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Da ação ao comportamento: o espaço público da oikonomia
Fernando Gigante Ferraz
Fernando Gigante Ferraz
Da ação ao comportamento: o espaço público da oikonomia
From the action to the behavior: the public space of oikonomia
Griot: Revista de Filosofia, vol. 7, núm. 1, pp. 1-8, 2013
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: O texto faz uma reflexão teórica a partir de Benjamin, Arendt, Foucault e Agamben. Em um primeiro momento faz-se uma análise da assertiva benjamineana de que “tornamo-nos muito pobres de experiências liminares”. Em seguida associamos essa idéia de “aniquilamento das transições” à idéia de homogeneidade e efemeridade da experiência urbana contemporânea. A partir desse ponto o texto articula essa homogeneidade com uma idéia de empobrecimento da esfera do comum, ou seja, do político, em prol de uma “gestão de necessidades”: a gestão como sucedânea do político, que se refletiria na produção contemporânea do espaço e na “(des)construção do comum”.

Palavras-chave:Eclipse do políticoEclipse do político,LimiarLimiar,Homo laboransHomo laborans,GovernamentalidadeGovernamentalidade,DispositivoDispositivo.

Abstract: This paper is a theoretical consideration from Benjamin, Arendt, Foucault and Agamben. At first, it is an analysis of Benjamin’s assertion which says "we become very poor of liminal experiences". Then, we associate this idea of ​​"annihilation of transitions" with the idea of homogeneity and ephemerality of contemporaneous urban experience. From this point, the text articulates this homogeneity with an idea of impoverishment of the public realm, ie of the political, in favor of a "management of the needs": the management as a substitute of the politics, which would be reflected in the contemporaneous production of space and "(de) construction of the public."

Keywords: Eclipse of politics, Liminal, Homo laborans, Governmentality, Device.

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Da ação ao comportamento: o espaço público da oikonomia

From the action to the behavior: the public space of oikonomia

Fernando Gigante Ferraz1
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 7, núm. 1, pp. 1-8, 2013
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 17 Março 2013

Aprovação: 26 Maio 2013

Gostaria de iniciar essa reflexão a partir de uma idéia cara defendida por Walter Benjamin e retomada por Giorgio Agamben, qual seja, “somos pobres em experiências limiares”. O texto já bastante conhecido encontra-se no caderno “Prostituição, jogo” das Passagens. Eis o texto:

Ritos de passagem – assim se denomina no folclore as cerimônias ligadas à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade etc. Na vida moderna, estas transições tornam-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em experiências liminares. O adormecer talvez seja a única delas que nos restou (E com isso também o despertar). E, finalmente, tal qual as variações das figuras do sonho, oscilam também em torno de limiares os altos e baixos da conversação e as mudanças sexuais do amor. “Como agrada ao homem”, diz Aragon, “manter-se na soleira da imaginação” (no limiar da portas da imaginação), (Paysan de Paris, 1926, Paris, p. 74). Não é apenas dos limiares destas portas fantásticas, mas dos limiares em geral que os amantes, os amigos, adoram sugar as forças. As prostitutas, porém amam os limiares das portas do sonho. – O limiar (schwelle) deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira (grenze). O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra schwellen (inchar, intumescer), e a etimologia não deve negligenciar estes significados. Por outro lado, é necessário determinar (manter, constatar) o contexto tectônico e cerimonial imediato que deu à palavra seu significado. Morada do sonho. (BENJAMIN, 2006, p. 535).

De início proponho pensarmos melhor a distinção “rigorosa” estabelecida por Benjamin entre fronteira (grenze) e limiar (schwelle). Os motivos se verão abaixo.

No vocabulário filosófico o conceito de fronteira estabelece uma metáfora: desenhar um traço em redor de algo dando-lhe uma forma bem definida, evitando que ele se espraie, se derrame em direção a um infinito onipotente (o apeíron de Anaximandro) ou o “mau infinito” de Hegel. A fronteira “contém e mantém algo, evitando seu transbordar, isto é, define seus limites não só como os contornos de um território, mas também como as limitações do seu domínio” (GAGNEBIN, 2010, p. 13). No pensamento crítico de Kant a fronteira também se entende como limite. A própria crítica, entendida como a tarefa do pensamento, se entende como o traçar dos limites: proibir ultrapassagens perigosas ou falsas transcendências; trata-se de uma ascese, de um exercício de limitação.

