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Recepção: 15 Julho 2020
Aprovação: 05 Outubro 2020
DOI: https://doi.org//10.31977/grirfi.v20i3.1975
Resumo: Este artigo tem por objetivo geral investigar, numa perspectiva foucaultiana, as relações entre governo e subjetividade, através das artes de governar e a constituição do Estado moderno. Nessa tarefa, consideramos os cursos ministrados por Foucault, Segurança, Território, População e O nascimento da biopolítica, para tratar da presença do poder pastoral na constituição da governamentalidade. O objetivo específico é investigar outras possibilidades de organização social, associados a princípios democráticos, como solidariedade e autogestão em oposição aos efeitos gerados pelo neoliberalismo, com a generalização dos valores mercadológicos nas condutas individuais e coletivas. Em nossa hipótese, consideramos a perspectiva anarquista como o contraponto vital na produção de outras formas de vida social e política, para além dos princípios exclusivamente econômicos. Neste ponto, apresentamos conceitos básicos dos valores anarquistas, como a ideia autogestão, apoio mútuo, a ideia de liberdade, encontrados em Bakunin, Kropotkin e Goldman, e a possibilidade de um pensamento sobre resistências e práticas no presente conforme as reflexões de Rago. Passamos também por uma crítica ao modelo de organização social e à própria ideia de democracia, a partir dos apontamentos de Graeber em Um projeto de democracia. Por fim, nosso esforço visa refletir sobre as possibilidades de um mundo outro, a partir de uma perspectiva que se apresenta radicalmente oposta às práticas políticas e sociais que encontramos hoje. Pretendemos, portanto, pensar no tempo presente e na possibilidade de novas formas de existência.
Palavras-chave: Foucault, Neoliberalismo, Subjetividade, Anarquismo.
Abstract: The general objective of this article is to investigate, in Foucault's perspective, the relations between government and subjectivity, through the arts of government and the constitution of the modern state. In this task, we consider the courses given by Foucault, Security, Territory, Population and The birth of biopolitics, to deal with the presence of pastoral power in the constitution of governmentality. The specific objective is to research other possibilities of social organization, associated with democratic principles, such as solidarity and self-management in opposition to the effects generated by neoliberalism, with a generalization of market values in individual and collective practices. In our hypothesis, we consider an anarchist perspective as the vital counterpoint in the production of other forms of social and political life, beyond exclusively economic principles. At this point, we present the basic concepts of anarchist values, such as an idea of self-management, mutual support, an idea of freedom, found in Bakunin, Kropotkin and Goldman, and a possibility of thinking about resistances and practices in the present, as reflected by Rago. We also went through a critique of the model of social organization and the very idea of democracy, based on Graeber's indicators in A project of democracy. Finally, our effort aim to reflect on the possibilities of another world, from a perspective that is radically opposed to the political and social practices that are found nowadays. We intend, therefore, to think about the present time and the possibility of new forms of existence.
Keywords: Foucault, Neoliberalism, Subjectivity, Anarchism.
Considerações iniciais
A eclosão da pandemia provocada pelo COVID-19 e o tipo de resposta dada pelos governos revelam os limites e a falência de determinado modelo político. A pressão econômica pelo regresso das atividades comerciais, pela abertura de templos religiosos e pelo retorno à normalidade das atividades cotidianas, em oposição às diretrizes científicas, evidenciam os efeitos fatais da submissão da vida à lógica de mercado. Portanto, cumpre a reflexão e a construção de outras formas de governo e de vida em sociedade.
Refletir sobre mundos possíveis é um desafio que exige um esforço duplo: tanto o olhar crítico para nosso presente catastrófico quanto a renúncia a seus valores e formas de viver. Sem isso, dificilmente serão criadas condições de ruptura com as forças que ordenam o mundo e que configuram nossas existências. E assim correremos o risco de tornar as novas possibilidades futuras uma mera repetição do presente.
Considerando as sociedades e a vida cotidiana nos dias de hoje, ambas são orientadas pela economia, de modo que cada pessoa deve orientar sua conduta como um empresário de si. Nessa lógica as subjetividades são alinhadas ao mercado, para que cada decisão pessoal seja colocada sob o prisma dos riscos financeiros, da empregabilidade e da renda. Aqui dispositivos e técnicas de governo das condutas romantizam e recompensam esforços desmedidos, sacrifícios desumanos e dedicação integral ao trabalho, capturando o desejo pela felicidade e atrelando a mesma ao sucesso profissional. Assim, vida pessoal e trabalho se tornam indissociáveis.
Além disso, nas sociedades neoliberais os serviços públicos são gradativamente privatizados enquanto direitos e proteções sociais são dilapidadas. Tais mudanças são parte estratégica da racionalidade neoliberal3. em moldar o mundo e a vida conforme os riscos do mercado. Nesse processo, direitos se tornam bens de consumo, como saúde e educação, cuja responsabilidade é transferida do Estado para os indivíduos, que, para garanti-los, recorrem a empréstimos e caem num ciclo de dívidas. Um exemplo é o caso das universidades norte- americanas4..
Com a perda de direitos trabalhistas, a ameaça constante de crise econômica e a precarização das condições de trabalho, o endividamento compulsório de grandes parcelas da população é inevitável. Desse modo, o conjunto de dispositivos e técnicas empregados pela razão neoliberal tornam vidas precárias.
Portanto, refletir sobre mundos possíveis implica colocar o nosso presente em perspectiva. Se desejamos desatar o nó que enreda nossas existências à economia e criar novas formas de viver, o fim da domesticação e flexibilização de nossos corpos, o modelo de sociedade vigente precisa ser superado. Como aponta Margareth Rago, é urgente “inventar outros espaços, criar subjetividades libertárias”. Nessa tarefa, devemos compreender as origens da forma de governo em vigor e seu modo de funcionamento para, a partir daí, agir na construção do mundo porvir.
Poder pastoral e o governo das condutas
Em Segurança, território, população, Foucault iniciou suas investigações sobre a noção de governo e a regulação do corpo social em sua dimensão vital. Os indivíduos deixaram de ser considerados apenas como sujeitos de direitos e a população passou a ser concebida como massa de trabalhadores. Então, a partir de um poder biológico e político, as práticas de governo e a produção de saberes incidiram sobre a vida, visando o incremento de sua longevidade produtiva. Para o autor, compreender o exercício dessa biopolítica5. e seus desdobramentos contemporâneos remete ao liberalismo e sua versão atual, o neoliberalismo.
