Resumo: Quando Bayle reflete sobre a possibilidade de um ateísmo especulativo, ele argumenta acuradamente a respeito, mostra que o ateísmo pode dar sua contribuição a diversas discussões de ordem teórica, como a questão do livre-arbítrio, da providência e do mal, por exemplo. Se o filósofo de Carla se pronuncia a favor do ateísmo especulativo, ele vai mais além e afirma uma moral natural, a qual, apoiada em princípios comuns a todos os homens, permite vislumbrar e dar solidez a sua tese fundamental desde os Pensées diverses sur la comète: a associação entre ateísmo e virtude. Dessa forma, Bayle expõe e analisa os diversos argumentos e pontos de vista a respeito do estatuto filosófico do ateísmo especulativo.
Palavras-chave:BayleBayle,Ateísmo especulativoAteísmo especulativo,VirtudeVirtude.
Abstract:
: When Bayle reflects on the possibility of a speculative atheism, he argues accurately about shows that atheism can make a contribution to several theoretical discussions of order, as the question of free will, providence and evil, for example. If the philosopher Carla pronounced in favor of speculative atheism, he goes further and asserts a natural morality, which, based on common principles to all men, paves solidity and give its fundamental thesis from the Pensées diverses sur la comète: the association between atheism and virtue. Thus, Bayle explains and analyzes the various arguments and points of view regarding the status of speculative philosophical atheism.
Keywords: Bayle, speculative atheism, virtue.
Artigos
A questão do ateísmo especulativo em Pierre Bayle
The issue of speculative atheism in Pierre Bayle
Recepção: 29 Setembro 2014
Aprovação: 03 Novembro 2014
“Reconheçamos que mesmo os incrédulos, os livres pensadores, logo, os que buscavam elevar a oprimida força da razão, foram os que revelaram novamente à humanidade a diferença entre o justo e o errado, entre a verdade e a mentira, entre o bem e o mal!”
(Ludwig Feuerbach, Pierre Bayle. Uno contributo alla Storia della Filosofia e dell'Umanità.).
Bayle já trata de tal questão desde os Pensées diverses sur la comète em 1682, em um contexto que somente pressupor alguma ligação entre ateísmo e moralidade era incomum, contrário aos dogmas religiosos vigentes e até mesmo algo subversivo, pois o ateu é o que “sabe renunciar às opiniões comuns e afastar-se das crenças dominantes.” (MORI, 1999, p. 206)2.Não sendo possível, como o próprio Bayle assume, uma nação inteira abrir mão de suas crenças, ritos e doutrinas para se tornar-se atéia, contudo, o ateísmo sugere o abandono dos preconceitos de infância, ao menos, no plano individual. Se o empreendimento de um examen aqui será a pedra de toque do ateísmo especulativo, porque somente ele “encerra uma verdadeira persuasão intelectual”(MORI, 1999, p. 209), ele permitirá ver o seguinte: se o ateísmo é advindo de uma escolha intelectual e sincera, ele é “uma opção puramente filosófica fundada sobre a comparação atenta entre objeções e respostas relacionadas à questão da existência de Deus.”(Id. Ibid., p. 208)
Nesse sentido, o filósofo de Carla vai analisar os diferentes enfoques dados à questão da possibilidade da existência de um ateísmo especulativo. O ponto de partida de sua reflexão é o exame da seguinte proposição: saber se o ateísmo, supostamente sendo um pecado oriundo da malícia, ofenderia mais a uma divindade que o politeísmo, que supostamente seria uma falta oriunda da ignorância. (OD III[CPD] p. 322) As premissas da argumentação seriam as seguintes: uma investida maliciosa sempre é mal-intencionada, movida pelo ódio e pelo desprezo, ao passo que um ato advindo da ignorância é sempre involuntário, por vezes movido por boas intenções. Resumindo a questão, os pagãos agiam sempre com sinceridade em relação a seu deus, louvando-o por meio de seus falsos preconceitos e jamais desconfiando que erravam. Por sua vez, o ateu, mesmo tendo no coração e no espírito uma noção de divindade, sufocava-a maliciosamente, opondo-se à sua própria consciência para se livrar de um fardo o qual não permite que eles se atirem a toda espécie de atrocidades. Portando-se assim, eles declarariam guerra aos deuses e, consequentemente, sua injúria a eles seria maior que a dos pagãos. (Id. Ibid.).
Entretanto, o primeiro problema de argumentar por esse viés, segundo Bayle, é que isso “reverte todo o estado da questão.” (Id. Ibid.)3. Quando nos Pensées diverses Bayle fez a comparação entre o paganismo e o ateísmo, ele referiu-se tão e somente aos ateus ditos de prática, e estes ele os excluíra da questão4. . Se de antemão, o filósofo de Carla disse que não falaria nada a respeito de ateus que calculadamente exterminaram em si mesmos a noção de um deus para tudo permitir-lhes sem qualquer peso na consciência, toda e qualquer argumentação que ainda insista sobre esse ponto ficará reduzida a um artifício retórico destituído de sentido, isto é, como “ignorância do que é preciso refutar” (OD III[CPD] p. 322..)5. Segundo Bayle, em nada desvalidaria seu argumento apontar todas as faltas dos ateus em relação a dos pagãos e tampouco compará-las uma a uma para saber qual foi mais grave, que suas infrações civis e religiosas foram mais desrespeitosas à verdadeira divindade do que que as dos sectários do paganismo. É suficiente verificar, tanto nos textos sagrados como nos próprios argumentos de autores tradicionais, que longe de ser permitida a postura fanática dos idólatras, mostra que, na verdade, seus erros são o resultado direto da sua malícia e não de sua ignorância. (Id. Ibid.).
O segundo problema apontado por Bayle é entender como um fato indubitável que todos os ateus são denominados práticos, isto é, os que aniquilando a ideia de um deus que trazem em si mesmos, aniquilam-na para regojizarem-se em suas luxúrias criminosas. Entretanto, atentemos para as nuances desta extensa passagem:
Esses Ateus são persuadidos de que há um Deus, mas vivem como se não acreditassem que houvesse, & e tratam de apagar de seu espírito a persuasão da existência divina: ela os incomoda no gozo de seus prazeres criminais. É porque eles queriam acreditar que não há Deus algum & esforçam-se em aí chegar. Eles atordoam-se algumas vezes, & adormecem & endurecem a sua consciência, mas ela revela-se de tempos em tempos & eles jamais conseguem apagar a impressão de Deus que foi gravada em seu coração. Este traço não afrouxa, a despeito da força com que o sacudam para fazê-lo cair: qualis conjecta serva sagitta...baret laseri lethalis arundo. Eis o retrato que nos dão ordinariamente dos Ateus de prática.(OD III[CPD], pp. 322.-323a..)6..
Eis a imagem do ateu de prática: um dissimulado, que em seu foro interno está plenamente consciente de que há um deus, mas na práxis age como se não existisse uma vez que tal persuasão o perturba e o atrapalha no desfrute de seus mais pérfidos atos criminosos. O motivo principal seria a vontade deles em não crer que existe uma divindade e o seu empenho em aí convencerem-se, mas por vezes são acometidos de vertigens, e mesmo tentando desviar sua consciência desse sentimento, este sempre aparecerá por mais que se queira dissipá-lo do espírito de uma vez por todas. Uma vez impressa pela natureza no homem a ideia de um deus, esta torna-se inapagável. Contudo, é importante concentrar-se no último parágrafo, pois esta imagem, segundo Bayle, é uma imagem ordinária, isto é, corriqueira, banal, do senso comum. O filósofo de Carla aqui dá continuidade à sua crítica do inatismo da ideia de um deus: se ele tanto insistiu na crítica da inerência da noção de divindade no homem com o exemplo dos povos selvagens7., logo, o ateu de prática ou qualquer ateu que seja, não possui ideia natural alguma do que seja um ser sobrenatural regulador das ações humanas. Segundo o retrato ordinário, esse traço é gravado indelevelmente nos corações dos homens e por mais que um descrente tente eliminar isto dentro de si, jamais obterá êxito. Logo, o que foi entendido como fato pela ótica da maioria, sob a pena de Bayle transforma-se em mera possibilidade, não passando de um sentimento que, propagado perpetuamente, não ultrapassou o âmbito do provável. Na verdade, se ordinariamente e sem prova alguma mostram uma imagem distorcida do ateu de prática, é fato que são as crenças, ritos e cultos desmedidos dos idólatras que consistem em verdadeiras negações de um deus.
