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Recepção: 05 Março 2014
Aprovação: 23 Maio 2014
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v9i1.591
Resumo: A proposta deste artigo é refletir sobre os termos “ente e essência” como aparecem no texto de Tomás de Aquino e explicar o sentido da afirmação “o ente e a essência são o que é concebido primeiro pelo intelecto”.
Palavras-chave: Intelecto, Ente, Essência.
Abstract: The purpose of this article is to reflect on the “being and essence” terms as they appear in the text of Thomas Aquinas and explain the meaning of the affirmation "the being and essence are what is first conceived by the intellect”.
Keywords: Intellect, Being, Essence.
A questão do Ente, como sublinhou Kenny no prefácio da sua obra Aquinas on Being (2002)3., é o tema fundamental da filosofia. Para Tomás de Aquino, de acordo com os estudos de Peterson publicados em sua obra Aquinas: a new introduction (2008), não basta dizer simplesmente que o Ente é o tema fundamental da filosofia, é preciso admiti-lo como tema fundamental do “núcleo” da filosofia, isto é, da metafísica. Assim, como Aristóteles, ele considera, também, a metafísica ou “Filosofia Primeira”, como a ciência do “ente enquanto ente” – to o/n h/ o/n; ens qua ens. Para o Doutor Angélico, a metafísica não estuda tipos particulares de entes, mas a natureza do ente, e isso envolve uma série de distinções básicas entre substância e acidente; substância e agregados; substâncias simples e compostas; substâncias criadas e não criadas; essência e existência4..
O tema do ente ocupou o pensamento de Tomás de Aquino desde a sua juventude quando exerceu seu primeiro magistério no Studium Genenerale dos dominicanos na Universidade de Paris (1252-1256). Foi nessa época, a pedido de seus colegas frades, que ele escreveu O ente e a essência5. (De ente et essentia) que, em todos os sentidos, como quis o próprio Tomás de Aquino, é um manual introdutório à obra Metafísica6.- (Ta\ meta\ Ta\ fusika\) de Aristóteles que reúne a totalidade dos conhecimentos do filósofo em matéria de “filosofia primeira”, isto é, do “ente enquanto ente” - to o/n h/ o/n, uma fórmula traduzida para o latim por “ens qua ens”, habitualmente empregada pelo Doutor Angélico.
Especificamente, o interesse de Tomás de Aquino se centraliza no livro VII, onde o estagirita desenvolve um dos conceitos fundamentais do seu pensamento, o conceito de ousi/a. Ao se reportar a Aristóteles e aos seus intérpretes do mundo islâmico, ibn Rushd e Ibn Sīnā, ou simplesmente, Averróis e Avicena como são conhecidos no mundo latino, o autor do texto O ente e a essência rompe com o platonismo cristão: prova a existência de Deus, forma pura e perfeita, na qual essência e existência se identificam. Deus, portanto, está ao mesmo tempo no ápice da existência e da essência:
não se pode dizer que a noção de gênero ou de espécie caiba à essência na medida em que é uma certa coisa existente fora dos singulares, como sustentavam os platônicos; pois, assim, o gênero e a espécie não seriam predicados deste indivíduo; com efeito, não se pode dizer que Sócrates seja isto que está separado dele; nem, além do mais, aquele separado traz proveito no conhecimento deste singular. Assim sendo, resta que a noção de gênero ou de espécie caiba à essência, na medida em que é significada a modo de todo, como pelo nome de homem ou de animal, na medida em que contém implícita e indistintamente este todo que está no indivíduo (§32-33).
O pequeno texto de Tomás de Aquino considerado por Chenu (1993, p.280) como “um breviário da metafísica do ser”, se tornou rapidamente, segundo Pasnau e Shields (2003, p.49-50), um texto popular por apresentar de forma clara e introdutória, o núcleo central do pensamento de seu autor sobre ente e essência como aparecem em diferentes descrições da realidade (material, espiritual...), abrangendo questões importantes, tais como: natureza da substancia; individuação da substancia; relação entre propriedades acidental e essencial e o problema dos universais.
