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A psicologia de Evágrio Pôntico: o caminho da práxis
The psychology of Evagrius Ponticus: the path of práxis
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 3, pp. 274-283, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepção: 16 Junho 2020

Aprovação: 30 Setembro 2020

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i3.1895

Resumo: Os escritos de Evágrio Pôntico, monge do século IV, embora não constituindo um sistema filosófico, são de capital importância para compreendermos o desenvolvimento da cultura ocidental. No presente trabalho, todavia, operamos um corte epistemológico diferente. Buscamos na sua obra Tratado Prático, primeira parte de uma trilogia de teologia espiritual, elementos de uma doutrina psicológica que, é o que pretendemos demonstrar, se constitui em verdadeira terapêutica. Assim, exploramos alguns conceitos fundamentais dessa obra, tais como os de impassibilidade (apatheía), de pensamentos passionais (logismoí), e o de paixões (páthos), e também doutrinas importantes, como a da divisão tripartite da alma e a demonologia evagriana (onde os demônios, a nosso ver, representariam facetas inconscientes do desejo).

Palavras-chave: Apatheía, Pensamentos passionais, Paixões, Terapêutica.

Abstract: :

The writings of Evagrius Ponticus, a monk of the 4th century, although not a philosophical system, are important for the development of western culture and its understanding. Nevertheless, in this paper we make a different epistemological approach. In his work, the Praktikos (or The Practical Treatise), the first part of a trilogy of spiritual theology, we look for elements of a psychological doctrine. With that, we believe, he intends to demonstrate a therapeutic practice. Thus, we explored some fundamental concepts of this work, such as impassibility (apatheía), passional thoughts (logismoí), passions (páthos), and other important doctrines. Furthermore, we explore the idea of tripartite division of the soul and evagrian demonology as well (where demons, in our view, represent unconscious faces of desire).

Keywords: Apatheía, Passional thoughts, Passions, Therapeutics.

Introdução

Evágrio Pôntico, monge no deserto Egípcio durante o século IV, é uma ponte entre o pensamento grego, a mística e ascética cristãs e a recepção da filosofia na latinitas no fim da antiguidade. Discípulo de grandes teólogos como, Basílio Magno e Gregório Nazianzeno, conhecedor da filosofia aristotélica, mestre do abade João Cassiano que é um dos pais do monaquismo no Ocidente. Sua obra relativamente pouco conhecida é, infelizmente, pouco lida no sentido de sua influência no desenvolvimento da cultura ocidental. Compreendê-lo é entender quais são as ideias fundamentais que estavam no germe do monaquismo e, por conseguinte, é também compreender uma das inúmeras maneiras de apreensão da filosofia grega que constituíram o surgimento da christianitas ao fim da latinitas.

Neste trabalho apresentamos uma leitura entre tantas possíveis de sua obra, através do exame do Tratado Prático, texto que inicia uma trilogia e é peça fundamental de seu pensamento. Optamos por um corte epistemológico controverso. Trata-se de tomar a obra de Evágrio em sentido psicológico3. Há algo como uma psicologia evagriana? Em caso afirmativo, em que consiste? Poderíamos ir além e afirmar que sua prática seria uma forma de terapêutica?

O percurso por nós desenvolvido se dará em três partes: 1. Na primeira analisamos, brevemente, o posto que ocupa Evágrio e sua doutrina na história da teologia e do cristianismo. 2. Em uma segunda etapa passamos à apresentação do Tratado Prático, suas partes fundamentais e seus conceitos operativos, em especial as noções de apatheía e de logismoí, respectivamente, impassibilidade e pensamentos passionais, como suas relações com as paixões. 3.Por fim, procederemos à leitura da psicologia evagriana e em que sentido se lhe pode aplicar esse termo. Com essa finalidade faremos a apresentação de dois elementos que consideramos fundamentais para se falar de uma psicologia em Evágrio. Em primeiro lugar, a divisão tripartite da alma, dando relevo às possíveis dimensões do desejo e então introduziremos a questão da existência de um sistema inconsciente, articulando a demonologia evagriana e sua doutrina sobre os sonhos.

Um pensador prático

Evágrio nasce por volta de 345 na província romana do Ponto, filho de um bispo. Sua família residia próximo da família de Basílio Magno, Padre da Igreja4, importante bispo e teólogo do século IV que marcou fortemente a vida e o pensamento de Evágrio. Dele também recebe o leitorado5 e é iniciado nos estudos em preparação às ordens sacras. Com a morte de Basílio, passa a ser discípulo de Gregório Nazianzeno, outro importante teólogo e Padre da Igreja, de quem recebe a ordenação diaconal. Gregório também leva Evágrio para Constantinopla, onde estuda filosofia e teologia. Alguns anos depois dirige-se para Jerusalém onde é convencido pela monja Melânia a tornar-se ele também monge (MESSIAS, 2013, p. 295).

