Resumo: Gaston Bachelard (1884-1962), filósofo francês, acompanhou um período de rupturas, isto é, de modificações conceituais e metodológicas na física contemporânea. Ele é um dos diversos pensadores que apresentaram reflexões importantes para a compreensão da atomística contemporânea. Este artigo evidencia suas principais reflexões filosóficas acerca dos fundamentos da mecânica quântica. Para tanto, lança-se mão de conceitos importantes de sua epistemologia sem os quais se tornam incompreensíveis suas ideias. Assim, este trabalho remarca como a física rompe com as ideias científicas e filosóficas tradicionais na primeira metade do século XX ao apresentar um novo objeto do conhecimento, a saber, os corpúsculos quânticos. Ademais, a fim de bem caracterizar a filosofia da física quântica bachelardiana, destaca-se, conforme o autor, a natureza das partículas atômicas, como se constitui a atividade científica dessa ciência na criação de novos fenômenos e enfatiza-se seu racionalismo aplicado como filosofia mais adequada. Por fim, ressalta-se neste trabalho que as ideias de Bachelard se diferenciam de outras interpretações da mecânica quântica.
Palavras-chave:Mecânica quânticaMecânica quântica,ConhecimentoConhecimento,RupturaRuptura,BachelardBachelard.
Abstract: Gaston Bachelard (1884-1962), French philosopher, followed a period of ruptures, that is, of conceptual and methodological changes in contemporary physics. He is one of several thinkers who presented important reflections for the understanding of contemporary atomistics. This article highlights the main philosophical reflections of Gaston Bachelard about the foundations of quantum mechanics. For that, it uses important concepts of its epistemology without which its ideas become incomprehensible. Thus, this work highlights how this science breaks with traditional scientific and philosophical ideas in the first half of the 20th century by presenting a new object of knowledge, namely, the quantum corpuscles. Furthermore, in order to characterize the philosophy of bachelardian quantum physics, according to the author, the nature of atomic particles stands out, as the scientific activity of this science in the creation of new phenomena is emphasized and its rationalism applied as philosophy is emphasized best suited to the new physics. Finally, it is emphasized in this work that Bachelard's ideas are different from other interpretations of quantum mechanics.
Keywords: Quantum mechanics, Knowledge, Break, Bachelard.
Artigos
A filosofia da mecânica quântica de Gaston Bachelard1
The philosophy of Gaston Bachelard's quantum mechanics
Recepção: 22 Junho 2020
Aprovação: 02 Outubro 2020
No início do século XX, com o advento das mecânicas contemporâneas, a física encontrou várias mudanças em seus conceitos mais fundamentais. Tal fato impôs a necessidade de repensar os princípios mais arraigados na cultura científica e filosófica. Sem precedentes na história, essa situação na física levou autores como Reichenbach (1944), Heisenberg (2007, 1996,1962,1954, 1949), Bohr (1995) e Hermann (1996), por exemplo, a buscar respostas e interpretações para as questões levantadas por esses novos campos do conhecimento.
Segundo Heisenberg (2007), a mecânica clássica não pode representar por meio de sua coerência matemática e conceitual a realidade complexa que emergiu com a nova atomística. Assim, a mecânica de Newton, no século passado, encontrou-se abalada em seus princípios pelos quais é possível explicar a natureza sensível. Por sua vez, Bohr (1995) explica que as mudanças que se instituíram na teoria atômica nessa época se devem aos novos conhecimentos acerca da natureza dos átomos que fizeram ultrapassar “[...] a antiga doutrina da divisibilidade restrita da matéria e confere a cada processo atômico um caráter individual peculiar” (p. 31). Trata-se de descobertas pelas quais a física se despiu de seus caracteres antropomórficos e sensíveis (PLANCK, 2012).
Gaston Bachelard (1884-1962), filósofo francês que acompanhou esse período de modificações conceituais e metodológicas na física, esteve entre esses pensadores que apresentaram reflexões importantes para a compreensão da atomística contemporânea. Estamos de acordo com Rode & Bontems (2011) quando afirmam que Bachelard considerava que, em sua época, a ruptura epistemológica representada pela mecânica quântica ainda não era bem compreendida nem por físicos nem pelos filósofos das ciências. Essa consideração nos permite reafirmar junto a Velanes (2019a;2019b) que Bachelard não aceitava inteiramente a interpretação dos físicos da escola de Copenhague em suas reflexões acerca da física quântica.