Também no vocabulário jurídico o conceito de grenze remete a delimitação territorial, seja entre cidade e campo, seja entre cidades, seja entre várias propriedades fundiárias, seja ainda entre vários territórios nacionais. A fronteira (em latim finis, confiniun, no contexto do direito de propriedade, limes) não pode de forma alguma ser transposta impunemente. Sua transposição sem acordo prévio será visto como uma agressão potencial.

O conceito de schwelle, limiar, soleira, umbral, seuil, designa também uma metáfora espacial, no entanto se inscreve em um registro distinto: registro de movimento, de ultrapassagem, de “passagem”, transição. Na arquitetura (no urbanismo?) se refere justamente à função de transição, isto é, permitir ao “morador”, “transeunte” a possibilidade do transitar, sem dificuldade de um lugar determinado a outro, por vezes oposto: uma simples soleira de porta, corredor, escadaria, pórtico, portão, o limiar não só separa (como a fronteira), mas permite a transição, de duração variável, entre dois territórios. Ele pertence à ordem do espaço, mas também, e essencialmente, à do tempo. A duração é um traço essencial do limiar.

Fica clara a dificuldade das línguas latinas em operar com a distinção entre grenze/limite e schwelle/limiar se lembrarmo-nos que limite, fronteira, grenze vem do latim limes, limitis, substantivo masculino que diz “caminho que borda um domínio”, donde limitar, limitação, delimitação; enquanto limiar, soleira, schwelle deriva de limen, liminis. A semelhança fonética entre limes, limitis e limem, liminis fez com que nas línguas romanas limitaris tenha sido confundido com liminaris. Talvez seja essa semelhança que nos faça usar indistintamente como sinônimos as palavras “limite”, “fronteira” e “limiar”. Apesar de todos esses termos apontarem para uma separação entre dois domínios, muitas vezes opostos, tais como “próprio” e “comum”, por exemplo, esquecemo-nos de que o limiar não significa somente separação, mas sugere “(...) um lugar e um tempo intermediários e, nesse sentido, indeterminados, que podem, portanto, ter uma extensão variável, mesmo indefinida”. É a essa “zona cinzenta” indeterminada, indefinida que toda a filosofia ocidental se opôs e não só ela, mas também e, principalmente, o senso comum, pois é mais fácil, preferem-se, as oposições claramente demarcadas entre masculino/feminino, público/privado, sagrado/profano etc.)2. .

Pode-se tentar tirar algumas conseqüências dessas primeiras reflexões. De início, a partir da obra do próprio Benjamin em particular de sua “teoria da modernidade”. Lembremo-nos de uma passagem do fragmento citado, diz-nos Benjamin: “Na vida moderna essas transições (übergänge) tornaram-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em experiências liminares”. Para o filósofo, como de resto para muitos de seus contemporâneos, se o tempo na modernidade, em particular do capitalismo, é o tempo do efêmero, reduzindo-se a uma sucessão de momentos iguais sob o véu da novidade, decorre daí que toda a transição, quer dizer todo limiar deve ser anulado.

As transições devem ser encurtadas ao máximo para não se ‘perder tempo’. O melhor seria poder anulá-las e passar assim o mais rapidamente possível de uma cidade a outra, de um país a outro, de um pensamento a outro, de uma atividade a outra, enfim com se passa de um programa de televisão a outro com um mero toque na tecla do assim chamado ‘controle remoto’, sem demorar inutilmente no limiar e na transição. (GAGNEBIN, 2010, p. 15).

O problema que nos interessa aqui não é somente o da impossibilidade de transpor limites, fronteiras, do público/privado, próprio/comum, mas, principalmente a questão da impossibilidade de experiências liminares na cidade contemporânea, o aniquilamento das transições, na cidade, na sociabilidade, na subjetividade contemporânea.

Em um texto até onde sei ainda inédito, Cibele Risek3 . afirma que anular as transições seria o mesmo que construir a homogeneidade, o zapping como diria Gagnebin. Passa-se de um lugar a outro, de um ponto a outro, sem transições, sem “ritos de passagem”. Isso, no limite, levaria a que não haja mais escolhas e sim gestão, administração da vida e dos lugares. A gestão como sucedânea da política.

Essa questão nos faz lembrar pelo menos três autores que trataram do problema mesmo que de forma bastante diferente: Hanna Arendt, Michel Foucault e Giorgio Aganbem.

