Resumo:
: Este artigo teórico consiste na avaliação da investigação jornalística de Daniela Arbex acerca do funcionamento do Hospital Colônia em Barbacena, Minas Gerais, a partir da análise biopolítica do pensador Michel Foucault. O processo de internamento dessa instituição representa, a partir das pesquisas foucaultianas acerca do trato da loucura na Europa moderna, um sólido exemplo do funcionamento da biopolítica no Brasil, mais especificamente no que tange ao fundamento de seu “fazer viver e deixar morrer”. Comparamos o projeto de cuidado terapêutico próprio do saber médico com os procedimentos utilizados nesse ambiente de internação no Brasil do século XX. Desse modo, abordamos o desdobramento para racismo de Estado quando o Colônia assume a função não mais de “deixar morrer”, mas de “fazer morrer” dentro das técnicas do biopoder. Por fim, consideramos o papel da luta antimanicomial organizada no Brasil na década de 1990 enquanto alternativa à internação, mas que acaba promovendo, por sua vez, normalizações outras.
Palavras-chave:ColôniaColônia,BiopolíticaBiopolítica,Racismo de EstadoRacismo de Estado,NormalizaçãoNormalização.
Abstract:
: This theoretical article consists on an evaluation of de Daniela Arbex’s journalistic investigation about the Colônia Hospital’s operation in Barbacena, Minas Gerais, as from the thinker Michel Foucault’s biopolitics analyses. This institution’s internment process represents, from the foucaultians researches about the deal with madness on modern Europe, a solid example of the biopolitics’ operation in Brazil, more specifically with regard to its groundwork “make live and let die”. We compare the therapeutic care project own medical knowledge with the procedures used in this internment environment on Brazil twentieth century. Thus, we approached the split to State racism when the Colônia takes on the function not anymore of “let die”, but of “make die”, among biopower techniques. Lastly, we considered the role of the anti-asylum fighting organizes in Brazil, on the 1990’s decade as alternative to internment, however ends up promoting, on its turn, other normalizations.
Keywords: Colônia, Biopolitics, State’s racism, Normalization.
Artigos
Biopolítica no Brasil: o racismo de Estado do Colônia
Biopolitics in Brazil: Colônia’s State racism
Recepção: 13 Abril 2020
Aprovação: 31 Agosto 2020
A estação estava vazia. Ninguém à espera daqueles que percorriam angustiados os trilhos. A presença de guardas era notável e pelo modo como se organizavam já deviam saber que mais um trem se aproximava. Não tardou para que despontasse no horizonte uma fumaça apressada sendo deixada para trás por vagões com ainda mais velocidade. Imagem acompanhada de um barulho que se tornava cada vez mais forte. Vez ou outra o apito soava, como se o maquinista quisesse ter certeza que sabiam de sua chegada. O ano podia ser qualquer um, entre 1901 e 1994. As condições climáticas não importavam, pois com chuva constante ou sol escaldante esse trem mantinha sua rotina e lotado chegava ao seu destino em seus 93 anos de funcionamento. Um clima de ansiedade percorria todos, legíveis nas marcas de seus rostos. Nada típico às viagens que se faz a trabalho ou por lazer.
Alguns daqueles inúmeros homens e mulheres que enchiam os vagões sabiam, outros tantos nem suspeitavam para onde estavam sendo levados. Boa parte tinha consciência desde quando foram retirados de suas famílias e de seus lares que aquela viagem os levaria para algum tipo de isolamento social. Porém, não tinham a menor ideia do que exatamente os aguardava nessa nova vida que começaria ali, naquela estação. Ficariam em local escuro e abafado, trancados aos montes sem espaço para nem deitar, como os vagões que ocupavam? Não receberiam comida ou água como aconteceu durante toda a viagem, ou lhes serviriam algo para saciar a fome e aliviar o cansaço? Teriam algum tipo de contato com aqueles que ficaram para trás? Como saber o que pensavam naqueles instantes que antecipavam sua chegada?
Quando o trem parou definitivamente, a ausência de um burburinho demonstrava a gravidade da preocupação que se instalara naqueles recém-chegados. Acuados pela ignorância e sem forças pela falta de comida, eles aguardavam a ordem dos guardas que já cercavam as portas dos vagões e os fazia seguir “em fila indiana na direção do desconhecido” (ARBEX2..2013, p.27). Nenhum parente ou amigo os esperava. Nenhuma notícia enviada. Delimitara-se radicalmente o dentro e o fora e rompe-se o contato entre esses dois polos. Dava-se início o isolamento. Todos eram levados para o setor de triagem. Eram separados por sexo, idade e características físicas. Entregavam tudo o que ainda possuíam, como roupas, sapatos ou quaisquer outros pertences, causando “um constrangimento que levava às lágrimas muitas mulheres que jamais haviam enfrentado a humilhação de ficar nuas em público” (ARBEX. 2013, p.28). Passavam pelo banho gelado de boas vindas e os homens tinham ainda os cabelos raspados à moda dos prisioneiros de guerra antes de serem encaminhados para seus respectivos pavilhões e para a nova vida a que seriam submetidos dali em diante.