Após a decisão de tornar-se monge, migra para o sul do Egito, onde ficavam as famosas Células (pequenos dormitórios onde se alojavam, às vezes uma pequena escavação numa rocha, no máximo um minúsculo casebre rusticamente construído), permanecendo ali até sua morte em 399. Sem nunca ser ordenado sacerdote, Evágrio vive entre os monges analfabetos ou quase analfabetos do Egito e seu pensamento refletirá isso. Em Constantinopla já era admirado por sua capacidade dialética; no entanto, no deserto a dialética servia para pouco. O monaquismo egípcio era extremamente simples. Silêncio, trabalho manual, curtas orações pronunciadas repetidamente, solidão, guarda do coração e uma sináxis ocasionalmente celebrada entre os monges. O estudo apurado das Escrituras, a leitura e a tradução, que depois marcariam a tradição monástica ocidental, não eram práticas comuns, muito menos o estudo da filosofia. Mas Evágrio chega ao deserto com vasta cultura. Ali ele opera a síntese entre o saber erudito e uma prática monástica mais despojada, que são o traço fundamental de sua obra.

A rigor, não podemos falar de uma doutrina evagriana, tal como quando nos referimos ao pensamento de Aristóteles ou Platão, de Orígenes ou Agostinho. Seu corpus não é um sistema de filosofia ou de teologia, tal como compreendemos hoje esses termos. Consiste, em verdade, de numerosos escritos que traçam um programa de vida monástica, uma doutrina de libertação das paixões em direção à perfeição da unidade com Deus.

A sua obra, deveras rica e multifacetada, parece não ser para ele mais do que a exposição mais ou menos sistemática da “filosofia verdadeira” que ele identifica ao cristianismo, considerado inseparavelmente como sabedoria (conjunto de doutrinas reveladas) e modo de vida. Com efeito, Evágrio principia, sem mais, a sua primeira grande obra, que trata do primeiro estágio no caminho dessa sabedoria (o primeiro estágio da vera philosophia christiana), com uma definição do que é o cristianismo, inserindo seus pensamentos no contexto maior da religião cristã. (VERÇOSA FILHO, 2014, p. 99).

Assim sendo, não devemos ler os seus escritos no sentido de buscar uma unidade conceitual. Suas influências são diversas. Talvez por isso falte-nos boa parte dos textos gregos originais de seus escritos. Entretanto, dada a importância que seus escritos tinham para a vida monástica incipiente e ao longo da história, dispomos de muitas traduções, para o armênio, copta, etíope e especialmente para o siríaco que em grande medida são usadas para uma recomposição aproximada do que seria o texto original.

Tendo em vista tais observações, como devemos nos aproximar do texto evagriano? Fica patente que não se trata de um sistema. Temos que interpretá-lo, por conseguinte, como um conjunto de conselhos práticos, admoestações, parêneses, aforismos. Nossa proposta, todavia, acrescenta algo mais a essa abordagem: devemos compreendê-la como uma série de observações psicológicas pertinentes sobre as paixões e progressivo caminho de maturação psicológica. Evágrio é um pensador prático que pretende oferecer frutos práticos de suas reflexões.

O tratado prático

Como já mencionamos acima, Evágrio Pôntico escreveu vasta obra, toda ela no período em que viveu no deserto. A parte de seus escritos mais importante e que melhor apresenta seu pensamento é uma trilogia constituída do Tratado Prático, do Gnósticos e dos Capítulos Gnósticos. Esta trilogia é um tratado de vida espiritual. Inicia com a fundamental ascese das paixões, até alcançar os meios de união com Deus, no que Evágrio chama theología.

Aqui vamos nos ater ao Tratado Prático6, endereçado aos monges do deserto egípcio. Esta obra se divide em cem capítulos, que por sua vez podem ser agrupados em dez partes. De forma bastante esquemática, compõe-se dos seguintes temas: a definição de cristianismo; a verdadeira ciência; os oito pensamentos; remédios contra os pensamentos passionais; as paixões; os demônios; sonhos; a impassibilidade (apatheía); a vida do monge; sentenças dos padres do deserto.

