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Recepção: 13 Julho 2020
Aprovação: 05 Outubro 2020
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i3.1971
Resumo: O presente artigo aborda a questão do outro no interior do pensamento de Martin Heidegger (1889-1976). Tal problemática, não obstante, será examina a partir da pressuposição das tonalidades afetivas (Stimmung), fenômeno caracterizado em toda a produção filosófica do pensador, embora, nessa ocasião, seja dada ênfase a obras anteriores a 1930. A convivência como modalidade do ser-com mostra-se imbuída e perpassada por afecções que regionalizam o mundo e plasmam espaços de interação e apropriação dos modos de ser. A pesquisa versa sobre algumas dimensões e experiências as quais o ser-aí (Dasein) instaura em seu horizonte hermenêutico de maneira a se orientar por “afecções” específicas, mostrando a dinâmica da convivência em suas relações de proximidade e diferença por meio de tonalidades afetivas, bem como mediante estruturas existenciais, como a preocupação. O estudo pretende, por fim, mostrar alguns meandros da análise de Heidegger quanto ao “tema” do outro, já que esse é um assunto pouco debatido pelo pensador, uma vez que suas reflexões incidem precisamente no esforço de ruptura com a noção tradicional de “homem”, o que justifica seu ensejo por questões distintas daquela que na presente ocasião se visa discutir.
Palavras-chave: Heidegger, Tonalidade afetiva, Outro, Convivência.
Abstract: This article addresses the question of the other within Martin Heidegger's (1889-1976) thinking. Such problem, however, will be examined from the assumption of affective tones (Stimmung), a phenomenon characterized in all the philosophical production of the thinker, although, on that occasion, emphasis is placed on works prior to 1930. Coexistence as a modality of ser- com shows itself imbued and permeated by affections that regionalize the world and shape spaces for interaction and appropriation of ways of being. The research deals with some dimensions and experiences which the being-there (Dasein) establishes in its hermeneutic horizon in order to be guided by specific “affections”, showing the dynamics of coexistence in its relations of proximity and difference through affective tones , as well as through existential structures, such as concern. The study aims, finally, to show some intricacies of Heidegger's analysis regarding the “theme” of the other, since this is a subject little debated by the thinker, since his reflections focus precisely on the effort to break with the traditional notion of “ man ”, which justifies his opportunity for issues other than the one we are discussing on this occasion.
Keywords: Heidegger, Affective tone, Other, Coexistence.
Introdução
Esse artigo versa sobre um problema que perpassa toda a meditação do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976). Refletir sobre os desdobramentos dos afetos no interior de seu pensamento parece, em um primeiro momento, uma tarefa pouco profícua quando se trata de um filósofo que se esmera em pensar o ser, e não o ente – em especial o homem – propriamente. E nesse oceano no qual rema Heidegger, dominam, na atualidade, dois saberes que se arrogaram ao longo de séculos ter o domínio sobre o tema dos afetos, a saber, a Filosofia e a Psicologia.
A Psicologia será descartada desde o início do trabalho aqui proposto3.. Não por ser uma ciência fraca ou pouco delimitada em suas bases. Evidentemente não se trata disso; simplesmente não se considera a Psicologia nesta inquirição porque o objeto de estudos não é o homem, mas, o ser desse ente4.. O que nos afina ao tema proposto nesta ocasião é o fato de nosso objeto de estudos, por si só, procurar lugar ao sol no rol dos grandes assuntos da Filosofia. Para isso, talvez fosse um pouco mais inteligente de nossa parte buscar entender a constituição disso que, efetivamente, nos afina. Se a Psicologia pouco pode auxiliar-nos, visto que nada há nesta pesquisa sobre consciência, inconsciente ou dados dessa natureza, a Filosofia, assim se imagina, virá ao nosso socorro como um terreno mais fecundo.
A questão, então, ancora-se nesse vasto território chamado “Filosofia”. Não obstante, o que nele se encontra é uma miríade de opiniões que partem, na sua grande maioria, de seu mais elevado porto seguro: a razão; seu elemento mais brilhante, mais radiante, “apolíneo”. Todavia, por isso mesmo opera a partir de um desértico e vaidoso eu – que, como adiantamos, deve ser aqui superado enquanto referência. Nosso tema é mais simples. Talvez, por isso, mais escorregadio, mais difícil de se perseguir. Não será também a Filosofia, considerando sua História e legado, que nos acudirá no prosseguimento desta indagação. A questão dos afetos, quaisquer que sejam os modos de eles serem interpretados, sempre foi colocada, ao logo de toda a metafísica, como uma terceira classe de problemas, algo quase rudimentar que não mereceria atenção.
Isso que toca radicalmente ou afina afetivamente o ser do homem, o ser-aí (Dasein), foi o que Heidegger entendeu por Stimmung. Esse termo provém do verbo stimme, que, em alemão, significa a afinação de um instrumento, algo que sintoniza, harmoniza; a voz, o voto. Enquanto modo essencial de abertura .Erschlossenheit) do ser-aí para o mundo que é o seu, a Stimmung afina esse ente para suas variadas formas de ser, concedendo-lhe uma atmosfera, um tom. Stimmung é justo este tom, esta tonalidade, um colorido que se articula no seio disso que se abre gerando um clima a partir do qual acontece o mundo. Precisamente nisso consiste um afeto. Nosso objetivo primário nesta inquirição é descrever isso que perfaz a tonalidade afetiva, algo decisivo na instauração do mundo. Por abertura entende-se um fenômeno excepcional do exame de Heidegger, considerando que esta possibilita toda e qualquer forma de doação ou entrega do ser mesmo às suas atitudes e realizações. Caracteriza, assim, um elemento de pleno dinamismo que simultaneamente faz mundo e ser-aí coparticiparem de um elemento comum, sendo uma instância de instauração de modulações do próprio ser em seus desdobramentos e ressonâncias.
