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Wittgenstein sobre método teológico e predestinação
Wittgenstein on theological method and predestination
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 3, pp. 243-256, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepção: 16 Maio 2020

Aprovação: 30 Setembro 2020

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i3.1894

Resumo: :

O artigo apresenta algumas contribuições da filosofia wittgensteiniana para a teologia filosófica. Para isso, divide-se em dois momentos. O objetivo do primeiro momento é, por assim dizer, o esclarecimento da semântica do discurso teológico. Veremos que, de acordo com Wittgenstein, a significância deste discurso depende, necessariamente, da ligação das doutrinas com performances; dito de outro modo, as sentenças teológicas só são significativas quando ligam-se às vidas dos usuários da linguagem de um ponto de vista prático e valorativo e não meramente teórico. Ao não cumprir esse critério a doutrina precisaria ser rejeitada ou refraseada (esclarecer o conceito de refraseamento também é objetivo do primeiro momento). Veremos que este, digamos, método teológico, pode ser encontrado, mutatis mutandis, tanto na primeira quanto na segunda filosofia de Wittgenstein. O objetivo do segundo momento é a discussão de um estudo de caso sobre a doutrina da predestinação. Tal discussão nos mostrará de que modo o próprio Wittgenstein aplica o seu método teológico, esclarecido por nós no primeiro momento do artigo.

Palavras-chave: Wittgenstein, Filosofia da Religião, Método Teológico, Predestinação.

Abstract: :

The article presents some contributions of wittgensteinian philosophy to philosophical theology. For this, it is divided into two moments. The objective of the first moment is the clarification of the semantics of theological discourse. We will see that, according to Wittgenstein, the significance of this discourse depends, necessarily, on the connection of doctrines with performances; in other words, theological sentences are only meaningful when they are linked to the lives of language users from a practical and evaluative point of view and not merely theoretical. By not fulfilling this criterion, the doctrine would need to be rejected or rephrased (clarifying the concept of rephrasing is also the objective of the first moment). We will see that this, shall we say, theological method, can be found, mutatis mutandis, in both the first and second philosophy of Wittgenstein. The objective of the second moment is the discussion of a case study on the doctrine of predestination. This discussion will show us how Wittgenstein himself applies his theological method, clarified by us in the first moment of the article.

Keywords: Wittgenstein, Philosophy of Religion, Theological Method, Predestination.

Tenho dois objetivos neste texto. No primeiro momento, discutirei aquilo que poderíamos chamar de princípio básico da teologia wittgensteiniana, a saber, a ideia de que a significância do discurso teológico depende, necessariamente, da ligação das doutrinas com performances. Deste princípio segue-se a ideia de refraseamento prático: sentenças teológicas que não possuam relação com a vida e a conduta daqueles que as utilizam devem ser refraseadas ao ponto de obterem, digamos, aderência vivencial. Em suma, de acordo com Wittgenstein, as doutrinas devem ser deslocadas do âmbito teórico/descritivo ao âmbito prático/vivencial. De tal modo, não devem visar a apresentação de teorias sobre a realidade empírica ou supra-empírica, mas sugerir e motivar um modo de viver que dê sentido à existência. O esclarecimento e a discussão destes pontos serão o nosso primeiro objetivo.

No segundo momento do texto, apresentarei um estudo de caso sobre a doutrina da predestinação, mostrando de que modo o próprio Wittgenstein aplica o seu princípio teológico. Algumas doutrinas carregam em si a possibilidade de refraseamento prático (aquelas sobre a vida após à morte ou sobre a ocorrência de milagres, por exemplo). Outras, como a doutrina da predestinação, não podem ser refraseadas, segundo o filósofo. Nesses casos, Wittgenstein nos diz que a doutrina precisa ser rejeitada, por ser semanticamente e valorativamente sem sentido. O artigo, assim, de forma modesta, apresenta algumas contribuições da filosofia wittgensteiniana para a metodologia teológica. Não obstante, reconhecemos que tais contribuições, ao menos prima facie, mostram-se não ortodoxas e, em certo sentido, agônicas.

Como contraponto aos nossos objetivos, iniciarei falando daquilo que poderíamos chamar de o “desafio de Anscombe”. Em uma rápida, porém pungente passagem de sua célebre introdução ao Tractatus, Anscombe nos diz que a filosofia do primeiro Wittgenstein desfere um golpe fatal na teologia. Não devido a algum “positivismo” ou “verificacionismo”, mas simplesmente pela forma com que explica o sentido das proposições. Em outras palavras, segundo ela, a afamada teoria figurativa tractatiana ocasionaria a morte da teologia (cf. ANSCOMBE, 1965, p.78).

Existem várias formas de explicar a ideia de que, supostamente, a primeira filosofia de Wittgenstein ocasionaria a morte da teologia. Podemos pensar, por exemplo, no princípio da bipolaridade. Tal princípio assere que toda proposição deve poder ser verdadeira e também poder ser falsa. Proposições, poderíamos dizer, possuem um polo positivo e um polo negativo; o primeiro diz que as coisas se passam na realidade tal qual a proposição está mostrando; o segundo diz que esta combinação específica de elementos, mostrada pela proposição, não é o caso. Isto, por sua vez, nos mostra que toda proposição possui uma relação interna com a sua negação. Compreender uma proposição é compreender o seu sentido, ou seja, o que seria o caso se ela fosse verdadeira e o que seria o caso se ela fosse falsa.

Como exemplo, vamos supor que p seja uma proposição que faça uma afirmação qualquer sobre a realidade. De tal modo, p cobre uma porção do espaço lógico [logischen Raume] (cf. p.ex. TLP, 2.11)2. Tudo aquilo que está “fora” desta porção é não-p (ou ~p). Esta ideia pode ser representada em um esquema apresentado pelo próprio Wittgenstein nos Notebooks (cf. NB, 14/11/1914):

p ~p

Enquanto p afirma que esta fração do espaço lógico é um fato, ~p afirma que todas as outras possibilidades do espaço lógico podem ser o caso, com exceção desta mostrada pela proposição p. As duas proposições juntas cobrem todo o espaço lógico (cf. TLP, 4.463). A bipolaridade implica que todo signo proposicional terá sentido se e somente se determina uma possibilidade que o mundo ou satisfaz ou não satisfaz mas poderia satisfazer. Esta característica é condição necessária do sentido. Dito de outra maneira, proposições só são significativas se suas negações também forem significativas. É contingente se p é o caso ou se ~p é o caso, mas é necessário, para toda proposição, a possibilidade da sua negação. De tal forma, a determinação dos limites semânticos da linguagem, calcada na essência bipolar do simbolismo, faz com que seja inconsistente a articulação entre necessidade e verdade (cf. GLOCK, 1997, p.62). Não podem haver proposições necessariamente verdadeiras, uma vez que, ipso facto, elas jamais seriam falsas, porém, como dito por Wittgenstein, “não é possível reconhecer, a partir da figuração tão-somente, se ela é verdadeira ou falsa. Uma figuração verdadeira a priori não existe” (TLP, 2.224-2.225).