Logo no início da obra apresenta-se uma definição de cristianismo. Segundo Evágrio: “O cristianismo é a doutrina (dógma) do nosso salvador, Cristo, que compreende [a parte] prática, a física e a teológica” (TP 1). Brevemente dito, a parte teológica, apresentada nos Capítulos Gnósticos como culminação da trilogia, consiste na contemplação racional de Deus por uma alma que já chegou ao fim de um processo ascético. A parte física trata da contemplação de Deus na natureza, na Criação, ou mais precisamente na ordem racional do cosmos e é apresentada no Gnósticos. A ascética, na qual nós queremos surpreender a psicologia evagriana, é apresentada no Tratado Prático. Vejamos em que consiste essa ascética.

Apatheía

O Tratado Prático é um texto sobre o crescimento na vida espiritual. Um dos elementos centrais para esse crescimento é a apatheía, a impassibilidade da alma diante das paixões. O Tratado Prático não opera em termos de salvação no sentido de conservação da alma individual para um futuro escatológico. Salvar-se é tornar-se impassível ao ataque de paixões desordenadas7, dos pensamentos passionais, dos demônios. Impassível, entretanto, não significa insensível. Ao contrário, o monge é assolado por todo tipo de tentação: do sexo e da comida, do poder e do dinheiro, e, pela mais terrível de todas, a tentação de abandonar a solidão da vida monástica. Para Evágrio isso tudo pode lhe ferir, lhe preocupar, mas não deve perturbá-lo a ponto de perder o domínio de si mesmo.

A apatheía que chegou ao seu fim é a que se forma na alma depois da vitória sobre todos os demônios que se opõem à [vida] prática. A apatheía que não chegou ao seu fim, por outro lado, se diz em relação à força do demônio que continua a lutar contra ela. (TP 80).

A apatheía não é a finalidade última da natureza humana. É, contudo, meta indispensável a ser alcançada. No caminho a ser percorrido, do qual o Tratado Prático pretende ser a primeira parte, não é possível progredir sem alcançar a estabilidade emocional que permite ao monge dar passos mais significativos.

O tornar-se impassível é relativo àquilo que perturba. Segundo Evágrio, a maior perturbação é advinda dos pensamentos passionais, logismoí8. Como indica o termo grego, os logismoí são dimensões da racionalidade e da linguagem. São considerações racionais que tocam a psyché e que tem o poder de fazer o ser humano agir viciosamente. Vale dizer que em si não são viciosos, mas despertam o desregramento da vida anímica. Segundo Evágrio são: gula, fornicação, avareza, tristeza, cólera, acédia, vanglória e orgulho. Esses logismoí são diferentes das paixões. Estas são excitadas por aqueles sendo, portanto, os motores que põem as paixões desordenadas em ação. Para Evágrio “que esses pensamentos perturbem ou não a alma não está em nosso poder” (TP 6) Há, digamos equivocamente, certa conaturalidade entre

Mas não se pode compreender a psicologia evagriana se não se recorre à função dos demônios. Ouvindo esta expressão não devemos imaginar as imagens plásticas posteriores à Comédia de Dante que a iconografia nos legou. Os demônios são aqueles que despertam os logismoíque perturbam a psyché e provocam o descontrole das paixões. Mas não são eles o primeiro inimigo a ser combatido. A epithymía, que é o desejo concupiscente, e a dimensão irascível ou thymós não são acontecimentos extrínsecos à mente humana. É na alma do monge que se dá a principal luta.

Os demônios assaltam a alma provocando nela pensamentos que levam ao descontrole da paixão. Evágrio reconhece na psyché três dimensões, a saber: uma intelectiva, o noûs; uma apetitiva, o desejo concupiscente ou epithymía; e por fim uma parte irascível, ou thymós. As paixões, por conseguinte, são afecções de alma relativas a essas dimensões. A alma é excitada a ponto de perder o controle.

A mente vagante [noún planómenon] é tornada estável pela leitura, pela vigília e pela oração. Quando o desejo [epithymía] se inflama, a fome, a fadiga e a solidão o extinguem. Quando a irascibilidade [thymós] é particularmente agitada, a recitação dos salmos, a paciência e a misericórdia a aquietam. (TP, 15).

Antes dizíamos que os logismoí são, como indica o termo, do âmbito da racionalidade e do discurso. Entretanto, seria difícil responder como um pensamento, enquanto meramente noético, poderia despertar um movimento (kínesis) descontrolado da alma. A ação demoníaca é, por conseguinte, como um ataque inconsciente realizado de maneira discursiva, despertando significantes aparentemente elididos. O aparecimento desses significantes no âmbito da consciência – portanto, como discursividade, logismoí – é inevitável. Na aplicação dos critérios propostos pela prática, todavia, é possível demover a psyché, isto é, frustrar o intento inconsciente despertado pelos demônios.

