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Da legitimidade à tirania: Tocqueville e a onipotência da maioria na democracia norte-americana1
José Reinaldo Felipe Martins Filho
José Reinaldo Felipe Martins Filho
Da legitimidade à tirania: Tocqueville e a onipotência da maioria na democracia norte-americana1
From legitimacy to tyranny: Tocqueville and the omnipotence of the majority in american democracy
Griot: Revista de Filosofia, vol. 7, núm. 1, pp. 55-67, 2013
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: A proposta desse estudo consiste em discutir um dos mais iminentes problemas que concernem às repúblicas democráticas, qual seja: a tirania da maioria sobre as minorias. Para tal, tomaremos como referência as análises desenvolvidas por Alexis de Tocqueville em A Democracia na América,sobretudo no que se referem à onipotência da maioria na democracia norte-americana. Como um dos maiores perigos dos governos democráticos sempre estará a possibilidade de instauração do despotismo, não sob a força do império de um só, como no exemplo da monarquia, mas através da tirania exercida pela maioria. Trata-se, pois, de discutir os limites do poder popular e da força da maioria na democracia, frente ao risco de aniquilamento da liberdade individual e dos grupos minoritários que, sob a égide da homogeneidade social, são socialmente postos à margem dos direitos.

Palavras-chave:S: DemocraciaS: Democracia,Filosofia PolíticaFilosofia Política,TocquevilleTocqueville,Tirania da maioriaTirania da maioria.

Abstract: The purpose of this study is to discuss one of the most imminent problems concerned to the democratic republics, namely: the tyranny of the majority over minorities. For this, we take as reference the analyzes developed by Alexis de Tocqueville in Democracy in America, especially related to the omnipotence of the majority in American democracy. As one of the biggest dangers of democratic governments is always the possibility of introduction of despotism, not under the power of the empire of one, as in the example of the monarchy, but by the tyranny exercised by the majority. It is, therefore, to discuss the limits of popular power and the strength of the majority in democracy, against the risk of annihilation of individual liberty and minority groups who, under the aegis of social homogeneity, are relegated to the margins of social rights.

Keywords: Democracy, Political Philosophy, Tocqueville, Tyranny of the majority.

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Da legitimidade à tirania: Tocqueville e a onipotência da maioria na democracia norte-americana1

From legitimacy to tyranny: Tocqueville and the omnipotence of the majority in american democracy

José Reinaldo Felipe Martins Filho2
Universidade Federal de Goiás, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 7, núm. 1, pp. 55-67, 2013
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 04 Fevereiro 2013

Aprovação: 05 Maio 2013

Introdução

Nos termos de Fernando Magalhães (2000, p. 150), “é possível que nenhum outro texto de Tocqueville supere em fama o capítulo VII da segunda parte do primeiro livro de A Democracia na América, justamente o trecho célebre em que ele, de forma quase profética, antecipa o que muitos neste século entenderam ser uma forma específica de totalitarismo”. De fato, seguindo esta intuição, a proposta deste estudo consiste em quatro pontos elementares que se relacionam entre si: a) compreender como se constitui o império da maioria na democracia norte-americana, b) discorrer acerca da instabilidade legislativa decorrente deste império, c) considerar a transmutação do império da maioria numa força tirânica e, não menos importante, d) apontar possíveis alternativas para a superação do império tirânico da maioria, com base na obra de Tocqueville.

Como um dos maiores perigos dos governos democráticos sempre estará a possibilidade de instauração do despotismo, não sob a força do império de um só, como no exemplo da monarquia, mas através da tirania exercida pela maioria. Trata-se, pois, de estabelecer limites ao poder popular e à força da maioria na democracia, frente ao iminente perigo de sua degradação num império tirânico. Segundo Tocqueville, o modelo democrático norte-americano é o que, no século XIX, melhor representa as proporções que a tirania da maioria pode significar para as minorias. Para Marcelo Jasmin, tudo isso se resume numa advertência sobre o “risco de aniquilamento da liberdade de indivíduos e de grupos minoritários que, sob a égide da homogeneidade social da democracia, são socialmente ‘exilados’ por divergirem dos padrões políticos e culturais majoritários” (JASMIN, 2012, p. 11). Numa aproximação ao texto de Tocqueville tentaremos, a seguir, considerar estes elementos.