Neste artigo, temos o objetivo de apresentar suas principais ideias acerca dos fundamentos filosóficos da mecânica quântica com base nos conceitos mais fundamentais de sua epistemologia histórica. Dessa maneira, apresentamos de que forma seu racionalismo aplicado pode se constituir como uma filosofia adequada no entendimento da física contemporânea.
Um dos conceitos mais importantes para compreender a filosofia da mecânica quântica de Bachelard é o de ruptura epistemológica. Essa noção é fundamental em suas reflexões na medida em que ela contribui para o entendimento acerca da evolução do saber científico em seu movimento histórico. Conforme Velanes (2018a), sem o conceito de ruptura não é possível obter uma compreensão adequada da epistemologia bachelardiana que é notoriamente voltada para interpretar as condições epistêmicas da nova física.
Com a noção de ruptura epistemológica Bachelard procura demonstrar que no dinamismo do saber as ideias mais elementares são modificadas, transmutadas, por meio de um processo de retificação discursiva. Um processo no qual o erro aparece como o motor do conhecimento(BACHELARD, 1986). Isso impõe diretamente a necessidade de pensar a evolução das ideias científicas por meio de uma leitura descontínua na história dos conceitos. Assim, por meio desse conceito, Bachelard nos leva a pensar de maneira diferente daquela apresentada pelos filósofos positivistas de sua época (BULCÃO, 2009; BARBOSA, 1996), como Comte, Meyerson e Duhem, por exemplo.
Ademais, ao apresentar sua noção de ruptura, ele destaca a separação entre o conhecimento comum e o conhecimento científico3, que é relevante para compreender as características de um novo espírito científico cuja base é eminentemente matemática. Segundo Bachelard (1999, 1965,1963), na física contemporânea, os objetos do conhecimento são organizados em domínios matemáticos rigorosos. A razão exerce o poder de construir uma realidade inteiramente nova. Portanto, a física do século XX parte do plano racional para o da experiência e, dessa forma, ela faz surgir objetos de conhecimento sem precedentes na história.
Dentro desse contexto de renovação epistêmica, a mecânica quântica rompe não apenas com os princípios da física clássica, mas também com as doutrinas atomísticas apresentadas na história. Segundo Lüthy (2012), a história das reflexões acerca dos átomos, desde a filosofia de Demócrito (460-370 a. C) até dezembro de 1900 (quando Planck “descobriu” o quantum elementar de ação), trata-se de uma verdadeira confusão de interpretações. Para o autor, a obra bachelardiana Les intuitions atomistiques (1933), foi uma tentativa de classificação diante dessa confusão histórica entre as diferentes concepções coexistentes no século XIX a respeito dos átomos. Uma proposta de Bachelard que Lüthy (2012) acredita ser pouco viável, uma vez que, segundo ele, as várias doutrinas atomísticas apresentam princípios bastante distintos. No entanto, embora concordemos parcialmente com sua crítica, acreditamos, por outro lado, que essa obra bachelardiana é importante para entender as características da atomística contemporânea. Um atomismo inteiramente sem antecedentes históricos (HEISENBERG, 2007; BOHR, 1995; BACHELARD, 1975, 1965).
Nas Intuições, Bachelard apresenta quatro bases gerais pelas quais se permite entender os fundamentos das doutrinas atomísticas na história: o atomismo realista, o atomismo positivista, o atomismo criticista e o atomismo axiomático. Na introdução, o autor é claro quanto ao seu objetivo: “sublinhar as características intuitivas das doutrinas atomísticas” (BACHELARD, 1975, p. 14). 4 Em nossa visão, essa análise de Bachelard permite esclarecer os fundamentos da nova atomística, ou seja, da mecânica quântica, em especial no capítulo sexto5, no qual o autor evidencia sua noção de atomismo axiomático e apresenta ideias que são retomadas em suas obras posteriores, como em L'activité rationaliste de la physique contemporaine (1951).
O atomismo axiomático (a mecânica quântica)6, instaura uma ruptura clara com as formas anteriores de atomismo. Ele tem suas bases no pensamento matemático que coordena uma técnica precisa que possibilita a construção de uma variedade de fenômenos completamente novos. “A atomística tornou-se precisamente uma técnica, que possui seus instrumentos, métodos e experiência própria” (BACHELARD, 1975, p. 142). Isso significa que nas primeiras décadas do século XX o atomismo perdeu sua natureza especulativa ao se tornar um campo rigoroso de estudos da física contemporânea. Assim, a mecânica quântica se apresenta como uma ciência que produz efeitos, ou seja, como um campo do saber que cria elementos artificiais pelos quais emerge uma segunda natureza, isto é, uma nova realidade física (BACHELARD, 2009,1975,1965).