A apathéia, por conseguinte, de forma alguma pode ser traduzida pelo correspondente vernáculo apatia. A impassibilidade alcançada não é resultado de indiferença do monge em relação ao seu desejo. Reconhece, ao contrário, no ser afetado (páthos), a sua condição primeira. Há paixões do corpo e paixões da alma, segundo Evágrio9. As primeiras são despertadas pelas sensações (aísthesis). As segundas, muito mais arraigadas e difíceis de ser controladas, são majoritariamente despertadas pelos demônios que inflamam os pensamentos humanos. A clareza meridiana da racionalidade é perturbada pela escuridão noturna da ação inconsciente dos demônios.

Apatheía, nesse caso, só pode ser resultado de uma luta constante. Assim, Evágrio lhe reconhece diversos graus. Há uma apatheíaperfeita, a que se chega quando a alma vence todos os demônios que se opõem a ela. Mas há também uma imperfeita, quando ainda os demônios atuam persistentemente e a alma se vê em luta contra eles. Isso significa que pode haver apatheía, ainda que imperfeita, mesmo quando ainda há luta. Logo, ela não é uma condição meramente passiva e receptiva. Ao contrário, apatheía é a-páthos. Se páthos, a afecção, é justamente ser afetado por, ser objeto passivo de uma ação, o alfa privativo que forma o termo derivado nos mostra que impassibilidade é justamente a saída desse estado de pura passividade, de certa maneira colocando o sujeito numa relação ativa com o seu próprio ser afetado.

O Tratado Prático, identificando essas várias dimensões da alma, indicando o modo com atuam e se relacionam entre si, propõe então várias ações concretas para a realização desse itinerário. O cultivo de virtudes como a paciência (macrothymía), a prática do jejum, a continência, a oração, o cultivo da solidão.

Agora, resta-nos perguntar a partir das direções timidamente já expressas, em que sentido podemos falar de uma psicologia evagriana.

Psicologia evagriana

No tópico anterior apresentamos um breve resumo do Tratado Prático. Pudemos observar que se trata de uma obra destinada aos monges do deserto egípcio e que se propõe como o primeiro degrau de um processo de desenvolvimento espiritual. Evágrio fala que a doutrina de Cristo, o cristianismo, compõe-se de três partes, a saber, a prática, a física e a teologia. O Tratado dá conselhos e orientações referentes à primeira parte. Ao final desta o monge, após realizar a ascese correspondente, deve chegar à apathéia, à impassibilidade.

Nos tópicos seguintes pretendemos explorar aquilo que consideramos os conceitos psicológicos fundamentais sobre os quais se ergue a doutrina espiritual evagriana. Assim, cremos que devemos falar propriamente de uma psicologia evagriana que, situada em uma concepção antropológica mais ampla, é de capital importância para a compreensão de sua doutrina.

A alma e sua divisão tripartite

O termo que Evágrio adota para referir-se ao ser humano em sua totalidade é psyché, que aqui traduzimos por alma. Vale notar que ele poucas vezes utiliza o termo ánthropos, ser humano. Fala ainda de um binômio corpo-alma, sóma-psyché. As paixões, as afecções que o indivíduo sofre, podem por sua vez advir de uma ou outra dessas dimensões. As paixões que afetam o corpo advêm das sensações (aísthesis), enquanto as que afetam a alma advêm dos pensamentos (logismoí), suscitadas pela ação dos demônios. Nestes demônios conseguimos entrever, para além da sua demonologia, o modo pelo qual Evágrio se refere à cisão fundamental da psique humana.

[Os demônios] aparecem como a figura dessa divisão psíquica fundamental que constitui o ser humano na experiência que ele tem da própria psique – uma divisão que é dolorosa e ameaçadora precisamente porque as partes separadas, os “fragmentos”, demonstram ter uma certa autonomia, cada qual usando de uma artimanha e de uma lógica que lhe é própria por meio da qual fazem a “guerra” continuamente contra o monge e entre si -, uma psique que muitas vezes e na maior parte do tempo parece quase impossível de unificar num todo coerente e com alguma estabilidade, pelo menos para a maioria de nós, colocando em dúvida, inclusive, a existência de algo que possamos legitimamente chamar de “eu”. (VERÇOSA FILHO, 2014, p. 15).