O termo “afetiva” que compõe tal expressão, nada tem a ver com categorias humanistas ou psicológicas. Antes, diz muito mais respeito, como já enunciado, à afinação de um instrumento musical. Por meio da tonalidade afetiva emergem modos sutis de ser, porém, tão tenazes quanto a corda de aço de um violão: sua vibração gera som, no caso aqui examinado, origina modos de ser, de atuação, de performances existenciais que nos remetem aos atos propriamente ditos de ser-no-mundo. Se somos, é porque essa forma privilegiada de afeto reverbera nos meandros mais recônditos do ser-aí concedendo-lhe certo movimento, certa vibração, certa cadência. A tonalidade afetiva espacializa toda e qualquer forma de acesso ao horizonte de sentidos que compõem mundo.
Anterior a qualquer psicologia dos sentimentos, as tonalidades afetivas são elementos que possuem uma radical tensão entre ausência e presença. Isso porque estão por toda parte e em parte alguma, visto que são determinações que perpassam a totalidade dos comportamentos do ser-aí em sua inserção no mundo5.. A analítica existencial não comporta quaisquer compreensões quanto a categorizações do ser-aí, de forma que se “[...] rejeite a substância da alma ou o caráter de coisa da consciência” (HEIDEGGER, 2008c, p. 170). A analítica existencial apreende o ser do ser-aí a partir de balizadores muito mais graves e problemáticos, caso se considere o fato de as críticas de nosso autor terem por pressuposto o existir mesmo, e não qualquer outro tipo de referência, tanto internas, quanto externas ao ser-aí.
Considerando outro ponto de partida, na elaboração do ser-com (mitsein), Heidegger já havia empreendido uma superação da noção clássica de sujeito, já que não mais se questiona sobre o que é homem, mas sobre quem é o ser-aí.6. E este é um ente7. que em sua cotidianidade pode não ser ele mesmo. Essa elucidação se faz necessária para se reafirmar que o ser-aí tem em jogo seu próprio ser, e a partir disso possui como mobilizador estrutural seu estar-lançado. Por ser a sua possibilidade de ser, o ser-aí pode ganhar-se ou perder-se, fugindo e se esquecendo de si mesmo, como explicita o fenômeno da decadência8..
O mundo se abre, imerso nas mais estreitas relações do ser-aí, junto às coisas e se revela igualmente compartilhado com os outros. Em Ser e Tempo, os outros não são vistos como alteridade, isso se compreendermos este conceito a partir de seu enquadramento tradicional, no qual Heidegger não apareceria como um pensador que se dedicasse ao mencionado problema. Não obstante, a partir da analítica da existência, a alteridade surge como elemento decisivo, embora seja transposta para a centralidade da pergunta sobre quem é o ser-aí cotidiano e como o mundo que é o seu se compartilha com outros seres-aí. Esse fator compõe a totalidade do ente em jogo, já que assumirá uma condição de reconhecimento do si-mesmo com o outro, uma vez que a alteridade, apreendida a partir da ocular aberta por obras do final da década de 1920, estaria fundada na própria ipseidade do ente em questão. Esta ipseidade aparece nos seguintes termos em Sobre a essência do fundamento, de 1929:
Mas então o ser-aí transcendente (expressão já tautológica) não ultrapassa nem uma “barreira” posta diante do sujeito, obrigando-o primeiro a permanecer dentro de si (imanência) nem um “precipício” que separa o sujeito do objeto. Os objetos – os entes objetivados – também não são, porém, aquilo em direção do que (horizonte) se dá a ultrapassagem. O que é ultrapassado é justo unicamente o ente mesmo, e, na verdade, cada ente que pode tornar-se ou já está desvelado para o ser-aí, por conseguinte, também . justamente o ente que é “ele mesmo” enquanto existe.
Na ultrapassagem o ser-aí primeiramente vem ao encontro daquele ente que ele é, ao encontro dele como ele “mesmo”. A transcendência constitui a mesmidade (ipseidade) (HEIDEGGER, 1996, p. 122).
A ipseidade, como apontado no fragmento citado, aponta para a singularidade/autenticidade do ser-aí: um ente que ganha sua “identidade”, sua espacialidade e corporeidade própria na situação de sua transcendência – isto é: sempre e a cada vez que é, que se realiza. E para ser, ou seja, para configurar sua mesmidade ou singularidade, este é um ente que precisa estar/ser-com os outros. O “ente que ele mesmo é”, como escrito pelo filósofo no trecho acima, . e só é com (ou como) os outros.
Um possível comum
De imediato, é crucial situar a problemática do outro na reflexão heideggeriana. O ser-com os outros é uma modalidade fundamental de ser-no-mundo. Logo, não é nenhum tipo de posse do outro, porém, um jeito de ser no qual o outro é absolutamente presente e partícipe do mundo – que é o meu, mas, que de alguma forma, é também, e estranhamente, dele, claro que travestido das possibilidades que são as suas. O ser-aí sempre está, de chofre, lançado em suas ocupações junto às coisas e na preocupação com os outros, de maneira que este não é sob nenhum aspecto um “alguém” em relação ao qual o ente em questão se diferenciaria.
Vale resgatar a exposição acerca da decadência na nota 8 do presente artigo. A descrição empreendida acerca da decadência com os seus respectivos contornos e meandros já revelou isso. Considerando o predomínio do impessoal, marcado por uma absoluta indiferença cotidiana, o ser-aí nem mesmo se isola de um mundo previamente compartilhado. Não há formas de não se estar com os outros; em suas tarefas e empenhos (existenciais) básicos na cotidianidade, o outro se mostra insistentemente como parte estrutural da inserção imediata do ser-aí em seu mundo circundante (Umwelt) mais próximo e familiar, não se confundindo de forma alguma com um ser simplesmente dado, e, por isso, à mão – não possui categorias, porém, existência.
