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Recepção: 27 Julho 2020
Aprovação: 13 Outubro 2020
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i3.1997
Resumo:
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Este artigo tem como objetivo geral comentar o estatuto do conhecimento da coisa em si na metafísica de Schopenhauer. De modo mais específico, visa analisar como se inserem neste debate, tradicionalmente enfrentado por estudiosos da filosofia schopenhaueriana como Julian Young, Paul Lauxtermann e David Cartwright, duas correntes interpretativas bastante discutidas neste ciclo, principalmente na última década; ambas lidam com o problema da coisa em si a partir de uma interpretação da transição analógica que Schopenhauer empreende do mundo da representação para o da Vontade. Ao disputarem que tipo de conhecimento, metafórico ou metonímico, esse autor pode almejar da coisa em si, é possível apontar como De Cian e Marco Segala, bem como Jorge Prado, por um lado, e Sandra Shapshay, de outro, se distanciam da tradição exegética que lhes antecede; e, mais ainda, em que medida eles são precursores no esforço de apontar uma espécie de “método” específico, alternativo ao método transcendental kantiano, a partir do qual Schopenhauer realizaria sua empreitada metafísica. A fim de situar nossa própria interpretação entre a desses comentadores, focaremos na análise de passagens de O mundo como vontade e como representação e da Crítica da filosofia kantiana, em que Schopenhauer especifica com mais ênfase como deve ser entendida sua abordagem metafísica.
Palavras-chave: Schopenhauer, Analogia, Coisa em si, Metáfora, Metonímia, Método.
Abstract:
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The problem of thing-in-itself knowledge in Schopenhauer’s metaphysic has been traditionally faced for scholars of shopenhauerian philosophy, such as Julian Young, Paul Lauxtermann e David Cartwright. The objective of this paper is comment this one problem, but emphasizing two interpretative trends quite discussed mainly in last decade. Both trend deal with the problem of thing-in-itself from an interpretation of analogical transition Schopenhauer proposes of representation world to thing-in-itself realm. Both De Cian and Marco Segala, well as Jorge Prado, on the one hand, and Sandra Shapshay on the other, disputes about what type of knowledge, metaphoric or metonymic, this philosopher search regarding the thing-in-itself. When remaking this disputing is possible to point the distance they are of exegetic tradition that precede them; even more, to evaluate what extend they are precursory in the endeavor for specify a kind of “method”, alternative to transcendental method Kantian, from which Schopenhauer would perform his metaphysic investigation. In order to insert our interpretation between those scholars, we will focus on analysis of excerpts of Die Welt als Wille und Vorstellung and Krtik der kantischen Philosophie, in which Schopenhauer detail more emphatically how must be understood his metaphysical approach.
Keywords: Schopenhauer, Thing-in-itself, Analogy, Metaphor, Metonymy, Method.
Introdução
De modo geral, neste artigo pretendemos discutir o problema do conhecimento da coisa em si, da “Vontade”, na filosofia de Schopenhauer. Esta é uma questão já enfrentada, de modo bastante contundente, por Julian Young (1987), Paul Lauxtermann (2000) e Cartwright (2001). A dificuldade que eles pretendem resolver, e que comentaremos na primeira parte de nosso trabalho, é a seguinte: como Schopenhauer pode pretender algum conhecimento da coisa em si, após aceitar as limitações da abordagem metafísica impostas por sua filiação ao criticismo kantiano.
Posteriormente, analisaremos de modo mais específico um desdobramento mais recente desta discussão, sobretudo ao longo da última década; neste contexto, estão em questão os termos em que se deve entender a transição (Uebergang) analógica que Schopenhauer empreende do mundo da representação para o registro da coisa em si. Precisamente, discutiremos se é mais pertinente entender a tese de que a Vontade é a coisa em si, transmitida via tal analgia em uma acepção metafórica, defendida por De Cian e Segala (2002) e Prado (2014), ou no sentido de uma contiguidade metonímica, sustentado por Shapshay (2009).
Por fim, consideraremos se, apesar dos problemas que eventualmente venham a apresentar, tais hipóteses interpretativas, que chamaremos aqui de “analogia metafórica” e “analogia metonímica”, podem ser pioneiras caso sugiram uma espécie de método na metafísica da Vontade; um método a partir do qual Schopenhauer empreenderia sua investigação metafísica, a fim de superar os limites do criticismo kantiano. Com efeito, que esse filósofo tivesse a intenção de sistematizar um procedimento, alternativo ao método transcendental de Kant e que orientasse a prática da metafísica é, exatamente, uma suposição levantada por Beiser (2014) e Guyer (1999); suposição que estes, todavia, têm dificuldade de sustentar com elementos do opus schopenhaueriano, e que é levada mais adiante, principalmente, por Prado (2019).
O estatuto do conhecimento da coisa em si na metafísica da Vontade
Por meio de uma proposta analógica, presente em Crítica da filosofia kantiana e formulada, de modo muito mais enfático e desenvolvido no § 19 de O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer (2015a, p. 585; 2015b, pp. 122-123) principia sua abordagem metafísica, isto é, sua tentativa de explicar o significado essencial do mundo para além das nossas experiências empíricas, mas a partir delas, e não de algo transcendente; e a experiência que ele toma como base nesse projeto metafísico é, justamente, a que obtemos de maneira mais imediata no interior de nosso próprio corpo. Ao referir essa sua acepção de metafísica, o autor se coloca como uma via média entre, por um lado, a “onisciência” da metafísica dogmática, anterior à Crítica da razão pura e que filosofa a partir de objetos que ultrapassam os limites da experiência possível; e, por outro, o “desespero” do criticismo kantiano que essa mesma obra traz à luz e que não permitiria mais que um inventário das faculdades cognitivas humanas (SCHOPENHAUER, 2015a, p. 496).
A princípio, e segundo uma interpretação mais apressada dessa “via média” proposta por Schopenhauer, tende-se a concordar com Young (1987, pp. 31-32); segundo este, para aceitar o discurso metafísico de Schopenhauer sobre a vontade é preciso admitir que ele abandona a dicotomia kantiana entre a aparência e uma realidade última, noumenal:
O que eu estou sugerindo, como uma resposta alternativa ao problema posto por Kant, é […] abandonar a simples dicotomia kantiana entre aparência e realidade última, noumenal, e em vez disso adotar uma tricotomia interpondo entre a realidade noumenal, por um lado, e por outro o mundo ordinário (conforme concebido pelo senso comum e pela ciência natural), um terceiro mundo, distinto destes dois (YOUNG, 1987, p, 31).