A partir disso, podemos compreender melhor o desafio de Anscombe. Segundo aquilo que nos é dito no Tractatus, a estrutura lógica subjacente ao mundo e à linguagem implica que as proposições sejam significativas se e somente se as suas negações tiverem sentido. Não há lugar no espaço lógico para proposições necessariamente verdadeiras e, consequentemente, todo fato é contingente. Percebam que, de acordo com Wittgenstein, fatos são combinações de objetos e os objetos podem se configurar de diferentes maneiras. Os fatos que formam esse escritório em que escrevo, essa casa ou mesmo o mundo em sua totalidade poderiam ser outros. Fatos não são necessários. Logo, as proposições que os descrevem também não serão necessárias. Em suma, como dito, a articulação entre necessidade e verdade é inconsistente3.

Pois bem, segundo Anscombe, a teologia não aceitaria a ideia de que não existem verdades necessárias. Ela não dá muitos detalhes sobre o porquê dessa opinião, mas podemos pensar em algumas implicações. Ao menos prima facie, não faria sentido, do ponto de vista teológico, considerar contingente aquilo que é expresso pela sentença “Deus existe”, por exemplo. Isso é assim por no mínimo dois motivos: o discurso teológico se tornaria inconsistente e, digamos, o anseio religioso dos crentes não seria satisfeito. Vamos esclarecer um pouco essas ideias.

Ao considerar o conceito de “Deus”, percebemos que qualquer tipo de dependência é incompatível com o seu uso comum. Quer se acredite em Deus ou não, pensar nele como um ser contingente, que dependa de algo para vir à existência ou para que sua existência seja mantida, é conflitante com a forma com que o conceito é entendido, por exemplo, nas tradições monoteístas. Esse algo que fez com que Deus existisse, ou que o mantém existindo, faz com que Deus perca sua soberania e perfeição, nos levando a não mais concebê-lo como o mais perfeito, ou como “o ser do qual não é possível pensar outro maior”, como dizia Anselmo (cf. PROSLOGION, Cap. II).

Além do mais, o crente religioso não está preparado para dizer que Deus poderia não ter existido, ou, no jargão tractatiano, que a sentença “Deus existe” seja bipolar. Não faz sentido dentro do discurso religioso essa possibilidade, dado que tal declaração é pressuposta para que o discurso seja possível. Neste contexto, a existência de Deus é dada a priori proporcionando possibilidade de significância ao, digamos, jogo de linguagem da religião. Um Deus finito e contingente não satisfaz as exigências da religião ou da teologia. Podemos entender isso melhor se pensarmos naquilo que Malcolm chamou de atitude religiosa. Tal atitude pressupõe uma superioridade tão grandiosa ao objeto de adoração (no caso, Deus) que em comparação a ele todos os outros objetos, inclusive o próprio adorador, não são nada. No discurso religioso é anômalo, sem sentido, incompreensível, adorar algo limitado e que possua existência contingente (cf. MALCOLM, 2003, p.383).

Assim, o desafio de Anscombe é prima facie um empecilho, pois enfatiza a ideia, (correta do ponto de vista tractatiano), de que a linguagem significativa se limita aos fatos do mundo. Mas, a despeito disso, Anscombe estaria certa? A não existência de fatos teológicos para serem descritos somada à impossibilidade de que as proposições teológicas sejam bipolares faz com que a filosofia de Wittgenstein ocasione, nas palavras dela, a morte da teologia? No meu entender, não. Porém, o discurso teológico deve propor não uma teoria, mas uma espécie de imagem, aglomerando regras que auxiliam e formatam a postura do indivíduo frente a vida. A significância do discurso teológico depende, necessariamente, da ligação das doutrinas com performances. Dito de outro modo: de um ponto de vista wittgensteiniano, o que torna a linguagem teológica significativa é uma relação necessária com a vida e a conduta daqueles que a utilizam. Doutrinas teológicas precisam ser fraseadas de uma maneira que motive um certo tipo de vivência que dê sentido à vida. Se este quesito não for satisfeito o discurso não terá sentido.

Para fundamentar minha interpretação comentarei algumas das inúmeras passagens sobre o tema espalhadas pela obra de Wittgenstein. Iniciemos com a seguinte: “Como devemos compreender as palavras não é dito pelas palavras sozinhas. (Teologia)” (Z, 144). Dignos de nota são os parênteses de Wittgenstein. Da forma com que surgem, nos levam a crer que a mera análise conceitual, neste campo, não gera compreensibilidade. A teologia seria uma área paradigmática na qual a relação das palavras com a vida é condição necessária do sentido. Nesta direção apontam também outros excertos:

É essencial o discurso para a religião? Posso imaginar uma religião em que não existam dogmas e na qual, portanto, não se fale. A natureza da religião pode não ter nada a ver com o que se fale; ou melhor: Se se fala é porque se trata de um componente da ação religiosa e não de teorias, independentemente das palavras serem verdadeiras, falsas ou carentes de sentido. (WCV, p. 104. Grifo nosso)

Este trecho é importante para compreensão da filosofia da religião de Wittgenstein, pois sintetiza duas ideias centrais desta área da filosofia wittgensteiniana. Na primeira parte da citação, a ênfase está na essência silenciosa do âmbito religioso. Isso pode ser ilustrado, por exemplo, ao pensarmos na célebre metáfora de Wittgenstein, segundo a qual os aforismos do Tractatus seriam considerados como que degraus de uma escada. A jornada do leitor escada acima, por assim dizer, esclarece aos poucos os aspectos essenciais da realidade; no cume pode-se contemplar a esfera valorativa, na qual se inclui a religião. Estes aspectos valorativos não podem ser descritos, não podem ser colocados em palavras, dada a teoria semântica tractatiana. Então, um silêncio contemplativo torna-se uma possibilidade. Apesar de importante e interessante essa ideia não será desenvolvida nesse artigo4.