Em seu A condição Humana, Arendt é bastante clara quando afirma que no ocidente ao político se sucede a economia e a essa se sucede o social e a esse último segue-se a administração. Há de se gerir economicamente o social; é a vitória do homo laborans, a ascensão do animal laborans ao centro do palco político. Em uma fórmula algo enigmática, Arendt entende que a partir do século XIX, a política é dominada pelo processo de um “crescimento não natural do natural” (2009, p. 57). A revolução industrial, acompanhada da urbanização, “(...) trouxe consigo a transformação do homo faber, o homem moderno concebido como fabricante artesanal de obras duráveis, no animal laborans, o homem contemporâneo concebido como trabalhador constantemente empenhado na manutenção do ciclo vital da espécie e da própria sociedade em que vive” (DUARTE, 2010, p. 316). É o ciclo interminável de trabalho e consumo, consumo e trabalho; é sempre preciso trabalhar mais para consumir mais e vice-versa. Assim o espaço público é convertido em espaço privado de trocas econômicas.

A tese arendtiana é a de que a partir do século XIX, cada vez mais o político e seus traços constitutivos fundamentais foram sobredeterminados por interesses socioeconômicos privados e pelo saber técnico que transforma o agente político em tecnocrata. O que resultou desse processo foi a perda de espaço da liberdade para o domínio da necessidade; a perda do espaço público e comunitário para os lobbies de grupos de pressão ocultos; a submissão da pluralidade de idéias políticas pelo pensamento único; o ofuscamento da novidade e da criatividade pelo eterno retorno do igual. (DUARTE, 2010, p. 316).

Na modernidade, a sociedade conquistou a esfera pública; a ascensão da sociedade normalizada corresponde à ascensão da economia. A esfera pública foi socializada e despolitizada. O homem socializado é ainda menos ativo do que o homem econômico do liberalismo. Trata-se do que Arendt chama de substituição da “ação” pelo “comportamento” normalizado.

Michel Foucault, mesmo que por outros meios, chega a conclusões semelhantes. Não caberia nesse texto reconstituir o caminho teórico que levou Foucault da análise do poder disciplinar à análise da biopolítica e desta ao conceito de governamentalidade. Para nosso intento basta algumas palavras sobre esse último conceito. São com os cursos do College de France de 1977-1978 Segurança território população e Nascimento da Biopolítica de 1978-1979 que aparecem na terminologia foucaultiana os conceitos de “governamentalidade” e de “dispositivos de seguridade”. A partir desses cursos a questão política que emergiu foi a seguinte: como se dão as relações entre Estado, economia política e os problemas de população? De fato, diz-nos Foucault, o processo histórico da modernidade não poderia ser entendido em termos de “substituição de uma sociedade de soberania por uma sociedade disciplinar e desta por uma sociedade de governo. De fato, temos um triângulo: soberania, disciplina, e gestão governamental, uma gestão governamental cujo alvo principal é a população e cujos mecanismos essenciais são os dispositivos de seguridade” (2004, p. 111). Ou seja, um tripé: lei, norma, gestão; é preciso gerir o corpo social, como corpo que trabalha, tornando-o dócil politicamente e últil economicamente. A vida e seus mecanismos entram nos cálculos explícitos do poder, enquanto este se torna agente de transformação da vida. Se desde Aristóteles, diz ainda Foucault, o homem era um animal vivente capaz de uma existência política, agora é o animal em cuja política o que está em jogo é seu caráter de ser vivente. Trata-se do que Arendt denominou certa vez de “gestão das necessidades”. Percebe-se aqui uma certa “afinidade eletiva” entre dois autores que, curiosamente, não se leram.

Em um texto curto, porém luminoso intitulado O que é um dispositivo? (2010) Agamben nos dá novas pistas. Sabe-se que essa noção de dispositivo é uma noção central na filosofia de Foucault. Mesmo que nunca tenha elaborado propriamente uma definição, o filósofo francês é bastante explícito em uma passagem bem conhecida de uma entrevista de 1977. Eis o texto:

Pode-se tirar resumidamente três proposições Aquilo que procuro individualizar com este nome é, antes de tudo, um conjunto absolutamente heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o não dito, eis os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se estabelece entre estes elementos (...) com o termo dispositivo, compreendo uma espécie – por assim dizer – de formação que num certo momento histórico teve como função essencial responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função eminentemente estratégica. (...) Disse que o dispositivo tem natureza essencialmente estratégica, que se trata, como conseqüência, de uma certa manipulação de relações de força, seja para orientá-las em certa direção, seja para bloqueá-las ou para fixá-las e utilizá-las. O dispositivo está sempre inscrito num jogo de poder e, ao mesmo tempo, sempre ligado aos limites do saber, que derivam desse e, na mesma medida, condicionam-no. Assim, o dispositivo é: um conjunto de estratégias de relações de força que condicionam certos tipos de saber e por ele são condicionados. (AGAMBEN, 2001, p. 299).