O mundo, segundo Heidegger, legitima-se como campo em que se desenrolam comportamentos no e a partir do ser-aí junto às coisas, visto que das coisas não é possível prescindir. Isso acontece também em relação a convivência com os outros, já que deles não se diferencia rigorosamente, além de o ser-aí estar em função de si mesmo. Esse ente só vem a ser quando encarnado no mundo; portanto, aberto em seu acontecimento fundamental e lançado em seu poder-ser. Não há outra forma de ser senão empenhando-se nele, e o mundo circundante é precisamente este horizonte possível e acessível que primeiramente se destaca na facticidade (Faktizität). A facticidade diz respeito ao projeto próprio do ser-aí em seu vir a ser possível, caracterizando, assim, a dimensão de um ente lançado em seu mundo a partir do qual deve vir a se constituir.
Nessa dimensão, o ente em questão se dispõe ao aparecimento de sentido no horizonte de realização de suas possibilidades, sendo que, nas atividades junto aos entes, se torna possível compreender a si mesmo em seu ato de ser. O mundo circundante é essa conjuntura na qual todos os entes se tornam acessíveis pela abertura, e não constitui meramente uma estrutura orgânica ou sociológica, nem mesmo a totalidade dos entes que estão geometricamente situados ao lado do homem, já que é um existencial do ente em questão.
A partir disso, mais uma vez as tonalidades afetivas apresentam-se no núcleo da questão. Não há mundo circundante senão já nele situado a partir de uma afinação que permita enviesar em seu meio, perpassando-o de maneira que se deixe guiar por aberturas sucessivas: o ser-aí somente está em meio aos entes quando afinado a esses. O fato de se estar no bojo de alguma forma de ação e imerso em uma condição de interação com a totalidade dos elementos ao redor é fruto, originariamente, de algo que permite um nexo primordial, a saber, entre o ser-aí e mundo. O estranho disso é que não há diferença entre esses elementos, ao passo que constituem um único e mesmo constructo: o ser-aí é o seu mundo, e isso pela razão de estarem, originariamente, harmonizados ou sintonizados entre si, de modo a não existir mais dois dados distintos, mas, intrinsecamente, serem um só fenômeno: ser-no-mundo.
O circundante do mundo, que o abarca por completo e que se abre em sua totalidade, origina um nexo com o ser-aí sempre pronto a se empenhar, uma vez que algo, no cerne desse horizonte, terá de se desvelar em sua verdade. As tonalidades afetivas permitem, para além das apreensões de Heidegger (mas, orientando-nos por um horizonte por ele aberto), que o que se efetiva no agir possa se efetuar como experiência que ganha corpo historicamente, uma vez que atravessado por uma afinação, enraíza-se em um espaço ao qual desenrola o próprio existir.
Nesse ínterim, a constituição própria do mundo circundante não pode vir separada da criação de uma atmosfera – forma ôntica de constatação da tonalidade afetiva. Esta é gerada no modo em que se insere em seu âmbito de abertura, efetivando-se na afinação do ser-aí em seu seio, mostrando como se está, o que nos permite afirmar que este está inserido em uma dinâmica de descobrir-se como tal. Perpassado por sua finitude característica, o ente que tem em jogo seu próprio ser descobre-se afinadoramente. Ao revelar essa forma de estar, a tonalidade afetiva igualmente deixa entrever modos determinados de sentir-se, o que torna possível pensar em uma corporeidade do ser-aí através desse fenômeno.
Mediante o exposto, o mundo, ao qual Heidegger se refere, enquanto espaço fático em que se desenrolam as possibilidades de ser, não é composto apenas por entes ou coisas à mão ou à vista. Ele igualmente se mostra pelos outros que são do mesmo modo seres-aí além de mim dos quais não posso me isolar a partir de uma ocupação indiferenciada. Todavia, sucessivamente se está com o outro como co-criador do mundo que é a cada vez compartilhado.
Não é possível distinguir e diferenciar propriamente um tal outro, já que em todas as atividades este já acena ou se comporta de alguma maneira. O ente que tem em jogo seu próprio ser está sucessivamente em uma relação com os outros seres-aí – o que, mais uma vez, determina sua finitude, já que não se completa e se fecha sobre si mesmo. Ora, a roupa que uso não foi feita por mim, bem como o alimento disposto no prato não foi por mim colhido e preparado. A pavimentação da rua não fui eu que fiz, bem como a orla da praia, o apartamento que moro, e o carro que uso. O computador que digito, os livros que leio, as escolas que trabalho, o parto da filha, e muitas referências a eventos cotidianos não passaram diretamente por minhas mãos. Não obstante, de imediato estou imerso em uma relação absoluta e direta com tais coisas, fenômenos e situações, visto que a co-presença do outro se mostra a mim ao passo que do mundo comungo um possível comum.
Por mais que muitas vezes seja algo desejado, é impossível não estar em comunhão com os outros. Tomemos como exemplo um dia “nebuloso”, de humor obscuro e taciturno, onde alguém, perpassado por uma profunda tristeza, chega do trabalho e se isola da convivência dos outros indivíduos em seu quarto. Fica do crepúsculo à madrugada trancado, sem contato nenhum com qualquer indivíduo, acreditando que ali nada e nem ninguém tem acesso9.. Por ora escuta música, ora dorme em uma boa cama de molas, fecha suas cortinas, a janela. Mexe no celular, onde fica sabendo das fofocas pelas redes sociais. Apaga a luz. Sente que sua disposição para o mundo igualmente se fecha para tudo aquilo que não está naquele lugar. Isso, seguindo as indicações de Heidegger, não diminui em nada a presença marcante do ser-com, visto que tudo aquilo que seus olhos veem foram construídos pelas mãos humanas – mãos de outros. A presença de tantos outros, dos quais ele nem imagina, está ali acontecendo.