Do império da maioria

Conforme adverte Alexis de Tocqueville, um Estado democrático deve ser caracterizado por um modelo político cujo objetivo maior consista na instituição da igualdade e da liberdade entre seus cidadãos, ou seja, “por um estado social marcado pela igualdade de condições e por uma forma política que dá expressão à vontade dos membros do corpo político” (REIS, 2004, p. 3). Entretanto, ressalta o autor: “é da própria essência dos governos democráticos o fato de o império da maioria ser absoluto; porque, fora da maioria, não há nada que resista nas democracias” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 289). O exemplo histórico dos Estados Unidos da América do século XIX enfatiza o que se acena como um dos grandes perigos aos quais os governos democráticos se sujeitam. O poder da maioria, beirando à força da natureza, acaba por encontrar chancela nos estados norte-americanos. Para Tocqueville (2005, p. 289), “a maioria das constituições americanas ainda procurou aumentar artificialmente essa força naturalda maioria” (grifo nosso). Isso pode ser exemplificado pelo modo como se estabeleceram os poderes políticos no país, sobretudo no que se refere ao poder legislativo, nomeado diretamente pelo povo e por um prazo muito curto.

Mesmo que pretenda ser a representação do todo político, a força da maioria assinalada por Tocqueville jamais poderá ser confundida com a soberania da Vontade Geral3. de Rousseau, na qual “o soberano, sendo formado tão-só pelos particulares que o compõem, não visa nem pode visar a interesse contrário ao deles” (ROUSSEAU, 1978, p. 35). Antes disso, a força da maioria age de forma absolutamente inversa, impondo certos desejos particulares em detrimento de qualquer oposição. Assim, o império da maioria parece fragilizar o ideal de igualdade fundamental aos governos democráticos. Produzida e, constantemente, reformulada pela maioria, a ação da lei, “ao mesmo tempo em que aumenta a força dos poderes que eram naturalmente fortes, debilitava cada vez mais os que eram naturalmente fracos” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 289). Não há equidade num governo que se exerce a partir e em função dos fortes. Privilegiando a maioria, sempre haverá aqueles que estarão alheios ao benefício do Estado, ou seja, a marginalização da minoria fragilizada.

Ao longo do capítulo VII da segunda parte do Livro I de A Democracia na América, Alexis de Tocqueville continua sua descrição do império da maioria na democracia norte-americana, e algumas justificativas para a manutenção desse domínio podem ser destacadas. Dentre outros, elegemos três pontos fundamentais, quais sejam: 1) a concepção de que a sabedoria do grupo é superior à sabedoria do indivíduo, 2) o princípio de que os interesses da coletividade devem se basear no critério da maioria e, igualmente importante, 3) o interesse particular daqueles que pleiteiam se tornar a maioria. Eram estes, basicamente, os critérios que justificavam e mantinham a força da maioria no modelo democrático da América do Norte. Sobre eles faremos breves considerações.