A última estação onde esses trilhos levavam os conhecidos “trens de doido”3. chamava-se Bias Fortes. Localizava-se ao fundo do complexo do Hospital Colônia em Barbacena, Minas Gerais. Trazia os “deserdados sociais”, como denomina Daniela Arbex em seu livro-denúncia intitulado Holocausto Brasileiro, Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. O relato poderia muito bem servir à descrição da chegada dos famosos trens lotados de judeus e outros estigmatizados da sociedade alemã aos campos de concentração nazistas na primeira metade do século XX. No entanto, os acontecimentos que chamam a atenção referem-se curiosamente ao funcionamento, no Brasil, de uma estrutura biopolítica que, perceberemos logo adiante, é mais do que um simples enclausuramento da loucura.
O Colônia, como era conhecido, possui diversas semelhanças com o modo nazista de funcionamento dos campos de concentração, mas também possui algumas importantes distinções que não se deve ignorar. A proposta de análise não se constituirá numa tentativa de apontar relevantes aspectos de similitude entre Auschewitz, por exemplo, e essa casa de internação de loucos em Barbacena. Isso, a autora já observa e aponta regularmente em sua obra. A proposta desta pesquisa consiste, pelo contrário, em avaliar, à luz do pensamento de Foucault, como esse hospício tornou-se mecanismo de uma governamentalidade biopolítica no Brasil do século XX, com muito mais peculiaridades do que semelhanças com o modelo nazista.
Perceber, em outros dizeres, em que medida, e até que ponto, pode-se pensar biopoliticamente essa instituição que encerrava loucos, mas também as “filhas de fazendeiros as quais haviam perdido a virgindade ou adotavam um comportamento inadequado” (ARBEX, 2013, p.30), os vagabundos presos nas ruas, as esposas trocadas por amantes, prostitutas, as mulheres adúlteras, as crianças incorrigíveis, homossexuais, enfim, qualquer um que fosse considerado um distúrbio à ordem social vigente. Um grande centro de internação que recebeu por quase todo o século XX – de 1904 a 1990 – uma horda de pessoas consideradas inadaptadas ou inservíveis. O relato de Daniela Arbex permite, portanto, essa avaliação da postura generalizada tanto das autoridades quanto da sociedade civil no que tange ao trato com o inadaptado e o anormal no Brasil.
Observemos, primeiramente, a concepção de hospital que Foucault nota desenvolver-se na Europa do sec. XVIII, a fim de distanciarmos do modelo mantido no Colônia. De acordo com Foucault (1987, p.145), “o hospital-edifício se organiza pouco a pouco como instrumento de ação médica, permitindo que se possa observar bem os doentes, portanto, coordenar melhor os cuidados”. Diferentemente desses espaços onde o saber médico começava a circular e se instalar gradativamente, não havia cuidados com esses ignorados do Colônia, apenas enclausuramentos, definhamento e morte.
A “forma dos edifícios, pela cuidadosa separação dos doentes, deve impedir os contágios (FOUCAULT, 1987, p.145)”. Em Barbacena, pelo contrário, as doenças se multiplicavam diante da vista grossa de um saber médico que efetivamente não se aplicava naquele local. Marlene é um exemplo, pois, contratada como atendente psiquiátrica, “ficaria responsável pelo recolhimento diário do capim que deveria ser colocado para secar até que os guardas, [...], pudessem colocar a forragem vegetal de volta no pavilhão ao final do dia” (ARBEX, 2013, p.23). Os profissionais de saúde eram utilizados para outros fins que em seu conjunto corresponde muito mais ao sistema de eliminação por racismo de Estado próprio do biopoder do que por um modelo de saúde moderno. “Funcionário aposentado do hospital, Geraldo Magela Franco, sessenta e sete anos, admite que o tratamento de choque e o uso de medicações nem sempre tinham finalidades terapêuticas, mas de contenção e intimidação” (ARBEX, 2013, p.35).
Não era um hospital e nem um hospício, mas um depósito de pessoas consideradas anormais, isto é, indivíduos fora dos padrões comuns de ser e de pensar vigentes e que, por isso, constituíam um perigo em meio ao comum biogovernável. Não havia nem mesmo uma preocupação em declará-los loucos, porque havia inúmeros casos de pessoas que adentraram aquelas muralhas de contenção não por problemas dessa ordem. Como exemplos: Antonio Gomes da Silva que passou mais de quarenta anos no Colônia depois que um delegado em 1969 o prendeu após um episódio de bebedeira; ou Sônia que aos onze anos foi enviada num daqueles trens após ser presa por molecagem e ser rejeitada pela família. Qualquer um que fosse considerado pelas instituições competentes como um distúrbio e/ou um risco para a manutenção da normalidade poderia ser enquadrado, inclusive a partir de denúncias dos próprios familiares ou pessoas próximas.
Nesse sentido, não foi a questão da loucura, da busca por tratar e principalmente curar a doença mental, apontara Foucault, o primeiro locomotor dos movimentos de internação que ocorreram na Europa. Foi certa intolerância com determinados modos de vida que se contrapunham e, por isso, impossibilitavam a governamentalidade biopolítica. Numa conferência em 1970, no instituto Franco-japônes em Quioto, Foucault (2014a, p.265) observa que:
desde antes de 1650 até 1750, nas cidades de Hamburgo, Lyon, Paris, estabelecimentos de grande dimensão foram criados para internar não apenas os loucos, mas os velhos, os doentes, os desempregados, os ociosos, as prostitutas, todos aqueles que se encontravam fora da ordem social.