Das considerações sobre o ateísmo de prática, Bayle passa para a questão do ateísmo especulativo, sendo “Ateus especulativos aqueles que não são persuadidos da existência de Deus.” (OD III[CPD], p. 323a.)8. Segundo Bayle, uma boa razão para não supor como certo que existem unicamente ateus de prática, mas somente como fato que tornou-se provável através do sentimento de vários autores, e amparar-se em probabilidades não é um bom caminho para se ganhar uma disputa. No máximo, chegar-se-ia a estendê-la ad infinitum no círculo vicioso das probabilidades, por meio de inúmeros artifícios retóricos os quais entediariam leitores ciosos de uma solução para um determinado problema9.. Bayle aqui retorna à questão da ignorância da noção de um deus entre os povos selvagens, isto é, mostrando que é possível mostrar aos que defendem a possibilidade da inexistência do ateísmo justamente a possibilidade de que exista:
Tantos Historiadores que dizem que encontraram no novo mundo vários países sem Religião, tantos Autores famosos que sustentam que a ignorância de Deus é alguma vezes invencível, não tornam eles tão provável o que negai-vos, que pode ser o que vos afirmeis?A autoridade de vossos testemunhos seria mais considerável se eles sustentassem que aí há muito poucos Ateus, porque poder-se-ia presumir que eles conheceram esses pequeno número de pessoas, que sondaram-nos ao vivo, & que virando-os de todos os lados, eles certamente descobriram que seu Ateísmo era realmente prático. (OD III[CPD], p. 323a.).10
Para não cair no turbilhão das infinitas probabilidades arguidas e apresentadas exaustivamente pelos partidários pró e contra da existência de ateus, Bayle estabelece um critério: faz-se necessário ir diretamente ao encontro desses povos para poder ser possível haurir conclusões mais exatas a respeito da questão. A sutileza do argumento de Bayle consiste no seguinte: os historiadores que relatam a plena existência da ignorância da existência de um deus dentre povos ditos bárbaros basearam-se em autores que foram verificar por meio de expedições, aventuras ou qualquer sorte de empreitada etnológica, ou eles mesmos foram lá verificar suas hipóteses e a partir de então, registaram suas pesquisas em forma de escritos, tipo de literatura que não era pouca na época de Bayle.11 Nesse sentido, o papel da experiência é crucial, pois estando nos antípodas de toda probabilidade, ela permite que se olhe mais de perto o objeto a ser verificado com o escopo de descrever, detalhar e examinar para, a posteriori, ser possível tirar conclusões mais contundentes e apresentar argumentos mais convincentes a partir tão e somente do concreto. Para Bayle, o motivo principal de seus opositores deplorarem um número tão significativo de ateus é por serem incapazes de ultrapassarem os limites de suas próprias conjecturas:
Mas quando os vemos deplorar que o número de Ateus seja tão prodigioso, não saber-se-ia imaginar que eles conheceram-nos pessoalmente, nem mesmo por conjecturas tão pouco circunstanciadas eles tenham desenvolvido o que se passa no coração da maior parte desses ímpios. Temos razão então de acreditar que eles falam em vista do país, o meio então de assegurar-se em sua palavra que, com efeito, não há ninguém que não creia na existência divina, & que aqueles que se nomeiam de Ateus são celerados, que se esforçam, por uma malícia furiosa, em desfazer-se da persuasão de que há um Deus? (Id. Ibid., p. 323b.).12
Concretamente havendo um número considerável de ateus, não há mais como valer-se de hipóteses absurdas para negar esse fato. Bayle leva o argumento às últimas consequências, exigindo que seus adversários vão conhecer esses povos em seu habitat natural, em vez de proceder por antecipação, isto é, somente presumir que não há como existir alguém que desconsidere uma existência divina. Bayle desconstrói uma opinião caduca, porém, sempre vem à tona: uma vez constatada a simples ignorância de um deus por outros povos, e nem por isso eles agem como bárbaros, fica destituída de valor a clássica associação entre ser ateu e ser imoral. O argumento é invertido: a ignorância involuntária é característica do ateísmo do selvagem, ao passo que a vontade calculada de fazer com que desapareça de seu espírito a noção de divindade agora é marca registrada do “ateu de prática”, entenda-se, do idólatra.13 Generalizar acerca do caráter de todos os ateus baseando-se pelo comportamento de uns poucos que agiram em prol de satisfazer seus vícios, é cair no erro, pois, para Bayle “os homens são mais diferentes um dos outros pelo espírito do que pelo rosto. Eles vão ao mesmo fim por mil tipos de caminhos.” (OD III[CPD], p. 324..)14
Na distinção entre a ignorância voluntária de um deus e a sua rejeição deliberada, Bayle retoma uma temática já iniciada nos Pensées Diverses - §117 - isto é, se em um certo sentido os idólatras foram ateus, e na Continuation ele vai investigar mais a fundo se tal comparação procede. Por que, à primeira vista, a idolatria poderia ser comparada ao ateísmo? Segundo Bayle, seria pelo fato de tanto os idólatras como os ateus desconhecerem o que seja uma divindade, contudo, tal desconhecimento seria de ordens bem diferentes:
A terceira razão é que, se aí tomarmos cuidadosamente, verificar-se-á que os idólatras foram verdadeiros ateus, tão destituídos do conhecimento de Deus como aqueles que negam formalmente a sua existência. Porque, como não seria conhecer o homem imaginando que o homem é de madeira, do mesmo modo, não é conhecer Deus imaginando que é um ser finito, imperfeito, impotente, que tem muitos companheiros. De sorte que, os pagãos tendo somente conhecido Deus por esta ideia, pode-se dizer que eles não o conheceram de todo e que eles destruíam por esta ideia o que estabeleciam por suas palavras, como foi observado sobre Epicuro.[...] E eles estavam perdidos em seus vãos raciocínios e mergulhados em suas extravagâncias, loucuras e trevas prodigiosas, até reduzir a glória do Deus incorruptível à forma de um homem corruptível, de um pássaro, de uma serpente e de uma besta de quatro patas. (PD, 2007, pp. 259-260; OD III[PD], p. 76..).15
Se o desconhecimento de um deus é a característica comum entre os ateus e os idólatras, Bayle não poupa críticas quanto aos últimos. Se a reverência a objetos inanimados e a redução da divindade a animais é sinônimo de loucura e de extravagância, o que fazia com que os idólatras incorressem nas mais absurdas contradições entre o que diziam e o que praticavam, não fica difícil perceber que tal postura é muito mais grave e irracional do que simplesmente negar a existência dos deuses. O paralelo empreendido por Bayle entre ateísmo e idolatria, na verdade, pende para o ganho de causa aos que simplesmente ignorando a ideia de um deus por um lado, por outro não têm necessidade alguma de assentarem as suas crenças nas mais estapafúrdias representações de seres divinos, as quais não passam de pleno desconhecimento dos atributos característicos de uma divindade.16 Dessa forma, no que a idolatria seria semelhante ao ateísmo no sentido de não conhecer o que seja um deus, na verdade, ela é uma crença exacerbada que resulta na antropomorfização de determinados objetos e que, consequentemente, corrompe a ideia de uma divindade incorruptível. Bayle estabelece justamente a diferença entre o ateísmo idólatra e, sendo redundante, o ateísmo de um ateu, isto é, o que os separa é que o desconhecimento de um deus da parte do idólatra, oriundo de sua malícia e não de sua ignorância, jamais minimizou o caráter violento de seus crimes:
Se há alguma diferença entre o ateísmo de um idólatra e o de um ateu, é principalmente no que o ateísmo de um idólatra não diminui em nada a atrocidade de seus crimes, ao passo que um homem que é ateu por ser nascido entre esses povos que dizem que, de tempo imemorial, não reconhecem nenhuma divindade, terá diminuição de pena por meio de sua ignorância.17 (PD, 2007, pp. 260-261;OD III[PD], p. 77a..).