Como essa citação explicita, Young defende que devemos assumir que Schopenhauer adota uma tricotomia, interpondo, entre aqueles dois registros já bem estabelecidos por Kant, o do mundo fenomênico e o da coisa em si, um terceiro mundo; este seria um mundo “não-noumenal e, portanto, situado dentro dos limites kantianos, ainda que exotérico e, por isso, distinto daquele ordinário”, qual seja, o dos fenômenos (YOUNG, 1987, pp. 31-32). É este terceiro mundo, conclui Young (p. 1987, p. 32), que Schopenhauer investiga em sua obra magna.
A dificuldade com essa interpretação é encontrar alguma passagem em que Schopenhauer se refira a qualquer outra possibilidade de abordagem do mundo que não seja nem o mundo da representação nem o da vontade; inclusive, ele escreve diversas vezes que o mundo pode ser investigado unicamente a partir desses dois aspectos. Ora, ele abre sua obra magna com a seguinte proposição: “O mundo é minha representação” (SCHOPENHAUER, 2015b, p. 3), explicando que a este aspecto do mundo se limita toda a nossa experiência possível e que não há nenhum conhecimento mais certo e independente de prova do que este; e, logo na sequência, que há ainda uma outra verdade, “não tão imediatamente certa como a verdade da qual partimos [o mundo é minha representação]”, a saber, “o mundo é minha vontade” (SCHOPENHAUER, 2015b, pp. 4-5). Ora, que estas duas verdades encerram as duas únicas possibilidades de abordar o mundo, parece inquestionável se levarmos em conta mais a seguinte passagem:
Que é este mundo intuitivo tirante o fato de ser minha representação? Por acaso é aquilo de que estou consciente só como representação, ou é como o meu próprio corpo, do qual estou duplamente consciente, de um lado como REPRESENTAÇÃO, de outro como VONTADE? (SCHOPENHAUER, 2015b, p. 21, maiúsculas do autor).
Note-se que Schopenhauer seria obrigado a assumir que o mundo só possui um aspecto, que é o intuitivo, conhecido por intermédio de nosso aparato cognitivo, caso seu próprio corpo não oferecesse a chance de acessar um segundo aspecto, a saber, o da vontade. A grafia escolhida pelo próprio Schopenhauer, ao destacar com caracteres maiúsculos os termos “representação” e “vontade”, não visaria enfatizar que, excetuando-se esses dois lados do mundo, não podemos ter qualquer outro conhecimento dele? Essa decisão de postular apenas dois lados do mundo também aparece a seguir: “o mundo objetivo como representação não é o único, mas apenas um lado do mundo, por assim dizer o lado exterior: o mundo ainda possui um outro lado completamente diferente, a sua essência mais íntima, o seu núcleo, justamente a coisa em si [...]” (SCHOPENHAUER, 2015b, p. 36).
É difícil, pois, concordar que Schopenhauer postule três mundos. Quanto à natureza do mundo enquanto representação, não parece haver problemas entre a interpretação de Young e os trechos que trouxemos de Schopenhauer ao tratar desse assunto; que o mundo da representação seja aquele percebido intuitivamente, como fenômeno condicionado por nosso aparato cognitivo, isto é ponto pacífico. Ainda podemos discutir, no entanto, o estatuto ontológico do mundo como vontade. Tal mundo da vontade não se refere ao que Kant chamava de coisa em si, pois, como pretende Young, Schopenhauer abole a distinção kantiana entre aparência e coisa em si? Diferentemente desse comentador, e desta vez com base em uma passagem retirada da Crítica da filosofia kantiana, sustentamos que a distinção entre noumeno e fenômeno permanece na abordagem schopenhaueriana. Ora, Schopenhauer louva Kant por proferir a seguinte “grande verdade” na Crítica da razão pura: “a crítica não errou, ensinando a tomar o objeto em dois sentidos diferentes, isto é, como fenômeno e como coisa em si” (KANT, 2013, p. 23 [B XXVII])2.; sendo coisa em si, neste contexto, exatamente aquilo que as coisas são quando não são objeto de conhecimento a partir das formas puras da intuição.
Lauxtermann (2000) propõe, por outro lado, que se entenda o estatuto da coisa em si em Schopenhauer dentro do que ele chama de uma “metafísica oculta” (hidden metaphysics) desse autor. Nessa metafísica oculta, segundo a sua leitura, a coisa em si que Schopenhauer refere não é aquela à qual temos acesso a partir do conhecimento interno da nossa própria vontade; a coisa em si seria, antes, o “Nirvana transcendente” (transcendent 'Nirvana'): “a metafísica oculta de Schopenhauer apresenta não uma ‘Vontade’ imanente, mas um ‘Nirvana’ transcendente como a realidade última (Lauxtermann, 2000 p. 223). Ora, o que Lauxtermann chama de “vontade imanente” é aquela apontada por Schopenhauer ao tratar do nosso autoconhecimento; e a vontade transcendente, associada ao fenômeno budista do “Nirvana”, seria justamente resultado do fenômeno que esse filósofo chama de “negação da vontade”; as palavras do próprio Lauxtermann (2000, p. 223) deixam claro que é este exatamente o caminho da sua interpretação acerca do que seja a coisa em si schopenhaueriana: “é a atitude de compaixão universal, a qual culmina na negação do mundo pelo santo asceta, que no fim conduz ao grande, ao místico silencia do Nirvana”.