Ao tratar do governo, Foucault analisou seus mecanismos de poder, as estratégias políticas utilizadas na direção das condutas, individual e coletiva, a emergência da razão de Estado e o saber político que surgiu com a introdução da noção de "população" na administração governamental. Suas reflexões deram ênfase aos dispositivos, técnicas e saberes na regulação da população. Seu objetivo consistia em questionar as tecnologias e os tipos de conhecimentos que possibilitaram o governo dos indivíduos, questão fundamental para a transformação política de nossa atualidade6..
O autor empregou o conceito de governamentalidade na reestruturação e ampliação de sua analítica do poder e em suas investigações sobre os processos de sujeição, que transformam indivíduos em sujeitos. Para Lemke, essa formulação “implica em práticas de governo sistemáticas e reguladas, e também aponta para elementos de cálculo ou para um saber racional das entidades a serem governadas” (2017, p.25). No curso ministrado entre 1977 e 1978, Foucault adotou a noção ao tratar do exercício do poder sobre o contingente populacional através de práticas, investigações e estratégias institucionais, como os dispositivos de segurança e a economia política.
Considerando a polissemia da noção de governo, o filósofo francês apurou suas definições em perspectiva histórica e destacou que a conotação política, em sentido institucional, teria surgido entre os séculos XVI e XVII. Anteriormente, entre os séculos XIII e XV, a palavra ‘governar’ possuía ampla variação semântica, com definições em sentido material, espacial, físico e moral. Assim, foi aplicada a tarefas relacionadas à garantia da subsistência, ao sustento, dirigir ou percorrer determinada estrada e até mesmo moral, ao impor uma conduta a alguém e relações de obediência e comando.
Apesar da vasta abrangência de significados, Foucault chama nossa atenção para o seguinte: “nunca se governa um Estado, nunca se governa um território, nunca se governa uma estrutura política. Quem é governado são sempre pessoas, são homens, são indivíduos ou coletividades” (FOUCAULT, 2008c, p.164). Essa compreensão de governo dos homens remontaria ao Oriente, com a direção das consciências e o poder pastoral, que “se encarrega da alma dos indivíduos na medida em que a condução das almas também implica uma intervenção, e uma intervenção permanente na condução cotidiana, na gestão das vidas, mas também dos bens, nas riquezas, nas coisas” (FOUCAULT, 2008c, p.204). Isto é, sua função era a direção das almas, na medida em que incidiria sobre as consciências, guiando as condutas e seu cotidiano. Por ser um poder individualizante, esteve muito mais atrelado aos indivíduos e à população do que a um território propriamente dito, na medida em que visava tanto a salvação e a segurança individual e coletiva.
O poder pastoral foi inserido no Ocidente através do cristianismo, que estabeleceu o governo das almas como condição para a salvação. Por conseguinte, o pastorado cristão sistematizou o exercício do poder quando agregou grupos de pessoas em torno de um interesse em comum, a religião, e edificou uma instituição, a Igreja7.. Segundo Foucault, “o pastorado cristão vai instaurar um tipo de relação de obediência individual, exaustiva, total e permanente” (2008c, p.242). A garantia dessa submissão integral passa por uma técnica introduzida pelo cristianismo: a conversão da verdade em verdade interior, secreta e da alma. Esta seria avaliada e orientada através do exame permanente da consciência, passível de ser inserida numa economia de méritos e deméritos. Dessa forma o poder pastoral almejou assegurar a obediência pura.
Para Foucault, o processo de constituição do sujeito realizada pelo poder pastoral é fundamental. Ao instituir avaliações incessantes sobre méritos e deméritos, afirma o dever da obrigação constante. Ao instaurar uma rede de servidão geral, exige devoção e obediência ininterrupta à de cada cristão à comunidade cristã. Ao exigir a produção de uma verdade interior e oculta, constitui uma individualização que não é fruto de uma verdade adquirida e sim confeccionada e descoberta. Tais características fazem do pastorado o limiar da governamentalidade8..
Outro aspecto essencial do poder pastoral é sua distinção do poder político, o que não exclui relações e interferências entre ambos. E justamente o fim dessa diferenciação e a convergência entre essas duas formas de poder demarcam o término da era do poder pastoral, apesar da sobrevivência de sua tipologia, procedimentos e organização.
A crise do pastorado começou entre o fim do século XV e início do XVI, com a transição do governo das almas ao governo político das populações e com as revoltas pastorais. Foucault escreve: “eu queria observar simplesmente que essa passagem da pastoral das almas ao governo político dos homens deve ser situada nesse grande clima geral de resistências, revoltas, insurreições de conduta” (2008c, p.306). O efeito principal foi a emergência de novas fundações políticas que viabilizaram novas relações socioeconômicas, pois tais revoltas giraram em torno de alternativas sobre formas de governar e ser governado e a manutenção da obediência. A questão era saber o tipo de racionalidade que deveria orientar o governo. Assim as artes de governar sofreram profundas transformações na configuração de uma racionalidade de governo que não seria oriunda do pastorado ou da soberania, e sim do Estado.
Aqui o Estado é considerado a base para o exercício governamental, na medida em que “não é somente uma estrutura material e um modo de pensar, mas também uma experiência vivida e corporificada, um modo de existência” (LEMKE, 2017, p.40). Composto por saberes políticos com valor de verdade, normatiza, padroniza e molda subjetividades ao produzir uma realidade a ser governada e formas de viver que moldam comportamentos. Seu funcionamento opera através de relações estratégias de poder e na fabricação de um ecossistema de produção e circulação, individual e coletiva, em conformidade a seus propósitos.
Nas palavras de Foucault: “governar segundo o princípio da razão de Estado é fazer que o Estado possa se tornar sólido e permanente, que possa se tornar rico, que possa se tornar forte diante de tudo o que pode destruí-lo” (2008b, p.06). Assim, o objeto dessa razão de Estado é sua força e seu objetivo é a manutenção de determinada dinâmica das forças internas e externas.