Mesmo situando o doente num espaço coletivo e homogêneo que, para Foucault (2013a) em O Nascimento da Clínica, foi fundamental para que se instaurasse um saber clínico, o Colônia foge às demais regras de funcionamento do saber médico. O corpo, de fato, estava disponível ao olhar médico, mas esse não se aplicava dentro daqueles muros. Roubar sangue à noite de pacientes moribundos, violentá-los com descargas elétricas, explorá-los para o trabalho, por fim, deixá-los à míngua para morrerem, não constituem finalidades médicas. Longe está, portanto, o Colônia de qualquer conhecimento médico, pois não se diagnosticava doenças para tratar e curar, mas para isolar e manter o normal. Não é a vida de corpos doentes a preocupação da medicina nesse ambiente, mas o que se busca nesse local é identificar as vidas que devem ser contidas em ambientes muito restritos até a morte.
Essa finalidade médica que revestia o Colônia de um determinado poder para agir, mas que se constituía falsa é a mesma crítica que Foucault (2008) faz ao Hospital Geral de Paris na sua obra História da Loucura. O contexto refere-se à relação entre a loucura e os ambientes de internamento que ele percebe desenvolver-se na Europa do século XVII. O trecho de Esquirol (1838, citado por Foucault, 2008) poderia, pois, servir perfeitamente como descrição do modelo desenvolvido em Barbacena:
Vi-os nus, cobertos de trapos, tendo apenas um pouco de palha para abrigarem-se da fria umidade do chão sobre o qual se estendiam. Vi-os mal alimentados, sem ar para respirar, sem água para matar a sede e sem as coisas mais necessárias à vida. Vi-os entregues a verdadeiros carcereiros, abandonados a sua brutal vigilância. Vi-os em locais estreitos, sujos, infectos, sem ar, sem luz, fechados em antros onde se hesitaria em fechar os animais ferozes.
A casa de internamento de Minas Gerais denunciada por Arbex nunca exerceu de fato um olhar médico sobre esses indivíduos. Enquanto crescia o repúdio aos ambientes de internamento na Europa desde o século XIX, o Brasil ao longo dos anos 1900 foi palco do mesmo modelo de internação no qual inúmeros indivíduos são revestidos de uma conceituação generalizada de a-sociais, anormais, loucos para serem entregues à clausura. O modo como são administrados esses locais inclusive destacando que geralmente a presença do médico se dava duas vezes na semana, é evidente que esses ambientes não se constituem fundamentalmente pela medicina. “É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e executa” (FOUCAULT, 2008, p.50). Barbacena, por conseguinte, pode ser analisada por esse mesmo prisma, isto é, enquanto um espaço criado não para desenvolver a cura médica, mas para exercer determinadas coerções sobre os corpos ali confinados.
Em História da Loucura, Foucault (2008, p.79) aponta que “o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos”. Os objetivos mais primitivos do modelo de internação ou contenção consistiram justamente em retirar do âmbito social determinados indivíduos considerados uma afronta ou uma ameaça à ordem vigente. O autor chega a apontar que entre os motivos mais numerosos para o internamento na França do século XVII eram as condutas consideradas condenadas tais como, “devassidão, prodigalidade, ligação inconfessável, casamento vergonhoso” (FOUCAULT, 2008, p. 91). Todos aqueles que não se encaixavam na ordem vigente, e como já observara Foucault (2013b, p.239) em 1978, justamente por causa da ordem “que se expulsam aqueles que não são perfeitamente “desejáveis””.
Nesse mesmo sentido, em um escrito de 1957, Foucault já observara o quanto a função psi estava primeiramente pré-ocupada com a contenção do anormal, e somente num segundo momento é que se volta para o normal a administrar. Pelas palavras do pensador francês:
A psicologia contemporânea é na sua origem, uma análise do anormal, do patológico, do conflituoso, uma reflexão sobre as contradições do homem consigo mesmo. E se ela se transforma numa psicologia do normal, do adaptativo, do ordenado, é de uma segunda tomada, como num esforço por dominar suas contradições. (Tradução própria. FOUCAULT, 2001, p.150).
Há a possibilidade, portanto, de se sair do internamento no sistema confuso de punição que essas casas de internação reproduziam. Esse processo de saída, Foucault relata que acabou se desenvolvendo em Paris ao final do século XVIII e tocou aqueles que passaram a serem vistos não mais como loucos e, por isso, toda uma divisão de ambientes para que o hospício deixe sair os a-sociais, destinando-lhes outros ambientes.
Especificamente no caso do Colônia não houve essa possibilidade e, de fato, nenhum relato que constate a saída de algum paciente ao fim de um tratamento médico eficaz consta nos arquivos do hospital. Tanto as condutas anormais quanto os que de fato possuíam algum tipo de doença mental permaneceram internadas em Barbacena até sua morte ou até o fechamento definitivo ao final do século XX. A pesquisa de Foucault empreendida em História da Loucura segue assim outro caminho e parece não servir mais para explicar o funcionamento dessa enorme casa de internação de Barbacena que nem punia e nem curava, mas que somente eliminava o que já fora estabelecido como anormalidade social. Nesse ponto são os estudos do curso Em Defesa da Sociedade ministrado por Foucault que melhor permite o entendimento acerca da finalidade desse ambiente que se perpetua do Brasil colonial ao Brasil globalizado enquanto espaço de extermínio do racismo de Estado em sua atuação avassaladora.