Em primeiro lugar do dispositivo, é um conjunto heterogêneo lingüístico e não linguístico: discursos, instituições, edifícios, medidas de polícia, proposições filosóficas, etc. o dispositivo é a rede que se estabelece entre esses elementos. Em segundo lugar, o dispositivo tem sempre uma função estratégica, ou seja, se inscreve sempre em uma relação de poder. Por fim, o dispositivo resulta da interseção de relações de poder e relações de saber. Mas o que nos interessa mais de perto aqui são os desdobramentos que a análise de Agamben pode nos proporcionar. Com efeito, e a partir desse texto de Foucault, Agamben tenta avançar sobre o que seria uma certa “genealogia teológica da economia”. Agamben inicia sua análise nos lembrando que, durante os primeiros séculos da história da Igreja, “o termo grego oikonomia desempenhou uma função decisiva”. Como se sabe, oikonomia significa em grego a administração do oikos, da casa, e por extensão, a administração, a gestão. Trata-se, segundo Aristóteles (Política, 1255 b 21), não de um paradigma epistêmico, mas de uma atividade prática que deve fazer frente a um problema, ou uma situação particular. A certa altura da conferência o filósofo italiano se pergunta: “Por que os padres sentiram a necessidade de introduzir este termo na teologia? Como se chegou a falar de uma ‘economia divina’?” (Agamben, 2010, p. 35). Para Agamben o problema se encontra em uma questão decisiva para a teologia cristã: a trindade do Pai, Filho, Espírito Santo poderia reinserir o politeísmo e o paganismo na fé cristã. A solução encontrada pelos teólogos foi a de se servirem do termo oikonomia. O argumento, groso modo seria o seguinte:

Deus, quanto ao seu ser e à sua substância, é, certamente, uno; mas quanto à sua oikonomia, isto é, ao modo em que administra a sua casa, a sua vida e o mundo que criou é, ao contrário, tríplice. Como um bom pai pode confiar ao filho o desenvolvimento de certas funções e de certas tarefas, sem por isso perder o seu poder e a sua unidade, assim Deus confia a Cristo a “economia”, a administração e o governo da história dos homens (AGAMBEN, 2010, p. 36).

Mas esse argumento gera um problema: a fratura que os teólogos tentam evitar em Deus na ordem do “ser”, ressurge na forma da divisão que separa nesse mesmo Deus “ser” e “ação”, “ontologia” e “práxis”. “A ação (a economia, mas também a política), nos diz Agamben, não tem nenhum fundamento no ser: esta é a esquizofrenia que a doutrina teológica da oikonomia deixa como herança à cultura ocidental” (2010, p.37). Pois bem, qual é a tradução do termo oikonomia nos escritos dos padres latinos? Dispositio, do qual deriva o nosso termo dispositivo. Ou seja, a oikonomia é um dispositio; atualizando: a economia é um dispositivo. O termo dispositivo nomearia “aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser.” (Agamben, 2010, p. 38). Generalizando a já bastante ampla definição de dispositivo que nos dá Foucault, Agamben denominará dispositivo, “(...) qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e asseguras os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (2010, p. 40).

Essa leitura agambeneana de aproximação dos dispositivos de Foucault com o disposito dos teólogos e sua referência a oikonomia dos gregos, isto é, “(...) a um conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos do homem”, abre uma via de interpretação que me parece bastante promissora e a aproxima claramente das duas outras noções anteriormente discutidas, isto é, a noção de “gestão de necessidades” (Arendt) e de “governamentalidade” (Foucault).

A partir dessa pouco ortodoxa aproximação entre pensadores tão dispares quanto Benjamin, Arendt, Foucault e Agamben várias questões podem ser levantadas em relação à produção contemporânea do espaço. Em primeiro lugar quanto se fala com Benjamim de um “empobrecimento de experiências liminares” e em uma proliferação de limites e fronteiras estamos nos referindo a nossas cidades contemporâneas em que o passo humano, o olhar demorado, a experiência do sonho, dos contatos, da apreensão estão em extinção, rodeados que estamos de vias expressas produzidas para o transporte rápido de homens, mercadorias e signos. Referimo-nos também a multiplicação das fronteiras e dos limites na cidade. Limites e fronteiras que barram, impedem, bloqueiam, privatizam o espaço. Deve-se circular rápido, de um ponto a outro, jamais a experiência do limiar, da transição, jamais estar em domínios privados.