Nessa tarefa, dois conjuntos tecnológicos foram constituídos: a polícia e a diplomacia militar. Para Foucault, o primeiro seria "o meio necessário para desenvolver o poder nacional a partir de dentro" e o segundo tencionar "garantir e desenvolver o poder nacional através do sistema de alianças e da organização de instituições armadas" (1997, p. 42). O nexo entre ambas seria o crescimento da população, por seu duplo efeito: garante o desenvolvimento econômico, pois amplia a circulação monetária e o comércio através da produção e exportação de bens e assegura o recrutamento contínuo para as forças armadas.
Ao tratar das forças internas visando o aumento de suas forças, o Estado produziu uma série de cálculos, intervenções e regulações na convivência individual e coletiva9.. A vida, a felicidade e a manutenção de determinada forma de coexistência se tornou uma preocupação da razão de Estado. A polícia é concebida por Foucault, entre os séculos XVI e XVII, como uma instituição de mercado, visto que incide sobre o meio urbano, na garantia do comércio, da circulação de mercadoria, de pessoas das relações de troca, compra e venda. No século seguinte o papel da polícia muda e sua função adquire uma função repressiva na manutenção da ordem econômica.
Segundo o autor, “a introdução da economia no seio do exercício político, é isso, a meu ver, que será a meta essencial do governo” (2008c, p.126). E o início do século XVIII marca essa mudança na razão de Estado em relação às suas forças internas, a partir de uma nova arte de governar que emerge a partir do pensamento dos economistas: o liberalismo. E o aparecimento da racionalidade econômica conferiu novas formas e conteúdos à razão de Estado.
Em primeiro lugar, a naturalidade social, isto é, as relações humanas espontaneamente fomentariam, através de trocas, convivência, trabalho, o surgimento da sociedade civil enquanto domínio de saber e intervenção da economia. Em segundo lugar o conhecimento indispensável para o êxito de um governo, a economia. Terceiro ponto, nas palavras do autor, “a população vai aparecer como uma realidade” (FOUCAULT, 2008c, p. 472). Constituída por características relativas (como variações nos preços, oportunidades de trabalho, valor dos salários) e específicas (mudanças, deslocamento, aumento, diminuição, espontaneidade e interesses), a população será concebida em sua naturalidade. O que implica um governo que não submeta indivíduos a uma determinada regulamentação e sim a uma realidade. Por fim, a inscrição da população e da economia aos processos naturais inviabiliza quaisquer tentativas de intervenções ou sistemas regulatórios. Implica na modificação do papel do Estado10, cujo exercício deve respeitar tais processos e não impedi-los, as ações estatais deixam de ser regulatórias e passam a ser da esfera da gestão, na manutenção e bom funcionamento desses processos naturais através de mecanismos de segurança.
O governo das populações implicaria manipulações estratégicas dos elementos naturais que modulariam seu comportamento, como hábitos religiosos, cultura, recursos naturais, comércio, alimentação, trabalho. Seu intuito seria o estabelecimento de “uma demarcação de fato, uma demarcação geral, uma demarcação racional entre o que é para fazer e o que não é para fazer” (2008b, p.17). Portanto, o governo passaria então a ser exercido através da fabricação de formas de viver, pelo fornecimento dos instrumentos essenciais para a satisfação dos interesses pessoais e pelas técnicas aplicadas na sincronização entre comportamentos individuais e o comportamento do corpo social11.
Governar não exigira força, domínio e controle direto, pois a gênese do Estado e suas técnicas de subjetivação constituiriam uma engrenagem única, herdeira do poder pastoral12. Este, por sua vez, “se espalhou e se multiplicou para além da instituição da Igreja católica nos séculos XVI e XVII. Em uma forma secularizada, ele foi de importância histórica decisiva para a formação do Estado moderno” (LEMKE, 2017, p.18). A transição da pastoral à razão de Estado ocorreu através da passagem do governo das almas ao governo político da humanidade enquanto espécie. Esse processo exigiu a produção de saberes políticos racionais, que refletissem sobre as circunstâncias, objetos e finalidades do ato de governar13.
O resultado foi a elaboração de tecnologias e procedimentos na condução das condutas, dos indivíduos e da população, a partir de uma perspectiva econômica, visto que, nesse contexto, governar é “a arte de exercer o poder na forma e segundo o modelo da economia” (2008c, p.127). A economia política surge então como um saber específico para o cálculo governamental sobre o nexo entre população, riqueza e território.
Foucault situa o liberalismo como uma arte de governar que inicia a biopolítica14, tema do curso seguinte, dando seguimento às suas análises sobre governamentalidade.
A partir desse conceito o autor concebe o liberalismo como um “princípio e método de racionalização do exercício do governo – racionalização que obedece, e aí se encontra sua especificidade, à regra interna da economia máxima” (FOUCAULT, 2008b, p. 323). Extrapolando um entendimento meramente relacionado à teoria econômica ou política, o liberalismo seria uma arte de governar, com práticas, saberes, poderes e uma tarefa específica: a imposição de limitações às ações do Estado a partir do mercado como lugar de veridicção15.
O mercado, entendido numa perspectiva natural e espontânea, se torna o critério na avaliação de um governo, prescrevendo a implementação ou não de determinadas ações. Não se trata mais, como na razão de Estado, de instaurar mecanismos que maximizem a força estatal e sim reduzir o alcance e o exercício de seu poder. No entanto, isso não significa um aumento da liberdade.
Apesar de ser o fundamento do governo liberal, a liberdade não seria um dado natural e universal, mas estaria circunscrita numa dinâmica de convivência social. Conforme o autor: “a liberdade nunca é mais que – e já é muito – uma relação atual entre governantes e governados” (FOUCAULT, 2008b, p.86). Desse modo, as práticas governamentais do liberalismo não se restringem ao respeito, à garantia ou aprimoramento de formas de liberdade. Seu funcionamento está ancorado na produção e consumo das mesmas, isto é, na gestão dos meios necessários para a instauração e exercício da liberdade pelos indivíduos e também dos perigos que a coloque em risco.