É por meio da diferença entre o ateísmo do idólatra e o ateísmo strictu sensu que Bayle desfecha um duro golpe na idolatria. O móbil psicológico que leva o devoto a incorrer nas mais absurdas atrocidades, a saber, a malícia18, é na escala dos crimes muito mais pernicioso que a ignorância do ateu, que até mesmo seria suscetível de uma redução em sua sentença. Se a malícia é característica de uma ação calculada, isto é, se o idólatra sabe o que seu deus prediz-lhe mas age contrariamente e deliberadamente, sua conduta é bem mais passível de uma penitência uma vez que incorre na mais escandalosa assimetria entre o que crê e o que pratica. Dessa forma, não faz mais sentido falar em paralelo entre ateísmo e idolatria, pois Bayle atribui um grau de intensidade comparando-os, entendendo que, por diversos motivos, a malícia idólatra é mais nociva que a ignorância ateia. O que era comparação agora torna-se uma relação hierárquica, a saber, a idolatria é piorque o ateísmo:
Então, é um maior crime a um idólatra fazer falsos sermões, pilhar os templos e cometer quaisquer outras ações que ele sabe não serem agradáveis a seus deuses, que não o é a um ateu fazer as mesmas coisas. Então a condição dos idólatras é pior que a dos ateus, visto que, uns e outros estando igualmente na mesma ignorância do verdadeiro Deus e incapazes igualmente de servi-lo, os idólatras têm em particular certas noções e certas persuasões contra as quais não saberiam agir sem uma malícia extrema e sem um visível desprezo de suas divindades. (PD, 2007, p. 261; OD III[PD],p. 77., grifos meus.).19
Torna-se evidente por meio desta passagem que Bayle vai além do paralelo inicial entre o ateísmo e a idolatria para concentrar a sua crítica sobre a última e os termos utilizados são cristalinos. Se ambos estão iguais no que concerne à ignorância e à incapacidade de servir a uma divindade, é notória a perniciosidade da malícia idólatra perante a ignorância do descrente, visto que as noções e persuasões de um deus não são desconhecidas a um idólatra – contrariamente, não seria caracterizado como um religioso propriamente dito – agir maliciosamente contra o seu mestre celestial e soberano seria a mais escandalosa das aberrações. Malícia aqui é entendida aqui por Bayle como uma desconsideração evidente e oposta ao que deveria ser uma reverência autêntica aos deuses, que dispensa qualquer louvação a objetos, mediadores terrenos e diatribe contra templos e seitas adversárias. Segundo Bayle, entre dois crimes da mesma estirpe, para saber qual foi o mais hediondo, faz-se necessário saber se um foi cometido com mais conhecimento de causa do que o outro e, da mesma forma, qual criminoso deu mais parcela de contribuição à sua ignorância de tal conhecimento através da malícia. Em outras palavras, poderia haver a possibilidade de um homem que, estando ciente de que instruindo-se para não cometer crimes o faria desistir de suas más intenções, a ignorância não poderia eximi-lo de sua culpa:
Porque para julgar se um crime é mais atroz do que um outro da mesma espécie, é preciso saber não somente se um foi cometido com mais conhecimento do que o outro, mas também qual dos dois criminosos contribuiu mais à sua ignorância por sua malícia: pode ser que um homem ignore certas coisas porque ele recusou a instruir-se, com medo que a instrução o desviasse de seus perniciosos desígnios, caso que a ignorância não de forma alguma desculpar. (PD, 2007, p. 262;OD III[PD], p. 77ab.).20
Indo nas entrelinhas da argumentação de Bayle, se o crime de um ateu fosse somente a sua descrença, esta sendo entendida como pura e simples ignorância não tendo conhecimento algum do que seria um deus infinito e providencial, por exemplo, seria mais branda a sua pena uma vez que involuntariamente ele incorrera em erro. Entretanto, se o crime do idólatra é justamente a recusa deliberada de saber que pilhando templos, imprecando aos deuses e toda sorte de blasfêmias ele cometeria um crime, sua punição deveria ser mais severa a partir do momento que ele tinha pleno conhecimento do que ele fazia não era de agrado aos deuses. Nesse sentido, a sua malícia fortaleceu ainda mais a sua ignorância, pois, mesmo estando persuadido de sua crença, voluntariamente ele renegou uma instrução que poderia lhe aconselhar a fazer o contrário.21 Bayle estabelece a diferença entre o que é um ato de idolatria e o que é um ato de impiedade: o primeiro é definido como a adoração de falsos deuses, e o segundo quando alguém destrói uma imagem a qual erroneamente acreditava ser um deus. Contudo, mesmo tais ações sendo de naturezas diferentes, ambas resultam no mesmo, a saber, culminam na investida aos falsos deuses tidos como verdadeiros.22 Daí Bayle a chega a uma conclusão: não procede que ateus sejam capazes de fazer injúrias aos deuses de tantas formas e com tanta malícia como os idólatras:
De onde parece que os ateus não podem ofender Deus de tantas maneiras nem com tanta malícia como os idólatras; e que assim inflamar cometas extraordinariamente a fim que os homens sejam mais idólatras que ateus não é outra coisa que querer fazer os homens mais perversos e mais infelizes. Advirto-vos de uma vez por todas, Senhor, que eu falo desses ateus que ignoram a existência de Deus, não por ter sufocado maliciosamente o conhecimento que eles tiveram a fim de entregarem-se a toda sorte de crimes sem nenhum remorso, mas porque eles jamais ouviram dizer que se deve reconhecer um deus. (PD, 2007, p. 263; OD III[PD], p. 77.).23
Bayle toca no ponto que o levou a redigir seus Pensées Diverses: dentre todas as injúrias, a maior ofensa dirigida a um deus da parte dos idólatras foi justamente pregar que um fenômeno natural surgira no céu com o intuito de reforçar os liames da idolatria e extirpar da face da terra o ateísmo. Na advertência de Bayle dada a seu interlocutor imaginário, a saber, que ele fala especificamente de um tipo de ateu, o que nunca ouviu falar de um deus e não falando uma palavra sobre ateus maliciosos que, mesmo tendo um conhecimento prévio da existência de divindades, não deixaram de ser criminosos, o que está em jogo é a própria definição de ateísmo: na verdade, o ateu “idólatra” é o idólatra ipsis litteris, é o crente em um deus por excelência – seja em um deus falso ou verdadeiro – que não vê impeditivo físico ou moral algum quando se trata de desprezar suas crenças e preceitos religiosos quando um anseio seu não é concretizado. O seu conhecimento ou crença prévia em um ser divino torna-se inoperante quando a concupiscência e a malícia são as mestras das ações. A contrario, jamais um ateu poderia cair nesse paradoxo entre o que crê e o que faz. Primeiro, porque ele difere no principal de um idólatra, a saber, ele não tem e nunca teve ideia alguma do que seja um deus e tampouco a necessidade de reconhecer algum. Essa espécie de tábula rasa ateia, segundo Bayle, constituiria o estado primevo do homem, sendo depois preenchida pelo hábito e pela educação.24 Em segundo lugar, os mesmos móbiles psicológicos poderiam conduzir o homem ao erro – a malícia, a má-fé, a ganância, o interesse – colocando no mesmo patamar o ateu e o idólatra no mesmo patamar no que concerne à suscetibilidade de, pelos mesmos motivos, cometerem um crime. Todavia, o ateu seria ao menos mais desculpável justamente porque agir de tal forma não estaria em contradição alguma com a sua crença, ou melhor dizendo, com a sua ausência de crença. Bayle admite, sendo as disposições do coração e do entendimento iguais tanto em um como no outro, ambos podem cometer as mesmas ações. Contudo, ao idólatra é mais grave pois o que ele crê na teoria é sempre renegado na prática, suas projeções psicológicas sobre determinados fenômenos, pessoas ou objetos o levam a agir desmedidamente, persuadido piamente de que está honrando os seus deuses.25 Nesse sentido, fica difícil ainda sustentar que o diferencial das ações humanas está no que se crê ou no que se não se crê.26 Para Gianluca Mori, “pode-se sustentar que, segundo Bayle, o fato que se possa legitimamente suspeitar de certos ateus de terem agido por orgulho não encerra de forma alguma a consequência que todos os ateus ajam sempre por móbiles imorais.”(1999, p. 198, grifos do autor).