Ademais, a parte de sua obra magna em que Schopenhauer trata da “negação do mundo” é justamente aquela em que apresenta sua ética, no livro IV, e que se intitula Alcançando o conhecimento de si, afirmação ou negação da vontade de vida. Por isso, De Cian e Segala (2002, p. 15) interpretam que, nessa hipótese de Lauxtermann, o princípio autêntico da metafísica de Schopenhauer não é a Vontade, mas, sim, o entendimento humano, enquanto entidade capaz de afirmar ou negar tal Vontade; ou, o que é o mesmo, a entidade capaz de, ao negar a Vontade, alcançar o estado que os budistas chamam de Nirvana, que Schopenhauer chama de “nada” e que Lauxtermann interpreta como “coisa em si” da “metafísica oculta de Schopenhauer”. Ainda na esteira da interpretação que De Cian e Segala (2002. p. 15) fazem da hipótese de Lauxtermann (2000), o que este comentador propõe, em última instância, é que a contraposição mais relevante para Schopenhauer não é entre fenômeno e Vontade como coisa em si; seria, antes, entre o mundo dominado pela vontade imanente e o mundo transcendente da não-vontade, da negação da vontade, da liberdade da vontade.
A primeira grande dificuldade com essa interpretação de Lauxtermann é justamente que ela, ao propor uma metafísica schopenhaueriana que tome como princípio básico o entendimento humano, entra em curto circuito com a crítica de Schopenhauer aos dogmáticos; melhor, aos metafísicos que iniciam suas abordagens a partir ou do lado subjetivo do mundo, ou do mundo tomado como objeto para um sujeito: “todas as filosofias tentadas até agora [...] partiram ou do sujeito ou do objeto e, por conseguinte, procuraram explicar um a partir do outro, na verdade segundo o princípio de razão [...]” (SCHOPENHAUER, 2015b, p. 29). E o problema é justamente que, para esse autor, não se chega à coisa em si por meio das regras que intermediam a relação entre sujeito e objeto, sendo a mais elementar dessas regras o princípio de razão suficiente (SCHOPENHAUER, 2015b, pp. 7; 15; 38; 115). Schopenhauer (2015b, p. 40) também reforça em O mundo: “não partimos do sujeito nem do objeto, mas da REPRESENTAÇÃO como primeiro fato da consciência [...]” (maiúsculas do ator).
David Cartwright (2001, pp. 44-46) tem uma hipótese, em certa medida, semelhante à de Lauxtermann, pois também acentua um suposto elemento transcendente da metafísica schopenhaueriana como chave para o problema da coisa em si; só que Cartwright faz isso ressaltando a relação da filosofia de Schopenhauer com o misticismo. Segundo Cartwright (2001), é inegável que “uma consideração do transcendental desempenha um papel no desenvolvimento da metafísica de Schopenhauer”; e, além disso, que Schopenhauer teria se esforçado por “acomodar o misticismo dentro de sua filosofia” (CARTWRIGHT, 2001), acomodação que lhe teria, inclusive, fornecido os meios para explicar o status transcendente da negação da vontade e associar tal status à coisa em si. Ou seja, a coisa em si na filosofia schopenhaueriana, segundo Cartwright, deve ser entendida a partir de uma concepção mística3..
Acontece que no próprio livro IV de O mundo, em que trata da afirmação ou negação da vontade de vida, opções que o indivíduo tem ao adquirir consciência de que ele é manifestação da vontade – neste livro IV, dizíamos, Schopenhauer (2015b, p. 315) afirma: “Nossa filosofia afirmará aqui a mesma imanência afirmada em tudo o que foi antes considerado [...]”. Além disso, num dos últimos raciocínios de sua obra magna, o autor explica que o marco do “conhecimento positivo”, isto é, a última questão de que a filosofia pode tratar por meio da metafísica numa linguagem discursiva é “a essência em si do mundo como vontade” (SCHOPENHAUER, 2015a, p. 475). Fora disso, o que resta é o transcendente, o Nirvana budista, a negação da vontade; e a tal reino Schopenhauer (2015b, p. 477) reserva a última palavra de O mundo: “Nada!” (Nichts). Ou seja, não se pode associar a metafísica de Schopenhauer ao transcendente4., sob a consequência de tornar supérfluo todo o seu discurso filosófico, ou, como ele mesmo chama, todo o “conhecimento positivo” professado em seu opus.
Ademais, entendemos que a solução do problema do estatuto do conhecimento da coisa em si para Schopenhauer passa, imprescindivelmente, pela “transição” da aparência para a coisa em si; melhor, requer que se compreenda mais precisamente como essa transição é realizada pela analogia, e esse ponto não é abordado por Young (1987), por Lauxtermann (2000) e nem Cartwright (2001). Com efeito, no § 19 de O mundo Schopenhauer propõe que “todos os objetos que não são nosso corpo, portanto não são dados de modo duplo, mas apenas como representações [...], serão julgados exatamente conforme analogia com aquele corpo” (SCHOPENHAUER, 2015b, pp. 122-123). E novamente, como uma de suas conclusões na Crítica da filosofia kantiana, ele escreve que o caminho investigativo que se desenhou para Kant, mas que este não seguiu, exigia que a aparência fosse “exposta meramente por analogia com o em si de cada aparência” (SCHOPENHAUER, 2015a, p. 585, grifo nosso), isto é, por analogia com a vontade.
Ora, a proposta de uma analogia, em dois passos tão decisivos da argumentação de Schopenhauer, já é evidência considerável de que tal recurso é mesmo imprescindível na “transição” [Uebergang] pretendida por esse autor. Na sequência, comentaremos as hipóteses que entendem a analogia no sentido de uma metáfora, como o fazem De Cian e Segala (2002) e Prado (2014), ou no de uma metonímia, tal qual sustenta Shapshay (2009); e discutiremos, também, que tipo de conhecimento da coisa em si poderia Schopenhauer pretender em sua metafísica, admitindo as interpretações “metafórica” e metonímica” da analogia.