A fim de entender adequadamente a ideia de racismo de Estado em Foucault (1988), devemos contextualizar a argumentação a partir da obra História da Sexualidade I, A Vontade de Saber, especificamente no que se refere à descrição do modo de funcionamento da política moderna enquanto fazer viver e deixar morrer; diferentemente do modelo clássico que se pautava no fazer morrer e deixar viver. As pessoas cooptadas no território brasileiro e enviadas ao Colônia podiam esperar um único destino, o esquecimento que, na grande maioria das vezes, significava a morte, isto é, a eliminação deliberada e consagrada dos considerados figuras perigosas para a normalidade da sociedade.
Quando, ao longo do século XVII e XVIII, a discussão dos juristas a respeito do que se pode ou não fazer, ou do quanto de poder se deve exercer sobre a vida alcança questionamentos cada vez mais pormenorizados, Foucault observa o biológico tornando-se ponto central das teorias que discutem o poder político. Em outros dizeres, a valorização da vida torna-se aspecto essencial ao funcionamento de qualquer modelo de governo. O racismo de Estado constituir-se-á, complementarmente, enquanto ferramenta governamental para permitir uma boa regulação daqueles que devem viver e, por outro lado, daqueles que devem ser deixados para morrer tendo em vista a otimização das forças da sociedade. Esse deixar morrer para melhor fazer outros viverem, por vezes, toma o caráter radical de tornar-se um explícito fazer morrer. Desenvolve-se então, observa Foucault, o racismo de Estado enquanto mecanismo que a todo tempo classifica, padroniza, normaliza, inclui para poder excluir no intuito de que a sociedade permaneça sempre desenvolvendo a manutenção da vida nos seus melhores patamares.
Destacamos a seguir, no que se refere especificamente à conceituação dada pelo pensador francês acerca do termo racismo de Estado, alguns elementos. Primeiramente, a definição da ideia de racismo através do que Foucault considera como suas duas principais funções. Primeiramente, introduzir um corte, e, por outro, estabelecer uma relação de quanto mais morte mais vida. Quanto à primeira, a ideia é fixar dentro da massa cesuras e rupturas no continuum biológico do saber-poder governamental. Em outras palavras, significa promover pausas na ação promovedora da vida pelos mais diversos mecanismos próprios do sistema biopolítico, deixando, desse modo, determinados indivíduos expostos a todo tipo de morte.
A segunda função vem em complemento àquela, pois é justamente compreender a morte desses alvos do racismo de Estado como algo positivo por trazer mais vida ao todo. Uma relação interessante onde “a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura” (FOUCAULT, 1999, p. 305). Justifica-se desse modo a ação do “deixar morrer”, que por vezes torna-se “fazer morrer”, de um Estado que tem como pilar fundamental para suas ações, a vida. Dessa forma, “a raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização” (FOUCAULT, 1999, p. 306).
O Colônia, nesse sentido, representa muito mais do que um ambiente de internação de loucos. Constitui-se no mecanismo perfeito para causar a morte num país onde o combate ao modelo clássico de racismo vai ganhando cada vez mais espaço. Abrindo caminho, por sua vez, para esse racismo biopolítico tornar-se próprio da nossa contemporaneidade. O Brasil apresenta-se, através do hospital de Barbacena, enquanto um país no qual se constituem espaços e campos deliberadamente destinados para a proliferação da morte àqueles que incomodam o viver da sociedade em sua normalidade.
Disciplinando e normalizando os corpos e controlando a população, a governamentalidade biopolítica apresenta a justificativa de que alguns representam um inimigo biológico, um perigo para os demais, como uma espécie de ortodoxia ideológica onde se evita aquele que pensa de maneira diferente. Elimina-se assim da sociedade, como uma doença precisa ser eliminada antes de infectar os demais. Aqueles, mortos ou excluídos, permitirão a convivência normalizada e harmoniosa dos demais num viver mais vigoroso. O Colônia não é definitivamente, portanto, um hospital, mas uma ferramenta de exclusão e extermínio de determinadas vidas.
Nossos tempos, assim, têm alicerçado muitas relações hegemônicas de poder fundamentando-as em justificativas e metáforas de caráter biológico e médico, onde o que está em jogo é a defesa da ordem social e da vida, contra os perigos biológicos, desagregadores e desordenadores, que certos tipos de pessoas carregam consigo. (CASTELO BRANCO, 2009, p.32)
Não são, por conseguinte, quaisquer indivíduos que podem ser entregues a estabelecimentos como o Colônia enquanto ferramenta para se exercer o racismo de Estado. Determina-se genericamente esses indivíduos passíveis de eliminação. O grande problema com esses sujeitos diz respeito justamente à capacidade de desagregação e de desordenação que eles são capazes de gerar na normalidade disciplinada da sociedade da qual fazem parte.
Acompanhamos, por conseguinte, essa denúncia que Arbex publica em seu livro, mostrando o Colônia como uma estrutura típica do biopoder onde as mais variadas limitações acabaram se revelando como verdadeiros mecanismos para deixar à mingua os pacientes, os internos que já não eram mais vidas valorizadas.