No liberalismo, a liberdade não é ilimitada, ela é artificialmente fabricada e organizada, sendo um efeito das práticas governamentais. Ou seja, o indivíduo não tem a liberdade de contestar o poder, ele tem a liberdade de agir em conformidade ao que for estabelecido pelo governo. O liberalismo determina quais interesses individuais ou coletivos seriam afins ou avessos ao interesse geral e institui um jogo entre liberdade e segurança. Isso porque, ao exercer influência sobre os interesses, gerencia ameaças através de uma cultura do perigo. Desde campanhas sobre saúde, doença, higiene, passando pelo desemprego, pobreza, ao apelo jornalístico a crimes que poderiam pôr em risco indivíduos e ou famílias.
Escreve o autor: “por toda parte vocês veem esse incentivo ao medo do perigo que é de certo modo a condição, o correlato psicológico e cultural interno do liberalismo. Não há liberalismo sem cultura do perigo” (FOUCAULT, 2008b, p.91). Assim o governo liberal opera por meio da ameaça permanente às liberdades produzidas, o que exige a manutenção de mecanismos de segurança. Nesse contexto, o perigo e o medo são instrumentalizados e colocados numa perspectiva econômica de benefício ou prejuízo, o que produz um efeito direto nas subjetividades, nos comportamentos, nas relações sociais e nas decisões pessoais.
Essas questões foram analisadas pelo autor em seu curso ministrado entre 1978 e 1979. Os seminários de O nascimento da biopolítica abordam a arte liberal de governar e seus desdobramentos, o modelo alemão e o norte-americano, com o ordoliberalismo e o neoliberalismo, respectivamente. Em razão de nossos objetivos, este artigo trata apenas do segundo.
Para Foucault, a formação e desenvolvimento do neoliberalismo norte americano foi baseada na oposição a três fatores: o primeiro foi a política keynesiana do New Deal, que conteve a queda de preços de insumos agrícolas, assegurou a geração de empregos, o controle de preços, salário mínimo, seguro-desemprego e seguro-aposentadoria; o segundo foram os programas sociais associados aos pactos de guerra, isto é, convocavam a população para as demandas de guerra em troca da garantia de segurança em sentido amplo, desde a saúde à seguridade social; ambos geraram o terceiro, o aumento da administração federal para assegurar o funcionamento dos programas socioeconômicos.
Uma das metas do neoliberalismo é a transformação das sociedades em mercados e a submissão dos Estados aos princípios mercadológicos. Através de privatizações, desregulamentação industrial, desmonte de organizações trabalhistas e dissolução de bens públicos, transformam direitos sociais em bens de consumo. Os efeitos imediatos são o crescimento da exclusão social, da desigualdade e do endividamento.
Ao transferir a responsabilidade do governo para os indivíduos na garantia de proteções sociais e serviços públicos, produz um ambiente afeito aos riscos e à competitividade do mercado. Este é concebido como o motor dos processos de subjetivação, que regula os indivíduos, e como produtor desta realidade. Segundo Dardot e Laval:
Com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos [...] O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais [...] Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa. (DARDOT; LAVAL, 2017, p.16).
O trecho acima expressa a dimensão subjetiva do neoliberalismo, isto é, ele constitui uma visão de mundo, um modo de agir e pensar. Ao configurar um ecossistema movido por leis econômicas, exige um determinado comportamento individual. Ao considerar a economia uma ciência do comportamento humano, as pessoas seriam estimuladas a adotar determinada conduta econômica em vista alcançar determinados fins.
A teoria do capital humano é expressão máxima desse aspecto. Na perspectiva neoliberal, o objetivo do trabalho é a geração de renda, que seria produto de certo tipo de capital, o humano. Isto é, a soma de características físicas e psicológicas, aptidões e competências, que viabiliza a obtenção de uma renda por determinado indivíduo. Essas competências têm uma duração e são aplicadas por toda a vida até se tornarem obsoletas ou envelhecerem.
Portanto, o capital humano é algo que se deve aprimorar e investir na maximização de lucros e rendas. Nessa tarefa, as pessoas devem considerar suas próprias vidas um empreendimento permanente e contínuo. Em termos de governamentalidade, se trata da disseminação do modelo empresa por todo o corpo social na constituição de uma sociedade empresarial. Do ponto de vista político, as consequências são extremamente destrutivas, pois a generalização da concorrência, a acentuada pela precarização das condições de vida e trabalho e o endividamento crônico dificultam ações coletivas, inviabiliza a solidariedade e corrói a noção de cidadania.
Em suas estratégias, o neoliberalismo acentua a distorção sobre a liberdade. Em virtude da presença incessante dos riscos e ameaças, as condutas são estimuladas a uma ética empreendedora, mesclando arrojamento, prudência e responsabilidade individual. E são recompensadas socialmente com sucesso ou fracasso por sua capacidade de enfrentar racionalmente essas adversidades. Logo, ser livre significa possuir a liberdade de perseguir seus interesses privados, visando o aprimoramento de seu capital humano, sua competitividade no mercado e sua rentabilidade. O efeito dessa compreensão de liberdade é o esvaziamento de sua dimensão política relacionada à soberania popular e à esfera pública.
Após analisarmos as noções de governo, sua expressão liberal e neoliberal, suas origens e modo de funcionamento, passemos então às possibilidades de superação. Nosso intuito é contribuir no debate sobre possibilidades de superação do modelo de sociedade e de governo em vigor.
Ingovernáveis: subjetividades da revolta e autogestão
Para entender como opera a democracia liberal representativa, precisamos antes entender o papel do Estado. Dessa forma, uma crítica a esse modelo de governo, necessariamente recai sobre uma crítica ao próprio Estado.
A grande eficácia do Estado está no fato de que ele surge como um espaço, que não apenas possibilita relações de poder, mas as organiza, e legitima umas sobre as outras e, dessa forma, serve como uma espécie de referencial para a realidade. Em outras palavras, tudo é feito por meio do Estado, a tal ponto que nos impossibilita de pensarmos em qualquer relação ou organização fora ou independente dele. É por isso que a existência do Estado parece ser inegociável, porque sua intervenção é necessária para o controle das relações de poder que se estabelecem na sociedade e, portanto, para o controle dos próprios indivíduos.