Na medida em que se estampa no cenário político a redução do humano a um animal que trabalha, no momento em que se percebe a transformação da política na gestão administrativa dos dois interesses privados privilegiados, produzir e consumir certamente essas questões se refletirão na construção, ocupação e gestão dos espaços urbanos contemporâneos. Quando a política é definida como atividade de promoção dos interesses vitais do animal laborans .zoé), se torna impossível que seja pensada como a “arte do cuidado pelo mundo comum público” (bios). Ou seja, quando falamos da desconstrução do comum estamos nos referindo ao fato de que o cuidado dos cidadãos pela coisa pública foi substituído pela administração e pelo incremento tecnocrático dos interesses vitais dos agentes econômicos privados e que a ascensão do animal laborans e dos interesses econômicos vitais da sociedade foram levados ao centro do espaço público. Como afirma Agamben, em tempos de eclipse da política talvez já

(...) não reste outra opção para uma humanidade tornada novamente animal que a despolitização das sociedades humanas através do arranque incondicional da oikonomia, ou a assunção da própria vida biológica como tarefa política (ou antes, impolítica) suprema. Até a pura e simples deposição de todas as tarefas históricas (reduzidas a simples funções de polícia interior ou internacional) em nome do triunfo da economia assume hoje, freqüentemente, uma ênfase em que a própria vida natural e seu bem-estar parecem apresentar-se como a última tarefa histórica da humanidade, se se admitir que faz sentido falar aqui de uma “tarefa” (2006, p. 141) .

Isso tudo pode nos parecer deveras cinzento, mas quando se fala em produção contemporânea do espaço tudo sugere que tal produção tem se dado no ocidente capitalista mais ou menos de acordo com essas diretrizes de anulação dos limiares (Benjamin) ou da gestão das necessidades (Arendt) ou ainda da governamentalidade da população (Foucault) chegando mesmo a recuar às suas matrizes teológicas tal como demonstrado por Agamben em sua “genealogia teológica da economia”.

Quando nos referimos a uma “desconstrução do comum”, ou a uma privatização do espaço público não estamos falando no vazio, estamos falando de uma produção humana do espaço e essa produção se dá conforme condições políticas e históricas. Se essas últimas primam por uma ascensão da oikonomia, de uma colonização de bios por zoé, se o que vemos em nossas cidades é o aniquilamento dos limiares, das transições e a proliferação de limites, porque ainda nos espantamos com isso? Porque ainda nos espantamos com a “propriação” do “comum”, com a privatização do público, com a “zoécização” de bios? Porque nos espantamos com a violência, se toda a política se transformou em biopolítica e por decorrência tanatopolítica, sendo que o homo laborans pode a cada instante se transformar em homo sacer, aquele que segundo Agamben pode ser morto sem que isso se refira a um sacrifício ou um homicídio? (2010). Porque nos espantamos ainda, quando vemos nossas cidades envoltas em problemas de degradação ambiental, se toda a política se tornou gestão de necessidades? Porque nos espantamos com o fato de que nossos centros urbanos passam por processos de gentrificação e de especulação imobiliária? Porque nos espantamos com o fato de nossas cidades terem entrado em um complexo processo de competição econômica, se elas mesmas se transformaram em mercadorias? Porque, por fim, nos espantamos com a apatia política dos cidadãos se a face bios do humano foi colonizada pela sua face zoé, se a ação se transformou em comportamento?

Material suplementar
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. “O que é um dispositivo?”. In, O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Ed. Unochapecó, 2010
______. Homo sacer. o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2ª Ed, 2010
______. Lo abierto. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editores, 2006.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
BENJAMIN Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006
DUARTE, André. Vidas em risco. Crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, vol. II. Paris: Quarto Gallimard, 2001.
______. Securité, territoire, population. Paris: Gallimard, 2004
GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Entre a vida e a morte”. In Otte Georg, Seldmayer Sabrina e Cornelsen Elcio (org) Limiares e passagens em Wlater Benjamin. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010.
Notas
Notas
2 Devo parte dessas interpretações etmológicas a Gagnebin, 2010, p. 12 e ss
3 Conferência proferida no Seminário Corpocidade 3, Salvador, 2012.
Autor notes
1 Doutor em Filosofia pela Université de Paris I Panthéon-Sorbonne – França. Professor Adjunto da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Bahia – Brasil.
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