Nos interessa, de forma mais direta, a segunda parte da citação. Percebam que, mesmo reconhecendo que a natureza da religião é inerente ao silêncio e não a fala, Wittgenstein nos deixa uma brecha: “Se se fala é porque se trata de um componente da ação religiosa”. Veja, a contemplação silenciosa é uma possibilidade, porém, se a linguagem for utilizada, deve necessariamente ter relação lógica com a conduta religiosa em questão, ou seja, não estão em jogo proposições, valores de verdade, mas sim regras que normatizam formas de viver. Em CV lemos:

Em rigor, gostaria de dizer que aqui as palavras que dizes ou o que pensas ao proferi-las não são o que de facto interessa, tal como a diferença por elas produzida em diferentes momentos da tua vida. Como posso eu saber que duas pessoas se referem ao mesmo quando cada uma delas diz acreditar em Deus? [...] A prática confere às palavras o seu sentido. (CV, p.124-125, grifos nossos)

Aqui ficam ainda mais explícitas as ideias que quero expressar. No contexto valorativo, não importam as palavras em si mesmas ou as imagens mentais que ocasionam nos usuários da linguagem, mas sim a forma com que estas se relacionam com a forma de viver do falante.

Apesar da ideia central estar clara, o aforismo final da última citação, a saber, “a prática confere às palavras o seu sentido”, se não for explicado corretamente pode gerar alguma confusão, fazendo com que se interprete de forma reducionista o meu ponto. Eu não estou dizendo - ou melhor, eu não estou somente dizendo - que um observador externo e neutro, caso queira compreender o sentido das sentenças religiosas, deva sempre verificar as consequências práticas da pronúncia das sentenças ao invés de tratá-las como proposições. Isso certamente é correto. No entanto, somado a isso, quero dizer que de um ponto de vista wittgensteiniano, aquele que se arrisca a utilizar a linguagem no campo dos valores, no nosso caso, o teólogo, deve também estar consciente das limitações descritivas do seu discurso e da relação necessária com a forma de vida, caso queira utilizar a linguagem de maneira significativa. Ou seja, a elaboração das sentenças deve ser compatível com determinadas atividades práticas do contexto.

Percebam que isso atinge a filosofia da religião e a teologia de forma nuclear. O místico, o teólogo ou o filósofo da religião, podem utilizar a linguagem significativamente a partir de dentro do contexto valorativo/religioso, porém, de acordo com Wittgenstein, devem evitar um arremedo de ciência, dado que a significação no campo valorativo é a concordância entre as palavras e as performances. Como não descrevem fatos, as sentenças precisam ser fraseadas de uma maneira que impliquem determinada conduta. As imagens religiosas tradicionais podem ser aproveitadas, porém sentenças que supostamente seriam teóricas – e por isso, de um ponto de vista wittgensteiniano, meras confusões linguísticas – devem ser refraseadas para que se relacionem com as performances do contexto religioso. Em suma, quando for o caso, as palavras devem ser retiradas do âmbito descritivo, teórico, e devem ser levadas ao âmbito prático.

Essa abordagem relacionada à linguagem teológica pode ser encontrada, mutatis mutandis, tanto na primeira quanto na segunda filosofia de Wittgenstein. Obviamente não há espaço para aprofundarmos essa argumentação, no entanto, posso mostrar de forma esquemática os pontos fundamentais nos quais a defesa da interpretação proposta se sustentaria nos diferentes momentos da obra. Ao pensarmos no segundo Wittgenstein, poderíamos, por exemplo, partir do famoso parágrafo 373 das Investigações Filosóficas: “A gramática diz que espécie de objeto uma coisa é (teologia como gramática)” (IF, 373). Novamente os parênteses de Wittgenstein relacionados à teologia. Neste contexto sugerem que a teologia seria, digamos, a gramática do jogo de linguagem da religião. Mesmo a citação dizendo “a gramática diz que espécie de objeto uma coisa é” nós sabemos que “gramática” não é um conceito stricto sensu ontológico. A gramática, podemos dizer, é um conjunto de regras que normatizam internamente a utilização dos conceitos nos seus respectivos jogos de linguagem. É certo que essa normatização não é rígida, pois ela se mantém e constrói no fluxo mesmo da vida humana. A gramática traça alguns limites aos jogos de linguagem, mesmo que limites pouco rígidos. Mas este seria outro assunto. O que quero enfatizar é o fato de que a teologia, sendo a gramática dos jogos de linguagem religiosos, estaria necessariamente ligando palavras e ações, ou conceitos e práticas. Percebam que é justamente isso que estamos considerando um dos princípios fundamentais da teologia wittgensteiniana. Em outros termos, como poderíamos esperar, a filosofia do segundo Wittgenstein nos diz que também no discurso teológico devemos prestar atenção no uso das palavras e no contexto prático, caso queiramos compreender o seu significado.

No Tractatus é preciso um pouco mais de sutileza, mas não é difícil compreender o meu caso. Em primeiro lugar, devemos perceber que as ideias de “contexto” e “uso” não estão presentes somente na segunda filosofia de Wittgenstein. É claro que no Tractatus tais ideias não possuem a mesma amplitude que vemos nas obras posteriores, no entanto, não deixam de ocupar um papel importante na economia tractatiana. O escopo do contexto é aqui delimitado pelo dictum de Frege, endossado por Wittgenstein no aforismo 3.3: “Só a proposição tem sentido; somente no contexto de uma proposição o nome tem significado”. Proposições não são listas de nomes; proposições são articuladas (cf. TLP, 3.141), isto é, possuem uma forma lógica. Signos isolados não fazem sentido, pois não seria possível saber qual papel ele deve ocupar no contexto de uma proposição. Só no contexto de uma forma lógica é possível saber se determinado signo representa, por exemplo, um particular ou uma propriedade.