A analogia e o conhecimento metafórico ou metonímico da coisa em si na metafísica da Vontade
Prado (2014, p. 67) nota bem que, embora a analogia ocupe lugar central na obra de Schopenhauer, este nunca tratou detalhadamente e nem diretamente dela. Entrementes, esse intérprete, junto com De Cian e Segala (2002), propõe entender tal analogia como uma metáfora e, neste sentido, a tese “a coisa em si é vontade” visaria apenas dizer algo de verdadeiro sobre a coisa em si a partir do querer humano, sem a pretensão de conhecê-la. Embora não a tenha formulado expressamente, Atwell (1995) parece ter preconizado essa conjectura. Segundo este, conforme entendemos, a analogia com o interior do próprio corpo seria uma espécie de recurso desesperado, posto que o ser humano não tem outro modo disponível para conhecer qualquer coisa além da representação, a não ser seu próprio querer; ou se admite que o restante do mundo é como esse querer, ou “deve-se relegá-lo a uma mera representação” (ATWELL, 1995, p. 102). E as palavras do próprio Schopenhauer, usadas por Atwell (1995, p. 102) para corroborar essa sua hipótese, são as seguintes: “[...] não podemos encontrar em nenhuma parte realidade outra para atribuir ao mundo dos corpos. Assim, se este ainda deve ser algo mais que mera representação, temos de dizer que [...] ele é aquilo que encontramos imediatamente em nós como vontade” (SCHOPENHAUER, 2015b, p. 123).
Ademais, o comentador sugere que os problemas com a interpretação da coisa em si derivam de uma ambiguidade na expressão desse conceito. Na verdade, argumenta Atwell (1995, p. 127), coisa em si é apenas uma forma abreviada para “coisa em si na aparência”5.. De Cian e Segala (2002) e Prado (2014) se alinham a essa interpretação. De Cian e Segala (2002, p. 22) argumentam que a vontade não deve ser entendida como uma hipóstase, que Schopenhauer não a transforma num objeto, mas escreve sobre ela em um universo discursivo e conceitual; e é por isso, continuam, que ele precisa do auxílio da metáfora. Segundo a posição desses comentadores, o uso que Schopenhauer faz dessa figura de linguagem é explanatório, ela ajuda na compreensibilidade e comunicação da verdade metafísica, mas, definitivamente, “a expressão ‘coisa em si’ não é literal” no vocabulário desse autor (DE CIAN; SEGALA, 2002, p. 22).
Prado (2014, pp. 80-81) segue a mesma linha e expressa com as seguintes palavras sua interpretação da “analogia metafórica” de Schopenhauer: “enquanto fruto de uma reflexão analógica e em sentido metafórico, a Vontade ‘só é a coisa-em-si de uma maneira relativa’”, na medida em que é percebida como querer no corpo humano. Como evidência dessa interpretação, ele cita uma carta a Frauenstädt em que Schopenhauer escreve:
Minha filosofia ensina o que é a representação e o que é a coisa-em-si. Mas, esta última, é a coisa-em-si apenas de uma maneira RELATIVA (relativ), a saber, enquanto relacionada com a representação, e esta é representação somente enquanto relacionada com a coisa-em-si. Além disto, a representação é um fenômeno cerebral. O que seja a coisa-em-si fora desta relação eu nunca o disse, simplesmente porque eu não sei; nela é vontade de viver (SCHOPENHAUER, Correspondance complète, 1996, p. 377-378, apud PRADO, 2014, p. 50, maiúsculas do autor).
Ora, como já se argumentou em Silva (2019, p. 137), considerar a coisa em si de modo relativo à representação sugere, de fato, uma limitação no conhecimento que se pode alcançar daquela; todavia, também implica que a própria representação é relativa à coisa em si e que pressupõe, portanto, a sua existência. Neste sentido, a correlação entre representação e coisa em si indica, ao menos a princípio, que não é tão simples reduzir o estatuto ontológico desta à expressão de um conhecimento metafórico6..
Uma metáfora, conforme exposto por Baldick (2004, p. 153), se configura quando “uma coisa, ideia ou ação é referida por uma palavra ou expressão normalmente denotando outra coisa, ideia ou ação, de modo a sugerir alguma qualidade comum compartilhada pelas duas”. Segundo entendemos, a semelhança assumida pela metáfora entre os objetos comparados é casual, tal qual sugere o exemplo dado por Baldick (2004, p. 153): “referir-se a um homem como ‘aquele porco’ ou dizer que ‘ele é um porco’, é metafórico [...]”. Tal exemplo não implica que o homem referido apresente sempre os mesmos comportamentos considerados pouco educados ou polidos, que ele se porte assim por natureza e não possa modificá-los. Justamente por conta desse vínculo supostamente mais ocasional enaltecido por uma metáfora, a saber, o de uma “relação de semelhança”, tal figura de linguagem, para Baldick (2004, p. 153), tem um “emprego predominantemente poético”.
Consciente de como essa interpretação metafórica da analogia mitiga um pretenso conhecimento essencial do mundo, Shapshay (2009, p. 63) questiona se a proposição “a vontade é a coisa em si” deveria ser entendida com o mesmo estatuto semântico de uma frase metaforicamente poética, como “Julieta é meu sol”. Ou, para aproveitar o já citado exemplo de Baldick (2004), estaria Schopenhauer a dizer que “o mundo é vontade” como quem diz “este homem é um porco”? Também é difícil sustentar a hipótese de Prado (2014) e De Cian e Segala (2002) porque Schopenhauer escreve diversas vezes que “a essência em si da própria aparência [...] é a vontade” (SCHOPENHAUER, 2015b, p. 128), que “[...] aquilo que na filosofia kantiana é denominado coisa em si [...] nada é senão a VONTADE [...] (SCHOPENHAUER, 2015b, p. 196, maiúsculas do autor)”; e, na passagem também citada por Shapshay (2009, p. 63) a fim de enfraquecer a leitura metafórica da analogia, que “a vontade é a coisa em si de Kant” (SCHOPENHAUER, 2015b, p. 425)7.. Até mesmo o verbo escolhido por Schopenhauer para caracterizar o potencial do procedimento analógico, em Crítica da filosofia kantiana, testemunha a favor de uma interpretação mais forte referente ao conhecimento da coisa em si; o filósofo escreve, com efeito, que a coisa em si pode ser “exposta”, “exibida” ou “apresentada” (dargestellt) por analogia com o em si de cada aparência.