Bayle dá um contorno mais preciso à sua definição de ateísmo na Continuation, isto é, verificando se o paganismo foi propriamente um ateísmo. O pensador de Carla afirma que não foi giro de retórica tampouco uso indevido de alguns termos de sua parte, para sustentar que ele usou o termo ateísmo referindo-se com todas as letras aos idólatras pagãos.27 Se é certo que negar a existência de um suposto verdadeiro deus seria o maior crime dos ateus, eles não lhe devem honra alguma, mas não é infração alguma se eles não creem nos falsos deuses e muito menos se não destinam-lhe cultos e rituais. Daí Bayle infere que o ateísmo deve ser entendido como um gênero, subdividido em dois tipos:
Digamos então que o Ateísmo deve ser considerado como um gênero que tem sob si duas espécies: uma é a que não reconhece nem o verdadeiro Deus, nem os falsos Deuses, a outra é a que reconhece somente os falsos Deuses. Sabei-vos a doutrina dos Lógicos, que toda a essência do gênero está em cada uma de suas espécies, conclueis daí que toda a essência do Ateísmo se encontra na religião Pagã que só admitia falsos Deuses, & que assim segundo as leis mais severas da Dialética o Paganismo é um Ateísmo propriamente dito. (OD III[CPD], p. 309a.).28
Nessa incursão pela lógica e pela dialética, Bayle mostra que em um primeiro momento, levando em consideração somente o que há de comum entre dois subgêneros da mesma espécie, isto é, se o ateísmo engloba em sua definição tanto a negação de verdadeiros e falsos deuses como a somente a adoração de falsos, a consequência lógica seria, em sua essência, que o paganismo e ateísmo são sinônimos. Todavia, Bayle aprofunda mais a questão e vai se deter no que esses subgêneros diferem, nas características específicas que diferenciam um do outro. Faz-se necessário examinar se o atributo particular do paganismo, a saber, a supressão da honra que era devida ao verdadeiro deus para destiná-la a falsas representações, é menos malévolo que o atributo que constitui o ateísmo negador de todos os deuses:
Eis o meio de conhecer toda a definição das duas espécies de Ateísmo. Tende-vos aí seu atributo diferencial, & seu atributo comum. Vede-vos, por favor, se pelo atributo diferencial, a Idolatria Pagã merecerá que se tire-lhe a qualidade de Ateísmo, & lembrei-vos que, mesmo quando este atributo seria melhor que o atributo diferencial do da outra espécie, ela não deixaria de ser nomeada de Ateísmo. Sabei-vos que a qualidade de animal convém ao homem na significação mais restrita filosoficamente falando, &, que, entretanto o atributo irracional, que é próprio aos brutos é incomparavelmente mais imperfeito que o atributo racional, que é próprio à espécie humana. (Id. Ibid., grifos de Bayle.).29
Mesmo debruçando-se nas características específicas de cada tipo de ateísmo, Bayle ainda equipara à postura dos idólatras a uma espécie de ateísmo. A idolatria, mesmo que seu atributo diferencial fosse melhor que o atributo diferencial do outro gênero de ateísmo, ainda estaria na mesma condição, ou em outros termos, estritamente falando, o paganismo seria um ateísmo. Entretanto, Bayle afirma que a idolatria é deveras pior que o ateísmo: a qualidade específica do ateísmo idólatra, em vez de corrigir o seu atributo geral, faz o inverso, incita-o ainda mais, pois se o ateísmo strictu sensu, o que nega a existência divina é caracterizado como uma revolta contra uma divindade, a idolatria é um crime duplo, pois além de ofender os deuses, ainda manifesta por meio de predicações a sua fidelidade aos inimigos de seu deus:
O Ateísmo geral é um crime de rebelião contra o verdadeiro Deus, sua essência consiste em não reconhecer o dominador de todas as coisas. O Ateu Pagão acrescenta a esse crime de felonia o de prestar juramento de fidelidade aos inimigos de seu legítimo Soberano; ele é então mais culpado que os Ateus da outra espécie que não adoram nenhum inimigo de Deus. (OD III[CPD], p. 309a.).30
Se ateísmo em seu significado genérico é a negação de um reconhecimento de um suposto deus onisciente, onipresente e onipotente, providencial e criador de todas as coisas é denominado como um crime, em relação à negação da adoração de falsos deuses representados por imagens animadas e inanimadas de todo tipo, esses ateus são “muito racionais e muito louváveis a esse respeito.”(Id. Ibid.)31 Nos antípodas, o idólatra mais uma vez fica acima do ateu na escala de infâmias contra seus deuses, pois suas representações do divino são, ao mesmo tempo, a sua negação. Dessa forma, é evidente a inferência de que determinadas pessoas ou povos que não possuem conhecimento algum de uma divindade, vivem desde os tempos mais primitivos em um ateísmo especulativo, mesmo que seus costumes estando deveras distantes de um ateísmo prático segundo a definição de Bayle, isto é, a renegação intencional da crença em um deus visando a satisfazer desejos licenciosos.32
Na Réponse, respondendo à Jacques Bernard, Bayle afirma que é um trabalho improfícuo e quixotesco da parte dos teólogos perderem seu tempo na tentativa de provar a inexistência de ateus especulativos.33 Em relação a seu adversário, Bayle mostra que a quantidade de relatos dos povos ateus no Novo Mundo, tanto como a fidelidade aos fatos da parte dos autores desses mesmos relatos, é um forte contraponto às autoridades teologais utilizadas por Bernard para sustentar a tese contrária.(OD III [RQP III], p. 925..) É no âmago dessa discussão que o filósofo de Carla vai estabelecer as definições de um ateísmo negativo e um ateísmo positivo:
O grande número de relatos que asseguram que foram encontrados povos ateus no novo Mundo, & o mérito dos Autores que acrescentam fé a isto causam muita dificuldade aos Teólogos os quais Sr. Bernard adota as hipóteses; mas nada é mais apropriado a afligi-los que os testemunhos concernentes ao Ateísmo dos filósofos da China. Mesmo eles conformando-se, quanto ao exterior, à idolatria do país, as leis do Estado e a sua própria Política aí engajam-nos. (Id. Ibid. pp. 925.-926..).34
Se Bayle já argumentara a favor do ateísmo especulativo utilizando da vasta literatura de viagem que estava a seu dispor, a respeito dos povos encontrados em continentes recém-descobertos, agora se vale de um exemplo mais vigoroso, cita uma nação milenar, que desde a Antiguidade já possuía um corpo de leis laicas e uma política independente da religião. Nesse sentido, o argumento do consentimento universal fica desestruturado: o ateísmo dos chineses desfaz o antigo mito que associava ateísmo e imoralidade.35 O ateísmo chinês não é somente um ateísmo negativo, isto é, uma descrença que é caracterizada pelo simples desconhecimento e inutilidade do conhecimento de um deus, mas um ateísmo positivo, um ateísmo resultante de um exame racional, filosófico, que compara os termos para se chegar a uma conclusão favorável ou desfavorável a uma determinada proposição36. Bayle cita mesmo autoridades religiosas, como os Jesuítas por exemplo, “que falam positivamente do Ateísmo que reina na China entre a seita dos Letrados.”(OD III [RQP III], p. 926..)37 E mais: os testemunhos dos Jesuítas são confirmados por seus antagonistas mesmo que a contragosto, o que seria uma forte evidência do ateísmo que foi constatado e registrado pelos missionários viajantes.38 Nesse sentido, Bayle toca em um ponto fundamental: a ótica dos missionários não foi a de um sectário, mas de um observador imparcial, de um historiador:
Porque esses Missionários não falam como Controversistas, mas como puros Historiadores; eles não se fundam sobre os costumes dessa seita; eles louvam-na muito mais por esse lado que eles não a censuram; eles se fundam sobre a teoria de seu sistema filosófico & assim esta prova da existência dos Ateus de especulação não pode ser evadida, como se tenta evadir a que se tira dos outros relatos de viagens. (Id. Ibid., p. 927..).39