Entretanto, é importante pensarmos no que Michel Foucault chamou de “governamentalização do Estado”.16 Isso quer dizer que, ao mesmo tempo em que nada parece poder existir para além do Estado, este só se sustenta pelas técnicas de governo que permitem a ação do Estado. Ou seja, o Estado aparece com uma função estratégica que será usada a qualquer momento em que se fizer necessário pelas táticas da governamentalidade. Dessa forma, o papel do Estado é servir como um espaço que permite trocas e conflitos (relações de poder), e também como um espaço de onde partem determinadas e pontuais técnicas governamentais, que vão intervir sobre os indivíduos e suas relações.
É a partir do entendimento desse jogo, de como operam essas relações de poder, que Foucault vai pensar numa possibilidade de ruptura, de tensionamento das brechas que nos permitem pensar num indivíduo capaz de escapar dessa intervenção, logo, dessa dominação do Estado sobre ele. Para isso, os próprios indivíduos implicados nesse jogo precisam ousar construir formas outras de se relacionar consigo e com os outros, relações essas que devem se tornar independentes e sólidas.
onde há poder há resistência, e no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. [...] Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder. Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande Recusa – alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. (FOUCAULT, 2015, p.104)
Dessa forma, podemos entender as relações de poder como um jogo e, se de um lado o Estado aplica determinadas tecnologias de controle sobre os indivíduos, impondo direitos, obrigações e verdades, é necessário por outro lado aplicar práticas outras, práticas que escapem, que se revoltem contra essa dominação, contra subjetividades específicas que são alimentadas nos e pelos sujeitos. Assim, se as relações de poder implicam em um jogo de forças, é justamente aí que reside a possibilidade de uma disputa, de um enfrentamento e da criação de algo novo.
Ainda em Foucault, a forma pelas quais determinadas forças se estabelecem, bem como a forma como as relações de poder são mediadas, são dadas a partir do governo. Ou seja, é a forma de governo que vai modular as relações de poder entre o Estado e a sociedade civil. Sobre os conceitos de governo e governamentalidade:
Primeiramente, o governo refere-se somente àquelas relações de poder que se apoiam em programas de saber calculados e racionais, e que são acompanhados de técnicas de direcionar e regular o comportamento. Logo, a governamentalidade implica em práticas de governo sistemáticas e reguladas, e também aponta para elementos de cálculo ou para um saber racional das entidades a serem governadas. Em segundo lugar, o governo não visa moldar diretamente as ações de atores individuais ou coletivos, mas sim uma determinação indireta e reflexiva das opções possíveis de ação (“conduta das condutas”) é o objeto do governo (LEMKE, 2017, p. 24 – 25).
É, portanto, a partir da governamentalidade, ou seja, das práticas de governo que partem hoje da lógica neoliberal, que essas forças fabricam determinados discursos que são introjetados nos indivíduos, a ponto dos sujeitos incorporarem uma subjetividade, um “modo de ser e de agir”. Assim, cria-se um modelo de homem, o homem econômico, o mais novo ideal de indivíduo, e esse ideal passa a ser o parâmetro, passa a ser desejado pelos indivíduos, sob o risco de, se não fazê-lo, ou seja, se recusarem esse modo de vida, serem excluídos, marginalizados ou criminalizados.
O homem econômico seria o homem da produção, aquele que opera a partir da lógica da concorrência. Esse modelo de homem surge no liberalismo, sendo entendido como o parceiro de trocas, aquele que vai garantir a concorrência como princípio regulador da sociedade. Mas, segundo Foucault, no neoliberalismo há um deslocamento deste homem econômico, que passará a ser entendido como o empresário de si, como aquele que deve garantir meios para investir nele mesmo, para se tornar competitivo, rentável, empregável. (FOUCAULT, 2008b, p. 307).
Assim, o indivíduo se torna responsável direto por seu sucesso ou fracasso, dependendo de seus esforços e de sua economia de investimentos e riscos. Dessa forma, a partir desse modelo do homem econômico, o indivíduo, querendo se valorizar, uma vez que sua subjetividade se torna fonte de sua própria renda, se transformará em um indivíduo regrado, flexível, adaptável, buscará desenvolver habilidades que darão volume ao seu currículo, enfim, viverá em função do mercado e do trabalho.
Mas se o homem econômico, ou seja, se a ideia desse sujeito se apresenta como o corpo, como o espaço domesticado, o indivíduo vivo, real, por sua vez, tem a possibilidade de dizer “não”. Pode não aceitar esse discurso e se apresentar, ele mesmo, como um corpo da revolta, como um corpo da resistência. Dessa forma, se percebemos como o Estado e as formas de subjetivação se relacionam e se sustentam, podemos pensar em formas outras de subjetividades, de invenções de vida, de práticas de liberdade. Assim, temos que:
As implicações dessas reflexões para pensar a constituição da subjetividade são profundas. Uma vez que a categoria do espaço deixa de ser submetida à hegemonia do tempo, da razão e do sujeito, como havia sido até o século XX, novos espaços se abrem para pensar a subjetividade como espacialidade constituída em redes de relações de saber-poder, em regimes de verdade, em modos de subjetivação que são históricos, culturais. Assim, já não se considera que o sujeito tenha uma natureza essencial que nasça com todas as inclinações contidas em germe em si mesmo, habilidade que apenas desdobraria ao longo da sua vida. O que significa, então, que outras formas de ser, outros modos de existir se tornam possíveis, porque históricos. (RAGO, 2015, p.19)
Nesse esforço de buscar outra racionalidade, outra forma de organização da sociedade (na qual sejam possíveis outras formas de se relacionar), podemos pensar nas contribuições anarquistas para uma vida libertária. Isso porque, os anarquistas fazem duras críticas não só ao Estado, entendendo que é a partir dele que é promovida a violência social que, por sua vez, é produto da dominação de uns sobre os outros, como também à democracia liberal representativa, uma vez que, ao contrário do que a democracia sugere ser (“poder do povo”), na prática ela parece servir apenas como uma forma de criar um sentimento de pertencimento e de participação política, diminuindo o fato de que esta última vai muito além de um voto, por exemplo.