Por exemplo, o signo “Rosa”, fora de um contexto, não pode ser compreendido, dado que pode designar tanto um nome próprio quanto um adjetivo, e isso implica que os dois usos não têm apenas significados diferentes, “mas são símbolos diferentes” (cf. TLP, 3.323). Por sua vez, isto implica que ocupariam lugares distintos na forma lógica de uma proposição: se for um nome, ocupa um local no qual podem ser inseridos termos que designam particulares; se for um adjetivo, um local no qual podem ser inseridos termos que designam propriedades. De acordo com o filósofo: “Para reconhecer o símbolo no sinal, deve-se atentar para o uso significativo. É só com seu emprego lógico-sintático que o sinal determina uma forma lógica” (TLP, 3.326-3.327. Grifos nossos). Em outras palavras, reconhecemos qual o tipo de símbolo, no contexto da forma lógica, quando prestamos atenção na maneira que ele é usado.

Assim, partindo do fato de que os conceitos de “uso” e “contexto” ocupam papel importante na filosofia tractatiana, é possível traçar um paralelo entre os níveis lógico/semântico e místico/valorativo da obra. Com isso quero dizer que se o contexto de uso é importante no primeiro caso, também será no segundo. De acordo com Wittgenstein, devemos considerar, porém, que no nível Místico não teríamos fatos ou objetos para determinar as formas lógicas e os usos corretos dos termos. O que determina, então, neste nível, o uso significativo das sentenças? Como entender o “contexto” se neste caso não é o contexto da forma lógica?

Para responder essas questões, e, consequentemente, fundamentar a interpretação do que chamamos de princípio básico da teologia wittgensteiniana, podemos pensar de forma sumária em algumas conclusões do Tractatus. Após a análise tractatiana, que busca esclarecer as condições de possibilidade da representação simbólica, conclui-se que, por um lado, temos o mundo, aquilo que é representado, que se desmembra em fatos, fatos atômicos e objetos. O objeto é o termo ontológico mais simples. Por outro lado, temos aquilo que representa o mundo, isto é, a linguagem. Esta se desmembra em proposições, proposições elementares e nomes. O nome é o termo semântico mais simples. Essas duas estruturas, aquela que representa e aquela que é representada, possuem uma forma em comum. Todo edifício representacional se constrói quando nomes e objetos são relacionados, isto é, quando o termo ontológico simples é ligado a um termo semântico simples. Pois bem, poderíamos perguntar: quem faz essa ligação fundamental? Esses termos são relacionados por quem? Alguém precisa nomear, pelo simples fato de que as coisas não surgem com os seus nomes desde toda eternidade. Esse papel de ligação entre o nome e o objeto se dá através do, assim chamado, Sujeito Volitivo ou Sujeito Metafísico (cf. p.ex.: TLP, 5.6-ss; GLOCK, 1997, p.146-150; FOGELIN, 1987, p.93-ss).

De tal modo, dado esse sumário, percebemos uma estrutura tripartite no final do processo de análise: teríamos um mundo, com determinada forma; uma linguagem, com determinada forma; e um sujeito volitivo, que liga essas duas estruturas através de sua vontade. Essa digressão sobre a filosofia tractatiana é producente, pois sustenta a ideia de que a vontade deste sujeito pode se relacionar com o mundo de duas maneiras diferentes e, uma destas maneiras, fundamenta a minha interpretação da teologia wittgensteiniana.

Vejam, quando está em questão o sentido, no sentido semântico do termo, essa vontade, poderíamos dizer, essa intencionalidade, liga-se ao contexto e ao uso proposicional, com suas respectivas formas lógicas. Neste sentido, o “mundo” está sendo compreendido como um conjunto de fatos que podem ser representados simbolicamente. É o mundo do aforismo 1.1, ou seja, uma “totalidade de fatos” (cf. TLP, 1-1.1). Por outro lado, o “mundo” não é somente um gigantesco mosaico factual, mas é “o meu mundo”, “o mundo tal como o encontro”, o mundo no qual a minha vontade “penetra” (cf. TLP, 5.62; 5.631; NB, 11/06/1916). Em outras palavras, o mundo não é só aquilo cuja representação proposicional é possível, mas é também um espaço necessariamente dado a um sujeito e no qual é preciso viver. Ora, o “sentido” neste nível vivencial não é lógico/semântico, mas ético/valorativo. De tal modo, a vida é o contexto que deve ser levado em conta ao buscarmos compreender a significância das sentenças valorativas, que incluem aqui, para Wittgenstein, também as sentenças da teologia.

Neste segundo momento do texto discutirei um estudo de caso, sobre a doutrina da predestinação, visando ilustrar o princípio teológico wittgensteiniano, que essencialmente, como dito, é a tentativa de refrasear sentenças aparentemente teóricas e descritivas em sentenças capazes de relação prática com as vidas dos indivíduos. Em suma, busca-se reinterpretar em chave prática as doutrinas religiosas. Se isto não for possível a doutrina não tem utilidade e, segundo Wittgenstein, precisaria ser rejeitada, pois o discurso que a transmite seria tanto semântica quanto valorativamente sem sentido. Encontramos vários destes estudos de caso espalhados pelos escritos de Wittgenstein, de forma proeminente, discussões sobre a doutrina da vida eterna, o conceito de milagre e a predestinação5. Nos dois primeiros casos o filósofo conclui um possível refraseamento prático, de modo que tais doutrinas poderiam ser mantidas com as devidas modificações. No caso da predestinação o julgamento de Wittgenstein é negativo. Segundo ele a doutrina precisaria ser rejeitada, pelos motivos que serão expostos a partir de agora.

Por “predestinação” nos referimos à doutrina teológica segundo a qual Deus, a partir de um propósito eterno, designou salvar um determinado número de seres humanos. Em outras palavras, a doutrina sustenta que antes da criação do mundo Deus já teria escolhido aqueles que serão salvos e aqueles que se perderão eternamente. Os eleitos receberiam de Deus, gratuitamente, o dom da fé e da perseverança, enquanto os não escolhidos, se perderiam. A discussão de Agostinho com Pelágio é normalmente tida como o momento seminal no qual o tema foi primeiramente esclarecido. Posteriormente, no período da Reforma Protestante, Lutero e Calvino desenvolveram a seu modo as ideias agostinianas sobre a predestinação. Ademais, existem raízes bíblicas evocadas pelos defensores da doutrina, tanto na ideia de que Deus, livremente, escolheu um povo – no caso, os israelitas – quanto nos escritos de Paulo (cf. MCFARLAND et al., 2011, p.405-406). Na carta de Paulo aos Romanos, por exemplo, lemos o seguinte: “Os que [Deus] distinguiu de antemão, também os predestinou [...]. E aos que predestinou, também os chamou; e aos que chamou, também os justificou; e aos que justificou, também os glorificou (BÍBLIA, Romanos: 8, 29-30). Ainda segundo Paulo: “a escolha não depende daquele que quer, nem daquele que corre, mas da misericórdia de Deus” (BÍBLIA, Romanos: 9, 16)6.

