamente as semelhanças contidas nas críticas à democracia liberal presentes em alguns trabalhos selecionados de Carl Schmitt (1888-1985) e Robert Kurz (1943-2012). A despeito da estreita associação do primeiro autor com o regime nazista após 1933 e do segundo ser normalmente caracterizado como um pensador marxista (embora bastante crítico ao marxismo “ortodoxo”), são verificáveis inúmeras similitudes entre ambos quando se propõem a analisar as características do liberalismo parlamentar das democracias do século XX. Uma hipótese que pode explicar tais semelhanças seria a influência exercida por Schmitt sobre diversos teóricos da escola de Frankfurt, com os quais Kurz frequentemente dialoga em seus escritos e que foram inspiradores de algumas de suas reflexões – em especial, Walter Benjamin, Theodor Adorno e Max Horkheimer, embora Schmitt também tenha influenciado Franz Neumann, Otto Kirchheimer, Karl Korsch e Herbert Marcuse. Outra via de interpretação abordada aqui se refere à possibilidade de Schmitt ter encontrado, em suas teorias sobre o Estado e sobre o direito, os limites epistemológicos do liberalismo moderno, o que constitui o principal objeto de pesquisa de Kurz e foi tema recorrente nos escritos dos teóricos de Frankfurt.

Palavras-chave: Carl Schmitt, Robert Kurz, Democracia Liberal, Crítica do Valor, Escola de Frankfurt, Teoria Crítica.

Abstract: This article aims at comparing the similarities contained in criticism of liberal democracy present in some selected works of Carl Schmitt (1888-1985) and Robert Kurz (1943-2012). In spite of the close association of the first author with the Nazi regime after 1933 and of the second being normally characterized as a Marxist thinker (although very critical to "orthodox" Marxism), numerous similarities between the two are verified when they attempt to analyze the characteristics of parliamentarian liberalism in twentieth-century democracies. One hypothesis that might explain such similarities would be the influence exercised by Schmitt on Frankfurt School theoreticians, from whom Kurz often draws inspiration in his writings – in particular, Walter Benjamin, Theodor Adorno and Max Horkheimer, although Schmitt also influenced Franz Neumann, Otto Kirchheimer, Karl Korsch and Herbert Marcuse. Another interpretation addressed here refers to the possibility that Schmitt found, in his theories about the State and about law, the epistemological limits of modern liberalism, which constitutes Kurz’s main research subject and was a recurring theme in the writings of the Frankfurt theorists.

Keywords: Carl Schmitt, Robert Kurz, Critique of Value, Liberal Democracy, Frankfurt School, Critical Theory.

Introdução

Carl Schmitt (1888-1985) foi um jurista e teórico político alemão. Seu trabalho possui grande influência na teoria política, na teoria do direito e na filosofia continental, e permanece tão influente quanto controverso devido à sua estreita associação jurídica e política com o nazismo. Os principais temas sobre os quais se debruçou foram o estado de exceção, a social-democracia, o liberalismo político (por uma perspectiva crítica), as relações entre teologia e política, o poder, a violência e a materialização dos direitos. Tendo sido seminarista quando jovem e com tendências conservadoras, foi fortemente influenciado pela teologia católica e por filósofos do início do período moderno, como Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. Em 1933, mesmo ano em que se tornou professor da Universidade de Berlim, filiou-se ao partido nazista, no qual permaneceu até o final da Segunda Guerra Mundial. Acabou por receber a alcunha de “jurista de Hitler” após seu interrogatório no Tribunal de Nuremberg (que nunca o acusou formalmente de crimes), passando a ser visto como um dos muitos intelectuais que legitimaram o regime nazista ou, ao menos, omitiram-se a respeito.

Robert Kurz (1943-2012) foi um pensador marxista, crítico social e jornalista de nacionalidade alemã. Foi membro do corpo editorial da revista Krisis: Kritik der Warengesellschaft .Krisis: crítica da sociedade da mercadoria), fundada em 1986. Em 2004 o Grupo Krisis sofre uma cisão, e Kurz, em conjunto com outros ex-integrantes, funda a revista EXIT! – Kritik und Krise der Warengesellschaft .EXIT! – Crítica e Crise da Sociedade da Mercadoria). A maioria de seus trabalhos ainda não foram lançados em português, embora alguns livros, artigos e entrevistas tenham sido traduzidos por estudiosos de variadas áreas. Muitos de seus textos foram publicados na Folha de S. Paulo ao longo dos anos 1990, e atualmente seu pensamento tem sido divulgado em Portugal pela editora Antígona e pelos tradutores da versão lusófona da EXIT!, cuja página eletrônica tem organização de José Neves. Os intelectuais que deixaram suas contribuições para a Krisis e para a EXIT! passaram a ser conhecidos como membros de uma vertente teórica chamada de “crítica do valor” (Wertkritik).

Este artigo tem como propósito analisar as críticas ao liberalismo contidas em alguns dos escritos de Schmitt e Kurz, que apresentam incríveis semelhanças a despeito da distância temporal e ideológica que os separa. Algumas hipóteses que podem ser levantadas para explicar tais semelhanças são: 1) o liberalismo, tema que é analisado por ambos, não apresentou mutações ideológicas ou práticas substanciais entre o período da República de Weimar e os dias atuais; 2) Schmitt teve influência direta sobre alguns teóricos da Escola de Frankfurt, que serviram de fonte de inspiração a Kurz em diversos momentos de sua carreira; 3) Schmitt pode ter encontrado, em sua teoria legal e política, elementos que apontam para os limites epistemológicos da constituição de todos os estados modernos sem que isso o tenha levado a realizar uma crítica dos mesmos, algo que Kurz, por sua vez, se propôs a fazer e assumiu como objeto de pesquisa – tendo, no entanto, sido interrompido em seu intento devido a uma morte prematura.

O artigo é dividido em quatro partes. Na primeira, são expostas as críticas de Schmitt ao liberalismo. Na segunda, as críticas de Kurz, com destaque para as semelhanças e diferenças entre ambos. Na terceira, a exposição volta-se para as influências que Schmitt exerceu sobre os frankfurtianos e estes, por sua vez, sobre Kurz. Na quarta, são analisadas as implicações destas semelhanças, influências e diferenças sobre a crítica do valor e sobre o trabalho filosófico de Kurz, bem como sobre as aporias encontradas pela teoria política na contemporaneidade.

As críticas de Schmitt ao liberalismo

De acordo com Bielefeldt (1997, p. 66), Schmitt procura desacreditar o liberalismo por duas vias. Em primeiro lugar, os princípios da neutralidade e do estado de direito, bem como o projeto liberal de uma democracia constitucional, estariam apoiados sobre premissas contraditórias. Desta forma, constituiriam um tipo de autoengano presunçoso. Em segundo lugar, ele acusa os liberais de hipocrisia: ao invocarem princípios supostamente universais, os liberais estariam apenas escamoteando suas agendas particulares e objetivos econômicos egoístas.

Para Schmitt o liberalismo, cheio de “negações” e “despolitizações”, não seria de fato uma teoria do Estado ou uma ideia política, uma vez que

o liberalismo, na verdade, não negou radicalmente o Estado, também não encontrou, por outro lado, uma teoria do Estado positiva e uma reforma do Estado própria, mas procurou apenas vincular o político a partir do ético e submetê-lo ao económico; ele criou uma doutrina da repartição e do equilíbrio dos ‘poderes’, isto é, um sistema de obstruções e controlos do Estado que não se pode designar como teoria do Estado ou como princípio de construção político (SCHMITT, 2016, p. 109).