Na passagem acima, o primeiro ponto importante é que Bayle mostra que toda possível negligência no empreendimento da observação e do exame da doutrina filosófica dos chineses pelos missionários foi descartada. Para chegar a conclusões mais concretas e convincentes a respeito dos que eles relataram sobre a China, seu devido procedimento foi o de um historiador que observa, examina, compara e depois chega a um resultado final do que foi constatado. Bayle nunca perde de vista o escopo dos que pretendem relatar fatos acuradamente, isto é, pautar-se na necessidade absoluta de deixar de lado as paixões quando se trata de fazer um examen rigoroso acerca de uma questão polêmica.40 Bayle já mencionara a importância fundamental dessa característica do historiador, ou do autêntico historiador no Éclaircissement sur les athées:“[...]eu não tenho o direito de aí representar as pessoas como quereria que elas fossem, é preciso eu que as represente como elas eram; não posso suprimir nem suas faltas, nem suas virtudes.” (DHC IV, p.628[1740]; 2010, p. 16)41
O segundo ponto, é que Bayle aborda um assunto delicado que é entre sustentar o ateísmo filosoficamente e sustentá-lo publicamente. Ainda detendo-se no exemplo dos chineses, mesmo estes concepções filosóficas de deus e da providência as quais culminam em um ateísmo strictu sensu, em se tratando de política, eles agiam conforme às leis e os costumes do país, mesmo submetidos, exteriormente, à idolatria. Nas entrelinhas dessa argumentação, Bayle, antes da contenda a respeito das cerimônias chinesas, sustentou por meio de diversos argumentos de ordem filosófica, histórica e religiosa que ateus podem ser virtuosos, e que o ateísmo está longe de ser incompatível com uma organização social. Por sua vez, os missionários com suas observações forneceram a prova cabal a Bayle para dar dar mais consistência às suas teses. Essa prova foi fator determinante, pois os chineses eram uma nação milenar, com um corpus político e social praticamente inalterado, alheio aos vícios e às corrupções que se instauraram e fizeram sucumbir outros impérios da Antiguidade.
Sobre esta questão de sustentar o ateísmo abertamente em um contexto social e político42e não perdendo de vista suas reflexões sobre as possibilidades de um ateísmo especulativo, Bayle cita primeiramente o exemplo da Itália, em particular Roma. Segundo Bayle, nesse país falar de religião é problemático e é mister a prudência, pois a desconfiança é generalizada e todos temem ser denunciados às autoridades religiosas. Nesse contexto, se qualquer um torna-se suscetível de pensar como um incrédulo, é crucial tomar cuidado com as palavras. (OD III [RQP III], p. 927..) Contrariamente, em outras partes do globo distantes de Roma e longe dos domínios da Inquisição, valem-se sem reservas de sua liberdade. Contudo, posteriormente, na mesma Itália, discursos profanos são disseminados com deboche e as imprecações contra o cristianismo, por exemplo, são de fazer tremer qualquer missionário pouco afeito a impiedades dessa estirpe. (OD III [RQP III], p. 928..) Bayle apoia-se nos relatos de Erasmo e Goropius Becanus para mostrar que mesmo durante as missas, blasfêmias eram ditas sem escrúpulos e os escritos religiosos, sendo vistos como fábulas infantis pelos doutos de Roma, o estudo da Teologia era simplesmente desprezado. Por tal postura, o que teria de ser verificado era se esses doutos eram ateus especulativos, “pois tendo sido educados no Cristianismo, eles ter-lhe-iam dado o privilégio da verdade do que a qualquer outra religião, se eles tinham acreditado em uma Religião.” (Id. Ibid.)43 Se todas as estórias contadas nos escritos ditos sagrados não passavam de puras quimeras para esses doutos, sendo a possibilidade de eles entreverem algum teor de verdade em qualquer religião praticamente nula, as noções de providência e da existência de um deus que eles tinham tornaram-se frágeis e desprovidas de fundamento. Assim, seria mesmo uma condescendência chamá-los de deístas e aqui a diferença entre ser deísta e ser ateu é mínima:
Isto deveria abalar de tal forma em seu espírito a doutrina da Providência & as melhores provas de Deus, que ter-se-ia talvez muita caridade para com eles se somente chamassem-nos de Deístas, & aliás, a diferença entre os Ateus e os Deístas não é quase nada, quando se examina as coisas a rigor. Creiamos então que eles eram Ateus interiormente, porque eles não podiam ignorar que a reputação de Ateu não os honraria no mundo, & que só era apropriado para fazer-lhe perder a estima do povo & cem tipos de aprovações. Também é certo que eles não se abriam a todo mundo. (Id. Ibid., pp. 927-928..).44
Por definição, se o ateu especulativo é o que examina as proposições religiosas para depois negá-las e a sua diferença é mínima em relação a um deísta, porém, crucial, pois, a rigor, a existência de um deus e a noção de providência não têm mais sentido sob o crivo do ateísmo. O outro aspecto levantado por Bayle é se, em seu foro íntimo, eles eram ateus com receio de exprimirem suas convicções filosóficas com medo de represálias morais e políticas. Quando Bayle diz “creiamos” que eles fossem Ateus intimamente, ele é meticuloso e evita fazer casuística, isto é, tentando sondar as consciências e as intenções do indivíduo. Em termos anacrônicos, Bayle evita fazer psicologia, renunciando a pretensão de querer saber realmente se alguém está convicto de ser ateu. O que está em jogo aqui é a discussão filosófica sobre as possibilidades do ateísmo em termos especulativos ou o status filosófico do ateísmo.45 Entretanto, ele toca na questão da reputação do ateísmo perante um determinado contexto social, pois a dificuldade em aceitar que um ateu seja sociável e respeitador das leis políticas ainda é um entrave em todos os aspectos. O medo iminente e permanente de sofrer sanções físicas e morais somente pelo fato de não acreditar nos deuses impostos pelas autoridades religiosas, ou mesmo pelo fato de não crer em deus algum, leva o ateu a falar sobre suas convicções em círculos pessoais minúsculos, dentre seus pares. Se, por meio de exemplos concretos, à Bayle é cristalino desde os Pensées Diverses que crença nada tem a ver com agir moralmente e de acordo com a reta razão, essa assimetria entre uma coisa e outra ainda não é tão evidente aos seus opositores. Por sua vez, os doutos italianos dados como exemplo pelo filósofo de Carla “só falavam de seu Ateísmo com alguma precaução, & que nisto eles quase conformavam-se ao culto e à linguagem ordinária.”(OD III[RQP], p. 928.)46
Bayle empreende uma discussão específica sobre a doutrina de Gisbert Voetius47, examinando as suas objeções contra a existência de um ateísmo especulativo e tentando mostrar que os que a negam “não diferem muito dos que não a negam. Sua disputa só gira sobre a diferente definição das palavras.” (OD III[RQP III], p. 930..)48 Basicamente são quatro os argumentos do teólogo holandês: 1) se existem ateus especulativos, eles o são diretamente, caracterizando-se como um sentimento temporário e de profissão externa, porém, não advindo da persuasão do entendimento nem de uma convicção interior de que não existe deus algum; 2) pouco importa se existiram de fato povos que, privados de caracteres divinos, não reconheciam deus algum. Basta somente crer que, em todos os lugares onde se admita um deus, necessariamente há uma religião, e as coisas existindo ou não, somente expressá-las por meio de afirmações seria suficiente; 3) seria necessário aos pensadores acusados de ateus na Grécia Antiga provarem que seu ateísmo não seria somente uma mera opinião, e sim um objeto de ciência ou uma verdade necessária e provada por uma causa necessária; 4) que ateus à beira da morte confessam sua descrença contra as suas próprias consciências e que é impossível saber o que motivou eles a afirmarem o seu ateísmo. (OD III[RQP III], p. 931..)