O simples fato de se repensar um texto, como aqui se faz, é testemunho da coexistência do outro. Interpreta-se alguém que nunca foi visto, que publicou livros que são acessíveis a seus leitores em diferentes idiomas e traduções; livros que foram confeccionados, impressos, embalados, transportados, vendidos, ou até mesmo roubados por outros que não se conhece do ponto de vista da convivência. Identifica-se com um pensador quando nunca o viu; gosta-se muito dos livros daquela editora; contudo, não se sabe quem fez a arte final e diagramação, quem pensou o layout. Por vezes, já considerando outra ocasião, gosta-se de certa refeição de determinado restaurante. Entretanto, não se sabe quem a preparou, quem capturou o camarão, quem fisgou o peixe, quem fez o pirão, ou quem produziu a panela de barro para se fazer a moqueca capixaba. A lógica própria ao ser-com é tão incontestável que na maioria das vezes, absorvido pela cotidianidade, não se percebe a mesma. E estes outros não são indivíduos diferenciados, porém, são outros seres-aí, em cuja presença sempre, de antemão, já nos encontramos: sua presença é experienciada ininterruptamente como ser-no-mundo.
Pela estrutura ser-com, não se lida com o outro meramente como um sujeito isolado exterior a um eu-objeto. Registra Heidegger no § 26 de Ser e Tempo: “Os ‘outros’ não significam todo o resto dos demais além de mim, do qual eu me isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, não se consegue propriamente diferenciar, são aqueles dentre os quais também se está” (HEIDEGGER, 2008c, p. 174). Esse outro não deve ser visto a partir de categorias, mas existencialmente, já que é parte da estrutura de um mundo que é continuamente compartilhado, onde o ser desses outros não pode ser simplesmente intramundano, já que são outros seres-aí.
O encontro com os outros não pode se dar a partir de nenhuma apreensão de um sujeito ou de um ente à mão. O outro vem ao encontro a partir de um mundo público orientado por uma visão específica. Deve-se salientar que essa “visão” não significa a atividade empreendida pelos olhos, ou por algum sentido privilegiado do corpo humano. Ver, nessa perspectiva, é uma determinada maneira de se orientar e guiar pelo conjunto daquilo que é “visto”, isto é, apreendido significativamente. Trata-se de uma forma estrutural de apreensão de certo conjunto.
Fala-se em encontrocom o outro por que o mundo se mostra como articulação espacial descerrada a partir de maneiras as quais o ser-aí é tomado por aquilo com que lida, e ocupado com os entes intramundanos, necessariamente também se “ocupa” com aqueles que os produziram, ou seja, os outros seres-aí. Mundo já traduz certa espacialidade que imprime o horizonte de manifestação dos entes; vindo a ser, o ser-aí tem, consequentemente, na relação com os outros uma forma essencial de transcender o espaço hermenêutico que é o seu. Entretanto, com os outros não se ocupa: com eles se preocupa .Fürsorge).
Há formas básicas em que o ser-aí em sua lida cotidiana desenrola seus comportamentos. Estes são orientados por visões guias estruturais, a saber, a ocupação e a preocupação. Há ainda uma terceira forma de empenho no mundo, qual seja, a lida do ser-aí consigo mesmo, ser-em função de si mesmo. Isto é descrito por Heidegger em Ser e Tempo através da visão-guia chamada de transparência .Durchsichtigkeit). A primeira, como já assinalado, indica a práxis junto às coisas, com seres simplesmente dados que são acessíveis no mundo circundante, entes à vista e à mão. Ocupação deriva do termo latino occupare, que provém da união do verbo capere e da preposição ob. O verbo em questão transmite a ideia de tomar, apanhar, juntar. A preposição ob, por sua vez, comunica toda a experiência daquilo que se toma, passando a certa referência de se ocupar com aquilo que se lida (DOS SANTOS SARAIVA, 2006). Enquanto a ocupação é indiferenciada, a preocupação deve ser cuidadosa e atenta. Percebe-se com isso que os desdobramentos dessas formas de se guiar pelos entes são afecções determinadas.
A preocupação é o jeito basilar de lidar com os outros. Já indica, de antemão, que se movimenta em uma dimensão de abertura, como caracterizado pelo sufixo pré-. Isso significa que, embora não existam rostos na consideração heideggeriana do outro, há, contudo, uma condição estrutural para que a coexistência se dê. A ocupação, por sua vez, enquanto modo que se efetiva na manualidade, possui a circunvisão como guia. A preocupação, como forma de ser que orienta a relação com os outros, é dirigida por duas tonalidades afetivas especiais, a saber, a consideração e tolerância. A consideração permeia a lida cuidadosa na qual se “vê”, mediante uma visão de conjunto, o outro em suas diferenças, limites e conflitos, o que configura uma atividade que deve se guiar pela estima, bem como ser marcada pelo apreço. Já a tolerância, por seu turno, é o que permite a relação com o outro de maneira a não existir nenhum domínio, autoridade ou desdém, mas um jeito que possa possibilitar uma forma respeitosa no trato cotidiano. Como escreve André Duarte em Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault, o tratado Ser e Tempo:
[...] vislumbra a possibilidade de um modo determinado de ser com o outro que está na base da possibilidade da relação ética genuína, isto é, um modo de ser com o outro que deixa o outro ser outro, inspirado no acolhimento silencioso e agradecido por sua existência, alheio à violência das relações humanas na cotidianidade (DUARTE, 2010, p. 340).