Sobre essa discussão, David Graeber traz em seu livro Um projeto de democracia (2015), uma rica discussão sobre a ideia por trás do que chamamos de democracia. Assim, ao revisitar a Declaração de Independência e a Constituição dos EUA, Graeber mostra como não só a ideia de democracia não aparece nos documentos iniciais, como ela era considerada pelos “Pais fundadores” como um perigo, pois não haveria controle sobre as decisões do povo, sendo, inclusive, usada como sinônimo de anarquia (também num sentido negativo).
Segundo o autor, a palavra democracia foi surgindo, nesse contexto, aos poucos, como uma estratégia populista num jogo de disputas políticas, que acabaram tirando o sentido negativo da palavra, ao incorporá-la como ferramenta do sistema republicano. Assim, ao reformular seu significado, não apenas incorporaram um sentido positivo à democracia, como ela passou a ser o símbolo da máxima expressão da liberdade e igualdade.
Entretanto, a reconfiguração de seu significado, não veio acompanhada da prática, ou melhor, da ressignificação das práticas políticas e sociais. Isso porque o modelo representativo jamais dará conta de levar as demandas do povo, uma vez que, se partimos de uma sociedade desigual, as relações nela estabelecidas também serão desiguais. Logo, quem for eleito para representar o povo, nunca será capaz de representar a todos, mas apenas um grupo, uma parcela da sociedade. Portanto, as relações não serão democráticas.
Segundo Eduardo Colombo, em seu livro Democracia e Poder, a partir do “nascimento do Estado opera-se a divisão clássica, entre sociedade civil e sociedade política. Essa divisão podia ser denominada pelos primeiros teóricos do liberalismo político como a distinção entre o proprietário e o cidadão” (2016, p. 14 – 15). Assim, essa separação da sociedade civil com a política mantém as bases dessa estrutura desigual e de submissão.
Ao transferir sua responsabilidade, sua capacidade de tomada de decisões e uma participação política direta, necessidades, lutas e vozes são caladas e invisibilizadas. Ao contrário, “quando o povo tem uma vontade deixa de ter representantes. Representa-se a si mesmo” (COLOMBO, 2016, p. 10). Podemos então perceber como a democracia representativa parece servir bem aos interesses das forças vigentes, pois, a desigualdade é necessária para que os indivíduos não sejam capazes de tomar decisões diretamente (uma vez que estão ocupados – e cada vez mais – com o trabalho e a sobrevivência, por exemplo), ao mesmo tempo em que a representatividade alimenta essas desigualdades (por não representar a todos, mas apenas a alguns).
Além disso, essa participação pelo voto serve para apaziguar essa sensação de participação política, de “dever cumprido”. A democracia liberal representativa opera de forma que cria uma ilusão de inclusão dos sujeitos nas decisões e de participação política, e se sustenta porque a partir disso torna os indivíduos mais inertes, pois sua participação se encerra no voto, na escolha de um “bom representante”. Ao mesmo tempo, como se resume às urnas, os indivíduos passam a crer na política como algo negativo (diante de um cenário comum de escândalos de corrupção, por exemplo), sem entender que a política não se dá apenas nessas relações e decisões dos representantes, mas é mesmo toda relação que existe na sociedade, e esta pode ser muito mais organizada e justa, se autogerida.
Então, em oposição à representatividade, a teoria anarquista propõe a autonomia, e autogestão como princípios que, ao invés de submeter as vontades coletivas e individuais à um representante, elege a livre associação e a participação direta como a prática mais igualitária e justa para a convivência em sociedade.
Além disso, a solidariedade é outro princípio fundamental, isso porque, os anarquistas são contra a autoridade, portanto, contra qualquer tipo de relação que queira diminuir ou dominar o indivíduo. Dessa forma, se vivemos em sociedade, a solidariedade deve ser o que nos une, o que nos torna um grupo, o que orienta nossas relações. Assim, ao contrário das relações baseadas no poder-dominação, em laços de necessidade do outro, a solidariedade propõe novas formas de se relacionar com o outro e consigo mesmo, através de livres associações.
O modo mais fácil de explicar o anarquismo em qualquer sentido é dizer que se trata de um movimento político que tem como objetivo produzir uma sociedade genuinamente livre, que seria definida como aquela em que os seres humanos mantêm apenas relações que não precisem ser impostas pela ameaça constante do uso da violência. (GRAEBER, 2015, p; 188)
Ao mesmo tempo, o princípio anarquista do apoio mútuo se opõe à lógica da concorrência, tão cara às subjetividades próprias dos indivíduos, que como vimos, aceitam abrir mão do que são ou poderiam ser, para se transformarem em empresários de si, em grandes concorrentes empregáveis.
Como visto, assim como Foucault, Dardot e Laval identificaram no spencirismo bases que foram utilizadas pelo neoliberalismo para justificarem a concorrência como uma “lei natural”, ainda anterior a isso, Piotr Kropotkin, em seu livro Ajuda Mútua: um fator de evolução (2009) já identificava esse movimento desde Hobbes. Esse princípio da concorrência parece ter sido utilizado desde então para justificar uma ordenação específica da sociedade, como meio de evitar o caos, em troca de uma suposta segurança, e ainda mais intensivamente utilizada no neoliberalismo para impulsionar a lógica da concorrência entre os indivíduos. Assim, Kropotkin acusa Spencer e outros evolucionistas de, apesar de admitirem a importância da ajuda mútua entre os animais, nunca mencionarem ou darem importância a esta entre os seres humanos. Diante disso, em Ajuda Mútua, Kropotkin visa
mostrar sucintamente a imensa importância dos instintos de ajuda mútua, herdados pela humanidade de sua evolução extremamente longa, presentes até hoje em nossa sociedade moderna, que se supõe estar baseada no princípio de “cada um por si e o Estado por todos”, mas que nunca conseguiu e nunca conseguirá tornar-se realidade. (2009, p. 16)
Assim, apesar de serem muitas vezes apagadas, porque assim é conveniente, é importante lembrar-se da capacidade de solidariedade e da importância do apoio mútuo para o progresso humano.