Nos documentos pesquisados por Arbex acerca desse complexo em Barbacena foram expostos, por um lado, problemas não só com a falta de roupas ou de leitos, mas também de comida e de falta de assistência médica. Nesse sentido, percebendo o funcionamento desse hospício como mecanismo para a realização do racismo de Estado, destaca-se sua gestão voltada para o abandono total e letal. Extremamente eficaz enquanto ferramenta do biopoder no Brasil do século XX, o Colônia sabia muito bem oscilar entre a negligência de deixar morrer e a ação efetiva para fazer morrer. Eficiente em seu racismo de Estado no que se refere aos objetivos de isolamento e de extermínio e, por outro lado, igualmente eficiente no abandono das vidas ali depositadas pela sociedade.
É evidente que as consequências políticas e sociais foram importantes, pois podiam-se assim eliminar todos aqueles que eram considerados agitadores. Portanto, uma solução extraordinariamente elegante, se é que podemos falar de elegância nesse domínio, um remédio miraculoso no período do capitalismo nascente. (FOUCAULT, 2014, p.287)
Em analogia a esse comentário realizado numa entrevista ao Tages Anzeiger Magazin em 1972 acerca do grande internamento ocorrido na França do século XVIII, podemos compreender o funcionamento do Colônia no mesmo sentido de centro de internamento dos insociáveis. Afinal, os enclausurados nesse espaço em Barbacena não passavam de seres inadaptáveis ao modelo capitalista de produção e consumo que ora se estruturava no Brasil do começo do século XX. Indivíduos perturbadores da ordem social - desagregadores e desordenadores, como afirma Castelo Branco – tornaram-se o primeiro grande alvo desse processo de internamento de normalização social que se estendeu por boa parte do século XX no Brasil.
Destacamos, a partir deste ponto, a radicalidade gestacional desse centro de internação em Minas Gerais na busca por certa eficácia econômica na gestão dessas vidas, almejando lucros regulares na administração do Colônia através do que podiam oferecer. Primeiramente, o trabalho forçado e sem nenhuma remuneração para os internos. Modelo clássico tradicional no qual, de corpos totalmente submetidos, tenta-se extrair o máximo de força produtiva em que todos os benefícios do trabalho executado vão exclusivamente para a administração.
Luiz Felipe - na época da entrevista com Arbex (2013, p. 60) contava 88 anos -, quando ainda menino vivendo nas cercanias do hospital, “não conseguia compreender como aqueles homens que ele via trabalhando sem trégua ofereciam tanto risco”. Estigmatizados de loucos e perigosos os internos eram ignorados completamente por uma sociedade que corroborava a ação autoritária sobre esses corpos no intuito de realizar obras e serviços na comunidade. “Da varanda da casa colonial, Luiz Felipe via os pacientes abrirem estrada na enxada. A ferramenta também era utilizada na plantação” (ARBEX, 2013, p.60).
No entanto, todo esse alimento, plantado e colhido pelos internos, não eram por eles usufruídos, mas vendidos para gerar verba à gerência. “Registros da instituição apontam que, em 1916, quase metade da receita do hospital foi garantida pelo suor dos pacientes e pela venda dos alimentos que eles plantavam” (ARBEX, 2013, p.60). Triava-se os paciente de modo que cada um que tivesse condições de segurar uma ferramenta e produzir com ela, era obrigado a fazê-lo. Destaca Arbex (2013, p.60) que com “a colheita de dez alqueires de milho, cinco de batata-doce, nove de feijão e nove hectares de mandioca, os negócios do Colônia iam bem”. Não havia uma preocupação em manter a vitalidade desses corpos. Exaustos, ou literalmente mortos de cansaço, eram rapidamente substituídos naquelas tantas tarefas que rendiam algo à administração do complexo.
A “venda de roupas – 4 mil peças só naquele ano – também era negócio lucrativo” (ARBEX, 2013, p.60-1). Assim como não usufruíam dos alimentos que plantavam apesar de produzi-los, os tecidos que fabricavam, por sua vez, também não serviam para cobrir a nudez dos internos, mas para incrementar o lucro na receita da instituição.
Não obstante, o peculiar do Colônia enquanto espaço onde o biopoder deixa vidas para morrer, foi a regulação da venda de corpos para faculdades de todo o país. Desde a segunda década de seu funcionamento, o Colônia foi submetido a um programa que buscava financiar os próprios custos de manutenção do complexo com qualquer tipo de benefício que fosse possível extrair dos internos. Algo constante nos negócios do Colônia, esse comércio macabro passou longas décadas saciando as demandas por cadáveres das universidades brasileiras. Mesmo quando a demanda aumentava, o hospital esforçava-se para cobrir aumentando a oferta.
O professor universitário Ivanzir Ribeiro é uma das testemunhas da chegada de um dos lotes de cadáveres adquiridos pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor de Farmácia, ele conta que chegou para dar aula – sem saber que as mesmas haviam sido suspensas pouco tempo antes – e encontrou no pátio interno da faculdade “dezenas de cadáveres espalhados pelo chão em grotescas posições” (ARBEX, 2013, p.71). Em estado de choque e com ânsias de vômito por causa do mau cheiro, Ivanzir é surpreendido por um dos funcionários da faculdade. Questionado pelo professor, senhor Salvador responde que “essa madrugada – 1969 – uma camioneta de Barbacena chegou lotada de cadáveres. O responsável localizou o diretor da medicina e ofereceu cada corpo por um milhão (cerca de R$ 364 nos dias atuais)” (ARBEX, 2013, p.74). Os cadáveres, pois, sendo tratados como meras mercadorias, confirmam assim a apropriação total dos corpos desses internos até na sua morte. “Em uma década, a venda de cadáveres atingiu quase R$ 600 mil” (ARBEX, 2013, p.77), fora o que conseguiam com a comercialização de órgãos. Foram quase dois mil corpos contabilizados vendidos para dezessete faculdades de medicina do país.