Em termos dessa lida com os outros, o ser-aí possui um caráter de afastamento em relação aos mesmos. Nesse afastamento, ele se projeta para o seu mundo, mede-se constantemente com os outros tentando acompanhá-los, igualar-se a eles, sobrepujá-los. Continuamente se apreende o que esses outros estão fazendo e como estão fazendo. Por isso, até mesmo em suas ocupações cotidianas, o que se faz e como se faz se delimita pela relação com os outros, não outros determinados, esse ou aquele indivíduo em particular, mas outros que são totalmente anônimos, ou seja, outro que é qualquer um.
A consideração de Heidegger acerca do outro esbarra em um detalhe bastante problemático, qual seja, o fato de ser qualquer um o outro que permeia o mundo que é o meu. Essa posição do filósofo é declarada no sentido de que na urdidura do mundo todos os demais seres-aí estão, de alguma maneira, inseridos, não havendo diferenciação desse ou daquele. Por sua vez, esse pode ser apreendido como um discurso homogeneizador, especialmente, porque primeiro retira a particularidade de cada um, e, em um segundo plano, considerando esta época histórica atual, muito se comenta sobre as diferenças. É efetivamente todo e qualquer ser-aí – o outro, propriamente – que está em meu horizonte de mundo? “Vejo” todos os seres-aí que se manifestam em “meu” mundo, ou “tranco as fechaduras” que abrem minhas possibilidades de lidar preocupadamente com os outros? Aceito qualquer um? É tão fácil assim aceitar os outros?
Nosso autor não descartaria essas formas de agir igualmente marcadas por afetos, talvez tonalidades afetivas inautênticas e depreciativas. Heidegger mostrou de forma magistral que todo conhecimento é articulação de preconceitos10 – § 13 de Ser e Tempo. Ainda que em sua obra não exista conhecimento em sentido tradicional, já que este é uma articulação da compreensão e interpretação e expresso pelo discurso, os preconceitos aparecem em uma seara absolutamente ôntica: a cor da pele, a religião que se professa, o corpo que se tem, o time pelo qual se torce, etc.
Ainda que possua uma bela e densa construção acerca do outro, a posição heideggeriana é cheia de melindres. Não nos parece tão fácil assim acolher o outro, como expresso anteriormente. A tese de que o mundo é compartilhado é tão clara quanto o sol, apolínea; todavia, afirmar que todos os seres-aí no interior desse horizonte aberto partem da preocupação como modulação fundamental de lida com a alteridade soa um excesso. Um olhar um pouco mais crítico para a realidade política atual – e não parece muito falar de qualquer época histórica – esclarece isso muito bem. A preocupação como essa modulação de relação geral com o outro já perfaz um viés (ideológico) que não se adequa à realidade – muito menos, em especial, na época histórica de nosso filósofo. Isso ressoa como um contrassenso às teses modernas acerca da natureza humana, embora acabe por apontar para uma direção similar quanto ao trato com o outro.
Apropriando-nos de Heidegger, porém, discordando dele, a relação de alteridade é muito antes perpassada por tonalidades afetivas que não são necessariamente essa ou aquela (a preocupação e a tolerância11, por exemplo), uma vez que será a situação de abertura efetivada que esclarecerá o afeto no qual se lida com o outro. Não há um comportamento previamente subjacente à relação com os outros. O fracasso das democracias atuais expressa, assim nos parece, muito essa perspectiva. O que paira são afecções que podem vir a ser, ao contrário do que aponta Heidegger, extremamente perversas, mesquinhas, egoístas. Nosso pensador não se expressa nem mesmo sobre tonalidades afetivas “boas”, já que é evidente que elas são destituídas de balizadores éticos. Entretanto, algumas são fundamentais por retirar o ser-aí do seio de sua cotidianidade. O problema, entretanto, é que há afinações depreciativas e negativas, objetificantes, pobres e redutoras, que transformam os outros em joguetes, peões no tabuleiro do poder.
Aponta-se aqui para um problema quanto à consideração heideggeriana do originário elemento estrutural ser-com pelo fato de o pensador não buscar esclarecer sobre “o outro” até suas últimas consequências. Certamente isso não faz dele um pensador menor, e, igualmente, não nos parece nem um pouco plausível algumas críticas que meramente o rebaixam por não comentar explicitamente acerca de ética ou da alteridade. Nenhum pensador é obrigado a isso. Claro que tal fato traz em seu bojo os problemas políticos nos quais o filósofo se envolveu nos anos de 1933 em diante. Não obstante, aqui não é lugar para a discussão dessa problemática. Ainda assim, parece-nos claudicante o exame feito por nosso autor.
Não nos soa razoável entender que o ser se desvela e as relações se dão tão gratuitamente ao ponto de desconsiderar toda e qualquer condição prévia de mundo político e orgânico do homem. Por mais que se possa afirmar que o ser-aí pertença ao mundo que é o seu, isso, assim nos parece, só nos confirma, com outras palavras, a irreversível questão de que não se pode desconsiderar traços como os apontados. Ora, o ser se desvelará para um indivíduo extremamente cansado por meio de aberturas que não são habituais. Afirmar que isso é apenas derivado do mundo nos parece um exagero, visto que não nos soa possível desconsiderar o corpo biológico que se insere nesse fenômeno de abertura. Do mesmo modo isso ocorre com os outros.