É com base nas considerações acima que Bachelard criou o conceito de fenomenotécnica .phénoménotechnique), pelo qual busca esclarecer como uma relação abstrato-concreta, ou seja, entre teoria e experiência, faz emergir as partículas subatômicas. Para Bachelard (2009, 1996, 1965, 1975) a razão orienta a experiência, ao mesmo tempo em que esta é ativa. A experiência já não pode ser reduzida a um empirismo passivo como o da modernidade. Não se trata, portanto, da uma experiência comum, porquanto ela é composta de instrumentos técnicos de medição precisos que permitem fabricar fenômenos. Então, o ponto de chegada onde os objetos são produzidos se trata de um empirismo ativo.
Em L'activité rationaliste de la physique contemporaine (1951), o autor explica a natureza mesma da atividade fenomenotécnica. Ele diz que:
Na fenomenotécnica, nenhum fenômeno aparece naturalmente, nenhum fenômeno aparece pela primeira vez, nenhum deles é dado. Deve ser constituído e seus caracteres lidos indiretamente, com uma consciência sempre desperta da interpretação instrumental e teórica, sem que nunca o espírito se divida em puro pensamento experimental e pura teoria. (BACHELARD, 1975, p. 91).
No terceiro capítulo da obra supracitada7, são apresentadas as características inéditas e diferentes dos novos objetos apresentados pela mecânica quântica na primeira metade do século XX, ou seja, dos fenômenos que essa ciência já havia “descoberto” na época de Bachelard: o elétron, o próton, o pósitron, o nêutron etc. Para nosso autor, esses elementos não são apenas próprios do século XX, mas também um resultado das técnicas contemporâneas da física que não são técnicas naturais. Portanto, os objetos quânticos aparecem mediante uma técnica de fenômenos elétricos e é
[...] preciso reconhecer que os corpúsculos são “humanos”. Eles aparecem em um ponto específico da história da ciência. Eles são próprios do século XX, com a pequena exceção do elétron precursor. (BACHELARD, 1965, p. 87).
Como produtos de uma técnica inventiva, as partículas elementares aparecem como novos objetos de conhecimento em ruptura com os objetos de senso comum. Bachelard (1965) explica em seis teses como tais elementos abalam os princípios mais fundamentais do realismo clássico, o qual ele denomina de realismo ingênuo em contraposição à sua noção de realismo instruído, que serve para conceituar a realidade construída pelos objetos da nova física.
Na primeira tese, Bachelard (1965, p. 76) diz que “o corpúsculo não é um corpo pequeno. O corpúsculo não é um fragmento de substância”. Na segunda, ele acrescenta que “o corpúsculo não possui dimensões absolutas assinaláveis” (BACHELARD, 1965, p. 77). A terceira tese afirma que, aos corpúsculos quânticos, “nós não lhes atribuímos mais que uma ordem de grandeza” (BACHELARD, 1965, p. 78-79) e, na quarta, “correlativamente [às teses anteriores], se o corpúsculo não possui dimensões assinaláveis, ele não possui forma assinaláveis” (BACHELARD, 1965, p. 79). Na quinta tese Bachelard (1964, p. 81) afirma que “como não se pode atribuir uma forma determinada ao corpúsculo, também não se pode atribuir um local muito preciso”. Finalmente, na sexta asserção, ele destaca que, nos domínios da microfísica, como uma partícula não tem individualidade, logo, “o corpúsculo pode se aniquilar” (BACHELARD 1965, p. 82).
Podemos afirmar, sem dúvidas, que essas teses aprofundam a análise bachelardiana acerca da mecânica quântica pela qual se busca evidenciar as características fundamentais das partículas elementares e, com isso, demonstrar a insuficiência dos conhecimentos científicos e filosóficos da modernidade em consonância com sua noção de ruptura epistemológica.
Em resumo, com base nas considerações apresentadas nas seis asserções, Bachelard informa uma nova situação epistemológica na física, na medida em que ele explicita que os objetos quânticos possuem uma natureza inteiramente diferente em relação aos objetos da experiência comum e macroscópica. Os corpúsculos quânticos se apresentam absolutamente contra a perspectiva substancialista dos fenômenos sensíveis, porquanto eles são de essência matemática. As propriedades substanciais são específicas dos objetos macroscópicos da realidade comum. Assim, com a nova física, ocorre uma dessubstancialização dos fenômenos.