Schmitt afirma, seguindo a linha de Donoso Cortés, que o liberalismo burguês possui a tendência de assumir um ponto de vista pretensamente “neutro” em relação a conflitos de ordem teológica, moral, ideológica e política, levando a infindáveis debates procedurais que apenas evitam qualquer tomada de decisão. Tal “falta de substância” (BIELEFELDT, 1997, p. 66), “insegurança” e “imaturidade” (SCHMITT, 1985, p. 59) teriam sido observadas na monarquia de julho, na França:

Seu constitucionalismo liberal tentou imobilizar o rei através do parlamento, mas permitiu que ele permanecesse no trono, uma inconsistência cometida pelo deísmo quando excluiu Deus do mundo, mas permaneceu apegado à sua existência (aqui Donoso Cortés adotou de Bonald o paralelo imensamente frutífero entre a metafísica e a teoria do estado). Embora a burguesia liberal quisesse um deus, seu deus não poderia se tornar ativo; queria um monarca, mas ele tinha que ser impotente; exigiu liberdade e igualdade, mas limitou os direitos de voto às classes proprietárias, a fim de garantir a influência da educação e da propriedade na legislação, como se a educação e a propriedade autorizassem essa classe a reprimir os pobres e sem instrução; aboliu a aristocracia do sangue e da família, mas permitiu o governo imprudente da aristocracia endinheirada, a forma mais ignorante e mais ordinária de aristocracia; não queria nem a soberania do rei nem a do povo. O que realmente queria? (SCHMITT, 1985, p. 59-60, tradução livre).

De destaque seria o fato de que tal tendência liberal ao adiamento das decisões teria como efeito diluir as verdades metafísicas nos debates, de modo que os postulados da liberdade de discurso, da liberdade de imprensa, de ofício e de comércio – os compromissos centrais da classe burguesa – teriam o núcleo metafísico do qual se originam escamoteados (SCHMITT, 1985, p. 62-63; MEHRING, 1997).

É válido ressaltar que Schmitt define o político em termos da distinção entre “amigo” e “inimigo” com a possibilidade (ainda que meramente hipotética) de conflito violento; isso o leva a postular que os fenômenos propriamente políticos se dão na esfera que não somente é capaz de nomear o “inimigo”, mas que possui o jus belli, ou seja, a prerrogativa de proclamar o enfrentamento violento e exigir de seus membros o sacrifício da vida, como combatentes, com vistas à eliminação do outro (SCHMITT, 2016, p. 83-96). Desta maneira, em seu entendimento, não existe uma política liberal pura e simples, mas apenas uma crítica liberal da política (SCHMITT, 2016, p. 123); o pensamento liberal contorna os fenômenos políticos pois seria um contrassenso se uma ideologia que coloca a liberdade individual como axioma central admitisse a possibilidade do indivíduo entregar a alguém diferente de si próprio a prerrogativa de dispor sobre o sacrifício de sua vida. Deste modo, o pensamento liberal sistematicamente nega a política e o Estado, e move-se entre duas esferas heterogêneas de polaridade: a da ética e a da economia (SCHMITT, 2016, p. 88-89; p. 124). O efeito seria uma ressignificação “desmilitarizada” dos termos que seriam próprios da política: “combate” torna-se “concorrência” (pelo lado econômico) ou “discussão” (pelo lado ético-espiritual); ao invés da clareza inerente às situações de “guerra” ou de “paz”, têm-se a “eterna concorrência” ou a “eterna discussão”; “Estado” torna-se “sociedade” e esta, por sua vez, adquire pelo lado ético-espiritual uma representação vaga de “humanidade” como ideal humanitário, e pelo lado econômico-técnico o caráter de um “sistema de distribuição e transporte”; dentre outros exemplos. Tais ressignificações teriam o efeito de submeter o Estado e a política a uma moral individualista que tende ao isolacionismo e a categorias econômicas consideradas autônomas, sendo que estas últimas não se deixam determinar nem pela ética, nem pela estética, nem pela religião, e nem pela política – consistindo a autonomia das leis do mercado um dogma indiscutível do liberalismo (SCHMITT, 2016, p. 126-127). Assim, através de uma pretensa neutralidade em todos os assuntos políticos, aliada ao adiamento das tomadas de decisão e a um sentido vago de humanidade destituído de finalidade comunitária, acaba por ocorrer a dissolução daquilo que é efetivamente político, ou seja, a distinção amigo-inimigo com a possibilidade de conflito – o que torna a ideologia liberal, no entendimento de Schmitt, contraditória.

Tais contradições, no entanto, não impedem que os liberais busquem promover suas agendas políticas: a pretensa neutralidade e universalidade que apregoam – bem como a insistência nos debates puramente procedurais que adiam eternamente a tomada de decisões – serviriam unicamente como meio de salvaguardar ou promover seus interesses econômicos privados. O humanismo vago dos liberais acaba por servir de instrumento ideológico para conflitos bastante concretos entre Estados e para a expansão de imperialismos econômicos, negando ao inimigo a qualidade de humano (SCHMITT, 2016, p. 98-99). Mesmo fora da eventualidade de um conflito aberto e da exigência do sacrifício, a sociedade economicamente determinada coloca os elementos considerados “perturbadores” ou “indesejados” fora de seu círculo, condenando-os à fome e eliminando-os de uma maneira “não-violenta” (SCHMITT, 2016, p. 88-89).

O conceito de “estado de direito” – central para o constitucionalismo liberal – seria, para Schmitt, outro exemplo de tais contradições e hipocrisias. O estado de direito sugere a primazia de princípios normativos sobre posições e decisões políticas concretas. Porém, princípios normativos não podem ter efeito sobre uma sociedade a menos que sejam interpretados por agentes particulares e aplicados a circunstâncias particulares. Perspectivas particulares estariam, portanto, sempre envolvidas na implementação de princípios normativos e enfraquecem sua pretensão de validade universal (BIELEFELDT, 1997, p. 67).

É relevante o fato de que Schmitt considera constitucionalismo e democracia como inerentemente conflituosos. Uma democracia constitucional, em sua concepção, é autocontraditória, produzindo uma tensão subjacente que tende ao colapso. Em sua teoria constitucional, Schmitt define democracia como uma forma particular de soberania política que é exercida pela unidade coletiva do povo, uma unidade que reside em alguma forma de “homogeneidade substancial” particular – tradição, língua, origem étnica, religião, ideologia, etc.; o que confere a identidade específica a um povo é uma questão deixada em aberto (SCHMITT, 2008, p. 261-267). Tal identidade é, portanto, algo inerente ao conceito de democracia na concepção do autor. Enquanto a democracia seria uma forma de exercício da soberania política, o constitucionalismo, por sua vez, não apenas consistiria em uma série de regulamentos e mecanismos destinados a evitar a soberania política, como já mencionado, mas procura evitar a formação de identidade que seria típica da democracia enquanto regime político, através de um universalismo puramente normativo, resultando em uma forma de regime misto ao invés de uma democracia “pura” (BIELEFELDT, 1997, p. 69). No entanto, isso seria uma tendência, e não o fim inevitável de qualquer constitucionalismo liberal. De acordo com Mehring,

A análise de Schmitt dos problemas estruturais de uma constituição e as implicações constitucionais e políticas que a acompanham não devem, portanto, ser interpretadas como uma profecia da desgraça, fundamentada em uma filosofia da história. Schmitt simplesmente identifica tendências, não desenvolvimentos inevitáveis. De qualquer forma, sua hermenêutica não parece discernir a possibilidade de uma mudança na significância das instituições: pelo menos em relação ao parlamentarismo, tal nova "fundação" não está, para Schmitt (em contraste com Max Weber e outros), em vista. Ele também se inclina em direção à convicção idealista de que o declínio das ideias e legitimações é seguido por um declínio da funcionalidade institucional (MEHRING, 1997, p.118, tradução livre).

As críticas ao liberalismo em Robert Kurz

Em Kurz as críticas ao liberalismo assumem outro caráter, uma vez que se trata de um teórico marxista – embora com sérias ressalvas críticas ao marxismo “ortodoxo” e a diversas correntes de pensamento derivadas do marxismo, incluindo inúmeras escolas pós-modernas. No entanto, diversas similitudes podem ser entrevistas com as observações feitas por Schmitt. Para Kurz, a sociedade burguesa e os valores liberais instituíram aquilo que pode ser chamado de “uma metafísica do trabalho”, e o assim chamado “conflito de sistemas” do século XX – entre o ocidente capitalista e o socialismo soviético – seria mais corretamente interpretado como uma disputa entre dois modos de organização político-estatal que se utilizavam, internamente, dos mesmos pressupostos filosóficos em seus modos de reprodução social – uma vez que ambos assumiram o trabalho como fim em si mesmo e destino inescapável do homem (KRISIS, 1999; KURZ, 2015, p. 94-95; KURZ, 2004b, p. 25), em prol de uma noção abstrata de “progresso” que acaba por gerar uma filosofia da história conectada indissoluvelmente à noção de crescimento econômico e a um conceito abstrato de “homem” que corresponde aos objetivos políticos da burguesia.