Em um sentido mais especifico, o objetivo do texto O ente e a essência proposto por Tomás de Aquino, consiste em definir o ente e a essência e entender como eles se relacionam com as noções lógicas e sob que modo eles são encontrados nos diversos entes. O ente abrange coisas ou palavras que não têm necessariamente realidade; a essência designa elementos que têm realidade, que existem, como por exemplo, as substâncias simples que são formadas por uma única coisa (forma ou matéria), e as substâncias compostas, que aliam várias coisas (forma, matéria e acidente). As criaturas angélicas pertencem ao primeiro grupo; as humanas, ao segundo. Por isso, para Tomás de Aquino, as substâncias simples, superiores, são menos acessíveis a nosso intelecto que as outras7.. Percebe-se, assim, o motivo pelo qual Wippel (2000), “o melhor expositor em língua inglesa da metafísica tomista como um todo”, segundo opinião de González (2008, p. 69), sublinhou que O ente e a essência passou a ser um ponto de partida imprescindível para o estudo da teoria do ente em Tomás de Aquino.
Fortemente influenciado por Aristóteles e Avicena, Tomás de Aquino inicia o seu texto anunciando aquilo que para ele deve ser abordado a respeito de toda investigação intelectual:
Visto que, de acordo com o Filósofo no 1° livro Do céu e do mundo (I,5,271b, 8-13), um pequeno erro no princípio é grande no fim e, por outro lado, como diz Avicena no primeiro livro de sua Metafisica (I,6,72b,A), o ente e a essência são o que é concebido primeiro pelo intelecto, para não acontecer que se erre por ignorância deles, para dissipar-lhes a dificuldade, importa dizer o que é significado pelo nome de essência e de ente, como se encontra em diversos e como está para as intenções lógicas, isto é, o gênero, a espécie e a diferença (§1).
Nosso objetivo neste artigo não é discutir todo o conteúdo do texto O ente e a essência de Tomás de Aquino, pretendemos analisar, especificamente, o seguinte trecho da citação: “o ente e a essência são o que é concebido primeiro pelo intelecto”. O que Tomás de Aquino quis nos dizer com essa afirmação? Esta é a questão que nos guiará ao longo deste artigo e esperamos obter uma resposta do Doutor Angélico, pois, segundo Kenny (2002, p.1-4), essa afirmação é intrigante, ente e essência parecem ser conceitos obscuros e sofisticados, uma vez que em nenhum idioma são as primeiras palavras a serem assimiladas pelas crianças8..
Algumas palavras sobre ente e essência precisam ser ditas antes. Os termos ens e essentia não tiveram um ingresso fácil na língua latina clássica. De acordo com observações de Pereira (2011, p.39-73), ens cujo significado “o que é”, não apresentou problemas, mas essentia tem “uma história que remonta a séculos anteriores ao nascimento da ontologia latina”9.. Sem um particípio equivalente ao particípio presente grego to\ o/n do verbo ei[nai, a língua latina cunhou o termo ens para traduzi-lo. Assim, to\ o/n pode ser traduzido por “ente”, o infinitivo grego ei[nai equivale ao infinitivo latino esse e pode ser traduzido por “ser”. Essentia é uma tradução do termo grego ousi/a que antes foi traduzido por natura.
Ao afirmar que “o ente e a essência são o que é concebido primeiro pelo intelecto” - ens autem et essentia sunt que primo intellectu concipiuntur, Tomás de Aquino não estava pensando, necessariamente, em um indivíduo particular no inicio da sua atividade intelectiva. Sua afirmação, portanto, não quer dizer que o significado conceitual de ente e essência é o primeiro a ser assimilado pelo indivíduo particular no início da sua atividade intelectiva, Tomás de Aquino refere-se, principalmente, ao modo como ente e essência são admitidos como fundamentos das ciências. De acordo com comentários de Kovas (2011, p.36), o Doutor Angélico está interessado em “conhecer com precisão os fundamentos epistêmicos, que validam as ciências humanas”. Em todos os homens, como sublinhou Fraile (1966, p.830), o ente é o primeiro a ser apreendido pela inteligência, mas essa apreensão primeira não é clara, mas sim confusa, pré-científica. Mas, pode se chegar ao conceito próprio de ente que é o objeto da “Filosofia Primeira”, através de abstração em seu mais alto grau: “um conhecimento científico, à base do qual formulamos as propriedades do ente enquanto tal, aplicáveis, analogicamente, a todos os entes”.