Mesmo que aparentemente periférico, o tema é persistente nos escritos de Wittgenstein. Anotações sobre destino e predestinação são encontradas por toda a obra. É certo que não há um tratamento direto do tema no Tractatus, porém, como diz Barret (cf. 1994, p.296), as considerações sobre o destino nos Notebooks e a forma com que a vontade é tratada nos Notebooks e no Tractatus, são os principais fundamentos das críticas de Wittgenstein à predestinação.

Wittgenstein conhecia a “doutrina paulina da predestinação”, julgando-a “um disparate repulsivo e irreligiosa” (cf. CV, p.54). Em Cultura e Valor (cf. p. ex. p.118; p.126) expõe a doutrina em termos semelhantes a estes: há um ser que, após a morte, conduz a maioria dos homens a um lugar de tormento eterno e uns poucos a um lugar de felicidade eterna; o que determina se um indivíduo vai para um ou outro desses locais é o tipo de vida que escolhe viver. Porém, aquele ser planejou de antemão quais indivíduos vão ao bom lugar e assim predestinou a vida de todos antecipadamente, de tal modo que não faz sentido falarmos que alguém “escolhe” viver desta ou daquela maneira. Através de uma ação combinada de forças, tal ser faz com que, necessariamente, alguns sucumbam e outros se salvem. A resultante das forças sobre o indivíduo é apenas o fim para o qual ele foi predestinado.

Pois bem, diante disso, uma das análises de Wittgenstein é a de que a doutrina da predestinação não é, no fim das contas, uma ideia religiosa, mas algo mais próximo de uma hipótese científica (cf. CV, p.126). Ela não se refere às consequências morais de nossas ações, sejam castigos ou recompensas7, mas a uma espécie de necessidade natural (cf. CV, p.118). Nas palavras de Clack (cf. 1999, p.56), Wittgenstein julga que a doutrina não passa de uma fria descrição de acontecimentos futuros. Se assim fosse, nada impediria a elaboração de uma teoria que explicasse determinados fatos – a queda ou salvação dos homens – a partir de uma, por assim dizer, lei que rege a vontade divina:

Se Deus realmente escolhe os que devem se salvar, não há razão para que não os venha a escolher segundo a nacionalidade, a raça ou o temperamento. Ou para que a escolha não encontre expressão nas leis da natureza. (Ele foi decerto capaz de escolher de modo que a escolha siga uma lei). (CV, p.108)

Vários problemas atingem a doutrina da predestinação devido a esta roupagem preditiva, quase-científica, na qual ela se mostra. Em primeiro lugar, teríamos aqui um daqueles casos nos quais, segundo Wittgenstein, se busca dizer algo que não pode ser dito. Não me refiro apenas à tentativa semanticamente impossível de descrever aspectos da mente divina, relacionados à escolha destes e não daqueles indivíduos, mas também à tentativa de adequar a ação humana à necessidade de uma lei. No fim das contas, a doutrina da predestinação implica a negação do livre-arbítrio, pois sugere que nossas escolhas não são livres, mas guiadas pela anterior e eterna volição da divindade. De tal modo, a “teoria” em questão, versaria sobre a vontade, alegando que esta não é livre, mas dirigida por uma (espécie de) lei.

Ora, a ciência se ocupa dos fatos do mundo (cf. TLP, 4.1-4.11), porém, nem Deus e nem a vontade são fatos (cf. TLP, 6.373-6.374; 6.423; 6.432-6.433; etc). Em uma abordagem wittgensteiniana, a vontade seria condição de possibilidade dos fatos do mundo, isto é, condição necessária para que haja sentido - e em dois sentidos do termo “sentido”. O sujeito volitivo, limite e não parte do mundo, liga nomes e objetos tornando possível a representação simbólica do mundo na linguagem. No contexto místico, o sujeito também pode projetar sua vontade na totalidade dos objetos, contemplando a realidade sub specie aeternitatis. Os dois casos ilustram a ideia de que a vontade não é parte do mundo, não é factual, mas condição de possibilidade do âmbito semântico e também valorativo. Não sendo factual, não está na alçada teórica das ciências. Na passagem abaixo, além de outras coisas, Wittgenstein é muito claro em relação a isso:

A vida é como um caminho ao longo do cume de uma montanha; à esquerda e à direita há encostas traiçoeiras por onde podes escorregar sem seres capaz de parar, quer numa direção quer noutra. Continuo a ver pessoas que escorregam assim e digo: “Como é que em semelhante situação um homem pode se ajudar!”. E tal significa: “negar o livre arbítrio”. Eis a atitude expressa nesta “crença”. Mas não se trata de uma crença científica, e nada tem a ver com convicções científicas. (CV, p. 96. Grifo nosso).

O filósofo diz literalmente que a negação do livre-arbítrio não tem relação com a ciência. Os motivos são os já discutidos: a ciência se ocupa de fatos. Além disso, o trecho citado alude à ideia de que a negação do livre-arbítrio teria alguma função para aqueles que “despencaram do caminho ao longo do cume da montanha”. Explicaremos isto daqui a pouco, baseando-nos também em outras passagens. Por ora, devemos perceber que o caráter pseudocientífico da predestinação, torna a doutrina apenas um emaranhado linguístico sem sentido, dado que seria logicamente impossível teorizar sobre aquilo que a doutrina pretende teorizar.