Ademais, há um exemplo de uma metáfora bastante explícita empregada por Schopenhauer e que pode evidenciar que o conteúdo expresso por essa figura de linguagem não possui, para esse autor, o mesmo estatuto do que ele sugere exprimir por analogia. Trata-se da metáfora do espelho sublinhada por Koßler (2012). Esse comentador detém especial atenção ao uso que aquele filósofo faz da “metáfora da vida como um espelho”, no qual o homem veria não apenas sua própria natureza, mas até mesmo a essência do mundo8.. Mais especificamente, segundo a interpretação de Koßler (2012, p. 18), tal metáfora intenta significar que a vida não tem um sentido dado; melhor, que ela não deve ser considerada como um fim em si mesma, mas como um meio a partir do qual a sua finalidade seria desvelada. Eis a passagem que ele cita para sustentar essa interpretação: “a vida é somente um espelho, no qual se vê não para que ele reflita, mas para que se conheça e se veja o que ele reflete” (SCHOPENHAUER, 1985, p. 91)9.. Ou seja, neste exemplo colhido nas considerações de Koßler, há uma mera “relação de semelhança” entre o espelho e a vida, na medida em que ambos nos serviriam como um meio de conhecimento; embora não se queira acentuar, neste caso, qualquer “semelhança de relação” mais íntima entre o próprio espelho e a vida mesma10.
Destarte, Shapshay (2009) julga mais apropriado entender a relação entre nosso querer e a coisa em si em termos de uma metonímia, pois, neste caso, se estabelece uma relação de contiguidade entre duas coisas, e não de mera similaridade, como no caso da metáfora. E, de fato, a metonímia é definida como “a figura de linguagem que substitui o nome de uma coisa pelo nome de outra coisa intimamente associada, como por exemplo a garrafa para bebida alcoólica” (BALDICK, 2004, p. 154, grifo nosso). Certamente porque essa figura de linguagem possui a prerrogativa de acentuar uma associação tão mais “íntima” entre os objetos considerados, Shapshay (2009. p. 63) entende que a leitura metonímica da doutrina da vontade dota de muito mais força a proposta de Schopenhauer de “conhecer” a coisa em si. O que está em jogo, então, é se devemos tomar a tese da vontade como coisa em si no “sentido fraco”, defendido por De Cian e Segala (2002) e Prado (2014), ou no “sentido forte”, sugerido por Shapshay (2009), que se apega à literalidade da cópula “é” na proposição “a coisa em si é a Vontade”.
De nossa parte, estamos mais dispostos a compreender que o vínculo estabelecido pela analogia schopenhaueriana, entre o nosso querer e a natureza em geral, é mais forte que uma “semelhança de relações”, como sugere a metáfora; e que seria adequado compreender que tal vínculo promove, entre os objetos envolvidos na comparação, uma “semelhança de relações”; significa dizer que a metonímia não leva em conta se tais objetos guardam simples semelhanças casuais, mas busca evidenciar alguma semelhança necessária no modo como eles se relacionam entre si. Certamente com isso em vista, a solução de Shapshay (2009, p. 63) passa pela interpretação da relação entre nosso querer e a coisa em si em termos metonímicos, ou seja, de contiguidade entre dois elementos considerados; assim, resolver-se-ia o problema da interpretação metafórica, que implica não uma identidade entre querer e coisa em si, mas uma mera similitude, com o que o conhecimento que se pode ter do mundo em si é demasiadamente mitigado.
Para afirmar sua tese, Shapshay (2009, p. 66) recorre à relação de contiguidade (Berührung) entre a experiência da música e a Vontade, pois neste caso a primeira é manifestação (Manifestation) sensível da segunda, suprassensível. Ora, o vínculo entre querer, percebido por intermédio da autoconsciência, e vontade cósmica, argumenta a comentadora, é o mesmo que Schopenhauer traça entre a música, percebida pelos sentidos, e essa vontade em si, que lhe é subjacente e da qual a composição musical é uma manifestação11. Schopenhauer descreve, nestes termos, a propriedade que a música tem de expressar a coisa em si: “Ela [a música], numa linguagem altamente universal, num estofo único, a saber, puros tons, expressa com grande precisão e detalhe a essência íntima, o Em si do mundo, o qual, segundo sua exteriorização mais distinta, pensamos sob o conceito de vontade” (SCHOPENHAUER, 2015b, p. 306). Da mesma maneira, o querer que um sujeito percebe em seu interior é expressão da mesma vontade. O que Schopenhauer se esforça por mostrar, prossegue Shapshay (2009, p. 66), é que é possível conhecer o universal, a vontade cósmica, por meio do particular em que ela está contida, isto é, por intermédio da música ou da autorreflexão, de que resulta a intuição de um querer incessante12.
Note-se que a teoria da música, formulada por Schopenhauer no livro III de O mundo, já toma como dado que há uma vontade cósmica, que é una e que se manifesta nos fenômenos. Assumir a solução de Shapshay é coerente, sim, com afirmação, feita pelo próprio filósofo, a respeito de como a exposição de seu sistema não depende, exclusivamente, de uma cadeia de razões que se sustentem, condicionalmente, umas às outras: “o começo pressupõe o fim quase tanto quanto o fim, o começo, e, precisamente dessa forma, cada parte anterior pressupõe quase tanto a posterior quanto esta aquela” (SCHOPENHAUER, 2015b, p. XXVI). Portanto, reconhecemos que a proposta de Shapshay, uma espécie de “leitura holística” que busca a compreensão da doutrina da vontade para além do encadeamento sucessivo de seus raciocínios, está embasada em instruções hermenêuticas dadas pelo próprio Schopenhauer; ela, inclusive, interpreta que Schopenhauer está convidando seus leitores a sentir, eles mesmos, a misteriosa conexão entre nossa vontade e a coisa em si que se manifesta como fenômeno no mundo inteiro (SHAPSHAY, 2009, p. 65).