Segundo Bayle, a disputa de palavras consistiria justamente no seguinte: a diferença entre as teses de Voetius e as teses dos que defendem a existência do ateísmo especulativo é que o teólogo holandês não nega que existam pessoas que possuem vícios que os outros definem como ateísmo de especulação, mas não admite que tais vícios sejam dignos desse nome.49 Nesse sentido, seria necessário verificar se Voetius conseguiu dar uma definição convincente do que seja o ateísmo especulativo e daí impor uma aporia a seus adversários, isto é, que eles respondam acerca do que se passa no coração e na consciência de um ateu em um momento crítico, quando as palavras tornam-se limitadas. Bayle ironiza, dizendo que nem vai se dar ao trabalho de examinar a objeção de Voetius, visto que este incorre no erro de propor uma objeção superficial, isto é, se não tem como sondar as consciências de indivíduos à beira da morte, por exemplo, tal objeção vale tanto para quem nega a existência do ateísmo especulativo como para quem a afirma.50 O principal é “[...] dizer sobre o quê se fundam os adversários de Voetius, para definir de outra forma o ateísmo especulativo.” (Id. Ibid., p. 932a.)51
A questão é desenvolvida por Bayle da seguinte maneira: se os homens fossem divididos entre os que são convictos da existência de um deus e os que não são, surgiriam duas classes que englobariam toda a humanidade, não havendo meio-termo entre duas teses opostas. A primeira seria suscetível de ser dividida em diversas subclasses, de acordo com as diferentes representações da divindade. A segunda, por sua vez, seria dividida entre os que não examinaram a questão e os que a examinaram. Bayle aqui retoma as definições de ateísmo negativo e ateísmo positivo:
Aqueles definham na ignorância, jamais foram instruídos na Religião & é o que se chama de Ateísmo negativo; é a espécie de Ateísmo a qual os Antilhanos, Os Canadenses, &c foram culpados. Quanto aos que compararam o Teísmo & o Ateísmo, eles podem ser subdivididos de muitos modos, ainda que sejam todos culpados de Ateísmo positivo: uns não decidem nada; os outros decidem pelo Ateísmo. Aqueles encontrando dificuldades tanto do lado da negativa como do lado da afirmativa, ficam em suspenso; são Céticos ou Acatalépticos: se são Céticos, continuam a examinar na esperança de encontrar, enfim, alguma certeza: mas se eles são Acatalépticos, cessam de buscar, se persuadem que a questão é impenetrável, & muito acima de seu espírito, & fixam-se na dúvida. Os que decidem pelo Ateísmo, fazem-no ou porque o acham mais provável que o Teísmo, ou porque imaginam ter demonstrações. Spinoza parece estar neste último caso. (OD III[RQP III], p. 932.)52
Dentre as definições de ateísmo positivo e ateísmo negativo fica clara a necessidade exigida por Bayle de se ter uma precisão filosófica nos termos que foi negligenciada por Voetius, reclamando “um verdadeiro conteúdo de pensamento e de filosofia os quais o negador de Deus seria o representante justamente enquanto 'ateu de especulação'”. (PAGANINI, 2009, p. 394.) As classificações expostas por Bayle mostram que o conceito de ateísmo pode ser restrito ou mais amplo, suscetível de diferentes níveis de significação e de diferentes interpretações: por exemplo, quando o filósofo de Carla diz que tanto teístas como ateus são culpados de ateísmo positivo, torna-se evidente a falta de rigor conceitual, visto que a mínima heterodoxia é entendida como descrença absoluta.53 Entretanto, Bayle diz que, sem muito esforço, é possível mostrar todas essas categorias são um ateísmo especulativo:
Não é difícil mostrar que todos esses tipos de pessoas são Ateus especulativos; porque se o caráter ou a diferença específica dos homens da primeira classe é de serem persuadidos da existência divina, o atributo que os distingue dos homens da segunda classe é que eles são Teístas especulativos. É preciso então que todos os homens da segunda classe sejam Ateístas especulativos, visto que sua diferença específica é de não serem persuadidos da existência divina, atributo contraditório à diferença específica da outra classe. (OD III[RQP III], p. 932ab.)54
Em termos gerais, o que diferencia o teísta do ateu é a sua persuasão da existência divina, logo, trata-se de um teísmo especulativo. E os ateus que, por sua vez, não são persuadidos de uma existência divina, trata-se de um ateísmo de especulação.55 Contudo, é preciso atentar às nuances da argumentação, pois dentre a subdivisão feita por Bayle entre os que não são persuadidos da existência divina, há os que negam e há os que somente duvidam, não tendo certeza se tal questão terá uma resolução. O filósofo de Carla menciona categoricamente que é necessário quetodas as pessoas da segunda classe sejam ateus especulativos, mas ele mesmo estabelece diferenças específicas e conceituais nestas subdivisões. Limitar-se à suspender o juízo, ficando somente na “esperança” de obter uma certeza a respeito de uma determinada proposição e negar a certeza de uma proposição por demonstrações, axiomas e escólios - mesmo estando no âmbito da probabilidade - são coisas bem diferentes. Se o acataléptico definido por Bayle é o que tem a convicção que questões dessa estirpe são impenetráveis, se o cético é o que empreende um exame contínuo, almejando obter êxito para poder tomar uma posição, o ateu é o que, duvidando de determinadas premissas que lhe são apresentadas retorque-as não pela dúvida, mas com uma outra certeza filosófica no seu ponto de vista, a saber, a tentativa de demonstrar com argumentos a inexistência de um deus. Em uma palavra, ao ateu não basta somente duvidar ou restringir-se a dizer que certos problemas filosóficos são insondáveis. Se todos esses aspectos possuem em comum um caráter filosófico, suas diferenças específicas fazem com que suas próprias definições tenham significações diferentes.56
Bayle afirma que Voetius ignorara a possibilidade de alguém acreditar em inúmeras coisas sem que a dúvida viesse afligir sua crença, ainda que o contrário fosse plausível. Para aderir a alguma posição ou doutrina, bastando crer que seja verdadeira para adotá-la ou, crendo que ela seja falsa, é suficiente apenas duvidar que ela seja verdadeira. Bayle aqui toca em um ponto importante, a saber, que em relação à discussão entre teístas ateus, para estes últimos basta ver o teísmo como um problema:
Vede-vos por aí que para ser não-Teísta, ou Ateísta, não é necessário afirmar que o Teísmo é falso; basta vê-lo como como um problema. Vai-se mais adiante, se se junta ao outro partido como a uma coisa bastante provável para aí poder aderir sem imprudência. Vai-se ainda mais adiante, se se afirma que o sistema dos Cristãos sobre a natureza de Deus é impossível. É aí o cúmulo da impiedade, mas os graus inferiores àquele não deixam de ser um Ateísmo. (OD III[RQP III], p. 932..)57
Afirmando a falsidade do teísmo poder-se-ia, ao mesmo tempo, manifestar traços de dogmatismo e ser vítima do círculo vicioso característico de uma discussão na qual duas razões são equivalentes. Poderia ser um avanço na resolução do problema aderir ao ponto de vista ateu, uma vez observando-o o como mais provável, mas indo mais além, entendendo que a concepção de natureza divina cristã é impensável é o grau mais alto de impiedade. Contudo, bastando somente duvidar de certas premissas já se configura um ateísmo especulativo, propriamente cético. Juntar-se ao “outro partido”, o ateu, é inocular um germe de dúvida em certezas impostas como a última palavra.58 Bayle chama a atenção para o fato de que ele incluiu os que duvidam da existência de um deus entre os ateus especulativos porque ele somente quis falar “daqueles que afastam-se igualmente da afirmação e da negação deste grande artigo.”(Id. Ibid.)59