Ora, em primeiro lugar, vale lembrar que “o império moral da maioria se baseia, em parte, na ideia de que há mais luzes e sabedoria em muitos homens reunidos do que num só, mais no número de legisladores do que na escolha. É a teoria das igualdades aplicadas à inteligência” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 290). Trata-se, segundo Jasmin (cf. 2012, p. 11), da advertência dos riscos inerentes ao “império moral da maioria”, uma espécie de tirania intelectual e espiritual fundada na “teoria da igualdade aplicada às inteligências”, a qual exige dos indivíduos a submissão não apenas às decisões majoritárias, mas também às ideias e aos preconceitos do maior número. A “teoria da igualdade aplicada às inteligências” sustenta que o resultado do raciocínio de muitos supera, em rigor, a inteligência das partes4.. Em tese, isso legitimaria a ação da maioria na eleição, tanto de seus representantes nas esferas políticas, quanto de suas prioridades sociais. Entretanto, salienta Jasmin (2012, p. 11), agindo desse modo, “a censura invisível da maioria esmaga as individualidades e impede a independência intelectual, consolidando a mediocridade cultural da democracia e a impotência do indivíduo frente às massas”.

Por decorrência deste primeiro ponto, recordamos, em segundo lugar, que “o império moral da maioria baseia-se também no princípio de que os interesses da maioria devem ter preferência sobre os da minoria”5. (TOCQUEVILLE, 2005, p. 291). Esta forma da tirania alimenta-se da interpretação e da aplicação imoderadas do princípio democrático elementar segundo o qual os interesses do maior número devem ser preferidos aos do menor. “A tradução ‘bárbara’ deste princípio encontra-se na falsa noção da ‘infalibilidade da maioria’, que opera a transformação do poder de uma maioria eventual em poder absoluto e irresistível” (JASMIN, 2012, p. 12). Nesse sentido, os interesses da maioria não somente se imporiam sobre os da minoria, como também sobre os da coletividade em geral, uma vez que a minoria não encontra representação pública capaz de fazer frente à maioria. Finalmente, não podemos prescindir do fato de que a questão do interesse próprio sempre exerceu importante papel como mantenedora do status de poder da maioria; afinal: “todos os partidos estão prontos para reconhecer os direitos da maioria, porque todos esperam poder um dia exercê-los em seu proveito” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 291). Noutras palavras, por estes fragmentos está delineada a forte oposição entre os critérios de governo da maioria e o grau de importância que se atribui aos interesses da coletividade como legítimo curso da atividade política.

A princípio, recorda Tocqueville, o poder da maioria não é exercido de forma automática ou isenta de força coercitiva. Ao contrário, “quando começa a se estabelecer, faz-se obedecer pela coerção; somente depois de se ter vivido muito tempo sob suas leis é que se começa a respeitá-lo” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 290). Para além do poder da força bruta, representada pela coerção, aqui também está em jogo o poder de uma força cultural, advinda do costume. Poderíamos, então, relembrar os mesmos argumentos com os quais Étienne de la Boétie justificou a servidão dos homens ao domínio de um tirano: “os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam ter outro bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu nascimento” (LA BOÉTIE, 1982, p. 20). A força do costume, cuja repetição se transforma num hábito social, torna os indivíduos passíveis à sua ação. Se, antes, eles mesmos eram o alvo do poder coercitivo, agora se tornam agentes de sua força e mantenedores de uma mentalidade conformada com o critério da maioria e sua legitimidade política para arbitrar sobre os interesses de todos. Desse modo, Tocqueville observa que, no exemplo dos Estados Unidos, não há como deter o avanço do poder da maioria: “não há, posso assim dizer, obstáculos que possam, não vou dizer deter, mas nem mesmo retardar sua marcha e dar tempo de ouvir as queixas dos que ela esmaga em sua passagem” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 291) (grifos nossos).

De fato, o poder exercido pela maioria deixa perecer aqueles que a ela se opõem. Mais que isso, o filósofo francês não mede o tom de intensidade quando discorre sobre a “quase total” impossibilidade de retardamento dessa marcha: o império esmagador da maioria. A maioria não ouve, nem vê6. o que contraria seus interesses. É cega frente às injustiças cometidas contra a coletividade e surda aos clamores e às queixas daqueles que esmaga em sua passagem. Possui apenas a voz que braveja e que decide o futuro político de um corpo tendo como única base os interesses particulares. Somente uma constatação, aos moldes de uma admoestação, poderia disso decorrer: “as consequências desse estado de coisas são funestas e perigosas para o futuro” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 292) – diante do que poderíamos completar: e também para o presente.