A metafísica realista do trabalho e do valor é, do ponto de vista histórico, enclausurada no construto teleológico do ‘progresso’. À ontologia burguesa do trabalho, a qual define a abstração realista do ‘trabalho’ (segundo Marx, a ‘substância’ da forma valor) como eterna condição da humanidade, e à metafísica do trabalho que dela resulta, como uma suposta libertação do trabalho (e libertação mediante o trabalho), corresponde a ontologia burguesa e a metafísica do sujeito: o moderno sujeito produtor de mercadorias, isto é, o sujeito do trabalho, da circulação, do conhecimento e do Estado passa a vigorar como ‘o ser humano’ por excelência, sendo que a isso se liga a promessa metafísica de uma ‘autonomia e autorresponsabilidade’ mediante a forma burguesa de agir e pensar. A esse construto ideológico do sujeito corresponde, uma vez mais, a ontologia burguesa do progresso, a qual compreende toda a história até agora transcorrida como ascensão de uma forma mais baixa rumo a uma outra mais elevada (KURZ, 2010, p. 46).

De acordo com Kurz, o constructo ideológico do “sujeito produtor de mercadorias” teria surgido durante a Era Moderna, em particular no período do Esclarecimento. Tornou-se, porém, amplamente (e erroneamente) compreendido como sendo a-histórico. Trata-se de um sujeito abstrato (KURZ, 2010, p. 85-91 e 94-102), que não necessariamente encontra correspondência nos indivíduos concretos e históricos. É idealizado como estruturalmente masculino, branco e dotado de aparente livre vontade (que se resume, em realidade, à livre escolha das mercadorias). Ele é o portador do progresso histórico; realiza a economificação do mundo e a cisão sistemática entre pensamento e ação (e, consequentemente, entre teoria e prática), necessárias à constituição do valor. Este sujeito é forçado pelo sistema a se auto-objetificar e a objetificar outrem (KURZ, 2010, p. 37-82). Tal constructo influencia (ou até norteia) as relações humanas no âmago do sistema. Quanto aos indivíduos concretos, incapazes de se insurgirem contra sua heteronomia e dela se emanciparem, apelam a uma alegada subjetividade como forma de auto-estetização, auto-heroicização e auto-mistificação (KURZ, 2010, p. 102-112).

É notável a semelhança desta formulação com aquela apresentada por Schmitt, anteriormente descrita, na qual o liberalismo sofreria do vício de ater-se a abstrações vazias decorrentes do axioma inquestionável do individualismo, deslocando todos os fenômenos propriamente políticos para as esferas da ética ou da economia – sendo esta última considerada como autônoma e submetida a leis imutáveis. A diferença reside, essencialmente, no fato de que Kurz interpreta a moralidade burguesa como estando subordinada à noção abstrata de “progresso econômico” e à crença no trabalho como telos do homem, o que faz com que a “representação vaga de humanidade”, criticada por Schmitt, converta-se, em Kurz, no constructo do “ser humano por excelência”, que dá origem a fenômenos como o racismo estrutural, o anti-semitismo estrutural e o machismo estrutural2 (KURZ, 2016).

Também salta aos olhos o fato de que Kurz, assim como Schmitt, identifica uma hipocrisia inerente a este conjunto de ideias, que estariam a serviço da dominação econômica de alguns homens sobre outros, através de um processo de “darwinismo social neoliberal” que sistematicamente condena à morte – física ou simbólica – aqueles que não obtiveram um bom desempenho na corrida do mercado ou que não se ajustam à sociedade de mercado, considerados, portanto, como “seres humanos não-rentáveis” (KURZ, 2015, p. 71-85). Para isto contribui um processo de estetização da política que se adequa com perfeição ao individualismo do “sujeito descentrado” contemporâneo e tende a mitigar a sensação de barbárie deixada pela pobreza, pela violência e pelos conflitos civis (KURZ, 2004a, p. 111-131). Do ponto de vista geopolítico, por outro lado, as “guerras de ordenamento mundial” promovidas pelas potências econômicas e militares – em especial os EUA e seus aliados da OTAN, no mundo unipolar produzido após o colapso da URSS – são justificadas ideologicamente através de valores liberais como “direitos humanos”, “liberdade” e “progresso”, mas se destinam unicamente à promoção de uma política imperialista que acaba por dar sobrevida ao sistema econômico em crise (KURZ, 2015, p. 39-51).

Em tal conjuntura, os estados nacionais perdem quaisquer funções propriamente políticas e convertem-se em “administradores de crises” financeiras e/ou humanitárias, em especial na periferia geopolítica global, em meio aos “perdedores” da sociedade da mercadoria e do consumo. Tal fenômeno não ocorreria, porém, através do mecanismo constitucionalista de contradições e negações à política descrito por Schmitt em suas obras, e sim devido ao desmonte da infraestrutura material e econômica dos estados nacionais periféricos e menos industrializados após o colapso de uma ou mais bolhas financeiras, deixando-os sem possibilidade de reação e condenando-os a um processo de “permanente crise” (KURZ, 2004a, p. 279-287; 2004b, p. 185-207). Há de se notar o caráter de “arauto do fim dos tempos” dos escritos de Kurz, o que também o diferencia de Schmitt.

As diferenças entre os dois autores podem ser observadas de forma mais clara e bem demarcada em Não há Leviatã que vos salve, um ensaio de Kurz originalmente planejado para ser dividido em três partes, das quais uma foi publicada em dezembro de 2010 e outra em julho de 2011 (o ano anterior à sua morte), no qual ele cita nominalmente – e tece críticas a – Carl Schmitt.. Neste ensaio, Kurz atribui à herança que Schmitt carrega da teologia o fato de ter enunciado com inegável clareza questões centrais da teoria do estado burguesa clássica sem, no entanto, problematizá-las ou buscar suas origens:

Assim diz a primeira frase frequentemente citada (e não poucas vezes admirada) do seu escrito com o significativo título de Teologia Política (1922): ‘Soberano é quem decide sobre o estado de excepção’. Aqui já nada é derivado nem fundamentado, mas apenas postulado, ‘decidido’ ou definido sem pressupostos. Schmitt realça com clareza que é o caso limite que determina a normalidade e não o contrário, mas ele não volta mais a colocar a questão de saber porque é isto assim e o que constitui a questão em geral. Porque ele próprio pensa a partir da normatividade (jurídica), cujo limite não concebido se lhe apresenta como monstruosidade que só pode ser dominada de modo afirmativamente autoritário e sem legitimação, ele tem de chamar em seu auxílio uma imagem a condizer: ‘O estado de excepção tem para a jurisprudência um significado análogo ao do milagre para a teologia’ (KURZ, 2011, tese 30, parágrafo 8).

Schmitt teria, no entendimento de Kurz, realizado uma “capitulação teórica incondicional” ao assumir como auto-evidente a “forma vazia” do direito de Kant e da vontade geral de Rousseau. Haveria na soberania – e no soberano, ao ser capaz de determinar o estado de exceção – uma “factualidade transcendental”, e a legalidade formal retiraria a sua legitimação, paradoxalmente, precisamente do fato de não poder ser legitimável e nem explicável, estabelecendo-se através da pura vontade ou pura força decisionista daquele (ou daqueles) que detém os meios para o exercício da violência. Um dos erros fundamentais da teoria política contemporânea, em especial as correntes ligadas ao marxismo do movimento operário, seria o de ignorar – ou de deliberadamente furtar-se a compreender – que a violência ditatorial, na sua determinação decisionista, não pode ser derivada de quaisquer cálculos de interesses de classe subjetivos. Ela seria, por natureza, injustificada e irracional, algo que Schmitt admite sem as ressalvas ou pudores de seus predecessores iluministas – como Locke, Kant e Rousseau, por exemplo, que ainda buscaram algum tipo de fundamento racional para este fenômeno (KURZ, 2011, teses 29, 30 e 35).