O fato é que tanto Shapshay (2009), com essa hipótese da “analogia metonímica”, quanto De Cian e Segala (2002) e Prado (2014) ao defenderam a “analogia metafórica” se afastam de uma outra tradição exegética acerca a transição analógica; trata-se da tradição que, conforme já exposto por Silva (2019, p. 135), entende a analogia como uma “prova”, isto é, como um conjunto de proposições das quais uma é a conclusão e as demais, que visam sustentá-la ou dar-lhe evidência, são premissas. Neste sentido, ainda segundo Silva (2019), tal leitura da analogia é encontrada em Cacciola (1994, p. 50, apud SILVA, 2019, pp. 135-136), Barboza (2015, pp. 39-40, apud SILVA, 2019, pp. 135-136) e Silva (2011, p. 187, apud SILVA, 2019, pp. 135-136) e pode ser parafraseada do seguinte modo:
[...] exteriormente, nosso corpo apresenta disposição idêntica a dos demais organismos e objetos corpóreos que constituem o mundo, pois, tanto quanto eles, ocupa um lugar no espaço, sucede no tempo e está submetido à lei de causalidade; e como por meio do nosso corpo, em sua interioridade, temos acesso a algo que se manifesta (sich offenbaren) fundamentalmente como um querer, uma vontade, segue-se que exatamente o mesmo deve estar interiormente presente em todos aqueles outros objetos (in ihr Inneres); por conseguinte, todo o mundo deve ser entendido, essencialmente, como uma “Vontade” (SILVA, 2019, pp. 135-136).
Ademais, o ponto aqui não é se esta é a melhor maneira de reconstruir a manobra analógica mediante a qual Schopenhauer intenta passar do registro da epistemologia, que tem como objeto a “representação”, para iniciar sua investigação metafísica sobre o “em si” do mundo; por isso, o comentário de Silva (2019) a respeito da interpretação da analogia schopenhaueriana feita por Cacciola (1994), Barboza (2015) e Silva (2011) pode ser mais apropriadamente discutido em outra ocasião. No momento, nos ateremos a compreender as razões que afastam desse grupo de intérpretes as hipóteses de De Cian e Segala (2002), Prado (2014; 2019) e Shapshay (2009).
E, segundo nossa interpretação, estes seguem um caminho hermenêutico tão distinto porque tomam a analogia, ainda que não explicitamente ou em uma formulação definitiva, como um instrumento de acesso ao cerne da natureza; a partir da interpretação da experiência interna humana, então, o recurso da metáfora ou da metonímia conduziria Schopenhauer a algum tipo de acesso privilegiado à essência do mundo. Ora, esta parece ser a senda mais avançado na tarefa já aludida por Guyer (1999) e Beiser (2014) de encontrar algum método específico por meio do qual Schopenhauer procederia em sua metafísica.
Analogia como método de investigação metafísica?
Guyer (1999, p. 94) não parece ter dúvidas de que Schopenhauer tem em vista, sim, uma proposta metodológica de fazer metafísica a partir de uma analogia com nossa experiência interna, como alternativa ao procedimento da crítica kantiana; tanto que esse comentador assevera que há uma certa incomensurabilidade entre os métodos de filosofia que Schopenhauer e Kant adotam em suas investigações. Como evidência disso, Guyer (1999, p. 96) enfatiza uma passagem em que Schopenhauer (2015a, p. 524) compara Kant “a alguém que mede a altura de uma torre pela sua sombra”, ao passo que ele próprio se assemelharia “a alguém que aplicaria a mensuração diretamente à torre”. Guyer (1999, p.133) chama de “método fenomenológico avant la lettre” essa hipotética e nova sugestão metodológica de fazer metafísica, oferecida pela filosofia schopenhaueriana. Segundo ele, é graças a tal método que Schopenhauer poderia, justamente, superar os limites impostos pelo idealismo transcendental kantiano; idealismo este que segue, segundo a denominação convencional seguida por Guyer (1999, p. 133), o “método transcendental”, que versa exclusivamente sobre as condições de possibilidade de nosso conhecimento e que é, por isso mesmo, rechaçado por Schopenhauer13.
Sobre essa eventual alternativa proposta por Schopenhauer ao procedimento metafísico kantiano, Guyer (1999, p. 93) afirma que, seguindo-o, esse autor empreenderia uma “filosofia transcendental sem argumentos transcendentais”; e, nas palavras de Beiser (2014, p. 35), uma “interpretação” dos fenômenos ou “hermenêutica das aparências”. Significa que há, entre esses dois comentadores, um acordo sobre ponto de partida da metafísica schopenhaueriana, apontado mesmo pelo autor com tal clareza que pouca margem deixa para discussão: “não partimos do sujeito nem do objeto, mas da REPRESENTAÇÃO como primeiro fato da consciência [...]” (SCHOPENHAUER, 2015b, p. 40, maiúsculas do ator). E isso explica todo esforço feito em Crítica da filosofia kantiana, por exemplo, para rejeitar a Dialética transcendental da Crítica da razão pura sob acusação de que “a antinomia inteira é um duelo diante do espelho, uma luta aparente” (SCHOPENHAUER, 2015a, p. 570); isso porque, hipoteticamente, “tão somente as afirmações das antíteses apoiam-se realmente sobre as formas de nossa faculdade de conhecimento [...]”, ou seja, em “representações”, mesmo que a priori, tais quais as obtidas das intuições de espaço, tempo e causalidade (SCHOPENHAUR, 2015a, p. 570); já “as afirmações e provas das teses”, continua Schopenhauer (2015a, p. 571) “não têm outro fundamento senão subjetivo, repousam totalmente sobre a fraqueza do indivíduo que raciocina [...]. Logo, independentemente das minúcias da crítica schopenhaueriana ao modo como Kant lida com cada uma das quatro antinomias, interessa aqui ressaltar que, para Schopenhauer, o critério que deveria definir a afirmação verdadeira, entre tese e antítese, é a fundamentação em uma “representação”, ainda que se trate de uma “intuição” a priori.
No entanto, Guyer (1999) não chega a discriminar como funcionaria esse método que principiaria pela análise da aparência ou representação; e Beiser (2014, p. 35), bem mais intransigente que ele, afirma que Schopenhauer em nenhum lugar oferece uma “teoria da interpretação das aparências”, o que constituiria uma “falha notável para um velho estudante de Boeck e Schleiermacher, dois pais da hermenêutica moderna”14. Ora, segundo entendemos, tal método hermenêutico deveria passar, inextricavelmente, pela transição analógica do §19 que é proposta, também, como conclusão da Crítica da filosofia kantiana; e se é assim, então De Cian e Segala (2002) e Prado (2014; 2019), com a interpretação da metáfora, e Shapshay (2009) com a da metonímia, são os autores que mais podem nos fazer avançar nesta senda; isso porque todos eles enfatizam o papel central da analogia na transição da aparência para a cosa em si.