Bayle atenta para a possibilidade do surgimento da seguinte questão, a saber, se os que acreditam que na existência de pessoas culpadas de ateísmo positivo e especulativo, creem que a maioria dessas mesmas pessoas, na verdade, “aí só fazem simplesmente duvidar, sem chegar à afirmação real, que não há Deus.”(Id. Ibid., p. 933.)60. O autor da Réponse entende que aí se faz necessário estabelecer uma diferença, pois isso concerne a pessoas que, crescidas e educadas na religião cristã e assimilando preceitos dessa doutrina até uma certa idade, é evidente que, quando a persuasão da existência de um deus neles se esvanece, a maioria envereda pelo caminho da incerteza.61 Vejamos esta passagem:
Desde que suponheis que uma pessoa perdeu pela via do exame a fé que tinha sugado com o leite no tocante à existência Divina, sereis obrigado a supor que não pôde responder às objeções. Mas, se por causa disso, ela cessou de afirmar mentalmente que há um Deus, é preciso crer que ela evita negá-lo mentalmente; porque as objeções contra o Ateísmo deveram-lhe parecer insolúveis. Ela deve então permanecer como um pedaço de ferro entre dois imãs de mesma força. Que se trate dos Ateus da China, há aparência que a maior parte nega a existência da Divindade. Eles aprendem desde a infância um sistema de filosofia que é um Ateísmo puro. (OD III[RQP III], p. 933..) 62
Um exame acerca da crença é um caminho que se bifurca: pode conduzir à descrença absoluta, como pode conduzir a ficar em suspenso acerca da veracidade da existência divina, nem negando ou afirmando-a. Ambas as proposições possuem o mesmo grau de persuasão sobre o indivíduo. Bayle afirma que tanto as objeções contra o teísmo como as objeções contra o ateísmo não têm solução alguma, o máximo que se pode fazer é crer que um deus não esteja sendo negado ou afirmado mentalmente. Logo, Bayle não está preocupado em verificar a sinceridade do ateísmo, mas com a tentativa de inseri-lo em um debate filosófico com as suas respectivas exigências, isto é, se uma determinada proposição é conforme aos princípios que estabeleceu, se as premissas de uma prova são verdadeiras e se é adequada a consequência daí tirada.63
Bayle ainda se detém em mais uma observação sobre a doutrina de Voetius. Este se limitou a argumentos inconsistentes a fim de negar que exista o ateísmo, pois valendo-se de uma palavra – isto é, “deus” - e pensando que uma vez sendo admitida a crença nesta palavra, isso seria suficiente para concluir que não se é ateu. Em contrapartida, Bayle afirma que há uma diferença abismal entre as palavras e coisas, ou, em outros termos, é um grave equívoco aplicar uma mesma palavra a coisas diferentes:
Tenho ainda uma observação a fazer sobre a disputa de Voëtius. Ele se contenta com pouca coisa a fim de poder negar que tenham pessoas que não creem em Deus. Ele se vale de uma palavra, e visto que saiba que se admitem Deuses, isso lhe basta para concluir que não se é Ateu. Mas de quê serve convir com os outros quanto aos nomes, se se diferem quanto às coisas? As Naturezas que os Epicuristas nomearam Deuses, não eram elas as mais afastadas da natureza divina como o Céu é da Terra? Era então falso que eles afirmassem a existência de Deus. (OD III[RQP III], p.933..)64
A nomenclatura dada aos deuses por diversas civilizações e doutrinas filosóficas é o argumento de Bayle para desvalidar o argumento contra a existência do ateísmo. Não basta apoiar-se em uma palavra de um contexto particular para deduzir que uma crença em um deus ou deuses seja fato consumado. Bayle mostra como um problema linguístico impede que se confira o estatuto de universalidade a uma palavra: não adiantando nada adotar um termo somente tomando como critério o seu uso por todos, a sua aplicabilidade em determinados contextos torna-se inviável devido às próprias definições do que seja crer ou descrer. O exemplo dos Epicuristas mostra que a noção de um deus ou a crença em um deus único, válido para todos, é frágil a partir do momento em que se constata que, na verdade, está longe de ser unívoca tal concepção, mesmo tendo seus problemas em, a contrario, afirmar que epicurismo e ateísmo sejam equivalentes.65 Na verdade, o que importa é entrever que as nomeações diferentes aos deuses proferidas pelos mais diversos povos ou doutrinas liquida de vez a pretensão de universalidade de uma palavra, no caso aqui, “deus.”
Aqui Bayle faz vir à tona novamente o problema do consensus universalis: nunca será possível deduzir a verdade de uma palavra do seu caráter consensual, isto é, somente porque uma noção, sendo aceita por todos sem exame prévio, não seja suscetível de erro. Bayle dá exemplos de posturas religiosas bem mais graves do que negar a existência dos deuses, ou seja, diversos “ateísmos” bem piores que um ateísmo strictu sensu:
Provamos que o Paganismo era, propriamente falando, um Ateísmo; e é certo que os que atribuem a Deus somente qualidades que minam todos os fundamentos da Religião, podem justamente passar por Ateus. É minar todos os fundamentos da Religião representar Deus como um ser que não se intrometa em nossos negócios, ou como uma causa que age sem nenhuma liberdade; porque as orações e as oferendas não podem servir de nada de uma causa que só segue a impetuosidade de sua natureza. Que se viva bem, ou que se viva mal, não será nem mais nem menos: a necessidade fatal, à qual a ação de Deus é submetida segundo esse sistema, não permite que tenha respeito ou a nossas virtudes, ou a nossos vícios. (OD III[RQP III], p.933..)66
Nesse tableau dos diversos “ateísmos” que poderiam ser cometidos devido às posturas mais extravagantes de louvar os deuses, Bayle vai ao cerne da questão: é muito pior do que negar a existência de um deus tirar o seu poder de intervir nas ações humanas, suprimir a sua liberdade colocando-o sob o fatalismo do curso da natureza, ou reverenciá-lo por meio de rituais que não vão retirá-lo da submissão à ordem necessária das coisas. Segundo Bayle, é preciso levar em conta que muitas pessoas não negaram que haja uma providência divina ou suprimiram de todo a liberdade atribuída à divindade, daí surgindo a questão de qual seria a diferença entre elas e os ateus.67 Bayle, valendo-se ironicamente de um argumento de Jacques Bernard, menciona que alguns povos da América faziam vários elogios a seus deuses, fazendo deles os autores de suas benesses, porém, entendendo que não seria necessário render-lhes culto algum.68 Ora, aqui a sutileza de Bayle na crítica a Bernard e também a Voetius: se esses povos entendiam que seus deuses eram os autores de seus bens, mas estes procedendo deles de forma natural e indiferente, que não havia intervenção divina alguma no curso das ações humanas, fazendo tudo o que quisessem e sendo trabalho inútil homenagear os céus com cultos e oferendas, a interrogação do filósofo de Carla é cabal: “Pode-se dizer com razão que esses povos conservaram a ideia de Deus & que os Ateus são os maiores monstros?”(OD III[RQP III], p. 934..) Aqui Bayle reforça a tese já erigida em seus Pensées diverses sur la comete: desconstrói a imagem “monstruosa” do ateu: ele muda o tom dos discursos acerca daquele que descrê, seja entre os apologistas de sua época, seja entre os libertinos69. Segundo Jean-Michel Gros, “para dizê-lo em seu próprio estilo, Bayle mudou o que poderíamos chamar o ‘gosto’ pelo ateísmo.” (2012, p.239). O ateísmo em seu tempo era simultaneamente objeto de atração e de repulsa, que não viabilizava uma análise mais comedida a seu respeito e, nesse sentido, quando Bayle vai de encontro com os seus opositores, sua crítica consiste na banalização do fenômeno do ateísmo, isto é, desfazer a clássica associação entre ser ateu e ser uma espécie de “monstro”, cuja postura é “inconcebível para todo ser dotado de razão.” (Id. Ibid.)