As partículas elementares têm apenas existência em um espaço abstrato, um espaço pensado(BACHELARD, 1996, 1937). Em outras palavras, em um espaço conceitual. Esses elementos não podem ser pensados mediante a base geométrica euclidiana, que se debruça sobre os objetos do senso comum. Os corpúsculos quânticos, uma vez que eles não têm dimensões notáveis num espaço comum, nunca podemos medir seu tamanho exato. Eles rompem com as concepções clássicas acerca da impenetrabilidade matéria. A virtualidade desses objetos não pode então ser pensada mediante uma perspectiva realista, mas por meio de uma “visão do espírito” (BACHELARD, 1999, 1965).
Com base nos comportamentos dos novos objetos, o princípio de incerteza de Heisenberg estabelece que não é possível conhecer a localização espacial exata e o movimento das partículas subatômicas simultaneamente, na medida em que elas não se encontram em repouso. Segundo Bachelard (1965, p. 81), que concorda com o princípio heisenbergiano e suas consequências na visão de uma física indeterminista8, “apenas os objetos do conhecimento comum podem existir placidamente, calmos e inertes no espaço”, porquanto são coisas substancializadas e possuidoras de uma individualidade específica9. Diferentemente, os corpúsculos quânticos são apresentados pelo autor como não coisas, isto é, como objetos destituídos de uma individualidade precisa.
Segundo Bachelard (1965, p. 83), os objetos da atividade fenomenotécnica, como elementos de criação e aniquilação, possuem um novo status ontológico ao qual o pensamento filosófico contemporâneo não pode se tornar indiferente. “Nós vemos se unir a uma ontologia dos corpúsculos uma ontologia da transformação corpuscular”. Com isso, ao considerar essa nova situação da física, ele parte em crítica aos conceitos epistemológicos de coisa e choque, caracterizando-os como noções-obstáculos, ou seja, como obstáculos epistemológicos.
A noção bachelardiana de obstáculo epistemológico se refere aos entraves que impedem o desenvolvimento do saber científico. São ideias persistentes na cultura científica e que podem causar perturbações no progresso de uma determinada ciência (BACHELARD, 1977).10Se por um lado alguns obstáculos tendem a desaparecer quando se instaura uma ruptura no interior das ciências, por outro, existem aqueles que “[...] são formados pelos esquemas da ciência sedimentados na forma de evidência, que obstruem o progresso da ciência quando uma nova ruptura é necessária para reinventar os esquemas aplicados à realidade” (RODES & BONTEMS, 2011, p. 14).
Para Bachelard (1965), a noção de coisa se encontra ligada a uma ideia realista segundo a qual os objetos do conhecimento se tratam de um pequeno corpo material da experiência comum. No entanto, a mecânica quântica apresenta elementos cujos fundamentos matemáticos constroem uma nova realidade, como já dissemos. Destarte, como não se tratam de coisas do mundo comum, as não coisas (as partículas subatômicas) não podem ser explicadas mediante um realismo simplório. Uma partícula subatômica, como o elétron, embora seja real, não pode ser considerada como uma coisa de mundo comum, uma vez que ela não tem as mesmas propriedades dos objetos sensíveis. As partículas elementares são reais porque constituem uma natureza pela qual é possível intervir e explicar o mundo físico.11
Segundo Bachelard (1965, p. 86), a noção de choque se encontra ligada ao materialismo clássico da ciência moderna e, com isso, à ideia de individualidade dos elementos. Dessa forma, trata-se de um conceito com o qual é possível explicar a causalidade dos fenômenos da física clássica. Entretanto, a noção clássica de causalidade se demonstrou insuficiente para explicar os fenômenos da mecânica quântica, uma vez que os elementos atômicos não estão submetidos a uma relação precisa de causa e efeito como os objetos da experiência comum. Bachelard (1965, p. 85) diz que a noção de choque “realmente dá a lição ingênua de causalidade”. Apesar de essa noção fazer parte da terminologia dos físicos nas explicações científicas, o autor ressalta que ela deve ser usada com a consciência de que dois corpúsculos quânticos não estabelecem contato como se fossem duas coisas materiais, mas como interação entre duas partículas.12
Em seguida, Bachelard (1965, p. 85) ainda acrescenta que a noção de dado não pode ser integrada à física quântica, na medida em que se trata de uma crença na qual permanecem os valores do saber comum. Além disso, ela se encontra ligada às filosofias tradicionais que buscam oferecer respostas a outros problemas. “Realmente não se pode dizer que os corpúsculos são dados. Obviamente, eles não são - como dissemos - dados sensoriais, nem próximos nem distantes”. Portanto, essa noção é ineficaz não apenas na integração de uma filosofia da mecânica quântica, como também na expressão de todos os resultados experimentais da mecânica quântica.