Mas onde se insere essa “divisão fundamental da psique”? Ora, não pode ser inserida entre a psyché e o soma, pois assim não seria propriamente uma divisão psíquica, mas apenas uma antinomia entre partes irreconciliáveis. Por isso, embasando na filosofia grega clássica, Evágrio reconhece uma divisão tripartite da alma10. O capítulo 15 do Tratado Prático, citado acima, fala de noûs, epithymía e thymós. O noûs é a dimensão intelectiva. Como tal, Evágrio recomenda a leitura e o silêncio como o remédio para seus vícios, remédios estes também intelectuais, que assim evitam que ela vague indefinidamente, perdendo-se em fantasias. O noûs deve ser preservado porque é por meio dele que se chega à verdadeira ciência (gnósis) da Trindade, ciência que é parte da constituição do próprio noûs, porque destinado à incorruptibilidade (TP, 3). Para Evágrio, este é o Reino de Deus (Basileía toû Theoû).

Do ponto de vista da excitação das paixões, contudo, desempenham papel mais relevante as duas partes inferiores da alma. Estas arrastam a alma em direção aos objetos materiais, impedindo o noûs – no seu impulso de ascensão que atrai a alma em direção à realização de seu fim último – de chegar à contemplação de Deus. Abaixo da parte intelectiva temos a parte concupiscente ou desiderativa, a epithymía, que articula o noûs com a parte inferior da psyché, a parte irascível, ou thymós. Esta, por sua vez, é a parte mais facilmente perturbável e que mais separa o noûs de seu fim (TP, 21).

Parece-nos sobremaneira evidente o quanto a epithymía, o desejo, é o nó górdio para compreendermos a psicologia evagriana. Já falamos antes que podemos reconhecer no Tratado dois tipos de paixões: as que surgem nas afecções da alma e as das sensações do corpo. Uma sensação, em si mesma, não pode suscitar nem vício nem virtude e nem é uma paixão por si mesma.

Aquilo que alguém ama [erâ], isto lhe é o mais desejável [efietaí] e faz de tudo para consegui-lo. É o desejo [epithymía] que precede todo prazer [hedoné], mas é a sensação [aísthesis] que origina o desejo, pois àquele que lhe falta a sensação é, pois, isento de paixão. (TP, 4).

Aqui reconhecemos uma complexa relação entre termos carregados de sentido na tradição ocidental. O desejo se liga primariamente ao eros. Desejar é amar, querer vigorosamente, é impulso que direciona o sujeito à obtenção de um prazer advindo das sensações. Mas é a sensação mesma quem desperta o desejo. O prazer sentido encadeia a busca de mais prazer. Se a epithymía é o desejo que busca, a força de atração que une o sujeito ao seu objeto, o thymós é a força de repulsão, que o afasta de outro, ou do mesmo objeto, que no momento lhe causa desprazer11. O thymós também pressupõe uma ação de força exercida contra o outro ou contra si mesmo. Por isso, o vício que lhe desperta mais facilmente a desordem é a cólera: “Se a cólera e o ódio fomentam o thymós, a misericórdia e a mansidão fazem diminuir também aquele [thymós] que já se aninhou dentro [da psyché]” (TP, 20).

Uma dimensão inconsciente: os sonhos e os demônios

Já mencionamos acima o quanto Evágrio Pôntico é dependente da demonologia de seu tempo. Também já indicamos que os logismoí são despertados através das ações dos demônios. Estes são o móbil inconsciente da ação. Põem a discursividade e a racionalidade a agir contra a própria dimensão mais alta da mesma razão, a saber, no intuito de impedir que o noûs dirija-se para seu objeto alcançando-o.

Importa agora recuperar as nuances que Evágrio estabelece, diferenciando os modos de ação e os diversos tipos de demônio que, a nosso ver, representam facetas inconscientes do desejo. Uma primeira diferença que faz é que os demônios agem de maneira diferente se tentam seculares ou religiosos.

Os demônios preferem lutar contra os seculares por meio das coisas sensíveis [pragmatôn], mas aos monges atacam por meio dos pensamentos, porque no deserto estão privados de coisas sensíveis. E na medida que é mais fácil pecar com o pensamento que pelas obras é tanto mais difícil a luta sustentada na mente [dianoía] do que aquela sustentada contra as coisas sensíveis. A mente é coisa [prágma] fácil de ser movida e difícil de controlar ante uma imaginação sem limites [ánomos phantasías]. (TP, 48).