Tais reflexões levam, por consequência, ao desconfortável reconhecimento de que a base de todo o direito moderno teria um caráter anômico, não constituindo nada mais do que a autonomia do aparelho de força em relação às outras “máscaras” da sociedade. As sociedades contemporâneas, nas quais predomina o caráter automático do sujeito, teriam se constituído historicamente a partir da infundamentabilidade da “vontade geral” e da sua legalidade com base no formalismo contratual. A admissão deste fato por Schmitt não teria sido recebida com prazer pelos teóricos da política, mas a democracia teria procedido na prática exatamente desta forma desde seus primórdios, apesar das diversas justificativas ideológicas pretensamente racionais que foram apresentadas ao longo dos séculos (KURZ, 2011, tese 30).

A estatalidade democrática já vem sempre grávida com o estado de exceção […]. Schmitt reconhece que tanto para o ‘estado de natureza’ dos Leviatãs entre si como para o estado de excepção no interior de cada Leviatã é necessário definir um inimigo, ou seja, uma determinada imagem do inimigo. A legitimação do não legitimável resulta apenas negativamente, a partir da existência do inimigo simplesmente, e somente daí pode resultar um contexto positivo da socialidade assim definida, ou seja, a pseudo-fundamentação do sem fundamento (KURZ, 2011, tese 30, parágrafo 18; tese 31, parágrafo 1).

Desta forma revela-se, no entendimento de Kurz, o duplo caráter do liberalismo de origem iluminista-burguesa: da mesma maneira que a “mão invisível” do mercado precisa da concorrência universal e, com ela, da luta econômica de todos contra todos, também a forma política precisaria do inimigo interno e externo, definido simplesmente como o outro – uma vez que, nos termos do próprio Schmitt, a inimizade por razões verificáveis (interesse, cultura, representação do mundo, etc.) é excluída de partida, tendo de permanecer ela própria sem fundamentação.

O inimigo político não precisa de ser moralmente mau nem precisa de ser esteticamente feio; não precisa de agir como concorrente económico, pode até ser vantajoso fazer negócios com ele. Ele é simplesmente o outro, o estranho, e basta para a sua essência que ele seja existencialmente algo outro e estranho num sentido particularmente intensivo (SCHMITT, 2016, p. 51-52).

Esta característica inerente às democracias liberais tem, no entanto, de permanecer na penumbra, a despeito da franqueza com a qual Schmitt a admite. Daí resulta nunca ser possível ter certeza a respeito do que condiciona precisamente o estado de exceção, nem quando ele terá de ser declarado, uma vez que para isso não existe uma regra jurídica formal (KURZ, 2011, tese 33). Se toda democracia está “grávida” de um estado de exceção em potencial pois as normas estabelecidas pelo seu formalismo jurídico interno são arbitrárias, é decorrência lógica que um eventual parto tenha de ocorrer em condições igualmente arbitrárias. Similarmente, torna-se impossível saber com exatidão quanto tempo irá durar um estado de exceção, quais serão as pessoas atingidas por ele e em qual grau de intensidade serão atingidas. “O espectro vai das violações da normalidade formal minúsculas, moleculares, até à carnificina generalizada em nome da ordem” (KURZ, 2011, tese 33, parágrafo 2). O estado de exceção e os períodos de alegada normalidade jurídica equivalem-se no sentido em que ambos possuem um fim em si fetichista, consistindo em processos cegos cujo desfecho é contingente, e que têm como finalidade oculta, irrefletida (pois, se fosse um telos evidente, não se trataria um processo fetichista), impedir que quaisquer indivíduos concretos possam desligar-se da ordem vigente. Estado de direito e estado de exceção são, ao fim e ao cabo, “jogos de enganos ideológicos” ou “irmãos inimigos”, em uma dinâmica de constante alternância, pois

se o verdadeiro fundamento do Estado de direito, dos direitos civis e da democracia já é sempre a violência anómica e a ditadura infundamentada em nome do fim em si transcendental inconscientemente pressuposto, então tratam-se de diferentes medidas e modos de proceder no mesmo contexto formal (KURZ, 2011, tese 33, parágrafo 6).

Por fim, no entendimento de Kurz, Schmitt teria encontrado reconhecimento e admiração não apenas em meio às forças conservadoras de direita, reacionárias, fascistas ou nacional-socialistas, mas também, de forma embaraçada, em meio a liberais e em parte do pensamento de esquerda aparentemente radical, por ter tocado em um ponto nevrálgico do alicerçamento fetichista das sociedades capitalistas – sem, no entanto, que tal franqueza sobre os segredos íntimos das democracias modernas tenha se convertido em crítica radical aos seus pressupostos (KURZ, 2011).

A influência da Escola de Frankfurt sobre Robert Kurz e de Carl Schmitt sobre os frankfurtianos

Em princípio, as semelhanças entre os posicionamentos dos dois autores, a despeito das críticas que Kurz faz a Schmitt, não seriam suficientes para sugerir a influência de um sobre o outro – seja por via direta ou indireta. No entanto, cabe ressaltar a forte influência teórica que Kurz recebeu da Escola de Frankfurt, em especial de Theodor Adorno (1903-1969), que por sua vez pode ter recebido influências teóricas de Carl Schmitt. Como nos informa Ângelo Novo,

Kurz foi maoísta nos anos 1970 e nos anos 1980 fundou o grupo Initiativ Marxistische Kritik, com uma amálgama de influências de Adorno e Lenine. O seu nome começou a ficar internacionalmente conhecido sobretudo através da revista Krisis, da qual foi editor […]. A escola de Kurz, para não se designar pelo seu nome próprio, ou pelo de alguma das publicações por ele editadas, costuma denominar-se também como ‘crítica do valor’, embora esta se reclame de uma certa genealogia intelectual que recua até Gyorgy Lukács (o de ‘História e Consciência de Classe’), Isaak Rubin e Roman Rosdolsky, reclamando também afinidades com outros pensadores actuais, como o norte-americano Moishe Postone e o francês Jean-Marie Vincent (NOVO, 2007, p. 173).

Novo refere-se ao seguinte trecho da obra mais conhecida em língua portuguesa de Anselm Jappe, As Aventuras da Mercadoria, na qual este também reconhece a influência de Adorno sobre a crítica do valor e sobre Kurz:

A crítica do valor tem os seus antecedentes nos anos vinte com dois trabalhos: História e consciência de classe, de György Lukács, e os Estudos sobre a teoria do valor, de Isaak Rubin. Continua depois por entre as linhas dos escritos de Theodor Adorno, para encontrar o seu verdadeiro nascimento por volta de 1968, quando em diferentes países (Alemanha, Itália, EUA) autores como Hans-Jürgen Krahl, Hans-Georg Backhaus, Lucio Colletti, Roman Rosdolsky ou Fredy Perlman trabalham em torno do mesmo assunto. Desenvolve-se posteriormente, a partir da segunda metade dos anos oitenta, com autores como Robert Kurz, na Alemanha, Moishe Postone, nos Estados Unidos, e Jean-Marie Vincent, em França, os quais, sem contacto entre si, chegaram, por vezes literalmente, às mesmas conclusões (JAPPE, 2006, p. 18).

Cabe aqui ressaltar dois pontos: em primeiro lugar, Jappe também foi membro do grupo Krisis – embora “não fazendo propriamente parte do círculo” (NOVO, 2007) – e, em segundo, Adorno, ao lado de Benjamin, é um dos autores mais frequentemente citados nos escritos de Robert Kurz; ambos ficam atrás, em número de menções, apenas de Marx e de Roswitha Scholz, sendo esta última a fonte das reflexões de Kurz a respeito do caráter inerentemente androcêntrico das sociedades modernas.