Interpretamos que as propostas exegéticas desses comentadores se alinham, embora de maneiras distintas, a uma leitura que Beiser (2014) propõe, e que acolhemos aqui, sobre o estatuto do conhecimento da coisa em si na metafísica de Schopenhauer. Segundo esse comentador, a tentativa de Schopenhauer de justificar a pesquisa metafísica repousa crucialmente na sua “ressignificação” desse conceito. Então, ainda na interpretação de Beiser (2014, p. 34), a coisa em si não é algo que transcende as aparências, mas é “aquilo que aparece na aparência” (that which appears in appearances / das in ihr .die Erscheinung.Erscheinende). Ou, em outra formulação, a coisa em si é o “quê” que aparece em oposição ao “como”, “quando” e “onde”. Beiser (2014, p. 34) também sugere que, para Schopenhauer, a distinção entre aparência e coisa em si poderia ser redesenhada em termos de uma distinção entre forma e conteúdo da experiência. A forma da experiência consistiria na relação entre as coisas e seria expressa em termos causais ou matemáticos. Já o conteúdo da experiência consistiria na “qualidade”, “essência” ou “natureza inerente” das coisas, isto é, naquilo que permanece nas relações entre as coisas. Enfim, esse intérprete conclui que a coisa em si não é um objeto sobrenatural que se encontra além das aparências, mas que é, ainda assim, a essência inerente ou a natureza intrínseca dessas mesmas aparências.
Neste sentido, a leitura de Beiser favorece a interpretação metonímica que Shapshay faz da transição analógica, porque sustenta tanto quanto essa autora, conforme entendemos, um “conhecimento forte” da coisa em si, em oposição ao mais fraco sugerido pela hipótese da “analogia metafórica”. E porque a distinção entre forma e conteúdo da experiência, pensada por Beiser (2014), se aplica perfeitamente à chave proposta por Shapshay (2009) para compreender a relação metonímica entre o mundo da representação e o da coisa em si; na esteira dessa chave de leitura, que é a teoria schopenhaueriana da música, a forma como a música é composta, percutida e faz efeito sobre o aparato auditivo pode ser descrita em termos causais e matemáticos, enquanto o seu conteúdo exprimiria, sim, a essência do mundo.
Ao mesmo tempo, é importante fazer uma ressalva sobre essa interpretação metonímica que implica, por seu turno, pela sua pressuposição da teoria da música de Schopenhauer, uma leitura holística desse autor. Ora, ele escreve que o começo de sua doutrina pressupõe o fim, “quase” tanto quanto o fim pressupõe o começo, e explica que empregou o “quase”, porque “de modo algum é absolutamente assim” (SCHOPENHAUER, 2015b, p. XXVI). Ou seja, de modo algum, o desenvolvimento de seu sistema está alheio a uma relação de antecedência e consequência entre as proposições que ele formula ao longo de sua investigação; além disso, o autor enfatiza que, embora o caráter orgânico de sua doutrina implique uma “intercoesão de todas as [suas partes]”, o leitor “não deve perder de vista [...] o progresso de toda a exposição” (SCHOPENHAUER, 2015b, pp. XXVI-XXVII). Por isso, não se pode negligenciar o caráter progressivo da argumentação erigida por Schopenhauer a caminho da prova de que o mundo, em si, é vontade.
Prado (2019, p. 299) ainda objeta que a solução dessa comentadora “se constitui como um híbrido entre arte e filosofia”; e que “por focalizar com grande ênfase [...] traços estéticos ou poéticos desse procedimento”, Shapshay “toma a metafísica da vontade como uma espécie de filosofia poética que, embora não esteja em desacordo com o filósofo, parece não abarcar as suas intenções conceituais”. Ademais, pode-se retirar boa parte do peso dessa consideração de Prado (2019) contra a comentadora, se lembrarmos que ela mesma ressalva que Schopenhauer “foi um filósofo tradicional o bastante para tentar fundamentar a verdade de seus insights” não só na coerência geral de sua visão de mundo; mas também, continua Shapshay (2009, p. 59) “na persuasão racional”, “por meio de argumentos”; e, além disso, que “embora o sentimento seja epistemicamente privilegiado em seu pensamento, por ser menos mediato, Schopenhauer fornece argumentação lógica para aspectos chave se sua metafísica” (SHAPSHAY, 2009, p. 71)15.
Julgamos que a hipótese de Prado (2019) se encontra em um estágio mais avançado que a de Shapshay (2009), sim, na tarefa de discriminar um método de investigação metafísica na filosofia schopenhaueriana16. Com efeito, a analogia metonímica funcionaria, muito mais, como um recurso para se ter uma “intuição poética” da essência da natureza; mas não seria, ainda, um recurso de interpretação das aparências. Se aproxima mais de evidenciar tal recurso a conjectura feita por Prado (2019):
[...] a denominatio a potiori mediante a qual a Vontade é denominada de coisa-em-si se harmoniza com a teoria da significação dos conceitos e reconhece os limites do sentido considerando a coisa-em-si sempre em conexão ou relação (metafórica) com o mundo dos fenômenos (PRADO, 2019, p. 302).
Percebe-se, nesta citação, que o intérprete vincula sua interpretação da analogia metafórica ao procedimento que Schopenhauer refere como denominatio a potiori, ou, o que é o mesmo, a uma “denominação conforme o mais distinto, o mais perfeito”17; no caso da extensão analógica feita pelo filósofo, conforme o querer humano, o conhecimento mais imediato que se pode ter.
Além disso, fica clara a preocupação de Prado em evidenciar como sua interpretação passa pela assunção de que Schopenhauer respeita certos “limites do sentido”; e que, justamente por isso, a coisa em si deve ser considerada, para usar suas já citadas palavras, em “relação metafórica com o mundo dos fenômenos”. Talvez esses “limites do sentido” sejam contornados por Schopenhauer em sua “ressignificação” da coisa-em-si, nos termos propostos por Beiser (2014, p. 34); e pode-se supor ainda que a denominatio a potiori aludida por Prado (2019) seja o método a partir do qual, ainda seguindo Beiser (2014, p. 34), Schopenhauer buscaria pelo “quê” das aparências, que marca oposição ao “como”, “quando” e “onde” delas. Ora, para usar as palavras de Prado (2019, p. 302), a denominatio a potiori “caracteriza os traços mais elementares do paradigma metodológico de Schopenhauer tendo em vista uma superação do racionalismo e do empirismo modernos” (grifo nosso).