E ainda mais, se, per impossibile, a predestinação fosse o caso, a consequência seria o aniquilamento do âmbito valorativo, pois a vontade é a sua condição sine qua non. Vejam, nos Notebooks, Wittgenstein reflete sobre a possibilidade de concebermos um ser que só pudesse representar (ou ver) o mundo mas não pudesse querer. Julga ser impossível concebermos tal coisa, porém “se fosse possível, poderia também existir um mundo sem Ética” (NB, 21/07/1916. Grifo nosso). Ora, se Deus estabeleceu de antemão o destino eterno e as formas de vida dos indivíduos, a vontade é retirada de cena. Não havendo vontade não temos ética, religião ou qualquer instância relacionada ao escopo dos valores. Temos vários caminhos na filosofia wittgensteiniana que chegam à ideia de que, neste contexto, a vontade é condição necessária. Vemos que é a vontade que é projetada sobre a totalidade para que ocorra a experiência mística; que uma vida religiosa se dá no momento em que adequamos nossa vontade à vontade alheia ou vontade de Deus, de acordo com os Notebooks; e que a vontade está na base da escolha de determinada forma de vida que dá significância à vida do sujeito. Sobre o tema, Barret nos diz:

Em suas observações sobre a predestinação Wittgenstein reafirma o que havia dito sobre a vontade nos Notebooks e no Tractatus. Ainda mais, une claramente a livre ação da vontade com a esfera religiosa. Isto é de suma importância. Com efeito, Wittgenstein está dizendo que se não há liberdade da vontade não há ética ou moralidade. Porém, mais importante: também não há religião. (BARRET, 1994, p.296)

Nesta conjuntura, destacamos dois pontos relacionados à doutrina da predestinação. Primeiro, ela não passaria de um amálgama de frases, pois tenta elaborar um discurso teórico desrespeitando os limites semânticos da linguagem. Segundo, mesmo que este discurso fosse possível, a consequência seria a destruição do âmbito valorativo da realidade.

Precisamos agora investigar as implicações práticas da predestinação ou, nos termos que estamos utilizando, se é possível reinterpretar o discurso relacionado à doutrina de uma maneira valorativamente relevante. Em geral, o filósofo é da opinião que a doutrina não possui aplicações práticas positivas. Vejam:

Qual poderá ser o efeito de semelhante doutrina? Bem, ela não se refere à punição, mas a uma espécie de necessidade natural. E se tivesses de expor a alguém as coisas a esta luz, ele apenas poderia reagir com desespero ou incredulidade a uma tal doutrina. (CV, p.118)

De que modo utilizar em minha vida uma imagem que retira completamente a liberdade de escolha? Que tipo de regra de conduta ou forma de vida significativa está implicada? Ora, a força prática da predestinação mostra-se negativa ou, na melhor das hipóteses, nula. Negativa no sentido de que o indivíduo poderia se desesperar diante do fato de que seu destino está completamente traçado e tudo o que ele fizer - inclusive a própria aceitação deste destino - está de antemão estipulado. Não há mínimo espaço para alguma escolha livre. Por outro lado, a consequência pode ser nula, dado que o indivíduo pode se portar de forma “incrédula” diante da doutrina, isto é, conduzir a vida ignorando completamente a imagem que lhe fora apresentada. A “incredulidade” se dá pelo fato de que a predestinação, no fim das contas, não alteraria em nada a vida do sujeito. Se meu destino já está traçado, se tudo que faço já está escrito, não adianta assumir esta ou aquela forma de vida; dou de ombros e continuo minha jornada.

Como discutido, a maior parte das críticas de Wittgenstein à predestinação se devem ao fato de que, segundo ele, a doutrina não é ética ou religiosa, mas trata de uma suposta espécie de necessidade natural. Analisarei agora um conjunto de passagens nas quais o filósofo considera as tentativas de adequar conceitos éticos ao discurso predestinacionista. O foco agora estará em termos como “bondade”, “castigo”, “punição” e outros semelhantes. Enfatizar estes conceitos daria significatividade prática à doutrina? Será que o destaque aos termos valorativos tornará possível reinterpretar a predestinação em uma chave prática positiva? Tomemos a seguinte citação:

“Deus assim o ordenou, por conseguinte, deve ser possível fazê-lo.” Isso não significa nada. Não há nisso qualquer “por conseguinte”. Quando muito, as duas expressões poderiam significar o mesmo.

Neste contexto, “Ele assim o ordenou” significa aproximadamente: “Ele punirá quem o não fizer”. E nada daí se segue sobre o que alguém pode ou não fazer. E esse é o significado da “predestinação”. (CV, p.113)

E também essa:

“Ele escolheu-os, na sua bondade, e punir-te-á” não faz sentido. As duas partes da proposição correspondem a duas maneiras diferentes de olhar para as coisas. A segunda parte é ética, a primeira não. Tomada em conjunto com a primeira, a segunda é absurda. (CV, p.119)

A sentença analisada por Wittgenstein na primeira citação é mais ou menos a que segue: “Deus deu certas ordens e punirá quem não as cumprir, logo, deve ser possível cumpri-las”. Prima facie seria possível tornar essa sentença significativa do ponto de vista valorativo, dado que esta formulação tem relações diretas com a aceitação de determinadas regras de conduta e assim por diante. Além do mais, o conceito de “punição” possui contornos valorativos. Alguém é punido, por exemplo, não fazendo o que devia ou fazendo o que não devia. Contudo, no contexto da predestinação, a sentença analisada por Wittgenstein é absurda. É impossível a frase implicar alguma regra que possa ser livremente seguida, dado que tudo aquilo que se faça ou se deixe de fazer é, neste contexto, predeterminado por Deus. Ora, não faz nenhum sentido ser castigado por não fazer o que não se pode fazer ou por fazer o que – nestas circunstâncias – é impossível não fazer (cf. BARRET, 1994, p.290).

A mesma absurdidade estaria contida na frase analisada na segunda citação, a saber, “Deus escolheu-os, na sua bondade, e punir-te-á”. O filósofo diz que as duas partes da sentença não podem ser conectadas de forma consistente. A primeira parte da frase não tem implicações éticas, pois fazer uma escolha, ao menos à primeira vista, não tem nada de valorativo. A decisão de punir alguém, por outro lado, pertence à um contexto ético. Não faz sentido unir as duas sentenças, a menos que se queira dizer que o indivíduo foi arbitrariamente escolhido para ser punido, como se estivesse sendo dito: “Deus pune-te, embora não possas fazer as coisas de outra maneira”. Nesta hipótese, porém, o que “bondade” poderia significar? Poderíamos dizer que a frase “Deus escolheu-os na sua bondade” soaria “irônica, blasfema ou misteriosa” (BARRET, 1994, p.291).