Em um artigo um tanto controverso. publicado nos idos de 1986-1987, Ellen Kennedy observa que, devido à colaboração de Carl Schmitt com o regime nazista, a poderosa influência de seu antiliberalismo no pensamento político contemporâneo, especialmente nas esquerdas, tem sido escamoteada e obscurecida por se tratar de um “pensador fascista” – principalmente se a referência for a esquerda alemã, como é o caso de Kurz, Jappe e dos frankfurtianos. Uma “aversão comum ao liberalismo e ceticismo a respeito da democracia liberal” (KENNEDY, 1987a, p. 38) teria atraído diversos intelectuais à teoria legal e política de Schmitt, a despeito da evidente divergência de valores e objetivos.

Para Kennedy, as teorias de esquerda são antiliberais em sua essência, e a mais coerente crítica às instituições liberais realizada no século XX teria sido a de Schmitt (KENNEDY, 1987a, p. 39). O trabalho dele analisou as contradições das social-democracias e do constitucionalismo “burgueses” – o ponto de partida de cada crítica radical aos sistemas representativos e suas instituições políticas desde a revolução francesa – em termos de uma teoria do estado; isto teria capturado a atenção de alguns teóricos da Escola de Frankfurt, que o “traduziram” nos termos políticos da esquerda (KENNEDY, 1987a, p. 42).

A influência de Schmitt sobre os frankfurtianos não é nada desprezível. É bem estabelecido que Walter Benjamin, em seus ensaios da juventude, chegou a conclusões similares às do famoso jurista em relação às democracias liberais e aos “valores burgueses” em seu ensaio A Origem do Drama Trágico alemão, que retirou inspiração metodológica da teoria da soberania presente na Teologia Política. Em realidade, Benjamin chegou a expressar sua gratidão para com Schmitt em uma carta endereçada a este último. Adorno, ao editar a primeira coleção das obras de Benjamin, suprimiu todas as referências a Schmitt e a própria correspondência (KENNEDY, 1987a, p. 44-45; WEBER, 1992, p. 5-6). Franz Neumann e Otto Kirchheimer, por outro lado, participaram dos seminários de Schmitt sobre direito constitucional em Berlim nos anos de 1930-1931, e suas publicações a respeito da crise política da República de Weimar nos anos subsequentes eram fortemente influenciadas pela análise apresentada em O Conceito do Político no tocante à autoridade presidencial, à dissolução do parlamento e ao caráter dos “direitos básicos”, bem como a sua relação com o restante da constituição. Neumann escreve a Schmitt em setembro de 1932, após a leitura de Legalitat und Legitimitat .Legalidade e Legitimidade), afirmando que concordava completamente com a parte crítica do livro. Kirchheimer, por sua vez, estudou com o famoso jurista em Bonn nos anos de 1927-1928 e compareceu aos seminários ministrados neste interstício sobre O Conceito do Político. Ele teria sido um de seus legítimos herdeiros intelectuais, o que levou Alfons Söllner a classificar seus trabalhos como “schmittianismo de esquerda” devido ao uso das mesmas metáforas e teoremas que seu antigo mestre utilizava. Em 1932, Karl Korsch escreveu entusiasticamente uma resenha sobre Der Hüter der Verfassung .O Guardião da Constituição), enfatizando precisamente os temas “de esquerda” da obra de Schmitt. No mesmo volume de Zeitschrift für Sozialforschung .Revista de Pesquisa Social) em que foi publicada a resenha de Korsch, há uma resenha elogiosa de Hans Speier a O Conceito do Político. Herbert Marcuse, ao contrário de seus pares, não possuía uma atitude tão positiva em relação aos trabalhos schmittianos. Em seu artigo de 1933 intitulado The Struggle Against Liberalism in the Totalitarian View of the State, Marcuse insurge-se contra o antiliberalismo de Schmitt. Deve ser observado que o artigo foi publicado após Hitler subir ao posto de chanceler e o Terceiro Reich ter se tornado uma realidade – o Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt havia sido fechado e seus membros encontravam-se, majoritariamente, no exílio. Sua análise, no entanto, é paradoxal, por se utilizar de diversos pressupostos schmittianos, tais como a distinção amigo-inimigo, as “contradições internas” do liberalismo que teriam dado origem ao totalitarismo de Hitler e as “origens comuns” do liberalismo e do totalitarismo. O artigo de Marcuse é o marco de uma reviravolta conceitual na qual o pensamento de Schmitt deixa de ser utilizado como uma influência positiva pela Escola de Frankfurt; a colaboração do jurista com os nazistas teria consolidado esta posição. Max Horkheimer expandiu a crítica ao liberalismo, rejeitando não apenas o pluralismo liberal como ideológico, mas começando a delinear uma crítica ao racionalismo na sociedade tecnológica que viria a se tornar um dos mais importantes elementos do pensamento da esquerda radical a partir da segunda metade da década de 1960; mais relevante, Horkheimer finalmente explicou a preocupação que os frankfurtianos apresentaram a partir de 1933 com a conexão entre liberalismo e totalitarismo – a transformação da “sociedade burguesa” em uma ditadura aberta se deu através da razão instrumental, “tecnológica” (KENNEDY, 1987a, 45-56).

Obviamente, as posições destes pensadores da Escola de Frankfurt influenciaram os trabalhos de seu colega Adorno, que por sua vez influenciaram, décadas mais tarde, Robert Kurz. Hoje tornou-se contestada a interpretação frequente. de que Adorno, em sua filosofia, dava primazia ao aspecto político e não ao aspecto econômico, por supostamente ter adotado as posições de Pollock em detrimento das de Neumann nas diferentes interpretações dos frankfurtianos a respeito do nazismo (COOK, 1998; FLECK, 2016). O próprio Adorno escreveu que considerava a obra Behemoth, de Neumann, como “a melhor apresentação socioeconômica do fascismo” (FLECK, 2016, p. 20-21, nota n° 12), o que enfraquece substancialmente o argumento de que dava preferência à descrição, concebida por Pollock, de que os nazis teriam erigido um “capitalismo de estado” – expressão que raramente aparece nos escritos adornianos e que, quando aparece, é utilizada em contextos radicalmente diferentes; por exemplo, como meio de descrever a distopia de Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo” (ADORNO, 1998, p. 94). A primazia que o autor dava ao aspecto econômico da sociedade como “motor” das transformações históricas, e que provavelmente foi a fonte de inspiração dos escritos de Kurz, foi descrita por Deborah Cook nas seguintes palavras:

Para Adorno, o Caríbdis da administração e controle do estado de bem-estar foi inquestionavelmente ofuscado pelo Cila da reificação e ‘massificação’ sob o capitalismo tardio. Para contornar o redemoinho político, é preciso primeiro passar pelo monstro econômico (COOK, 1998, p. 25, tradução livre).

É digno de destaque que, na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer demonstram grande interesse em descrever o impacto de um “aparato” econômico ostensivamente apolítico sobre os indivíduos (COOK, 1998, p. 18), à semelhança de Schmitt e, posteriormente, de Kurz. Os críticos da Aufklärung sugerem que leis e fenômenos econômicos, e não puramente políticos, acabam por ser mais determinantes que estes últimos nas sociedades contemporâneas – e por isso dedicam parte substancial da análise precisamente a fatores econômicos. Em um ensaio de 1942, intitulado Reflexionen zur Klassentheorie .Reflexões sobre a Teoria de Classes), Adorno faz considerações semelhantes. Observando o surgimento de uma nova classe dominante oligárquica em muitos países ocidentais, argumenta que esta classe teria desaparecido por trás da concentração de capital, que atingiu proporções tais e teria adquirido tal massa crítica que o próprio capital surge como uma instituição, uma expressão do todo social. Em parte, devido à concentração de capital, a classe dominante estava se tornando “anônima”, fazendo com que ficasse muito mais difícil identificar aqueles que estão no controle. A economia capitalista é descrita como “totalitária”, e seu caráter totalitário deve-se largamente à falta de competição sob condições monopolistas. Assim como Kurz viria a repetir de quatro a sete décadas mais tarde, Adorno sugeriu que aqueles que estão no topo da pirâmide social oprimiam os burgueses que lhes davam sustentação e os trabalhadores com a mesma ameaça policial, impondo sobre ambos a mesma função e as mesmas necessidades, tornando praticamente impossível que fossem vislumbradas as relações entre as classes. No ensaio Late Capitalism or Industrial Society?, de 1968, ao buscar responder a críticos que afirmavam que um livre-mercado aos moldes pregados pelos primeiros apologistas do capitalismo nunca teria de fato sido posto em prática pois sempre houve algum nível de intervenção política sobre a atividade econômica, Adorno afirma que a intervenção estatal não apenas permitiu a sobrevivência do liberalismo econômico, como garantiu sua contínua primazia na economia capitalista – e que as crescentes intervenções estatais confirmam a tendência de crise do capitalismo, tendência esta que seria o motivo pelo qual a sociedade civil estaria sempre à beira da extinção e em vias de ser substituída pelas tendências totalitárias de um mundo administrado pela técnica e na qual a “integração social” nos mais variados âmbitos (especialmente o cultural) viria a se tornar a ordem do dia (COOK, 1998, p. 19-24). Precisamente a mesma formulação pode ser encontrada no primeiro capítulo de Razão Sangrenta, de Robert Kurz, com especial destaque para as teses 12 e 13, nas quais o autor aponta ainda o papel da “lógica de identidade”, em formulação, mais uma vez, similar ao binômio amigo-inimigo de Carl Schmitt (KURZ, 2010a, p. 56-59).