Ou seja, Prado (2019) aponta incisivamente para um “paradigma metodológico” na metafísica de Schopenhauer e, além disso, vincula tal paradigma à transição analógica, mediante a denoninatio a potiori; sua interpretação ainda ganha o reforço da determinação feita por Schopenhauer (2015a, p. 585, grifo nosso) em Crítica da filosofia kantiana de que a aparência deve ser “exposta meramente por analogia com o em si de cada aparência”. Do modo como esta formulada, tal assertiva schopenhaueriana parece mesmo mais bem interpretada como orientação metodológica; a analogia não é aí referida como uma “prova” de que a Vontade é a coisa-em-si, mas como um instrumento a partir do qual esta seria “exposta” (dargestellt) a partir do em si de cada aparência, independentemente do tipo de conhecimento, metafórico ou metonímico, que advenha daí.
Ainda assim, uma questão persiste acerca da “transição” (Uebergang) analógica, efetuada por Schopenhauer no § 19 de O mundo, da representação para a coisa em si: como o autor decide qual é o “em si” de cada aparência? Schopenhauer não chegou a formular nenhuma “prova” de que a Vontade é a coisa-em-si, independentemente do sentido em que essa tese seja compreendida? Ora, para que as representações sejam “expostas” de acordo com o em si da aparência, é preciso decidir o que seria a coisa em si. Assim, ainda podemos problematizar se tal procedimento analógico da Crítica da filosofia kantiana funciona exatamente como a proposta da analogia no § 19 de O mundo; e se neste último caso a analogia não funcionaria como uma “prova”, sim, de que a Vontade é a coisa em si, como sugerem os primeiros argumentos de Silva (2019) a esse respeito18.
Considerações finais
Na nossa avaliação, De Cian e Segala (2002), Prado (2014) e Shapshay (2009) aproximam do debate sobre a analogia uma questão já bastante discutida por intérpretes como Young (1987), Lauxtermann (2000) e Cartwright (2001); todos eles estão preocupados, direta ou indiretamente, em definir com mais precisão o estatuto do conhecimento da coisa em si proposto por Schopenhauer, em relação ao que fora estabelecido a esse respeito na Crítica da razão pura.
Sustentamos, inclusive com base nas considerações de Baldick (2004) sobre o estatuto semântico de metáforas e metonímias, que esse conhecimento da coisa em si é mitigado na interpretação de De Cian e Segala (2002) e Prado (2014); e que à figura de linguagem da metáfora Shapshay (2009) contrapõe a metonímia, visando sustentar que o conhecimento metafísico almejado por Schopenhauer é mais forte que o sugerido metaforicamente. Em comum, essas duas propostas exegéticas entendem a analogia como um instrumento hermenêutico, até metodológico, que permitiria alguma interpretação do significado mais íntimo da natureza.
Assim, eles parecem seguir adiante na trilha indicada por Guyer (1999) e Beiser (2014), porque ambos atribuem ao projeto metafísico de Schopenhauer a necessidade de um método que permita interpretar as experiências fenomênicas; mais ainda, decifrar o que há de idêntico e essencial em todas elas, não obstante as variações com que se manifestem. Tal ênfase de Schopenhauer na interpretação da experiência dos fenômenos como ponto de partida da metafísica é um dos motivos mais fortes para afastar as leituras de Lauxtermann (2000) e Cartwright (2001); isso porque estas implicam, de algum modo, uma forte carga transcendente na tentativa schopenhaueriana de resolver o problema da coisa em si. A hipótese de Young (1987), por seu turno, é rechaçada porque insiste numa suposta divisão, feita por Schopenhauer, de três aspectos do mundo: o da experiência empírica, imanente, o da coisa em si, transcendente, e um terceiro entre esses dois, que forneceria a matéria-prima do conhecimento metafísico pretendido pelo filósofo; e isso após o filósofo determinar em O mundo, inúmeras vezes, que o conhecimento do mundo se esgota em duas perspectivas, quais sejam, uma como representação, outra como vontade.
Ademais, dada a dificuldade, encontrada tanto em Guyer (1999) quanto em Beiser (2014), de apontar no opus schopenhaueriano explicações sobre aquele suposto método, temos que os estudos de Prado (2019) e Shapshay (2009) são os mais avançados nesse aspecto. Os resultados apresentados por essa última estão mais próximos da leitura que Beiser (2014) faz do estatuto do conhecimento da coisa em si na metafísica de Schopenhauer: um conhecimento “mais forte” da essência mesma do mundo, ainda que se atendo a uma perspectiva imanente, segundo a qual a experiência poderia ser escrutinada em termos de “forma”, relativa à sucessão fenomênica, e “conteúdo”, referente ao que há de essencial nela. Por outro lado, está mais distante de apresentar algo como um “método” de investigação metafísica, indicando, antes, um caminho para uma “intuição poética” do mundo manifestado como Vontade.
A hipótese de Prado (2019), não obstante implique um embotamento do conhecimento que Schopenhauer almeja oferecer da coisa em si, avança na discriminação de um método que esse autor teria lançado mão em sua metafísica; e a denominatio a potiori, vinculada à analogia no sentido de uma metáfora, é a chave da leitura desse intérprete. Por fim, notamos que essa chave hermenêutica pode ser favorecida pela proposta analógica de Schopenhauer em Crítica da filosofia kantiana, mas que ainda deixa sem resposta como esse autor conclui qual o “em si” a partir do qual as aparências devem, via analogia, serem expostas (dargestellt). A esse respeito, parece que pode haver um outro emprego da analogia que não é simplesmente metodológico, mas funcionaria como algum tipo de prova da tese “a Vontade é a coisa em si”; e que esse outro emprego da analogia, segundo indica a abordagem de Silva (2019) ainda carente de estudo mais aprofundado, é encontrado na analogia do § 19 de O mundo como vontade e como representação.
Referências
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Notas
Autor notes