Se relacionamos este capítulo acima com o capítulo 4 onde Evágrio evoca as relações entre paixões, sensações e desejo, conseguimos esboçar um quadro mais amplo do que significa a ação dos demônios. A paixão só é despertada na presença de um objeto de desejo para um sujeito desejante. Na ausência de coisas sensíveis o desejo não fica sem objeto, mas fantasia seu próprio objeto, cria um phantásma em sentido etimológico, isto é, plasma um objeto, uma imagem, uma metonímia (LACAN, 1999, p. 208).

Essa fantasia sem lei é aquela instigada pelos demônios, pelas exigências do desejo que se fazem presentes. Assim, entende-se que Evágrio coloque entre os demônios mais velozes aqueles que excitam o desejo sexual, o demônio da fornicação [porneías]. Isto é, a sua ação é a mais rápida, e se não conseguir mover de maneira unitiva os logismoí às suas paixões correspondentes, ele é rapidamente controlado. Marcado pelo médio-platonismo e pelo origenismo, Evágrio faz consistir a anacorésis, a prática da solidão monástica, em uma fuga do corpo. Esta, por sua vez, não é em si nem causa de bens nem de males. A epithymía não é para ele um mal em si mesmo. Quem não domina a si mesmo não deve acusar o desejo, mas a si mesmo (TP, 53).

Essa dimensão inconsciente fica mais clara ao lermos os capítulos correspondentes à doutrina dos sonhos (52-56). Evágrio chama o processo onírico de phantasías epithymetikós, isto é, de imaginação desejante. Nestas imagens os demônios atacam diretamente a parte concupiscente da alma, apresentando os objetos que o sujeito recusou durante o dia, ou dos quais não pode obter ou não quis obter prazer. Mas acontece também que pela imaginação impulsionada pelos demônios, a parte irascível seja a atingida. As imagens prazerosas se convertem, destarte, em imagens de violência e gozo sádico, imaginando-se batalhas com homens armados (TP, 54).

Podemos reconhecer, nessa doutrina, um complexo encadeamento de elementos que nos leva a crer que Evágrio reconheceu a existência de um sistema inconsciente que determinava o desejo – seja concupiscente, seja irascível – e que poderia ser objeto de uma censura consciente da alma, na medida em que o si mesmo, o autós, é o responsável por ceder ou não ao império das paixões.

Conclusão

Apesar de não termos aprofundado as influências que compõem a obra evagriana, pudemos perceber o quão rico é o escopo conceitual de que faz uso. É importante recordar que seus escritos não constituem um sistema fechado. Ao contrário, grande parte são indicativos práticos para a vida monástica, conciliando os dados da filosofia e das ciências sagradas de seu período de estudos em Constantinopla com a experiência simples dos monges egípcios.

O seu Tratado Prático se insere no conjunto de sua obra como um verdadeiro tratado das paixões. Seu intuito, todavia, não é descritivo, mas prescritivo e exortativo. Segundo nosso juízo podemos considerar sem grande receio a prática de Evágrio como uma verdadeira terapêutica, e isso podemos deduzir por meio dos argumentos a seguir.

Primeiramente, parece-nos adequado falar de uma psicologia evagriana, e não apenas de uma antropologia em chave filosófica ou teológica (MESSIAS, 2013, p. 300). Não se trata exclusivamente de uma doutrina sobre alguém que é salvo, nem sobre a definição de um ser que chamamos homem e do conhecimento de sua gênese e lugar no mundo. Se nos Capítulos Gnósticos Evágrio examinará a contemplação e as virtudes passivas para a recepção da ação de Deus, no Tratado Prático estão elencados os procedimentos para o “tratamento” das paixões, o que torna seu pensamento uma espécie de terapêutica, de um cuidado ativo, como aqui viemos indicando.

Em segundo lugar, se como já dissemos o texto por nós analisado é um verdadeiro tratado das paixões, não o é apenas por apresentar um conceito ontológico das paixões – o que elas são em si mesmas – mas porque também elabora uma definição funcional das mesmas. Destarte, não se limita a colocar a doutrina das paixões dentro de uma esquemática antropológica, mas orienta o indivíduo no caminho do domínio dessas afecções, o que chamará de apatheía.

Ademais, devemos mencionar em terceiro lugar o amplo escopo do conceito de desejo. Epithýmia . thymós, a parte concupiscente e a irascível, não são dimensões abstratas da psyché, apenas divisões didáticas e conceituais. A doutrina evagriana reconhece um efeito prático da ação dessas dimensões na vida dos homens. O modo como as sensações e os pensamentos passionais perturbam essas partes da alma e, ao mesmo tempo, o papel consciente que o sujeito desempenha ao acolher ou não uma excitação persistente, mostram a consciência avançada da dinamicidade do desejo e o papel fundamental da terapêutica das paixões.