Um ambiente feito, portanto, para explorar em todos os aspectos possíveis até o extermínio e o desaparecimento daqueles anormais, daqueles indisciplinados que não correspondiam ao modo de vida que se promovia na época. Não um extermínio qualquer, mas praticamente uma indústria que funcionou produzindo corpos. Uma tentativa, portanto, de ter uma gestão economicamente eficaz para o extermínio de todo aquele que representa um risco para a vida da sociedade. Como se ainda não bastasse:
Quando os corpos começaram a não ter mais interesse para as faculdades de medicina, que ficaram abarrotadas de cadáveres, eles foram decompostos em ácido, na frente dos pacientes, dentro de tonéis que ficavam no pátio do Colônia. O objetivo era que as ossadas pudessem, então, ser comercializadas (ARBEX, 2013, p.78).
Um modo de gestão que simplesmente compreendia todos como variáveis disponíveis num balanço econômico que devia gerar lucro, riqueza, enfim, alguma vantagem num campo onde o objetivo era de exclusão total daqueles indivíduos. Dessas vidas que ameaçavam o normal exigia-se não só a sua morte, mas que ela viesse acompanhada de certo lucro. Fazer morrer uns enquanto produziam estradas, alimentos, pontes, esqueletos para estudo, órgãos para pesquisa, etc., para que outras vidas pudessem usufruí-las, vivendo mais e melhor.
Helvécio Ratton (1979) no início de seu documentário Em Nome da Razão nomeia os internos - ao molde da época - de “crônicos sociais”, indicando assim sua perpetuidade no Colônia. Gravado sem trilha sonora, para realçar os sons da loucura - ou da razão que os colocou ali -, deixa as imagens revelarem cruamente a tentativa grosseira de fazer funcionar um racismo de Estado que exclui não o louco, mas todo aquele que não se encaixa entre as leis, normas e regulamentos próprios de uma sociedade biopolitizada.
Situa-se, portanto, a capacidade e a legitimidade que a razão governamental possui para determinar os insociáveis, os inadaptáveis às estruturas de produção e consumo que, por isso, podem morrer ou, simplesmente, deixarem de existir ainda vivas. Mecanismo típico das sociedades biopolíticas e que foi amplamente utilizado pela ideologia nazista bem como pela stalinista enquanto o extremo do biopoder. Relação que nos permite então não estranhar a coincidência entre os “trens de doido” que chegavam em Barbacena com os vagões que levavam para os campos de concentração os excluídos da sociedade nazista. No entanto, as semelhanças devem se limitar ao plano estratégico próprio da biopolítica, pois cada um possui sua singularidade no modo de funcionamento que apresenta.
O Colônia constitui-se, desse modo, como um traço biopolítico presente na estratégia governamental no Brasil a partir do início do século XX, entre o uso do “deixar morrer” e o “fazer morrer”. “Neste hospital, que é uma instituição fechada, não há qualquer possibilidade de manter uma área para o eu. Uma área de privacidade e de auto-isolamento. O eu é violado e devassado a todo momento” (RATON, 1979, 19’). Como, por exemplo, na manutenção da inescapável rotina de seguirem pelados para o pátio pouco antes do amanhecer sem qualquer outra distinção a não ser de gênero para se aquecerem da noite fria passada sobre a palha por vezes úmida:
Em movimentos ritmados, agrupavam-se tão próximos, que formavam uma massa humana. Vagavam juntos, com os braços unidos, para que o movimento e a proximidade ajudassem a aquecer. Os de dentro da roda, mais protegidos do vento, trocavam de lugar com os de fora. Assim, todos conseguiam receber calor, pelo menos por algum tempo. (ARBEX, 2013, p. 48).
Destrói-se aquele ser diferente, não-comum, o indivíduo que incomoda com sua peculiaridade e com sua forma de agir e de pensar tão sua. Extermina-o para que assim o comum regulamentado numa população formada por corpos disciplinados resplandeça. O racismo de Estado, observado nesse hospital de Barbacena, portanto, constitui-se como mecanismo para a morte na governamentalidade do biopoder que se utiliza de uma tecnologia anátomo-política do corpo humano para manutenção da vida em seus níveis mais vigorosos. Um modelo governamental dotado de procedimentos sobre os corpos individuais que permite a exclusão e o assassínio de uns na estratégia biopolítica de manutenção da vida de cada um e do todo. Indignidades à parte, o Colônia é um exemplo de instituição que prolifera, lógica e coerentemente, o modelo biopolítico de governo tal como Foucault o descreve. Racismo de Estado que busca retirar o anormal da sociedade a fim de torná-la mais homogênea.
Há, ademais, nas análises feitas por Foucault em seu trabalho de doutorado, um longo processo de construção de um sistema penal para onde irá uma parte dos indivíduos que eram internados, bem como outra parte será absorvida por outros processos de normalização, como a escola e a fábrica e assim reinseridos na ordem social. Deixando assim esse espaço de internação para o saber médico atuar diante daquele que é apontado como o doente de fato, isto é, o louco.