Da instabilidade legislativa decorrente do império da maioria

Como primeiro vício do império da maioria está a instabilidade legislativa. Isto é, “a instabilidade legislativa é um mal inerente ao governo democrático, porque é da natureza das democracias levar novos homens ao poder. Mas esse mal é mais ou menos grande conforme o poder e os meios de ação concedidos ao legislador” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 292). No caso da democracia norte-americana, tal instabilidade se demonstra bastante acentuada. Poderíamos recordar a ilustração de Tocqueville quando salienta a relação entre a maioria e a eleição do legislativo: “é comum acontecer que os eleitores, nomeando um deputado, lhe tracem um plano de conduta e lhe imponham certo número de obrigações positivas, de que ele não poderia afastar-se” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 290). Uma vez que tais interesses, traçados num plano de conduta, não fossem atendidos, poder-se-ia, inclusive, se instaurar a destituição do legislador e a eleição de outro indivíduo para o cargo. Nesse caso, parece que o império da maioria não se distancia dos vários exemplos históricos de déspotas que, por livre iniciativa, dissolviam e/ou restabeleciam seus parlamentos conforme o interesse que os movia (por exemplo, Carlos I, na monarquia inglesa). A instabilidade legislativa é o primeiro e o maior fruto do domínio da maioria e, conforme Tocqueville (2005, p. 292), “por isso a América é, em nossos dias, o país do mundo em que as leis têm menos duração.” Quase todas as constituições americanas foram emendadas.

No modelo democrático dos Estados Unidos, “a ação do legislador nunca reduz seu ritmo. Não é que a democracia americana seja, por natureza, mais instável do que outra qualquer, mas foi-lhe dado o meio de seguir, na formação das leis, a instabilidade natural de suas inclinações” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 292-293) (grifos nossos). Para Magalhães (2000, p. 152), “uma vez que a força desse poder reside mais nos costumes do que nas leis”, seria provavelmente no espírito legista que a liberdade poderia encontrar meios de se contrapor aos desvios provocados pela democracia. Desse modo, a instabilidade legislativa não é demonstrada apenas pelo constante fluxo de legisladores, que exercem seu mandato por um período cada vez mais curto e nunca isento de interferências por parte do império da maioria, mas pela perda de força da lei que, paulatinamente, vê-se retificada: “A onipotência da maioria e a maneira mais rápida e absoluta na qual suas vontades se executam nos Estados Unidos não apenas torna a lei instável, mas exerce também a mesma influência sobre a ação da lei e sobre a ação da administração pública” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 293) (grifos nossos). Como resultado, tem-se o amortecimento da lei e de seu cumprimento. As leis, portanto, não são apenas instituídas e levadas à plena execução, vivem em estado semper reformando7..

Da tirania da maioria

“E só sei de um meio para impedir que os homens se degradem: não conceder a ninguém, com a onipotência, o poder soberano de aviltá-los” (Alexis de Tocqueville).

Acerca da transmutação do império da maioria em uma força tirânica, Tocqueville apresenta o seguinte paradoxo: “considero ímpia e detestável a máxima de que, em matéria de governo, a maioria do povo tem o direito de fazer tudo; apesar disso, situo na vontade da maioria a origem de todos os poderes. Estarei em contradição comigo mesmo?” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 294). Trata-se, a nosso ver, do primeiro e mais importante questionamento, base para qualquer discurso sobre o poder tirânico da maioria. Não é por acaso que o autor francês o coloca na abertura do terceiro subtítulo do capítulo VII, no qual pretende discorrer sobre a tirania da maioria. Como se deve entender o princípio da soberania do povo, não o confundindo com a tirania da maioria sobre as partes? Este parece ser o ponto fulcral que abre o nosso horizonte para compreender quando o princípio fundamental de soberania do povo torna-se porta de abertura para a instituição de uma tirania.