Por fim, reconhecemos no Tratado Prático uma dimensão inconsciente, representados na forma da sua demonologia. Os demônios e, especialmente os demônios que perturbam os sonhos, apresentam-nos uma elaborada compreensão das exigências do desejo, das demandas libidinais – ou das demandas da epithymía – e as consequências de sua satisfação ou não. Essa satisfação do desejo é elaborada de modo sofisticado na doutrina da imaginação. Não é apenas na presença de um objeto concreto que o desejo busca satisfação. As demandas do real são ainda desenvolvidas na forma fantasmática, na produção de um objeto metonímico.

Assim, fica patente para nós a existência de uma psicologia evagriana, bem elaborada ainda que não sistemática. Ademais, a prática evagriana se revela uma possível terapêutica da psyché em sua dimensão passional-desejante, levando em conta as demandas elaboradas na forma de linguagem – os logismoí – e os dados da sensação.

Referências

ARISTÓTELES. De Anima. São Paulo: Editora 34, 2006.

EVAGRE LE PONTIQUE. Traité pratique sur la vie monastique. Paris: Éditions du Cerf, 1971. (Sources Chrétiennes).

EVAGRIO PONTICO. Trattato pratico sulla vita monastica. Roma: Cittá Nuova, 1992. (Collana di testi patristici).

FRANGIOTTI, Roque. Apresentação. In: PADRES Apostólicos. São Paulo: Paulus, 1995.

FREUD, Sigmund. O ego e o id. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud Vol XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, Jacques. O seminário livro V. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

MESSIAS, Teresa. Evágrio Pôntico. Introdução à vida, obra e teologia espiritual. In: Atualidade Teológica. Ano XVII, n. 44. Maio a agosto/2013. Rio de Janeiro: PUC-Rio. pp. 292-318.

VERÇOSA FILHO, Elcio. Paixões e demônios. As figuras do mal na psique e seu significado ascético na doutrina de Evágrio Pôntico. In: Revista Último Andar. n. 24, dezembro de 2014. São Paulo: PUC-SP. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/ultimoandar/article/view/21524 .Acesso em: 26.05.2019.