Quando se observa nesses indivíduos a oportunidade de incrementar o normal produtor-consumidor, eles saem desses ambientes e são normalizados em outras instituições disciplinares. Demonstrando assim, o quanto a ideia de uma sociedade de mercado é central para se discutir a saída desses indivíduos do internamento assim como a manutenção do encarceramento de outros. Aptos então a ocupar um lugar dentro da ordem econômica-política vigente. Nessa mesma conferência, a respeito dessa grande saída dos internados ao longo do século XIX na Europa, Foucault destaca:
Se isso se produziu nessa época, é porque a partir do início do século XIX a velocidade do desenvolvimento industrial se acelerou e, como primeiro princípio do capitalismo, as hordas de desempregados eram consideradas como um exército de reserva da força do trabalho. Por essa razão, os que não trabalhavam, sendo capazes de trabalhar, saíram dos estabelecimentos. (2014a, p.266)
Em uma conferência realizada no Japão em 1970 denominada A Loucura e a Sociedade, Foucault observa que fez parte do processo da grande internação a utilização da inaptidão ao trabalho como critério para o diagnóstico da loucura a ponto de ter a proposta nesses centros de internação de que “basta que se aprenda a trabalhar no hospital para curar a loucura” (2014a, p.266). O pensador francês aponta para a destacada intervenção de Pinel ao final do século XVIII com sua liberação das casas de internação os enfermos, velhos, ociosos e prostitutas, deixando apenas os loucos dentro desses estabelecimentos. Foucault considera como motivador desse processo de saída das casas de internação a partir do trabalho de Pinel, a aceleração do desenvolvimento industrial e, “como primeiro princípio do capitalismo, as hordas de desempregados proletários eram consideradas os que não trabalhavam, sendo capazes de trabalhar, saíram dos estabelecimentos” (2014a, p.266).
Outro processo, complementar a esse, consiste numa seleção não dos que não queriam trabalhar, mas os que não tinham a faculdade de trabalhar, esclarece Foucault, sendo deixados nos estabelecimentos e “considerados como pacientes cujos distúrbios tinham causas que se referiam ao caráter ou de natureza psicológico” (2014a, p.266). Em outras palavras, o processo de saída das casas de internação a partir de Pinel de elementos a-sociais que se misturavam com os loucos dentro desses ambientes até com eles se confundirem e, logo em seguida, a delimitação da incapacidade do trabalho como critério de demarcação do louco moderno.
Em Barbacena também ocorre esse fenômeno analisado por Foucault enquanto a grande saída desses espaços de internação a caminho de outros espaços de normalização próprios da relação trabalhador-consumidor. Todos aqueles que podem servir como trabalhadores e, claro, pagadores de impostos e consumidores, enfim, todo aquele que é capaz de manter-se dentro dessas relações próprias de uma sociedade de mercado, serão reinseridos de alguma forma na ordem biopolítica.
Entre 1978 e 1987, a luta antimanicomial se fortaleceu a partir de inúmeros eventos pelo Brasil enquanto um processo que se colocou contra a manutenção desse sistema enclausurador, apontando para os defeitos dessas instituições a partir de críticas basicamente circundantes à má gestão, ou seja, numa análise essencialmente administrativa.
Atualmente, a discussão é deflagrada tanto pelo Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA) como a Rede Nacional Internúcleos de Luta Antimanicomial (RENILA), divergindo do quanto de conteúdo político deve entrar nessa discussão sobre os mais difíceis de normalizar. Nenhuma delas, no entanto, parece se atinar para as questões biopolíticas trazidas por Foucault de seríssima conta. Afinal, a questão não é somente se “nessas unidades – vistoriadas – foram encontrados celas fortes, instrumentos de contenção e muitos, muitos cadeados”, mas “a constatação de que, para muitos óbitos, simplesmente, não houve interesse em definir as causas” (ARBEX, 2013, p.254). Deve-se destacar a perda banalizada da vida humana dentro da lógica desse sistema biopolítico. Vidas desinteressantes ao modelo de vida vigente sendo exterminadas de qualquer maneira, seja pela brutalidade que mata o corpo, seja pela autoridade que condena ao isolamento, ou ainda um saber-poder que os atira num anonimato onde nem mesmo sua identidade é mantida e sua morte mercantilizada.
Nesse sentido, o que é colocado em questão para Arbex bem como para o movimento antimanicomial é a qualidade da regulamentação dada pelo governo nas casas de internação, e não o próprio mecanismo de exclusão. Retirar os anormais dos hospícios para tentar normalizá-los na família ou nas escolas, por exemplo, é apenas uma forma de inserir o diferente nas relações de poder próprias da biopolítica e normalizá-lo de outros modos, através de outros mecanismos. A questão fundamental consiste em justamente expor esse sistema biopolítico identificador do anormal e sua atuação sobre a fim de isolar e exterminar. A luta antimanicomial desde o final da década de 70 e ainda no início do terceiro milênico aponta para questões sanitárias ou humanitárias e não estruturais como:
Em 2004, uma inspeção nacional realizada nos hospitais psiquiátricos brasileiros pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Federal da OAB, encontrou condições subumanas em vinte e oito unidades. Considerada uma das maiores vistorias feitas no país, o trabalho alcançou dezesseis estados e revelou que, de norte a sul do país, ainda prevalecem métodos que reproduzem a exclusão (ARBEX, 2013, p.254).