Se, de um lado, a força da maioria é apresentada como próxima a uma lei de natureza para os regimes democráticos, há um fator cuja universalidade a supera, a saber: a justiça. Mesmo que a vontade da maioria esteja na origem de todos os poderes, sobretudo na democracia, “existe uma lei geral que foi feita ou, pelo menos, adotada não apenas pela maioria deste ou daquele povo, mas pela maioria de todos os homens. Esta lei é a justiça” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 294) (grifos nossos). E por este motivo, completa Tocqueville, “a justiça8. constitui, pois, o limite do direito de cada povo.” Assim, jamais competirá à maioria atentar contra este conceito basilar e, caso o faça, permanecerá à parte ameaçada o direito de desobediência. “Quando me recuso a obedecer a uma lei injusta, não nego à maioria o direito de comandar; apenas, em lugar de apelar para a soberania do povo, apelo para a soberania do gênero humano” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 294) (grifos nossos). Em caso de tirania, invalida-se o princípio da obediência política.

Como vimos, o império da maioria se organiza segundo critérios particulares e jamais tendo em vista o benefício da coletividade. Afinal, recorda Tocqueville (2005, p. 294), “o que é uma maioria tomada coletivamente, senão um indivíduo que tem opiniões e, na maioria dos casos, interesses contrários a outro indivíduo, denominado minoria?” Aqui assinalamos o aspecto tirânico adotado pela maioria constituída enquanto um único indivíduo. E daí a necessidade de, sempre que preciso, pôr um poder social que supere a todos os outros; nesse caso, que se coloque obstáculo ao império da maioria. A esse poder nomeamos justiça. Esta, por sua vez, não está vinculada à soberania de um povo especificamente, mas, em termos éticos e políticos, ao gênero humano e à soberania da coletividade, respectivamente. Em caso contrário, “estará a liberdade em perigo quando esse poder [da maioria] não encontrar diante de si nenhum obstáculo que possa reter sua marcha e lhe dar tempo de se moderar” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 295). A onipotência de um poder, sua proporção ilimitada e totalitária, parece, pois, “coisa ruim e perigosa”.

Conforme Tocqueville, nesta onipotência reside, pois, o germede toda tirania. Destaca o autor (2005, p. 296): “quando vejo concederem o direito e a faculdade de fazer tudo a uma força qualquer, seja ela chamada povo ou rei, democracia ou aristocracia, seja ela exercida numa monarquia ou numa república, digo: aí está o germe da tirania; e procuro viver sob outras leis” (grifos nossos). A tirania, nesse sentido, nasce do mesmo parto que a ausência de limites atribuída a uma força política, seja ela individual ou coletiva, transmitida por hereditariedade ou por aclamação eletiva. No modelo norte-americano, a força ilimitada outorgada à maioria engendra o germe da tirania e, justamente por isso, afirma Tocqueville (2005, p. 296) que o que mais lhe “repugna na América não é a extrema liberdade que lá reina, mas a pouca garantia que encontramos contra a tirania.” Na total anuência da maioria como força suprema, não restam outras instâncias que a possam enfrentar. Extingue-se toda e qualquer garantia contra o poder tirânico da maioria.

Neste fragmento Tocqueville consegue dar o tom do que pode significar a atribuição ilimitada de força ao império da maioria, como o indivíduo que tiraniza outro indivíduo, a minoria:

Quando um homem ou um partido sofrem uma injustiça nos Estados Unidos, a quem você quer que ele se dirija? À opinião pública? É ela que constitui a maioria. Ao corpo legislativo? Ele representa a maioria e obedece-lhe cegamente. Ao poder executivo? Ele é nomeado pela maioria e lhe serve de instrumento passivo. À força pública? A força pública não passa da maioria sob as armas. Ao júri? O júri é a maioria investida do direito de pronunciar sentenças – os próprios juízes, em certos Estados, são eleitos pela maioria. Por mais iníqua e insensata que seja a medida a atingi-lo, você tem de se submeter a ela (TOCQUEVILLE, 2005, p. 296) (grifos nossos).