Ente e essência são, para Tomás de Aquino, princípios básicos e primitivos subjacentes a todo o conhecimento humano da realidade. Para a sua estrutura ontológica da realidade, essa afirmação tem uma importância crucial: ente é um indicativo da inteligibilidade apropriada da realidade. Todo o conhecimento da realidade começa com ente, na medida em que algo é compreendido ente ele é afirmado como inteligível e como tal relacionado com o intelecto. Ente é, portanto, a razão subjacente da cognoscibilidade de algo. Nas palavras de Verbeke (1990, p.601), ele é “na ordem ontológica, o ato dos atos, a perfeição de todas as perfeições”. Ente e essência são fundamentos e limites últimos de toda produção intelectual, por isso, para Tomás de Aquino, deve ser analisada as diversas condições nas quais eles são encontrados. Para isso, é preciso um ponto de partida seguro, isto é, sem erros e sem desvios, pois “um pequeno erro no princípio é grande no fim” (§1). O método mais eficiente, mais apropriado para tal empreendimento é, nas palavras do Doutor Angélico, avançar do mais fácil para o que é mais difícil:
Deve-se passar da significação de ente à significação de essência, de tal modo que, começando pelo mais fácil, o aprendizado se dê de maneira mais adequada, pois devemos receber o conhecimento do simples a partir do composto e chegar ao anterior a partir do posterior (§2).
Todo o cuidado demonstrado por Tomás de Aquino tem uma explicação. Ele pretende fundar um saber que visa alcançar a ciência das coisas divinas. Para ele, assim como para Aristóteles, “todos os homens, por natureza, desejam conhecer” – pa/ntej a/nqrwpoi ton eide/nai ore/gontai fu/sei (980a), almejam um conhecimento divino, mas possuem um certo limite, “a natureza humana é servil sob muitos aspectos” – pollaxh/ gar h fu/sij dou/lh twn anqrw/pwn esti/n (982b). Para Tomás de Aquino, no entanto, essa limitação não pode impedir o homem de buscar esse conhecimento, para ele, é obrigação do homem caminhar nessa direção. Assim, ele deve encontrar o melhor caminho para alcançar essa ciência que, como disse Aristóteles, é a mais divina e a mais nobre de todas as ciências:
Com efeito, a ciência que mais conviria a Deus possuir é uma ciência divina, e também o é aquela que trata de coisas divinas; ora, só esta ciência tem ambas as qualidades requeridas, pois (1) dizemos que Deus é uma das causas de todas as coisas, um dos primeiros princípios; e (2) uma tal ciência, só Deus a pode possuir, ou Deus mais do que qualquer outro. As outras ciências, em verdade, são mais necessárias do que esta, porém nenhuma é melhor (983a).
De acordo com Tomás de Aquino, ente é dito de dois modos: o primeiro modo do ente do qual deriva a essência, é aquele pelo qual alguma coisa é postulado na realidade de acordo com uma das categorias aristotélica10; o segundo modo do ente do qual não deriva a essência, é aquele pelo qual a verdade das proposições é significado (é verdade que...). Assim diz Tomas de Aquino:
o ente por si se diz de dois modos: de um modo que é dividido por dez gêneros; de outro modo, significando a verdade das proposições. A diferença destes é que, do segundo modo, pode ser dito ente tudo aquilo do qual pode ser formada uma proposição afirmativa, ainda que aquilo nada ponha na coisa; modo pelo qual as privações e negações são ditas entes, pois dizemos que a afirmação é oposta à negação e que a cegueira está no olho. Mas, do primeiro modo, não pode ser dito ente senão aquilo que põe algo na coisa. Donde, a cegueira e similares não serem entes do primeiro modo. Portanto, o nome de essência não deriva de ente, dito do segundo modo, pois, deste modo, algo, que não tem essência, é dito ente, como é evidente nas privações; mas, essência deriva de ente dito do primeiro modo. Daí o Comentador dizer, no mesmo lugar (In Met. V, 14,55c 56), que “o ente dito do primeiro modo é o que significa a essência da coisa”. E, visto que, como já se disse, o ente dito deste modo é dividido por dez gêneros, é preciso que a essência signifique algo comum a todas as naturezas, pelas quais os diversos entes são colocados em diversos gêneros e espécies, assim como a humanidade é a essência do homem e igualmente a respeito dos demais (§3-4).