Embora Heidegger afirme em Ser e Tempo que o ser-no-mundo é o seu mundo, afirmação essa que não tem nada de subjetivismo, este problema não abarca questões que transcendam, como já apontado neste trabalho, este ser-aí. Portanto, a crítica aqui empreendida é, em especial, à expressão “o ser-aí pertence ao mundo que é o seu”, como se esta afirmação abarcasse todas as diferenças e particularidades que podem vir a aparecer na cotidianidade. Pelo exposto, é necessário que se pense em duas consequências: por um lado, Heidegger está mesmo preocupado em tratar o ser-com como estrutura ontológica e por isso não se vê obrigado em cuidar do que seriam casos particulares de realização do ser-aí. Por outro lado, a particularidade é elemento imprescindível no acontecimento concreto do ser-aí. Eis um impasse talvez insolúvel à discussão proposta.
Atualmente se vive inserido em uma miríade de preconceitos os mais diversos. Seria o preconceito uma tonalidade afetiva? O preconceito seria uma tonalidade afetiva às avessas: enquanto as mais acentuadas (as ditas fundamentais) singularizam o ser-aí, há outra (de)gradação que faz parte de sua fauna: aquelas que intensificam o plano ôntico12 (ontisch) quanto à modulação de comportamentos comuns que visam à destruição da condição base para a lida com o outro, a saber, a preocupação. Chamaremos de ódio essa tonalidade afetiva aviltante13.
Usando alguns acenos que o próprio Heidegger nos oferece, o que seria uma tonalidade afetiva aviltante? É uma afinação desarmoniosa que produz uma espacialização na qual desonera o ser-aí de sua preocupação, bem como de suas visões-guia. Ora, a relação com os outros de antemão não causa surpresa ou estranhamento, uma vez que paira uma completa indiferença e distanciamento que tutelam a cotidianidade. Isso não deixa de ser uma modalidade de afecção embora Heidegger nunca tenha dado atenção à mesma. O ser-aí, além de não se apresentar na maioria das vezes imbuído de sua singularidade, também não vê cotidianamente a autenticidade do outro. Nessa total impropriedade onde todos não possuem uma face autêntica e sempre se mostram familiares dissolvendo-se totalmente no modo de ser “dos outros”, o ser-aí passa a ser dirigido pelo impessoal.
O impessoal14 é o modo de ser do ser-aí na cotidianidade que possui seus jeitos próprios de se realizar, como a exemplo da medianidade. No § 9 de Ser e Tempo Heidegger enfatizou:
Esta indiferença cotidiana do ser-aí não é um ‘nada negativo’, mas um caráter fenomenalmente positivo desse ente. É a partir desse modo de ser e com vistas a este modo de ser que todo e qualquer existir é assim como é. Denominamos essa indiferença cotidiana de medianidade ( HEIDEGGER, 2008c, p. 184).
À medida que a medianidade controla todo comportamento cotidiano impessoal, ela também nivela as compreensões que despontam. Os segredos perdem sua força da noite para o dia, visto que passam a ser emparelhados e medianizados, o que imediatamente comunica o horizonte hermenêutico fático comum ao qual se está. Isso é o que Heidegger chamou de público (Öffentlichkeit), o que interpreta inautenticamente o mundo compartilhado de maneira rasa e sem penetração, traço decisivamente oriundo da decadência: o público obscurece a autenticidade e escapa quando o ser-aí procura tomar uma decisão, esvaziando a necessidade de decidir por, e especialmente de se responsabilizar por alguma coisa. Não há responsabilidade no público. “Quem” é o ser-aí na cotidianidade, torna-se ninguém, já que se comporta como qualquer um impessoalmente. “Todo mundo é outro, e ninguém é si mesmo. O impessoal, que responde à pergunta quem do ser-aí cotidiano, é ninguém, a quem o ser-aí já se entregou na convivência de um com o outro” (HEIDEGGER, 2008c, p. 185). Não há mundo, e todas as suas referências, sem a impessoalidade do público.
A tonalidade afetiva como pressuposto para o ser-com
Pela estrutura ser-com o ser-aí está entregue à convivência com os outros. Para caracterizar o espaço da convivência e o fundo pelo qual esse espaço emerge, Heidegger dá o seguinte exemplo no § 17 de Os conceitos fundamentais da metafísica, preleção que data de 1929:
Uma tristeza se abate sobre um homem com o qual convivemos. Será que tudo se dá apenas de um modo tal que este homem possui um estado relativo a uma vivência? Afora isso, tudo permanece como antes? Ou o que acontece aqui? O homem que se tornou triste se fecha, se torna inacessível, sem com isso ser rude para conosco. Somente isso se dá: ele se torna inacessível. Não obstante, estamos junto dele como antes. Talvez passemos mesmo a encontrá-lo ainda mais frequentemente e venhamos mais ao seu encontro; ele também não altera nada em seu comportamento com as coisas e conosco. Tudo está como antes e, porém, tudo está diverso. Não somente sob este e aquele aspecto, mas, sem prejuízo do caráter próprio ao que fazemos e no que nos inserimos, o como, no qual estamos, é diverso. Isto, contudo, não é uma manifestação que surge enquanto consequência da tonalidade afetiva nele presente, enquanto consequência da tristeza. Ao contrário, este comocom-pertence ao seu estar-triste ( HEIDEGGER, 2006, pp. 79-80).
O homem está afinado, porém, inacessível. O modo no qual ele se encontra é distinto do qual o narrador/observador está. Triste é como ele está; portanto, uma tonalidade afetiva arrasta o narrador/observador para dentro desta afinação na qual o entristecido está, sem que, necessariamente, o narrador estivesse entristecido anteriormente. A convivência a partir desse instalar da tristeza passa a ser orientada pela nova tonalidade afetiva que despertou. Com isso, percebe-se que a tonalidade afetiva não está dentro da alma de um sujeito, visto que se assim fosse ela não poderia de maneira alguma criar uma nova atmosfera no espaço fático da convivência, sem ao menos que qualquer um dos indivíduos pronuncie uma única palavra. A tonalidade afetiva está a cavaleiro da totalidade dos entes, não sendo, por outro lado, externa ao homem. Ela não é um ente ao qual se pergunta onde está, se aqui ou ali, mas é o como que efetiva a instauração de um clima que harmoniza e ritma a convivência. É, destarte, o pressuposto e o mecanismo pelo qual se está disposto no mundo.