Fora da força da maioria, a sociedade encontra-se num completo desabrigo político, no qual nada há, senão a total ausência de direitos. Não há instância a quem recorrer, pois todas vivem sob o jugo da maioria, seja o legislativo, o executivo, a força pública ou o judiciário. “Por mais iníqua e insensata que seja a medida a atingi-lo, você tem de se submeter a ela”. Nessas condições, o “espírito democrático” que pode fazer maravilhas, não produzirá mais que um governo sem virtude e sem grandeza, pois cada um de seus membros está mais preocupado com seus assuntos privados do que com as questões públicas; mais com seus interesses pessoais do que com a grandeza da nação (cf. MAGALHÃES, 2000, p. 152).

Para Tocqueville, não há garantias contra a tirania da maioria na América, e as causas para a brandura deste governo devem estar mais nas circunstâncias e nos costumes do que, propriamente, nas leis. Quando exercida por meio das próprias leis, a tirania não é arbitrária. Ao contrário, quando a arbitrariedade se exerce em favor dos interesses dos governados, esta não é tirânica. Há, entretanto, uma forma de arbitrariedade que, povoando o universo simbólico e cultural, veladamente imprime o exercício da tirania sobre o povo. Vale lembrar que o espaço político é constituído, sobretudo, pelos valores e pela cultura de uma nação. Por isso, a força da maioria, ultrapassando os limites do físico, atua sobre o pensamento9.. O pensamento, diz Tocqueville (2005, p. 298), “é um poder invisível e quase inapreensível que faz pouco de todas as tiranias.” Mas a tirania da maioria age de um modo além. Conforme Richter (cf. 2007, p. 251-252), neste fragmento Tocqueville dramatiza a diferença entre o poder exercido contra a liberdade pelos governos absolutistas e os ostensivos meios não violentos utilizados pela maioria em uma democracia moderna: “de resto, um rei possui um poder material que, agindo apenas sobre as ações, não poderia atingir as vontades; mas a maioria é investida de uma força ao mesmo tempo material e moral, que age tanto sobre a vontade quanto sobre as ações e que, ao mesmo tempo, impede o fato e o desejo de fazer” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 298). Trata-se de um total aprisionamento, não somente do poder material (daquilo que já está feito), mas da vontade (do que ainda poderia ser feito). A tirania da maioria, desse modo, é implacável.

Embora ainda haja quem, de algum modo, se oponha ao império tirânico da maioria, a exclusão social torna-se o preço a se pagar. Como destaca Tocqueville (2005, p. 299), “sob o governo absoluto de um só, o despotismo, para chegar à alma, atingia-se grosseiramente o corpo; e a alma, escapando desses golpes, se elevava gloriosa acima dele.” A força moral da maioria faz desnecessário o recurso à violência como forma de eliminar dissidências (cf. JASMIN, 2012, p. 12). Na tirania da maioria é a alma, enquanto consciência, valores e cultura, o primeiro e único alvo a ser atingido. Vejamos, no exemplo de Tocqueville, como a tirania é estabelecida nas repúblicas democráticas:

[...] nas repúblicas democráticas, não é assim que a tirania procede; ela deixa o corpo e vai direto à alma. O amo não diz mais: ‘pensará como eu ou morrerá’. Diz: ‘Você é livre de não pensar como eu; sua vida, seus bens, tudo lhe resta; mas a partir deste dia você é um estrangeiro entre nós. Irá conservar seus privilégios na cidade, mas eles se tornarão inúteis, porque, se você lutar para obter a escolha de seus concidadãos, eles não a darão, e mesmo se você pedir apenas a estima deles, ainda assim simularão recusá-la. Você permanecerá entre os homens, mas perderá seus direitos à humanidade. Quando se aproximar de seus semelhantes, eles fugirão de você como de um ser impuro, e os que acreditarem em sua inocência, mesmo estes o abandonarão, porque os outros fugiriam dele por sua vez. Vá em paz, deixo-lhe a vida, mas deixo-a pior, para você, do que a morte (TOCQUEVILLE, 2005, p. 299) (grifos nossos).