Para Rode & Bontems (2011), também a noção de entidade é considerada por Bachelard como um conceito-obstáculo, uma vez que ela foi pensada para explicar o mundo macrofísico com base nos princípios lógico-ontológicos clássicos, quais sejam: o de existência, o de não contradição e o de identidade. Os autores esclarecem que Bachelard explicita que a noção de entidade se encontra intrinsecamente ligada ao pensamento substancialista que possui a tendência espontânea de pensar os objetos quânticos como se fossem coisas em miniaturas, isto é, como são os objetos da física clássica.13
Com efeito, o filósofo francês explica que o coisismo e o choquismo são noções “baseadas em filosofias inapropriadas para descrever os fenômenos da física contemporânea, uma vez que tais filosofias nos entregam à escravidão de nossas intuições primárias a respeito do espaço e da força” (BACHELARD, 1965, p. 86). A fim de demonstrar o ineditismo dos objetos quânticos na história das ideias científicas diante dessas filosofias ele assevera que:
Nenhuma história imaginária, nenhuma utopia filosófica poderia separá-los do período de maturidade das técnicas elétricas onde elas apareceram. É preciso pensar na filosofia corpuscular no momento em que aparece e educar-se filosoficamente na própria dialética de sua evolução. (BACHELARD, 1965, p. 87).
Nota-se, portanto, uma crítica ao pensamento filosófico tradicional face à nova situação epistemológica da física contemporânea. Para Bachelard (1999, 1996, 1963), as filosofias tradicionais além de apresentarem uma tendência continuísta na interpretação da evolução das ideias científicas, elas igualmente separam nitidamente racionalismo e empirismo.
As filosofias dos positivistas Comte, Meyerson e Duhem são exemplos claros de continuísmo epistemológico14. Contudo, esses autores, de modo geral, não somente sustentam a crença (direta ou indiretamente) segundo a qual a razão é absoluta e imutável, mas também colocam no centro de suas ideias a experiência sensível e a observação, como ponto de partida para o entendimento dos fenômenos científicos. Dessa maneira, é possível afirmar que esses filósofos deram grande primazia às concepções realistas em suas ideias.
Por outro lado, as filosofias racionalistas que seguem o kantismo estabelecem grande primazia no espírito pelo qual buscam interpretar a realidade científica. Se quisermos entender a maioria das críticas de Bachelard ao kantismo e, em especial, à filosofia do conhecimento de Kant, devemos recorrer à sua obra La philosophie du non (1940), na qual o autor demonstra como as noções de substância e espaço, que são a priori absolutos no idealismo transcendental, tornaram-se dialetizadas nos domínios da mecânica quântica. Segundo Bachelard (1996), esses conceitos são doravante pensados na relação abstrato-concreta e, nesse sentido, é preciso de uma abertura do kantismo, porquanto este se apresenta como uma filosofia fechada.
Então, com a divisão clássica entre racionalismo e empirismo:
[...] a filosofia da ciência fica muito frequentemente confinada às duas extremidades do saber [...] Ela se confronta contra os dois obstáculos epistemológicos contrários que limitam todo pensamento: o geral e o imediato. Valoriza ora a priori, ora a posteriori, ignorando as transmutações de valores epistemológicos que o pensamento científico contemporâneo opera constantemente entre a priori e a posteriori, entre valores experimentais e valores racionais. (BACHELARD, 1996, p. 4).
Além disso, também é em La philosophie du non (1940) que podemos encontrar uma crítica direta à lógica clássica. Segundo Bachelard (1996, p. 108), há uma coerência entre a lógica aristotélica e a lógica transcendental quem encontram um ponto comum na natureza mesma do objeto geométrico euclidiano. A lógica clássica é apresentada pelo autor como uma lógica fechada15, que é suficiente para lidar com os grandes objetos sensíveis da vida cotidiana, estudados pela física newtoniana, mas que se mostrou insuficiente na compreensão dos objetos infinitesimais16. Com efeito, nem a lógica aristotélica nem a lógica kantiana são apropriadas para fundamentar a mecânica quântica, uma vez que elas se fundamentam em metafísicas opostas, a saber, o realismo e o racionalismo. Ademais, os princípios da localização euclidiana e a permanência substancial de que ambas se beneficiaram são abalados pelo advento dos objetos quânticos.17
Em resumo, ao contrário de muitos filósofos de sua época, a conclusão de Bachelard (que leva em conta a noção de ruptura epistemológica) em relação aos princípios das filosofias tradicionais é que elas não podem ser inteiramente transplantadas aos domínios das interpretações epistemológicas do pensamento científico contemporâneo, uma vez que esses sistemas filosóficos:
[...] perdem sua eficácia de coerência espiritual, uma eficácia tão sensível quando os vemos novamente em sua verdadeira originalidade, com a fidelidade escrupulosa do historiador, ao mesmo tempo em que temos orgulho de pensar no que nunca pensaremos duas vezes. Portanto, deve-se concluir que um sistema filosófico não deve ser usado para nenhum outro propósito além dos fins que ele atribui a si mesmo. Consequentemente, a maior falha contra o espírito filosófico seria precisamente entender mal essa finalidade íntima, essa finalidade espiritual que dá vida, força e clareza a um sistema filosófico. (BACHELARD, 1996. p. 1).