Estar feliz ou triste não se enquadra em nenhuma vivência anímica. Na medida em que as tonalidades afetivas recriam constantemente os horizontes de mundo possíveis nos quais a convivência se realiza, elas passam a afinar os seres-aí em jogo para jeitos por elas descerrados. Não se trata de ânimo, ou de quaisquer perspectivas ônticas. “As tonalidades afetivas não são manifestações paralelas, mas, justamente o que determina desde o princípio a convivência” (HEIDEGGER, 2006, p. 80), afirma o filósofo em Os conceitos fundamentais da metafísica. Elas não se instauram quando um ânimo, primeiramente, se dá e contagia a todos, porém, são elas que conectam os seres-aí para que possam ser com os outros. Se cotidianamente as tonalidades afetivas instalam a dinâmica própria da convivência, fica patente que a estrutura ser-com, no viés da convivência, se faz possível a partir de suas articulações particulares. E isso para que se dê a preocupação com o outro por meio de uma abertura que é sustentada pela disposição, compreensão e discurso, abertura essa que ininterruptamente já teve que se fazer presente.
É de especial necessidade caracterizar que a convivência, oriunda da estrutura ser-com, é primeiramente determinada pela tonalidade afetiva. Acompanhou-se anteriormente que o ser-com transcende a relação traçada pela convivência com o outro. Este outro se faz presente no interior da mundanidade do mundo pelo ser-com por meios variados, valendo-se aqui de exemplos, como já apontados, dos mais triviais: digito em um computador que foi produzido por alguém. Tomo um café cujos grãos vieram de outro estado. À minha frente há uma escultura de um dragão talhado em madeira que veio importado de Bali, cujo escultor é desconhecido, bem como o transportador. É evidente que há uma relação com esses mesmos objetos que é orientada por tonalidades afetivas determinantes – a alegria de ter um computador tão rápido; o prazer de degustar tão saboroso café; a admiração em contemplar a beleza que as escamas do dragão foram talhadas, com grande maestria, na madeira. O ser-com é uma forma básica e estrutural de ser-no-mundo, cujo fundamento é a própria existência. A tonalidade afetiva entra em jogo na articulação própria que o ser-com vem a ganhar cotidianamente, não sendo, por conseguinte, mais originária que essa estrutura determinante (o ser-com), porém, este possui inequivocamente um grande débito em relação a elas.
Como exposto, a consideração e a tolerância, como visões-guia da preocupação ou solicitude, são determinações estruturais que dimensionam a apreensão do outro, não sendo diretamente afinações. Não obstante, essas visões de conjunto, assim que manifestam a totalidade do ente na relação com o outro, passam a ser dirigidas por jeitos que possibilitam a convivência e o acesso à totalidade. O ser-com só tem espaço no desenrolar das tonalidades afetivas. Não há nenhuma intersubjetividade no interior do pensamento de Heidegger, porém, a instalação de um clima que permeará a totalidade, envolvendo e ritmando-a na confluência de um jeito no qual se está. Ora, o ser-aí está sempre afinado com o horizonte fático aberto, isto é, afinado com o mundo, continuamente absorvido pela facticidade, e não meramente em uma relação teórica com o mesmo.
A alegria e a tristeza são tonalidades afetivas que vêm à tona quando se está no modo da preocupação, que pode ser autêntica ou inautêntica. A preocupação inautêntica é aquela que na maioria das vezes reina no mundo, uma vez que absorve o cuidado em relação ao outro destituindo-o de um olhar mais zeloso. A preocupação autêntica, por sua vez, é a que liberta, salta à frente do outro com o olhar próprio da consideração e da tolerância. A preocupação possui uma íntima relação com a tonalidade afetiva, uma vez que aquela é um jeito de ser elementar que orienta todo o trato com os outros, enquanto essa reside na base dos descerramentos da possibilidade de efetivamente lidar com o mesmo15. Ora, sem a afecção proporcionada pela tonalidade afetiva, não há o ser-no-mundo e, por conseguinte, o ser-com o outro.
A tonalidade afetiva, por meio do existencial da disposição16 (Befintlichkeit), possibilita que o ser-aí seja remetido ao mundo que é o seu. Este mundo, melhor, o modo de ser-no-mundo tem sua dinâmica radicada no ser-junto às coisas, no ser-com os outros e no ser-em virtude de si mesmo. Sendo assim, é determinante afirmar que a tonalidade afetiva é um pressuposto para o existencial ser-com. Isso nos possibilita concluir que o ser-aí só se compreende a si a partir da compreensão do outro, e compreende o outro mediante a compreensão de si visto que é imbuído e transpassado por afetos. Esta compreensão do ser-no-mundo é circular, já que sua forma de compreensão ininterruptamente se dá mediante outras estruturas que lhe são basilares. A disposição, por exemplo, está na origem de toda tonalidade afetiva, e esta é a maneira pela qual se compreende a disposição, e a preocupação/solicitude é a forma como ontologicamente se reconhece o ser-com.
Conclusão
Não há nenhum outro (e nem convivência) fora de uma atmosfera instalada por uma tonalidade afetiva. Todos os comportamentos do ser-aí só podem se realizar na medida em que uma tonalidade afetiva esteja instalada em seu poder-ser, transpassando o ser do ser-aí e afinando-o para o clima aberto. É por isso que o entristecido, ou mesmo o alegre, o apaixonado, o irado, dentre qualquer outro ser-aí tomado dessa ou daquela maneira por uma afecção, envolve o ambiente e arrasta muitas vezes nosso ser-aí para afinar com o modo de ser/estar que é o dele. Ou mesmo em outra possibilidade; considerando a mesma situação, o ser-aí não é afinado pela tonalidade afetiva que perpassa o outro, porém, se mantém desafinadamente em relação a ele. Isso não significa que este ser-aí não esteja já afinado em outra tonalidade afetiva, uma vez que esta é, anterior até mesmo à convivência, o jeito em que se está.