Wittgenstein concede mais uma jogada ao defensor da predestinação ao considerar o seguinte ponto. Talvez, no contexto desta doutrina, só seja possível falar de “punição” em circunstâncias nas quais não seria lícito que esta fosse infligida por seres humanos. Em outras palavras, mesmo que os humanos considerassem o castigo injusto, Deus estaria justificado ao aplicá-lo. Mas vejam que ao se fazer isso, “o conceito de “punição” muda inteiramente” (CV, p.114). O filósofo questiona:

Poderia explicar-se o conceito das punições do inferno, sem utilizar o conceito de punição? Ou de bondade divina, sem utilizar o conceito de bondade? Se quiseres obter o efeito exato com as tuas palavras, certamente que não. (CV, p.118)

Dizer que, no contexto da predestinação, são idiossincráticas ao nível de “misteriosas” as significações dos termos valorativos, implica dizer que, no fim das contas, a predestinação é algo que os seres humanos não vinculariam ao escopo dos valores. Os conceitos de “punição”, “bondade”, “castigo” e outros similares, são de tal modo distorcidos que perdem sua conotação moral e religiosa. Não há, neste contexto, nada a se fazer com eles. É por isso que Wittgenstein insistia em dizer que o ensino da predestinação não acarreta educação moral. Insistir na ideia de que a punição divina é justa, mesmo que não compreendamos as razões, não passaria de uma manobra vazia. Ou melhor, tal insistência revela que a doutrina da predestinação é semanticamente confusa e praticamente inútil, logo, apenas um discurso sem sentido.

Existem algumas anotações nas quais Wittgenstein mostra-se, digamos, mais caridoso ao interpretar a doutrina, esforçando-se para encontrar algum uso significativo para ela. Um exemplo está na passagem já citada, na qual o filósofo apresenta uma analogia que compara a vida com um caminho ao longo do cume de uma montanha. Segundo ele, existem ladeiras traiçoeiras de um lado e de outro, pelas quais as pessoas podem deslizar, sem serem capazes de parar. Prosseguindo com a metáfora, poderíamos perguntar: o que um indivíduo pode fazer para se ajudar quando a sua vida se assemelha à um deslize incontrolável montanha abaixo? Uma possibilidade, de acordo com Wittgenstein, é “negar o livre-arbítrio” (cf. CV, p.96). Sem maiores esclarecimentos da parte do filósofo só podemos especular o porquê da negação do livre-arbítrio ser um auxílio nesta situação nefasta. Para tanto, tomemos outra passagem com o mesmo teor:

Predestinação: só é permissível escrever assim debaixo do sofrimento mais terrível - e nesse caso significa algo de todo diferente. Mas pela mesma razão não é permissível a alguém afirmá-la como uma verdade, a menos que o diga em pleno sofrimento - simplesmente, não é uma teoria. Ou noutros termos: se tal é verdade, não é a verdade que parece ser, à primeira vista, expressa por estas palavras. É menos uma teoria do que um suspiro ou um grito. (CV, p.51)

Como dito, nestas passagens Wittgenstein apresenta uma tentativa de interpretação mais caridosa, buscando verificar em que momentos vivenciais seria possível utilizar a doutrina da predestinação ou um discurso qualquer que nega a liberdade da vontade. Pois bem, de acordo com estas reflexões, seria de algum modo lícito assumirmos a predestinação ou alguma imagem que nega o livre-arbítrio, em momentos de “sofrimento terrível” ou, com os termos da metáfora, quando nossa vida é similar à queda de uma montanha. Por que? Penso que seja pelo seguinte motivo. Assumir estas crenças pode implicar uma espécie de abrandamento instintivo do sofrimento, como se o indivíduo estivesse dizendo “as coisas são assim mesmo” ou “não há nada que eu possa fazer”. A força aqui é primordialmente expressiva: tais frases ocupariam o lugar lógico de um grito dado por alguém que despenca em um fosso ou de um suspiro dado por um moribundo. Como dito, na falta de maiores esclarecimentos da parte de Wittgenstein, não podemos fazer mais do que especular. Contudo, a ideia geral e que mais nos interessa está mais clara. Na vertente mais caritativa, Wittgenstein supõe que a anulação da vontade livre pode ser compreendida como expressão de uma vida infeliz. Algo como um grito ou um suspiro pessimista e doloroso. Mas, as consequências de se tirar a vontade do jogo, principalmente o aniquilamento do âmbito dos valores, eram repudiadas por Wittgenstein.

Dadas tais consequências, o filósofo conclui que o ensino da doutrina da predestinação:

[...] não constituiria uma educação ética. Se quisesses educar alguém eticamente, embora continuando ainda a ensinar-lhe essa doutrina, terias de lha ensinar depois de o teres educado eticamente, apresentando-a como uma espécie de mistério incompreensível. (CV, p.118-119)

Sem os resultados práticos que implicam uma forma de vida significativa a doutrina é meramente sem sentido. Semanticamente sem sentido, dados os limites da linguagem e valorativamente sem sentido, pois não se atinge com ela “uma educação ética”. Se um discurso teológico insistir no ensino da predestinação, este deve vir após o aprendiz assimilar conceitos éticos. Porém, este procedimento, aos olhos de Wittgenstein, seria um apêndice desnecessário ou mesmo nocivo: “Sinto-me aqui inclinado a dizer que os conceitos distorcidos provocaram muitos males” (CV, p.108).

Isso é compatível com nossa interpretação prática da teologia wittgensteiniana. O sentido do discurso valorativo se dá na medida em que influencia determinada conduta. Algumas doutrinas carregam a possibilidade de refraseamento prático8, outras, no entanto, impedem ou parecem impedir tal refraseamento. Isso parece ser o caso da predestinação. O fato de não ser e não poder ser teórica, somado à inutilidade prática, levam o filósofo a concluir que a “doutrina paulina da predestinação” é “um disparate repulsivo, irreligiosidade”. Por este motivo, continua, a doutrina “não é conveniente para mim, visto que o único uso que poderia fazer da imagem que me é oferecida seria um uso errado” (CV, p.54. Grifo nosso).