Percebe-se, portanto, que o ente cujo significado é aquilo que é, algo que em si contém, digamos assim, o parâmetro de todo o conhecimento possível, como concebido por Tomas de Aquino, não possui um único sentido. O mesmo ocorre, também, em Aristóteles (1003a), isto é, “em muitos sentidos se pode dizer que uma coisa é”11 – to/ o/n le/getai pollaxw/j. A explicação para isso é simples: cada ente de acordo com a sua ocorrência, apresenta um significado próprio. Por exemplo, Pedro e planta são entes de maneira diferente. São diferentes inclusive em relação a alguns de seus acidentes12 que, em certo sentido, são ditos entes. Portanto, nenhuma ocorrência de ente corresponde a um mesmo significado. Em outras palavras, cada ocorrência de ente tem um sentido diferente, apesar de estar, nas palavras de Aristóteles, em relação ao um, a um ponto central, isto é, em relação a substância13:
são vários os sentidos em que dizemos que uma coisa “é”, mas todos eles se referem a um só ponto de partida; algumas coisas “são” pelo fato de serem substâncias, outras por serem modificações da substância, outras por representarem um trânsito para ela, a destruição, privação ou uma qualidade dela, ou pelo fato de a produzirem ou gerarem, ou por serem termos relativos à substância, ou negações de um desses termos ou da própria substância (1003b)14.
O ente e a essência, ou em outras palavras, o ente e “o ente dito do primeiro modo”, pois é este que Tomás de Aquino, a partir de Averróis, admite que “significa a essência das coisas” (§4), são os primeiros a serem concebidos pelo intelecto porque constituem princípios primeiro do conhecimento humano. Qualquer coisa que é possível ao homem conhecer e explicar seu significado encontra-se atrelado a esses conceitos. Assim, de acordo com observação de Kovas (2011, p.34), apesar de Tomás de Aquino admitir com Aristóteles que a origem do conhecimento humano está nos sentidos, ele concebe o conhecimento intelectivo humano do universal para o particular15.
Portanto, seguindo os comentários de Kovas (2011, p.35-36), o ente e a essência, mais do que simples noções ou conceitos no sentido comum da palavra, são princípios. Aliás, considerá-los como simples noções ou conceitos, é supor que seus significados são os que naturalmente e em primeiro lugar todos conhecem. Para Tomás de Aquino, buscar, compreender e explicitar os significados desses termos é tarefa da metafísica como um todo, cujo objeto é o “ente enquanto ente” – to o/n h/ o/n. Como conceitos, ente e essência são concebidos pelo intelecto humano “por intermédio do desenvolvimento das ciências, em especial da metafísica, que se ocupa diretamente deles”. As outras ciências, isto é, “as ciências particulares”, admitem o ente e a essência como primeiros princípios ou “premissas primeiríssimas”: ente e essência são, assim, pontos de partida para se constituir o saber; evitem, também, uma progressão ao infinito nas ciências. Estas partem de um primeiro (ente e essência), sobre o qual todo o saber pode se assentar.
Com a pesquisa sobre ente e essência, Tomás de Aquino não só pretende descobrir as condições para o conhecimento humano, mas quer saber os seus limites, isto é, até onde este conhecimento pode chegar. Neste sentido, seu objetivo é “fundamentar a ciência humana em bases sólidas e seguras”. Ente e essência são, portanto, “primeiros”, nas palavras de Pasnau e Shields (2003, p.50), conceptualmente e temporalmente; isto é, no sentido de que todos os outros conceitos os pressupõe e no sentido de que devem ser adquiridos antes de qualquer outro conceito. E nunca é demais lembrar que um pequeno erro contamina tudo, “Visto que, de acordo com o Filósofo [...] um pequeno erro no princípio é grande no fim” (§1).
Referências
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Notas
Autor notes