Apesar de Bachelard (1996) reconhecer que vários elementos das filosofias posteriores possam ser integrados às reflexões contemporâneas sobre a ciência, por exemplo, elementos do kantismo, a fim de compor um pluralismo filosófico, sua proposta filosófica tem um objetivo bastante diferente e inovador. Ele pretende estabelecer um diálogo intrínseco entre racionalismo e empirismo. Trata-se de uma relação na qual as duas metafísicas são ativas no processo de construção do objeto científico. Portanto, ele defende uma filosofia científica aberta ao contrário dos sistemas filosóficos fechados do passado, como o idealismo transcendental.
Como podemos ver, o racionalismo que defendemos enfrentará a controvérsia que se baseia no irracionalismo insondável do fenômeno para afirmar uma realidade. Para o racionalismo científico, a aplicação não é uma derrota, mas um compromisso. Ele quer se aplicar. Se for mal aplicado, ele se modifica. Por isso, ele não renuncia a seus princípios, ele os dialetiza. Finalmente, a filosofia da ciência física é talvez a única filosofia que se aplica determinando um ir além de seus princípios. Em suma, é a única filosofia aberta. Toda outra filosofia coloca seus princípios como intangíveis, suas primeiras verdades como totais e completas. Toda outra filosofia se orgulha de seu fechamento.(BACHELARD, 1996, p. 6-7).
Em Le matérialisme rationnel (1953), o autor é claro quanto a sua proposta filosófica. Para ele, as ciências do novo espírito científico necessitam de princípios mais adequados para interpretá-las. Assim, Bachelard (1963, p. 20) diz que “a ciência não tem a filosofia que merece. O cientista [...] não enfatiza o sentido filosófico das revoluções psíquicas necessárias para viver a evolução de uma ciência específica”. Dessa forma, mediante sua análise acerca da natureza da física contemporânea, ele identifica um novo tipo de racionalismo, a saber, o racionalismo aplicado.
Em La philosophie du non (1940), com base em suas reflexões a respeito dos corpúsculos elementares como verdadeiros objetos de construção do pensamento, Bachelard explica de que maneira se constitui a essência do racionalismo aplicado. Permitimo-nos, citá-lo longamente porque tal trecho esclarece bem suas ideias.
Se pudéssemos então traduzir filosoficamente o duplo movimento que atualmente anima o pensamento científico, perceberíamos que a alternância do a priori e do a posteriori é obrigatória, que o empirismo e o racionalismo estão ligados, no pensamento científico, por um elo estranho, tão forte quanto o que une prazer e dor. De fato, um triunfa dando razão ao outro: o empirismo precisa ser entendido; o racionalismo precisa ser aplicado. Um empirismo sem leis claras, sem leis coordenadas, sem leis dedutivas não pode ser pensado nem ensinado; um racionalismo sem evidência palpável, sem aplicação à realidade imediata não pode convencer completamente. Provamos o valor de uma lei empírica, tornando-a a base do raciocínio. Um legitima um raciocínio, tornando-o a base de uma experiência. A ciência, a soma de evidências e experiência, a soma de regras e leis, a soma de evidências e fatos, precisa, portanto, de uma filosofia bipolar. Mais precisamente, precisa de um desenvolvimento dialético, porque cada noção é esclarecida de maneira complementar sob dois pontos de vista filosóficos diferentes. (BACHELARD, 1996, p. 4-5).