Tivemos um duplo objetivo neste artigo. Primeiramente discutimos a ideia segundo a qual a significância do discurso teológico depende, necessariamente, da ligação das doutrinas com as condutas dos indivíduos. Chamamos isso de princípio básico da teologia wittgensteiniana. Exploramos algumas implicações deste princípio, em especial a ideia de refraseamento prático. Vimos também, ao menos de forma esquemática, de que modo o método teológico de Wittgenstein está presente nos dois principais momentos de sua obra filosófica. Depois disso, discutimos um estudo de caso sobre a doutrina da predestinação, visando ilustrar a aplicação do método pelo próprio autor. Após várias tentativas, Wittgenstein conclui que a doutrina da predestinação não traz consigo a possibilidade de refraseamento prático, o que a torna, segundo ele, semântica e valorativamente sem sentido. Doutrinas religiosas que não possuam nenhuma influência vivencial devem, de acordo com o filósofo, ser rejeitadas, mesmo que demande esforço e desapego por parte do indivíduo. Ora, “se pretendes ficar na esfera religiosa, tens de lutar!”, adverte o filósofo (CV, p.126). Tal luta diz respeito também ao fato de que é preciso discernir quais tipos de discursos influenciam na significância da vida.

Referências:

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ANSELMO, S. Proslogion. In: Os pensadores. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

BARRET, C. Ética y creencia religiosa en Wittgenstein. Madrid. Alianza Editorial, 1994.

BÍBLIA SAGRADA. Bíblia do Peregrino, Edição de estudo. Comentários por Luís Alonso Schökel. São Paulo: Paulus, 2002.

CLACK, B. R. An Introduction to Wittgenstein’s Philosophy of Religion. Edinburgh: Edinburgh University, 1999.

FOGELIN, R. J. Wittgenstein (second edition). London: Routledge, 1987.

GLOCK, H.J. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

MALCOLM, N. ‘Os argumentos ontológicos de Anselmo’. In.: TALIAFERRO, C.; GRIFFITHS, P. J. Filosofia das religiões: uma antologia. Instituto Piaget: Lisboa, 2003. p. 373-387.

MANDELI, A.V. O ponto de vista religioso de Wittgenstein. 2016, 229f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.

MANDELI, A.V. ‘Notas wittgensteinianas sobre o conceito de milagre’. Fundamento - Revista de Pesquisa em Filosofia. Ouro Preto, n.7, jul-dez, 2013.

MCFARLAND, I.A.; FERGUSSON, D.S.; KILBY, K.; TORRANCE, I. (Edit). The Cambridge Dictionary of Christian Theology. Cambridge: Cambridge University, 2011.

WAISMANN, F. (WCV), Wittgenstein y el Círculo de Viena. Edición preparada por B. F. McGuinness. México: Fondo de Cultura Económica, 1973.

WITTGENSTEIN, L. (CV) Cultura e Valor. Tradução de Jorge Mendes. Lisboa: Edições 70, 1980.

WITTGENSTEIN, L. (IF) Investigações Filosóficas. In: Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1988.

WITTGENSTEIN, L. (NB) Notebooks 1914-1916. Edited by G.H. von Wright and G.E.M. Anscombe. Edição bilingüe (alemão-inglês). Oxford: Basil Blackwell, 1969.

WITTGENSTEIN, L. The collected works of Wittgenstein. Oxford: Blackwell Publishers, 1998.

WITTGENSTEIN, L. (TLP) Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 2001.

WITTGENSTEIN, L. (Z) ‘Zettel’. In.: The collected works of Wittgenstein. Oxford: Blackwell Publishers, 1998.

Notas

2 Não há uma definição de “espaço lógico” (logischen Raume) no Tractatus, mas podemos compreendê-lo como o conjunto de todas as possibilidades lógicas, sendo similar a um sistema de coordenadas nas quais os fatos estão inseridos.
3 É necessário algum esclarecimento sobre as tautologias. Como é bem sabido, o termo “tautologia” designa uma frase que é verdadeira para todos os valores de verdade atribuídos às variáveis que nela ocorrem. Em outras palavras, uma tautologia é sempre verdadeira, independente daquilo que é o caso. Não preciso, por exemplo, olhar pela janela para concluir que a frase “ou chove ou não chove” é verdadeira. Ora, isso parece um contraexemplo à ideia de que a articulação entre verdade e necessidade seja inconsistente, dado que, ao menos em um sentido, tautologias seriam necessariamente verdadeiras. Contudo, para Wittgenstein, tautologias não dizem nada, ou seja, não são figurações da realidade (cf. TLP, 4.462). Ao invés disso, as tautologias (e também as contradições) são casos limite da combinação vero-funcional de proposições. A combinação parte de proposições bipolares lícitas, (por exemplo, “está chovendo”), e termina em “proposições” moleculares que anulam toda a informação factual: “Nada sei, p. ex., a respeito do tempo, quando sei que chove ou não chove” (TLP, 4.461). Para maiores esclarecimentos sobre tautologias e contradições pode-se conferir, p. ex.: (TLP, 4.46-4.4661; GLOCK, 1997, 346-ss; FOGELIN, 1987, p.45-47).
4 Discuti este ponto com certa profundidade em (MANDELI, 2016, p.105-166).
5 No presente artigo tratarei somente da predestinação, porém discuti os outros casos em (MANDELI, 2016) e (MANDELI, 2013).
6 Não nos interessa, ao menos nesta pesquisa, qual a melhor forma de interpretar estas passagens bíblicas, mas apenas a forma com que Wittgenstein compreendia e reagia à doutrina.
7 Ideia esta que, sob determinado enfoque, também era repudiada por Wittgenstein: “a ética nada tem a ver com punição e recompensa, no sentido usual. Portanto, essa questão de quais sejam as consequências de uma ação não deve ter importância. – Pelo menos, essas consequências não podem ser eventos. Pois há decerto algo de correto nesse modo de formular a questão. Deve haver, na verdade, uma espécie de punição ética e recompensa ética, mas elas devem estar na própria ação” (TLP, 6.422).
8 Por exemplo, a doutrina sobre a vida eterna ou sobre os milagres cf. (MANDELI, 2016, p.180-199) e (MANDELI, 2013).

Autor notes

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis – SC, Brasil. Professor Colaborador da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Curitiba – PR, Brasil.


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