Há, efetivamente, o desenvolvimento no Brasil ao longo do século XX, o modelo de racismo de Estado nesses locais denominados manicômios. Um modelo que captura os indivíduos considerados fora dos padrões comuns de modo de viver e de pensar. Dentre os vários exemplos, destaca-se o Hospital Psiquiátrico de Juqueri, um manicômio judiciário com relatos tão grosseiros quanto os do Colônia assim como o Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho em Goiânia. Sem condições de salubridade no seu alimentar, ou de convivência entre si próprios, vestidos com trapos e privados de todo tipo de atividade. Constitui-se, por conseguinte, através da luta antimanicomial, o desfazer-se das casas de internação e seu deixar-fazer morrer sob um discurso de humanização. A outra face da governamentalidade biopolítica, inserindo essas vidas em outros de seus mecanismos e dispositivos normalizadores e seguradores, permaneceu.
O próprio Foucault (2012, p.39) já notara o quanto na década de 1970, os preceitos morais não são mais necessários, pois “o prestígio do carro, a política dos equipamentos ou a incitação ao consumo permitem obter normalizações igualmente eficazes”. Depois de encarcerar o diferente e libertá-lo, a normalização se dá a partir dos padrões biopolíticos para que o estabelecimento de um normal.
Devemos, portanto, não nos impressionarmos com as declarações e sensações de horror provenientes da descrição do funcionamento do Colônia tal como Daniela Arbex insiste em se posicionar. O problema não é a falta de leitos adequados à pessoa humana, se eles usavam capim para se deitarem e se esquentarem ou mesmo se eles morriam tão facilmente quando submetidos a testes patrocinados pelo saber médico. Não devemos ficar estagnados como a autora diante da nudez que circulava tão facilmente quanto os ratos e baratas naqueles pavilhões. Nem nos surpreender com a limitação de três rações diárias como alimentação ou o fato de que, frequentemente, não eram consideradas salubres para se servir ao organismo humano
Não devemos ficar estarrecidos, como a reportagem A sucursal do Inferno feita em 1959 e publicada pelo Cruzeiro, com as condições subumanas nas quais todos ali viviam. O cineasta Helvécio Ratton, numa chocada declaração em meio a ânsias de vômito, tenta transmitir o que suas imagens eram incapazes, “o cheiro de suor, de fezes, de sofrimento, de gente amontoada, de falta de higiene” (2013, p.216). Ficar indignado com a falta de higiene ou de condições básicas e dignas para a manutenção de seres humanos encarcerados é limitar por demais uma crítica que deve ser estrutural e não somente detalhista. Mesmo que houvesse tudo o que pensamos ser o mínimo, como cama e cobertor para todos, alimentação adequada e uma série de atividades ditas positivas para os internos, ainda assim o problema mais sério permaneceria, a saber, o internamento para isolamento e extermínio de indivíduos pelo fato de perturbarem o ordenamento social.
O problema não deve ser, por exemplo, “que a comida oferecida aos pacientes era triturada, já que eles não podiam usar faca nas refeições ou sequer possuíam dentes para mastigar” (2013, p.213); ou que havia somente dois funcionários mal treinados para o cuidado de cada 200 internos. Isso representaria somente uma reclamação administrativa por mal funcionamento, uma crítica de má gestão. Corroborar-se-ia tal sistema se esses complexos de internação como o Colônia possuíssem leitos adequados com camas e cobertores? Aceitar-se-ia esse modelo institucional de Barbacena se houvesse comida suficiente e de qualidade ao longo de todo o dia para os internos? Se todos tivessem uniformes de um pano bem confortável para dormir à noite e fresco para trabalhar ao longo do dia? Ora, a questão não pode ser o tamanho do muro que os separa da sociedade dita normalizada ou o grau de humanidade desse muro, mas a sua própria existência, pintado, grafitado, decorado ou não. A utilização, portanto, pelo poder político de ferramentas de extermínio de alguns para manutenção da normalidade do todo.
O cuidado com esses loucos de Barbacena se insere nesse contexto de análise, pois, de modo algum, abrir as portas desse hospício significa promover a não aplicação de técnicas de normalização. Foucault (2014b, p.163) afirma, em uma entrevista dada ao Le Monde em 1961, que a loucura só existe em uma sociedade, “ela não existe fora das normas da sensibilidade que a isolam e das formas de repulsa que a excluem ou a capturam”. Nesse sentido podemos observar, a partir dessas análises de Foucault, o quanto é através do estabelecimento do normal que se constrói o anormal e, por conseguinte, o louco. A loucura não existe a não ser em comparação com a normalidade presumida do todo, isto é, enquanto forma de vida radicalmente distinta do comumente propagado.
Foucault (2014a, p.267) destaca o quanto sua intenção ao longo de suas pesquisas sobre a loucura foi expor “o caráter traumatizante que nossas sociedades ainda possuem” em relação ao diferente. O estranho, o anormal, enfim, esse outro que é completamente distante de mim por causa do seu jeito de falar, de andar, de vestir, de agir, de pensar. Avaliar esse relatório-reportagem tão minucioso realizado por Arbex através das pesquisas de Foucault sobre a loucura enquanto constituída por um saber-poder de uma medicina psiquiátrica que também se constitui nessa elaboração, possibilita, por conseguinte, uma tomada de consciência que reoriente os caminhos trilhados por essa área.