Apesar de Bachelard (1996) observar essa alternância entre pensamento racional e empírico que caracteriza as ciências contemporâneas, isto é, as ciências de um novo espírito científico, e com isso a mecânica quântica, convém notar que há em suas ideias uma primazia do pensamento racional, na medida em que a construção do objeto científico começa pela razão. “Devemos acrescentar que, em nossa opinião, uma das duas direções metafísicas deve ser aumentada: é aquela que vai do racionalismo à experiência” (BACHELARD, 1996, p. 6). Portanto, esse movimento epistemológico caracteriza a essência mesma da atividade científica na nova física, ou seja, a fenomenotécnica aparece como atividade do racionalismo aplicado que constrói fenômenos com base no pensamento matemático.
Esse racionalismo que pega as lições fornecidas pela realidade e as traduz em um programa de realização goza, além disso, segundo nós, de um privilégio muito novo. Para esse racionalismo prospectivo, muito diferente do racionalismo tradicional, a aplicação não é mutilação; A ação científica guiada pelo racionalismo matemático não é uma transação de princípios. A realização de um programa racional de experiências determina uma realidade experimental sem irracionalidade. [...] A ciência física contemporânea é uma construção racional: elimina a irracionalidade de seus materiais de construção. O fenômeno alcançado deve ser protegido contra qualquer perturbação irracional. (BACHELARD, 1996, p. 6).
Ademais, o racionalismo aplicado caracteriza filosoficamente a mecânica quântica como uma ciência numenal, uma vez que ele impõe novas reflexões sobre o conceito de númeno, mais exatamente com relação ao emprego desse conceito na filosofia kantiana (VELANES, 2018a, 2015;LAMY, 2005). Em Le rationalisme appliqué (1949), Bachelard explica que na atividade fenomenotécnica as técnicas são ordenadas pelas teorias. Os fenômenos são produzidos com base no pensamento teórico-matemático pelo qual se cria instrumentos de medição para organizar a experiência com a finalidade de produzir elementos cuja base também é matemática.18 Isso quer dizer que na mecânica quântica os objetos são pensados antes de surgirem na realidade.
Assim, a filosofia da física quântica bachelardiana apresenta uma distinção entre objetos de pensamento e objetos da experiência. Os primeiros são os númenos matemáticos, pois são caracterizados por equações algébricas. Os segundos se tratam dos elementos produzidos por um determinado experimento no laboratório cuja criação foi possibilitada pelo pensamento racional. “O númeno é um objeto de pensamento como o fenômeno um objeto de percepção” (BACHELARD, 1996, p. 195). E ainda, no artigo Noumène et microphysique (1933), afirma-se que “o númeno é um centro de convergência das noções. Nós o construímos mediante um esforço matemático” (BACHELARD, 1970, p. 23).
No artigo supracitado, Bachelard (1970) também esclarece o caráter numênico da nova física ao dizer que “é a reflexão que vai dar sentido ao fenômeno inicial exigindo uma perspectiva racional da experiência. Não podemos ter a priori nenhuma confiança na instrução que o dado imediato pode nos fornecer.” (p. 15). Dessa forma, na mecânica quântica, o caráter descritivo da física clássica é suplantado pela atividade técnica de construção de fenômenos.
Para concluir, com a mecânica quântica, estabelece-se um diálogo entre racionalismo e empirismo pelo qual essas duas metafísicas se tornam complementares. Essa relação, que Bachelard considera a marca de seu racionalismo aplicado, fornece as condições essenciais para a construção dos objetos quânticos que não se assemelham em absolutamente nada com objetos da experiência comum e sensível. Esses objetos têm como ponto de partida para sua construção os númenos matemáticos que organizam a experiência técnica em uma atividade que o filósofo francês conceituou de fenomenotécnica. Esse conceito, portanto, fundamenta a essência de um novo racionalismo perante o domínio microfísico. Desse modo, o racionalismo aplicado de Bachelard busca caracterizar a essência de uma filosofia científica mais adequada para entender a natureza da mecânica quântica (que rompe com os princípios da física clássica) em contraposição às filosofias de sua época.
Um ponto importante que queremos acentuar, porquanto nos parece pouco explorado pelos estudiosos da epistemologia bachelardiana, diz respeito ao problema da causalidade na mecânica quântica. Com base em nossa análise, podemos dizer que essa questão é explorada por Bachelard de forma inteiramente assistemática. Então, é preciso de uma análise imanente em suas ideias. Seja como for, com base em suas reflexões é possível afirmar que a interpretação bachelardiana acerca da causalidade no contexto quântico se apresenta como mais uma em meio ao debate fervoroso entre diversos autores daquela época. Na primeira metade do século passado havia uma “polifonia de posições a respeito da validade da causalidade no contexto da teoria quântica” (KAUARK-LEITE, 2012b, p. 174).19
Segundo Kauark-Leite (2012b, p. 174), os físicos da escola de Copenhague, como Heisenberg e Bohr, criticaram o princípio clássico de causalidade e tentaram resolver mediante o princípio de complementaridade. Os positivistas identificavam causalidade e determinismo e, com base nessa identidade, eles colocaram em destaque “[...] a limitação da causalidade, lançando mão do conceito de probabilidade, como sendo mais universal que a clássica noção causal”. Já os neokantianos mantiveram a causalidade como princípio heurístico ou regulador e negaram aquela identidade defendida pelos positivistas, partindo “[...] para uma definição mais geral que possa englobar tanto o contexto clássico quanto o contexto quântico”.