Kirchheimer, por sua vez, publicou em 1939 uma ampla e pioneira análise da questão do crime e da punição no livro Punishment and Social Structure, que viria a adiantar inúmeras teses expostas posteriormente por Michel Foucault (1926-1984) em seu famoso Vigiar e Punir (1975). A temática foi retomada em 1944, na Dialética do Esclarecimento, em um fragmento em que Adorno e Horkheimer dedicam-se à temática do criminoso e das formas de punição do crime (MASSOLA, 2007, p. 134). Em ambas as obras, são ressaltados os fatores econômicos que levam as sociedades a elaborarem diferentes conceitos de crime e de punição adequada, em especial aqueles relativos à divisão de trabalho e à disponibilidade de mão-de-obra, bem como os que se relacionam com a concepção que cada sociedade elabora a respeito de quem são os seus “indesejáveis” (HORKHEIMER; ADORNO, 2002, p. 187-190; RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984, p. 50 e 85-86). No texto de Kirchheimer é destacada a natureza arbitrária com a qual o direito penal opera e operou no passado, que torna difícil distinguir entre a justiça e o capricho individual dos ocupantes de cargos de poder; mais do que isso, há a afirmação de que a burguesia se preocupou em efetuar as reformas legais ocorridas durante o Iluminismo, em grande parte, por ter sido bem-sucedida em sua luta por poder político e, com isso, precisar buscar meios de garantir a própria segurança. Os pioneiros da reforma penal estariam, em suma, fundamentalmente preocupados em limitar o poder discricionário do estado impondo um rígido controle sobre as autoridades (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984, p. 85-86). Esta formulação é tão similar às críticas ao liberalismo “burguês” encontradas nos trabalhos de Schmitt que salta aos olhos o fato de Kirchheimer, seu ex-aluno, não ter recorrido a citações diretas. A mesma concepção sobre os “indesejáveis” pode ser entrevista em dois ensaios de Kurz do ano de 2005, intitulados Seres Humanos Não-Rentáveis e Barbárie, Migração e Guerras de Ordenamento Mundial, com a sua devida ligação aos fenômenos econômicos, inclusive com considerações a respeito de como os “operadores” do sistema buscam, através do controle legal e político, a obtenção de segurança (KURZ, 2005a, 2005b).

Por fim, reitere-se que Walter Benjamin não apenas havia atingido nos ensaios de juventude críticas similares às de Carl Schmitt em relação aos “valores burgueses”, mas em Origem do Drama Trágico Alemão sua análise levanta a questão de um certo relacionamento entre história e política que perpassa a questão da soberania na forma de um problema metodológico e teórico (WEBER, 1992, p. 6-9). Iremos nos ater apenas à questão metodológica. Benjamin inicia sua exposição, no prólogo epistemológico-crítico, afirmando, à semelhança de Schmitt na Teologia Política, que os fenômenos empíricos são mais bem evidenciados e mais profundamente compreendidos através de casos extremos – “o conceito tem suas raízes no extremo” (BENJAMIN, 2003, p. 35; SCHMITT, 1985, p. 15). De acordo com Weber,

O modo de investigação de Benjamin, seu Forschungsweise, tem uma dívida com o de Schmitt: ambos compartilham um certo extremismo metodológico pelo qual a formação de um conceito é, paradoxalmente, mas necessariamente, dependente de um contato ou um encontro com uma singularidade que excede ou foge ao conceito (WEBER, 1992, p. 7, tradução livre).

Não é difícil perceber a influência de Schmitt sobre Benjamin. Mas qual seria, em contrapartida, a suposta influência de um ou de outro sobre Robert Kurz? Mais uma vez, a reflexão se dá no contexto das migrações em massa e do que ele chama de “guerras de ordenamento mundial”, que adquirem o caráter de “caso extremo” a partir do qual a forma de reprodução social do capitalismo torna-se objeto de estudo:

Os movimentos migratórios das épocas pré-modernas da história humana sempre estavam ligados a catástrofes, mudanças climáticas e outros condicionantes da primeira natureza. As pessoas da época glacial se retiraram da expansão das geleiras, os caçadores seguiram as migrações da caça, os pastores trocaram os pastos. Os movimentos migratórios sociais modernos, ao contrário, são, por assim dizer, condicionados pelas catástrofes e mudanças de clima da ‘segunda natureza’ (social), que é produzida em cegos processos econômicos e políticos. Como a dominação capitalista da natureza é, ao mesmo tempo, destruição da natureza, também é idêntica ao fato de que as pessoas dominam menos do que nunca a sua própria sociabilidade. A migração em massa socioeconomicamente forçada, desde o final do século XX, é um forte indicador para o fato de que, definitivamente, a cega dinâmica social do capitalismo está fora de controle e, não por último, também indica, com a desmobilização global da força de trabalho, o final de uma capacidade imanente de desenvolvimento capitalista (KURZ, 2005a, parágrafo 13).

O significado da influência de Schmitt sobre a crítica do valor

Seria ingênuo atribuir à crítica do valor – ou à teoria crítica dos frankfurtianos – o qualitativo de uma filosofia ou crítica social “contaminada” por ter recebido influências teóricas de um pensador que manchou sua biografia através de seu apoio ao regime do Terceiro Reich. Em que pese o fato de Schmitt sempre ter sido um conservador, suas reflexões de maior influência sobre a Escola de Frankfurt – e sobre Kurz – foram desenvolvidas antes da ascensão de Hitler; há de se ponderar ainda que o sistema de organização político-econômica que se firmou após a Segunda Guerra Mundial tem raízes profundas que remontam ao Iluminismo, às Grandes Navegações, à Revolução Industrial, à Revolução Francesa e à Reforma Protestante, e que não foram superadas a despeito da vívida discussão existente no meio acadêmico a respeito de quando seria o “fim” da Idade Moderna em termos historiográficos. A maioria dos estudiosos defende que a história contemporânea é um subconjunto da história moderna arbitrariamente definido como tendo se iniciado após a Segunda Guerra Mundial (BRIVATI; BUXTON; SELDON, 1996, p. XV-XXIV). Tal discussão estende-se ao tópico de quando – e como – teria se dado o “fim” da modernidade enquanto conjunto de padrões socioculturais da assim chamada “era da ideologias” (CALINESCU, 2003, p. 206), que teriam sido substituídos, especialmente nos anos que sucederam a queda do Muro de Berlim, por aquilo que normalmente é chamado de “condição pós-moderna” ou de “pós-modernidade”: novos modos de relação com o mundo que compreenderiam características como o fim das metanarrativas, a perda de historicidade, a estetização da realidade, o consumismo acrítico e desenfreado e, por fim, a hegemonia do fetichismo da mercadoria (JAMESON, 2003, p. IX-XI; LYOTARD, 2009, p. XV-XVIII).