Vejamos então, nas palavras do próprio Bayle, quem na verdade seria um monstro desprovido de qualquer racionalidade: “Seja o que for, dir-me-ão, seria uma coisa estranha um ateu que vivesse virtuosamente. É um monstro que ultrapassa as forças da natureza. Respondo que não é mais estranho que um ateu viva virtuosamente do que um cristão se entregue a toda sorte de crimes. Se vemos todos os dias esta última espécie de monstro, porque acreditaríamos que o outro seja impossível?” (2007, p.362, OD III[PD], p.110., grifos meus) Se conjecturalmente o ateu é um monstro nos antípodas da natureza, na prática, cristianismo e monstruosidade se equivalem. O tour de force empreendido por Bayle em relação ao retrato do ateu torna possível o perfeito conúbio entre descrença e virtude, em uma época onde o preconceito não dava a menor margem para a possibilidade do ateísmo e seus partidários representando um perigo constante. Entretanto, Bayle avança mais na argumentação, não querendo limitar-se a hipóteses, mas mostrar que os poucos que manifestaram abertamente serem ateu nem sempre enveredaram pelo desregramento dos costumes: “Mas, para dizer algo de mais forte e que não fique nos termos de uma simples conjectura, o que eu expliquei no que concerne aos costumes de uma sociedade de ateus, observarei que o pouco de pessoas que fizeram profissão aberta de ateísmo entre os Antigos, um Diágoras, um Teodoro, [...] e alguns outros, não viveram de uma maneira que tenham feito reclamar contra a libertinagem de seus costumes. Não vejo que os acusam por distinguirem-se pelos desregramentos de sua vida tanto como pelas aberrações terríveis de sua razão.” (Id. Ibid.; Id. Ibid., pp.110.-111.) Bayle toca em um ponto crucial, a saber, o conhecimento de um deus só serve para tornar o crime de um devoto ainda mais hediondo, não para minimizá-lo. No seu paralelo entre o ateísmo e a idolatria que dá o tom de seus Pensées diverses, o filósofo de Carla menciona que o ateu, por ter nascido entre os povos que, segundo os relatos de viagem, desde os primórdios nunca reconheceram deus algum, seus crimes poderiam ser atenuados justamente pela ignorância da existência de uma divindade.70 Logo, na escala de crimes, o idólatra está acima do ateu, pois cometer crimes mesmo sabendo que tais ações não agradariam os deuses é pior do que negar a sua existência: “Então, é um crime maior a um idólatra fazer falsos sermões, pilhar templos e cometer quaisquer outras ações que ele sabe não serem agradáveis a seus deuses, que não é a um ateu fazer as mesmas coisas. Então, a condição dos idólatras é pior que a dos ateus, visto que, uns e outros estando igualmente na ignorância do verdadeiro Deus e incapazes igualmente de servi-lo, os idólatras têm, em particular, certas noções e certas persuasões contra as quais eles não saberiam agir sem uma malícia extrema e sem um visível desprezo de suas divindades.” (Id. Ibid., p.261; Id. Ibid., p.77.).
A malícia atribuída ao ateísmo agora muda de lugar: o idólatra tendo pleno conhecimento das ações que desagradariam à divindade e mesmo assim as comete, não pôde fazê-lo sem desconsideração de seus próprios preceitos religiosos. Nesse sentido, a impiedade maior parte do devoto, pois uma vez não contemplado pelos céus, não hesita em concretizar algum crime monstruoso mesmo tendo em conta, maliciosamente, que o que está fazendo não apraz a seus deuses. Bayle nos dá um exemplo: “Assim, quando um pagão, permanecendo persuadido que Júpiter e Netuno eram seus deuses, roubava as coisas que lhe eram consagradas e dizia-lhe injúrias, era sacrílego e blasfemador perante Deus; e não é um menor crime à Calígula chamar seu Júpiter em duelo e lançar-lhe pedras para as nuvens com essas palavras: Tirai-me do mundo, ou eu tirá-lo-ei, todas as vezes que ele via cair o relâmpago, do que seria a um cristão fazer a mesma coisa a respeito de Jesus Cristo, se a persuasão do cristão fosse maior que a de Calígula ou que a falta de persuasão fosse menos desculpável no Calígula que no Cristão.”(PD, 2007, 261; OD III[PD], p. 77..) Segundo Bayle, para julgar se um crime é mais monstruoso que outro, é mister saber se um foi cometido com mais conhecimento do que outro tanto como faz-se necessário saber qual dos dois criminosos contribuiu mais à sua ignorância com a sua malícia. Ora, um homem pode ter ignorado determinadas coisas porque simplesmente se recusou a instruir-se, com receio de que esta instrução o desviasse de seus maliciosos desígnios, os quais ignorância alguma pode desculpar.71 Bayle daí infere: “De onde parece que os ateus não podem ofender Deus de tantas maneiras nem com tanta malícia que os idólatras; e que, assim, inflamar cometas extraordinariamente a fim que os homens sejam mais idólatras que ateus é somente querer fazer os homens mais maldosos e mais infelizes. Advirto-vos, uma vez por todas, Senhor, que eu falo desses ateus que ignoram a existência de Deus, não por ter sufocado maliciosamente o conhecimento que eles tiveram a fim de entregar-se a toda sorte de crimes sem nenhum remorso, mas porque eles jamais ouviram falar que se deva reconhecer um deus.” (Id. Ibid., p.263; Id. Ibid., p.77.) Assim, Bayle reverte a imagem “monstruosa” do ateu aos olhos de seus adversários e vislumbra uma moral natural: não se trata aqui de conjecturar ou saber se um ateu terá um comportamento melhor do que outro em sua conduta prática, e sim verificar se por ele mesmo pode alcançar o conhecimento dos mais elevados princípios morais, independentemente de qualquer religião ou doutrina.72 Antes de tudo, se o ateu é capaz de uma retidão moral, ele também seria o único capaz de uma moral no sentido amplo do termo. Nas palavras de Jean-Michel Gros, “[...] com efeito, só há pureza moral para o ateu, o crente, podendo sempre ser suspeito de subordinar sua boa ação a considerações de interesses, que seriam somente os da salvação.”(2012, p. 260).