Nesse sentido, se pensarmos em nossa sociedade, mais especificamente, nas comunidades periféricas, a auto-organização e a solidariedade sempre foram uma estratégia de sobrevivência para essa população, diante da frequente ausência do Estado, no que se refere à políticas públicas e sociais. A pandemia provocada pelo novo coronavírus, no contexto brasileiro, deixou evidente esse tipo de mobilização, uma vez que a ineficiência dos governos deixou a população desamparada, tendo que lidar com pouco (e tardio) ou nenhum apoio governamental, não apenas no que diz respeito à crise sanitária, mas também à consequente crise econômica.
Neste cenário, várias comunidades se auto-organizaram para sobreviverem neste momento problemático, não faltando exemplos de comunidades que se mobilizaram desde uma conscientização sobre a pandemia, sobre o vírus, sobre formas de prevenção e como buscar tratamento (na contramão de uma série de informações divergentes vindas dos governos federal, estadual e municipal), até mobilizações de limpeza de áreas comuns das comunidades, bem como doações de cestas básicas para várias famílias que estavam vulneráveis diante de toda a situação.17
O atual momento, de crises e políticas extremas, acabou sendo um exemplo de como a solidariedade, o apoio mútuo e a auto-organização não são apenas possíveis como imprescindíveis para a sobrevivência de uma parte da população, que se encontra desamparada pelo Estado, e numa situação de vulnerabilidade devida às condições econômicas e sociais.
Assim, contrapondo-se tanto a essa lógica da concorrência, quanto à razão de um governo externo, no nosso caso, governo neoliberal, os anarquistas propõem práticas políticas baseadas na igualdade e na solidariedade a partir da autogestão (no plano micrrossocial) e do princípio federativo (no plano macrossocial).18
A autogestão se aplica a partir de uma organização com base em livres associações entre os indivíduos, que estão sempre em movimento, ou seja, não fixas, sem dogmas, portanto, em seu princípio, orgânica, se opondo às relações exteriores e de exploração. Já o princípio federativo se organiza a partir de um contrato, mas, ao contrário do contrato liberal que é algo abstrato (que parte do princípio de que “todos os indivíduos concordam com isto”), o contrato anarquista não é impositivo, não parte de algum lugar fora dos indivíduos, mas vem deles mesmos, e é discutido e reavaliado o tempo todo, a partir da participação direta dos implicados. “Encaremos o Estado, em sua atual fase de evolução, como um produto esclerosado e inorgânico do processo vital dos povos e como uma engrenagem à parte do organismo vivo deles.” (BAKUNIN, 2011, p. 116).
Retomando a disputa pela condução da subjetividade, temos também o jogo das liberdades. Liberdades no plural pra evidenciar o fato de a que a própria ideia de liberdade também está em disputa. A ideia de liberdade, assim como a ideia de democracia, se relaciona com o discurso vigente, nesse sentido, para se entender o que está por trás da ideia de liberdade, é preciso entender o contexto na qual ela aparece, sendo, portanto, fruto de conflitos e tensionamentos, mas também por isso, passível de ser transformada, ressignificada.
A liberdade levantada pela racionalidade neoliberal está associada a valores individualistas e antidemocráticos, pois clama por uma liberdade puramente do indivíduo. É uma liberdade imposta, que vem de algo externo ao indivíduo, de uma lei que o permite ser “livre”. Essa liberdade garante o direito individual, e torna-o egoísta e por isso, apartado do coletivo. É uma liberdade que coloca um indivíduo como uma barreira para o outro – “a minha liberdade termina quando a do outro começa”.
Já a liberdade a partir da perspectiva anarquista não pode ser separada do social, pois “a liberdade na desigualdade é o privilégio” (BAKUNIN, 1979, p. 6). Nessa perspectiva, “a liberdade de um se expande na liberdade do outro”. Ou, em outras palavras, um indivíduo só pode ser realmente livre se o outro também o for, por isso a liberdade só faz sentido se vier acompanhada da igualdade.
Assim, a liberdade individual, segundo a perspectiva anarquista, deve vir acompanhada da questão social: um indivíduo só pode ser livre por meio da igualdade. Neste sentido, a ideia de liberdade também se torna essencial para a construção de novas relações, pois, em meio a esse jogo de liberdades, é preciso ter em mente que tipo de liberdade buscamos, uma liberdade próxima à ideia liberal egoísta, isolado enquanto concorrente, que só se associa a parceiros de negócios, ou uma liberdade que se expande e abarca os outros, num laço comunitário e de solidariedade.
Além da ideia de liberdade, é importante considerarmos a importância de novas subjetividades em sociedade. Isso porque, como demonstrado, o neoliberalismo emprega forças que ditam e criam cenários e realidade. Mas este é apenas um mundo possível. É preciso então, uma vez que se assume uma posição crítica à razão neoliberal, um esforço para pensarmos que mundo queremos.
Dessa forma, é preciso traçar novos caminhos para a produção de novas subjetividades. É preciso se livrar da moral conservadora, dos valores do “empresário e do empreendedor de si”, do “homem bom”, do “cidadão de bem”, da “família tradicional”, de todos esses guias que promovem uma subjetividade específica e moldável, pois além dessa subjetividade vir à custa da renúncia do indivíduo, de quem “se é” (uma vez que introduz um modelo de homem – o homem econômico), esses também são os pilares que podem provocar um rompimento de valores como a solidariedade, sendo, portanto, antidemocráticas, na medida em que lutas e conquistas se encerram na esfera privada, esvaziando as lutas coletivas (já que o indivíduo é responsabilizado diretamente por seu sucesso ou fracasso). A moral e os valores associados ao novo conservadorismo social trazem um projeto de sujeito individualista (no sentido de egoísta), porque isolado (concorrente, investidor) e, portanto, apartado de questões políticas, sociais, coletivas.
Conforme Emma Goldman, “a revolução social é portadora de uma mudança radical de valores.” (2011, p. 77). Neste sentido, a luta feminista, antirracista, lgbt+, da questão indígena e de outras minorias, são também fundamentais. Primeiro porque é necessário não apenas dar visibilidade e justiça a esses grupos, como também é importante entender que estão intrincados na estrutura social vigente, como Angela Davis traz em seu livro Mulheres, raça e classe (2016).