Bachelard, por meio de sua dialética, pensa em um não causalismo pelo qual as relações de causa e efeito aparecem como um caso particular dentro de uma realidade mais complexa. Trata-se da dialética mesma do novo espírito científico, onde a física não newtoniana, em caráter de complexidade, engloba a física de Newton como um caso particular sem estabelecer contradições, mas relações complementares (BACHELARD, 1999, 1996). Logo, a causalidade se encontra presente na física contemporânea num contexto de generalização racional que faz emergir uma síntese. Assim, Bachelard aceita em sua interpretação da nova física a tese da probabilidade e ao mesmo tempo as condições de determinação dos fenômenos.
Segundo Bachelard (1996), os princípios de causalidade, substância e individualidade sofrem “um eclipse” e devem ser pensados dentro da alternância dialética entre o real e o racional, seguindo as bases mesmas do racionalismo aplicado.
A teoria rigorosa das probabilidades deve também conduzir a uma dialética da categoria de causalidade. As três categorias: substância, unidade, causalidade, são solidárias. O que modifica uma delas deve refletir-se na utilização das outras. De fato, o não causalismo, o não determinismo, o não individualismo foram já objeto de numerosos estudos. Nós próprios interpretamos o princípio da incerteza de Heisenberg no mesmo sentido da reorganização racional geral que aqui defendemos. (p. 93).
Como é possível notar, também encontramos nas ideias bachelardianas a relação entre o princípio de causalidade e o problema entre determinismo e indeterminismo na mecânica quântica. Bachelard aceita o caráter eminentemente indeterminístico da nova física em consonância com as ideias de Heisenberg, mas, por outro lado, pensamos que sua interpretação se distancia da escola de Copenhague, na medida em que ele apresenta a ideia de uma física não determinista. Uma concepção que se encontra em conformidade com os princípios de seu pensamento dialético.
Em Le nouvel esprit scientifique (1934), o autor explica de que forma a ideia de uma física indeterminista apresentada por Heisenberg engloba dialeticamente a física determinista (clássica) e instaura uma nova base.
A partir de Heisenberg, constitui-se então uma física não determinista, distante da negação brutal e dogmática das teses do Determinismo clássico. A física indeterminista de Heisenberg absorve a física determinística, definindo com precisão as condições e os limites nas quais podemos manter um fenômeno a ser praticamente determinado. (BACHELARD, 1999, p. 125).
Se por um lado Bachelard insere a física indeterminista de Heisenberg, cujo fundamento é o princípio de incerteza, como uma generalização racional que engloba as condições de determinação dos fenômenos da física clássica, por outro, ele omite em sua epistemologia uma análise acerca do princípio de complementaridade de Bohr (VELANES, 2019b). Princípio este que é fundamental para os físicos da escola de Copenhague, entre eles Heisenberg, na resolução do problema da causalidade (como já dissemos) e do problema entre determinismo e indeterminismo. Isso significa que o filósofo francês encontra uma saída diferente em relação à Interpretação de Copenhague para ambas as questões.20
Por fim, consideramos que as ideias apresentadas neste trabalho trazem para o debate contemporâneo as reflexões de um filósofo por vezes esquecido nas discussões acerca dos fundamentos filosóficos da mecânica quântica. Isso implica repensar a atualidade de suas ideias no século XXI perante os novos desenvolvimentos dessa ciência face as reflexões de fundamentos kantianos como as de Braga (1991), Kauark-Leite (2012) e Bitbol (2008), autores que, apesar das críticas elaboradas ao idealismo de Kant por pensadores da primeira metade do século, como Bachelard e Heisenberg, entre outros, ainda encontram atualmente no kantismo uma via fecunda para se pensar os problemas apresentados pela física quântica. Obviamente, uma comparação entre as ideias bachelardianas e as reflexões desses autores não pode ser feita neste trabalho. Contudo, abrem-se perspectivas para novas pesquisas em filosofia da física quântica.