Notas

3 O termo psicologia aqui aparece de modo problemático. Que entendemos por psicologia? Em primeiro lugar, a psicologia racional, isto é, a doutrina metafísica da alma. Neste sentido não é difícil reconhecer que Evágrio possui uma tal psicologia, diga-se de passagem, com fortes traços aristotélicos, o que não era incomum na filosofia patrística. Por outro lado, não podemos falar em uma psicologia experimental, ciência muito jovem, e que só vai começar a se estabelecer a partir da escola de Wundt no século XIX. Mas, cremos, podemos falar em resultados práticos de uma psicologia racional, isto é, que a compreensão metafísica de Evágrio redunda em uma prática de tipo terapêutico. Os elementos dessa possível prática é o que pretendemos elucidar.
4 Os Padres da Igreja (ou Pais da Igreja) são “aqueles que, ao longo dos sete primeiros séculos [da era cristã], foram forjando, construindo e defendendo a fé, a liturgia, a disciplina, os costumes e os dogmas crstãos, decidindo assim, os rumos da Igreja. Seus textos se tornaram fontes de discussões, de inspirações, de referências obrigatórias ao longo de toda tradição posterior” (FRANGIOTTI In PADRES Apostólicos, 1995). São, portanto, os teólogos, sacerdotes (como Basílio, Gregório, Agostinho, Jerônimo) ou leigos (como Justino de Roma), que influenciaram os primeiros concílios da Igreja, consolidando assim as bases do dogma cristão. Comumente são divididos em Padres Orientais (como Basílio, Gregório de Nazianzo, Inácio de Antioquia) e Padres Ocidentais (Ambrósio, Agostinho, Jerônimo, entre outros) conforme o lugar de desenvolvimento de sua teologia e a tradição que mais influenciaram (se a de Roma ou de Constantinopla). Costuma-se colocar o fim da era patrística, isto é, do tempo dos padres, no século VII no Ocidente com Isidoro de Sevilha e no século VIII no Oriente com João Damasceno. Ademais, é preciso ressaltar a importância que muitos desses autores tiveram no desenvolvimento da filosofia, em especial no caso de Agostinho.
5 Ministério ligado ao culto na igreja cristã primitiva, passo necessário para a recepção do sacerdócio. Na Antiguidade conferia ao leitor a tarefa da leitura pública das Escrituras e faculdade de explica-las aos catecúmenos em determinadas ocasiões.
6 A tradução do Tratado Prático foi feita por nós a partir do texto grego publicada pela Cerf, 1971, na coleção Sources Chrétiennes, em edição bilíngue. Cotejada com a edição italiana Trattato pratico sulla vita monastica, Roma, Città Nuova, 1992. Doravante citaremos TP, seguido do capítulo.
7 Evágrio usa indistintamente o termo páthos sem nenhuma designação adjetiva. Entretanto, nos parece bem falar aqui de paixão desordenada. Páthos, formada a partir do verbo páscho, significa ser afetado por. O processo cognitivo, o processo desiderativo e vegetativo são processos de afetação, de afecções. A questão que preocupa Evágrio não é ser afetado, mas ser tomado pela afecção, tornar-se incapaz de lidar com a afecção. A apatheía que pretende alcançar não é ataraxía, total indiferença às afecções. Por isso lemos em nosso texto páthos como paixão desordenada, como perder-se nas afecções, sensíveis ou intelectuais. Evágrio não declara guerra à paixão ela mesma, mas ao enredar-se na paixão que impede uma verdadeira autarkeía, uma maestria de si-mesmo, indispensável em sua teoria de um caminho ascensional que se conclui na união teológica com Deus. Livrar-se das paixões não é, portanto, livrar-se das afecções em si mesmas, o que representaria uma espécie de morte, mas livrar-se da preocupação excessiva que impedem a alma, o espírito (noûs) de uma atividade tranquila em direção à realização de si mesmo no outro que é Deus.
8 Estamos diante de um termo de difícil tradução. Logismoí se liga a lógos, discurso, palavra, verbo. É do âmbito da linguagem. Pensamento como ação é noésis e pensamento como coisa pensada é noémata. Logismoí não nem a ação de pensar nem a coisa pensada, mas a dimensão linguística, significativa, enquanto pensada. Não em Evágrio semparação entre pensamento e linguagem e, veremos mais a frente, os logismoí também se ligam com facilidade às imagens da fantasia, à phantasías epithymikós. Traduzir logismoí por raciocínios seria possível, mas talvez excessivamente calcado sobre a dimensão cognitiva. Os logismoí ocupam o lugar de uma espécie de representante ideativo das paixões, relacionando-se ao mesmo tempo com a dimensão passional enquanto paixão da alma, paixão que atine à dimensão intelectiva. Por isso, pensamentos passionais nos parece a expressão mais adequada.
9 As paixões do corpo são os imperativos das necessidades fisiológicas que se impõem. A fome é paixão na medida em que parte da necessidade natural de nutrição e é despertada pela sensação da falta de alimento. É facilmente saciada, ainda que no ato de saciar-se o indivíduo possa exceder-se, comendo além do que é necessário. A gula não é sensível, mas um logismoí. Ela não aparece apenas quando o corpo necessita do alimento. Ao contrário, o guloso recém saciado pode ser tomado pela concupiscência do alimento. Come sem fome, deseja sem necessidade e nem mesmo sente prazer no deglutir os alimentos. O ato de comer desligou-se da satisfação de uma necessidade fisiológica.
10 No que se refere à doutrina da divisão da alma na antiguidade: Cf. ARISTÓTELES, De anima, 2006. O foco de nossa pesquisa aqui não se refere a perceber influências aristotélicas ou médio-platônicas na obra evagriana. Cremos, todavia, que a leitura do De anima pode lançar luzes sobre o caminho histórico da doutrina psicológica que chegou até Evágrio.
11 Talvez num salto conceitual arriscado, podemos reconhecer aqui o que seria elaborado por Freud séculos depois: “Segundo essa visão temos de distinguir duas classes de instintos, uma das quais, os instintos sexuais ou Eros, é, de longe, a mais conspícua e acessível ao estudo. Ela abrange não apenas o instinto sexual desinibido propriamente dito e os impulsos sexuais de natureza inibida quanto ao objetivo ou sublimada que dele derivam, mas também ao instinto autopreservativo, que deve ser atribuído ao ego e que, no início de nosso trabalho analítico, tínhamos boas razões para contrastar com os instintos objetais sexuais. A segunda classe de instintos não foi tão fácil de indicar; ao final, viemos a reconhecer o sadismo como seu representante.” (FREUD, 1996, p. 55).

Autor notes

1 Doutorando na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis – SC, Brasil. Bolsista do(a): Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil.
2 Doutora em Filosofia pela Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas – SP, Brasil. Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis – SC, Brasil.


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