Nessa obra a autora mostra que as foças que sustentam relações de poder-dominação de uma raça sobre outra, de um sexo sobre o outro ou de uma classe sobre outra, são forças que se apoiam mutualmente, e por isso essas categorias precisam ser pensadas nessa inter-relação, e não separadamente, já que uma força alimenta a outra.
Em segundo lugar, e como consequência desse entendimento, porque negar esses valores morais, da família patriarcal, do machismo e do racismo, possibilita quebrar padrões que podem abalar as atuais relações desiguais e de dominação e exploração, ao mesmo tempo em que se permite a experimentação e criação de novas relações consigo e com a sociedade.
Nesses movimentos, também está em jogo a invenção ética e libertária da subjetividade, que só se torna possível a partir de experiências individuais e de formas de sociabilidade mais inteiras e mais equilibradas, que possibilitem a expansão dos afetos e desejos. Não se trata apenas dos “sujeitos de direito” que clamam por se fazerem ouvir e serem reconhecidos pelo Estado, mas de novas subjetividades que acenam em busca da ética e do sentido de suas próprias vidas: da renúncia de si e da culpabilização dos desejos, passa-se à afirmação de existências estetizadas, construindo declarada ou imperceptivelmente suas artes do viver e suas heterotopias. (RAGO, 2015, p. 61 – 62)
Esses princípios anarquistas, enquanto um posicionamento ético, são um caminho interessante para experimentar novas formas de existência. Práticas de uma ética libertária, onde a autonomia do indivíduo e sua singularidade própria sejam priorizadas e para que possam se relacionar de forma horizontal, em livres associações. Relações e espaços onde os sujeitos plurais, diversos, possam ser de fato incluídos e não “representados”, subjugados, invisibilizados ou dominados. Corpos da revolta, ao invés de corpos conformes, corpos da alegria, ao invés de corpos da resignação, corpos da afirmação, ao invés de corpos programados.
Considerações finais
Com o atual cenário da pandemia, é possível perceber mais claramente como atua a biopolítica, tecnologias foram aplicadas de modo a garantir a sobrevivência das sociedades, numa escala global. Mas, ainda anterior a isso, devemos pensar quais outras tecnologias foram escolhidas e aplicadas de forma que não foram capazes de prever ou de gerir tal evento de forma mais rápida e eficaz. Escancaradas as estratégias de “quem deve viver e quem deve morrer”, somos forçados a repensar em que forças podem e decidem sobre a vida dos indivíduos.
Esse olhar sobre a produção das subjetividades e de como ela incide sobre o corpo dos indivíduos, ou seja, sobre o que é orgânico, parece ser para Foucault um ponto importante de análise: “nada é mais material, mais físico, mais corporal que o exercício do poder... Qual é o tipo de investimento do corpo que é necessário e suficiente ao funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa?” (FOUCAULT, 2008a, P. 147). Dessa forma, é importante percebermos esse movimento, sobre quais forças e por quais caminhos o poder é materializado e se alimenta, produzindo desejo e saber.
Nessa análise, partimos hoje de um mundo onde a razão neoliberal gere as relações individuais e sociais. Trata-se de uma racionalidade que constrói um imaginário, um modelo ideal, um desejo específico e direcionado a um modo de vida, a um modo de ser específico. O neoliberalismo produz uma lógica a partir da qual parece impossível pensar ou viver de outra forma, uma vez que todas as esferas da vida parecem atravessadas pelo prisma econômico.
É dessa forma que técnicas de governo são aplicadas de modo a conduzir as condutas dos indivíduos, criando subjetividades e capturando desejos. Essas mesmas técnicas também são direcionadas a ataques dos serviços públicos, por exemplo, através da privatização de serviços públicos essenciais e também da retirada de direitos. Todo esse movimento gera uma precarização da vida dos indivíduos, que acabam sendo ainda mais explorados e subjugados.
Ao percebermos as implicações dessa condução das condutas, podemos entender como ela tenta reduzir os indivíduos e suas relações a apenas uma orientação, a saber, a econômica. Parece ainda mais grave quando observamos o esvaziamento da esfera pública, ao responsabilizar o indivíduo por seu sucesso ou fracasso, juntamente com a retirada de direitos, o que acaba promovendo vidas precárias. O desejo aqui é movido pela participação do indivíduo enquanto um concorrente e um investidor. A motivação para participar deste jogo se encerra no fato de que o seu “sucesso” depende dele, de suas escolhas, de seus riscos, de seu investimento em si mesmo. Cabe ao indivíduo adaptar-se. Sem direitos, sem amparo, ou ele se torna empregável, ou ele está fora do mercado, fora do jogo, portanto fadado ao fracasso e à miséria.
Ao observarmos como esses mecanismos penetram nos corpos, produzem subjetividades, desejos e geram vidas precárias, parece inevitável um esforço para pensarmos em novas formas de existência, de indivíduo, em novas formas de se relacionar e de se organizar, de modo que as necessidades de todos os membros da sociedade sejam supridas.
Dessa forma, nossa hipótese é de que as práticas anarquistas indicam um caminho para a experimentação de possibilidades outras, visto que rompem com os valores neoliberais, que produzem competidores e consumidores. Além disso, propicia singularidades individuais sem descolar da coletividade, através de experiências e relações mais livres, sem imposições e explorações.
Os princípios anarquistas defendem e respeitam as diferenças, ao invés de excluí-las e marginalizá-las, como faz o neoliberalismo; garantem a satisfação das necessidades dos indivíduos, ao invés de deixa-los desamparados; promovem a livre expressão e a vivência dos valores de cada indivíduo e de grupos específicos (livre-associados), ao invés de criar valores que subjugam os indivíduos; garantem a liberdade de acordo com aquilo que o indivíduo almeja, sendo necessariamente atrelada à responsabilidade social, ao invés de uma liberdade barganhada, restrita e sustentada por um sistema de coerção; permitem práticas políticas democráticas de fato, na medida em que promove um debate político mais justo e igualitário porque amplo e direto, ao invés de um debate centralizado nas mãos de representantes que estão, em sua maioria, distantes da realidade da maior parte da população. Por fim, enquanto o governo neoliberal submete as condutas às leis do mercado, a anarquia propõe uma ética de afirmação da vida, individual e coletiva, de existências e relações livres e dinâmicas.
Referências
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Notas
Autor notes