Na obra Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural David Harvey afirma que desde a década de 1970 vem ocorrendo nas práticas culturais, políticas e econômicas uma significativa mudança – “abissal”, nas palavras do autor – vinculada à emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e de um novo ciclo na organização do capitalismo, ambos ligados a novas maneiras pelas quais experimentamos o tempo e o espaço. No entanto, ele destaca que

essas mudanças, quando confrontadas com as regras básicas de acumulação capitalista, mostram-se mais como transformações da aparência superficial do que como sinais do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova (HARVEY, 2014, p. 7).

Caso Harvey esteja correto, isso significa que apesar da existência de fenômenos amplamente caracterizados como “pós-modernos”, o funcionamento observável do capitalismo nas últimas décadas não apresentou diferenças qualitativas significativas em relação aos anos que sucederam a Revolução Industrial, quando estava se firmando como sistema socioeconômico dominante. De acordo com o historiador Eric Hobsbawn, a sociedade capitalista e a ordem social burguesa já haviam “completado seu aparecimento tanto na frente econômica quanto na frente político-ideológica” (HOBSBAWN, 2014, p. 22) antes da Primavera dos Povos de 1848:

Os anos de 1789 a 1848 […] foram dominados por uma dupla revolução: a transformação industrial, iniciada e largamente confinada à Inglaterra, e a transformação política, associada e largamente confinada à França. Ambas implicaram o triunfo de uma nova sociedade, mas se ela deveria ser a sociedade do capitalismo liberal triunfante ou aquilo que um historiador francês chamou de ‘os burgueses conquistadores’, parecia ainda mais incerto para os contemporâneos do que parece para nós (HOBSBAWN, 2014, p. 22).

Referindo-se às décadas seguintes, nos anos compreendidos entre 1848 e 1875, Hobsbawn escreve:

A história do nosso período [...] é basicamente a do maciço avanço da economia do capitalismo industrial em escala mundial, da ordem social que ele representou, das ideias e credos que pareciam legitimá-lo e ratificá-lo: na razão, na ciência, no progresso e no liberalismo (HOBSBAWN, 2014, p. 23).

Não seria despropositado, portanto, sugerir que Schmitt, ao analisar a crise da social-democracia alemã em seu tempo, que viria a dar lugar à autocracia de Hitler, tenha se deparado com uma característica inerente ao modo de reprodução social das sociedades modernas como um todo, desde as suas raízes iluministas até o século XX – e, por extensão, e dado que ainda nos encontramos nas primeiras décadas do século XXI, deste também. Em realidade, como já demonstrado anteriormente, esta é precisamente a admoestação que Kurz lhe dirige: Schmitt teria sido capaz de apontar a falta de fundamento, de nomos, inerente aos sistemas políticos e jurídicos da sociedade burguesa, sem que, todavia, isso o levasse a efetuar a crítica desse mesmo fenômeno no intuito de tentar superá-lo filosoficamente.

Kurz, no entanto, a espelho de seus predecessores frankfurtianos, propõe-se precisamente a realizar tal crítica “radical”, que considera não ter sido concluída nem mesmo por Benjamin, Adorno e seus pares. Todas as suas reprimendas à “esquerda pós-moderna” e aos movimentos operários do século XX derivam não de uma insatisfação para com seus propósitos declarados (o fim do capitalismo, no caso das esquerdas revolucionárias em geral, e o fim do estado, no caso específico dos movimentos anarquistas), mas de uma insuficiência teórica que tais movimentos possuiriam e que, em sua visão, acaba por emperrar a prática revolucionária por tornar os indivíduos engajados neles incapazes de perceber como modo de produção econômica, Estado, modo de reprodução social e pressupostos ideológicos inerentes às práticas sociais (tal como o conceito androcêntrico de “sujeito abstrato”, que empreende o “trabalho abstrato” – expressão que ele toma emprestada de Marx) estão intimamente relacionados. No entendimento de Kurz, a esquerda do espectro político apropriou-se do constructo do trabalho enquanto fim em si mesmo – mas passou a ignorar as questões do automovimento do capital e do papel do Estado na manutenção da reprodução capitalista. Tal fenômeno teria se dado, de acordo com o próprio, devido a uma leitura superficial dos escritos do Marx “exotérico”, do primeiro volume de O Capital e do Manifesto do Partido Comunista (em detrimento do Marx “esotérico”, entrevisto no segundo e no terceiro volumes de O Capital). Esta leitura deficitária acabou por gerar a concepção de que a origem de todas as injustiças sociais residiria primordialmente na apropriação do trabalho alheio; daí a ênfase dada pelos movimentos sociais e sindicais aos temas da mais-valia e da dominação. Uma das consequências acabou sendo a progressiva perda do poder de mobilização pelos movimentos de esquerda, devido ao crescente descompasso entre o discurso dos líderes intelectuais dos movimentos e as percepções empíricas das massas sobre seus processos de exploração:

O cerne do problema é a categoria do trabalho abstrato, que é definida por Marx de modo claramente negativo, mas foi ligada a uma ontologia do trabalho positiva no marxismo tradicional. Deste modo, ‘o trabalho’, que é a substância do capital, não surgia como abstração real especificamente capitalista, mas como eterna condição humana. […] Assim, a esquerda encontra-se numa sintonia com a consciência das massas absolutamente equivocada e insustentável na realidade, consciência esta que permanece passiva e sem força de mobilização. A internalização das categorias capitalistas como condições de vida inquestionáveis já fez um longo percurso. O movimento operário clássico, na fixação dos seus objetivos, manteve-se no terreno da forma de ser capitalista, e fez da substância deste ser, que é o trabalho abstrato, a base da sua legitimação (KURZ, 2015, p. 94-95).

No entendimento de Kurz, pouca atenção foi dada ao fato de que a “dominação” nas sociedades industriais contemporâneas não se deve às volições e cálculos utilitaristas de políticos e empresários que deteriam algum tipo de “poder” sobre as leis do sistema produtor de mercadorias (KURZ, 2010b, p. 213-220 e 233-240), e sim a um funcionamento “automático” do próprio sistema, uma “dominação sem sujeito”, na qual certas classes e indivíduos até colhem benesses das hierarquias sociais, mas seria exagerado dizer que estão propriamente no controle. Afirma o autor:

Nenhum sujeito da mercadoria, modernizado até as últimas consequências, ainda tem a sensação de se ‘subordinar’ a um outro indivíduo enquanto tal. […] Aquilo que os indivíduos atualmente percebem como sendo sua heteronomia é, desde sempre, um funcionalismo abstrato do sistema, o qual já não é absorvido por nenhuma subjetividade. Todos os funcionários das hierarquias de função são percebidos tais como são: executores subalternos de processos destituídos de sujeito, indivíduos aos quais não apenas não nos ‘subordinamos’, mas que são até mesmo julgados em virtude de sua ‘competência funcional’ (KURZ, 2010b, p. 226).

Não compreender este fenômeno e tentar reformular a sociedade alterando apenas quem ocupa as posições de poder – como, por exemplo, tentando instituir uma "ditadura do proletariado" – resulta em um "marxismo vulgarizado" e em uma práxis sem teoria propensos a uma “ideologia militante heroico-existencialista”, incapazes de resolver os problemas sociais e políticos que buscam atacar (KURZ, 2010b, p. p. 221-233 e 289).

Teria sido por conta deste “marxismo vulgarizado” que tanto o capitalismo de livre-mercado quanto o “socialismo real” (ou “socialismo de caserna”, como utilizado frequentemente por Kurz) apresentaram-se historicamente como duas faces da mesma moeda, uma vez que este último não abandonou a lógica do sistema produtor de mercadorias. Como afirmado anteriormente, Kurz interpreta que o socialismo real constituiu apenas uma forma de governo que visava compensar o atraso na modernização através do planejamento e da intervenção estatais na economia, utilizando-os como modo de aceleração do desenvolvimento para que os países socialistas pudessem, então, competir com as potências que já estavam industrializadas e financeirizadas, sem romper com os pressupostos basais do sistema de reprodução social capitalista. É especialmente ilustrativo o seguinte excerto:

O ‘mercado planejado’ do Leste, como já revela essa designação, não eliminou as categorias do mercado. Consequentemente aparecem no socialismo real todas as categorias fundamentais do capitalismo: salário, preço e lucro (ganho da empresa). Ele não só adotou o princípio do trabalho abstrato como o levou às últimas consequências (KURZ, 2004, p. 25).