Tornou-se evidente que as tonalidades afetivas não são algo que estão apenas presentes como um dado, mas que elas mesmas são justamente um modo e um jeito fundamental de ser – em verdade, um modo e um jeito fundamental do ser-aí, o que sempre diz ao mesmo tempo da convivência ( HEIDEGGER, 2006, p. 81).
Deve-se apreender que Heidegger coloca no mesmo nível ser-aí e estar na convivência dos outros. Isto porque esse ente é um ser-no-mundo. Afinado por uma tonalidade afetiva que nos conecta aos outros, passa-se, mediante a impessoalidade mediana, a não se diferenciar deles. Pela preponderância do impessoal, que se desenvolve por tonalidades afetivas comuns, iguala-se, ao gosto do público, aos seres-aí medianos e nivelados. Com essa afirmação não se tem em vista quaisquer imperativos éticos, salientando que a mediania e o nivelamento são formas positivas de ser e estar na cotidianidade do mundo. O ser-com delimitado pela preocupação, cujas formas balizadoras são a consideração e a tolerância, são jeitos de ser e não padrões modais que categorizam o ente em questão, sendo por isso mesmo que a tonalidade afetiva “afina e determina o modo e o como de seu ser” (HEIDEGGER, 2006, p. 81), já que o ser-aí está sucessivamente afinado a partir de seu fundamento – finitude.
A alegria e a tristeza são dois exemplos de tonalidades afetivas que mais acossam o ser-aí em sua lida com o outro. Isso porque se percebe em maior quantidade aquelas que são mais comuns, que tomam o ser-aí de forma mais corriqueira. A tonalidade afetiva acena constantemente para a essência desse ente; aponta para o fundamento do ser-aí, para sua própria existência finita. É justo a partir dessa finitude que a tonalidade afetiva emerge, já que esse ente jamais pode estar em uma total determinação, uma vez que não é inteiramente ôntico, assim como não pode ser totalmente ontológico. Por isso possui o primado ôntico-ontológico.
Escreveu-se acima duas frases que em muito se aproximam, e que por isso mesmo geram um problema intrincado. Foi afirmado que o ser-aí está tomado pelo seu mundo. Igualmente, asseverou-se que o ser-aí está tomado pela tonalidade afetiva. Isso significa concluir que mundo e tonalidade afetiva são o mesmo? Ou de maneira diversa, a tonalidade afetiva é aquilo que dá voz ao mundo?
Pelo exposto até aqui, é evidente que as tonalidades afetivas não são mundo. Elas são jeitos nos quais se está disposto no interior da malha semântica sedimentada em que se está jogado, afinando o ente que tem em jogo seu próprio ser com o mundo que é o seu. Isto diz respeito uma vez mais ao significado próprio da palavra Stimmung. Esse termo vem de Stimme, “voz”, “voto”, vocábulo que também gerou stimmen, que significa “deixar ouvir a voz de alguém”, “tornar harmônico, idêntico”. Esse termo se conecta com bestimmen, “determinar”, “destinar”. Stimmungé uma palavra usada quando se precisa afinar um instrumento musical, como já escrito no começo desse trabalho. O particípio passado gestimmt expressa algo “de acordo, em um certo humor”, palavra que deu origem a Gestimmtheit . Gestimmesein, concordância, ter e estar em um humor, estar em sintonia.
Enquanto uma forma de afinação para o mundo, a tonalidade afetiva harmoniza esse espaço fático de realização do ser-aí em suas performances existenciais mais elementares. Ser “tomado pelo mundo” é o mesmo que “ser tomado pela tonalidade afetiva”, ainda que esses conceitos não imprimam a mesma experiência. Referem-se antes aos jeitos em que o ser-aí está ritmado, compassado, harmonizado, sintonizado, e isso sempre junto, com e em função do horizonte fático determinado que perpassa seus limites e possibilidades. Isso, consequentemente, tece o destino mesmo do ser-aí, que nada tem a ver com fatalismo, sorte, fortuna, porém, traduz a experiência histórica que o constitui em suas perdas e conquistas de si, a dimensão fática de jogado, destinado à possibilidade de vir a ser o ente que é.
Por isso não podem ter quaisquer relações com estados psíquicos ou de alma, não apontam para particularidades subjetivas, ainda que sejam formas ônticas pelas quais a disposição de imediato se mostra, são também jeitos ontológicos de delimitação do caráter finito que primeiramente atravessa o ser-aí, deixando que sobrevenha ao ente em questão suas possibilidades de vir a ser.
Encontrar-se jogado em um horizonte fático é estar afinado existencialmente, sendo, por outro lado, a mesma forma que afina o ser-aí para o mundo, a mesma dimensão que mais absolutamente o absorve nas malhas semânticas dessa mesma facticidade, na qual a experiência da singularidade será justamente oriunda da possibilidade de transcender essa mesma absorção, já que o ser-aí jamais se mostrará totalmente absorvido em seu mundo fático.
O ser-aí é transpassado, tomando em uma tonalidade afetiva que afina e determina o jeito de ser que é o seu, efetuando sua possibilidade mesma de concretização que pode passar a se orientar pela dinâmica da singularização. Elas consistem na afecção que tudo atravessa e envolve, vindo, em simultâneo, sobre nós e as coisas.
Referências
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Notas
Autor notes