As “últimas consequências” às quais o autor alude consistem na barbárie “liquefeita” que se fez presente durante o regime soviético e outras autocracias inspiradas nele, com suas migrações forçadas, prisões políticas, execuções e censura. Ele entrevê, porém, a possibilidade constante da barbárie “coagulada” das social-democracias contemporâneas e dos regimes republicanos dos países “vencedores” na geopolítica financeira global se “liquefazer” em estados de exceção declarados que utilizariam dos mesmos expedientes em nome da manutenção da assim chamada “ordem social”, que nada mais é do que a manutenção do sistema de trabalho abstrato em prol dos valores capitalistas – embora, provavelmente, os novos regimes autoritários demonstrem mais eficiência ao oprimir seus cidadãos e ao empreender conflitos externos do que os regimes do passado, tendo em vista a superioridade técnica constantemente acumulada (KURZ, 2016).

Infelizmente, Robert Kurz faleceu em 18 de julho de 2012, com 69 anos de idade, após uma cirurgia nos rins. Sua morte prematura privou-nos de uma filosofia propositiva que solucionasse as deficiências e antinomias das correntes marxistas quanto à teoria do estado, fazendo com que o imenso volume de seu trabalho publicado permanecesse no terreno da análise e da discordância. Críticas poderosas, que não devem ser desconsideradas por aqueles que se propõem a estudar seriamente o pensamento contemporâneo – um “filosofar com o martelo”, similar ao método de Nietzsche – mas, infelizmente, aqueles que se confrontam com o mesmo objeto de estudo após seu falecimento permanecem trancafiados em um labirinto filosófico escuro.

Referências

ADORNO, T. Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo - SP: Ática, 1998.

BENHABIB, S. Critique, norm, and utopia: A study of the foundations of critical theory. New York (USA): Columbia University Press, 1986.

BIELEFELDT, H. Carl Schmitt’s critique of liberalism: systematic reconstruction and countercriticism. Canadian Journal of Law and Jurisprudence, v. X, n. 1, p. 65–75, 1997.

BRIVATI, B.; BUXTON, J.; SELDON, A. (EDS.). The contemporary history handbook. Manchester (UK); New York (USA): Manchester University Press, 1996.

CALINESCU, M. Five faces of modernity: modernism, avant-garde, decadence, kitsch, postmodernism. 8th. ed. Durham (USA): Duke University Press, 2003.

COOK, D. Adorno on late capitalism: totalitarianism and the welfare state. Radical Philosophy, v. 89, p. 16–26, 1998.

DUBIEL, Hulmet; DUBIEL, Helmut. Theory and politics: Studies in the development of critical theory. Massachusetts (USA): MIT Press, 1985.

FLECK, A. Necessária, mas não suficiente: sobre a função da crítica da economia na teoria crítica tardia de Theodor W. Adorno. Cadernos de Filosofia Alemã, v. 21, n. 2, p. 13–29, 2016.

HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 25a. ed. São Paulo - SP: Loyola, 2014.

HOBSBAWN, E. J. A era do capital, 1848-1875. 21a. ed. São Paulo - SP: Paz e Terra, 2014.

HONNETH, A. The critique of power: reflective stages in a critical social theory. Massachusetts (USA): MIT Press, 1993.

HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Dialectic of Enlightenment. Stanford (USA): Stanford University Press, 2002.

JAMESON, F. Postmodernism, or, the cultural logic of late capitalism. 10th. ed. Durham (USA): Duke University Press, 2003.

JAPPE, A. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa (Portugal): Antígona, 2006.

KENNEDY, E. Carl Schmitt and the Frankfurt School. Telos, n. 71, p. 37–66, 1987a.

KENNEDY, E. Carl Schmitt and the Frankfurt School: a rejoinder. Telos, n. 73, p. 101–116, 1987b.

KURZ, R. Com todo vapor ao colapso. Juiz de Fora - MG: Editora UFJF; Pazulin, 2004a.

KURZ, R. Não há Leviatã que vos salve – teses para uma teoria crítica do Estado (segunda parte). EXIT! Crise e Crítica da Sociedade da Mercadoria, n. 8, 2011.

KURZ, R. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. 6a. ed. Rio de Janeiro - RJ: Paz e Terra, 2004b.

KURZ, R. Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio. Rio de Janeiro - RJ: Consequência, 2015.

KURZ, R. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e de seus valores ocidentais. São Paulo - SP: Hedra, 2010.

LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. 12a. ed. Rio de Janeiro - RJ: José Olympio, 2009.

MASSOLA, G. M. Mimese e crime em Adorno e Horkheimer: comentário sobre o “Fragmento de uma teoria do criminoso”. Estudos de Psicologia, v. 12, n. 2, p. 133–139, 2007.

MEHRING, R. Liberalism as a “metaphysical system”: the methodological structure of Carl Schmitt’s critique of political rationalism. Canadian Journal of Law and Jurisprudence, v. X, n. 1, p. 105–124, 1997.

NOBRE, M. A dialética negativa de Theodor W. Adorno: a ontologia do estado falso. São Paulo - SP: Iluminuras, 1998.

POSTONE, M.; GALAMBOS, L. Time, labor, and social domination: A reinterpretation of Marx's critical theory. Cambridge (UK): Cambridge University Press, 1995.

PREUSS, U. K. The Critique of German Liberalism: Reply to Kennedy. Telos, v. 71, p. 97–109, 1987.

RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O. Pena y estructura social. Bogotá (Colombia): Editorial Temis, 1984.

SCHMITT, C. Political theology: four chapters on the concept of sovereignty. Cambridge (USA); London (UK): MIT Press, 1985.

SCHMITT, C. Constitutional theory. Durham (USA): Duke University Press, 2008.

SCHMITT, C. O conceito do político. Lisboa (Portugal): Edições 70, 2016.

WEBER, S. Taking exception to decision: Walter Benjamin and Carl Schmitt. Diacritics, v. 22, n. 3/4, p. 5–18, 1992.

WIGGERSHAUS, R. The Frankfurt School: Its history, theories, and political significance. Massachusetts (USA): MIT Press, 1995.

Notas

2 As posições de Kurz a respeito do machismo estrutural das sociedades contemporâneas é quase inteiramente derivada da teoria da dissociação-valor, de Roswitha Scholz. Sua discussão aprofundada, no entanto, foge ao escopo deste artigo.
3 No livro A guerra de ordenamento mundial, publicado na Alemanha em 2003 e já esgotado, Kurz tece a respeito de Carl Schmitt considerações semelhantes às encontradas em Não há Leviatã que vos salve, em especial no capítulo “Imperialismo de exclusão e estado de exceção”. No entanto, em que pese o desenvolvimento das críticas que faz a Schmitt, o ensaio de 2011 é mais detalhado – no livro de 2003 Schmitt é essencialmente utilizado como ponto de apoio teórico para a discussão das teorias de Hans Kelsen e Giorgio Agamben, com ênfase neste último.
4 O artigo suscitou reações apaixonadas, principalmente em meio aos habermasianos, resultando em uma discussão que se deu em periódicos alemães ao longo dos anos de 1986 e 1987. Uma vez que as relações teóricas entre Schmitt e Habermas não são essenciais para a argumentação apresentada neste artigo, a questão não será aprofundada aqui. No entanto, para maiores detalhes, consultar KENNEDY, 1987ª; PREUSS, 1987; KENNEDY, 1987b; e MEHRING, 1997.
5 Exemplos incluem Dubiel & Dubiel (1985), Wiggershaus (1995), Benhabib (1986), Honneth (1993), Postone (1995) e Nobre (1998).

Autor notes

1 Doutorando em Filosofia na Universidade da Beira Interior (UBI), Covilhã, Portugal. Professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Bom Jesus – PI, Brasil


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por