A difícil tarefa de conciliação entre a liberdade individual e a liberdade coletiva nas repúblicas democráticas encontra no problema da tirania da maioria o seu limite. Não se trata, apenas, de se sujeitar a um amo individual, mas a um indivíduo coletivo cuja ira se aplaca sobre todas as esferas da vida social. “Você permanecerá entre os homens, mas perderá seus direitos à humanidade. [...] deixo-lhe a vida, mas a deixo pior, para você, do que a morte” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 299). A advertência de Tocqueville tende a recordar o fato de que, apesar de o despotismo ter sido desacreditado nas monarquias, devemos nos atentar para que as “repúblicas democráticas não o reabilitem e para que, tornando-o mais pesado para alguns, não o dispam, aos olhos da maioria, de seu aspecto odioso e de seu caráter aviltante” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 300). Longe da figura de um só e disseminado numa instância coletiva, sua força poderia ganhar legitimidade “aos olhos da maioria”.

Abrindo um parêntese, evocamos o contexto histórico da América analisada por Tocqueville, quando afirma: “a influência do que precede só se faz sentir fracamente, por enquanto, na sociedade política; mas já se podem notar efeitos daninhos sobre o caráter nacional dos americanos” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 301). Se nos Estados Unidos do século XIX já podiam ser percebidos efeitos daninhos de uma democracia regida pela tirania da maioria10, nos séculos que sucederam esse cenário não foi diferente. Citemos, por exemplo, a guerra entre militantes dos direitos civis e partidários da segregação racial instalada no sul do país na década de 1960. Ou ainda, nos dias atuais, a perseguição de minorias étnicas e religiosas, tais como os mulçumanos e os estrangeiros que vivem no país. Estes dois exemplos apenas ilustram o que na prática podemos entender por um império da maioria, detentora dos direitos e, mais que isso, do poder de legislar, e sua atuação sobre forças minoritárias. Afirma Tocqueville (2005, p. 302): “a maioria possui um império tão absoluto e tão irresistível, que quem quiser se afastar do caminho que ela traçou precisará de certa forma renunciar a seus direitos de cidadão e, por assim dizer, à sua qualidade de homem”.

Para concluir

Se, a termo de conclusão, como “alternativa” ao domínio autoritário, podemos apontar a desobediência à tirania e o apelo à lei universal da justiça, que nada mais é senão a soberania do próprio gênero humano, como forma de prevenção ao império de um poder tirânico, há uma única possibilidade: a não concessão de poder absoluto a nenhum soberano, seja em uma monarquia, seja em uma democracia, ou em qualquer outra forma de governo em que se esteja inserido. Sobre isto, destaca Tocqueville que só há “um meio para impedir que os homens se degradem: não conceder a ninguém, com a onipotência, o poder soberano de aviltá-los” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 303). Trata-se de um imperativo fundamental, extraído do modelo democrático norte-americano, pois “se algum dia a liberdade vier a ser perdida na América, dever-se-á imputar essa perda à onipotência da maioria, que terá levado as minorias ao desespero e as terá forçado a apelar para a força material. Ver-se-á então a anarquia, mas ela chegará como consequência do despotismo” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 304). Para Tocqueville, são dois os motivos de perecimento dos governos: a impotência ou a tirania. Enquanto no primeiro caso o poder lhes escapa, fazendo-os sucumbir à impotência frente às forças exteriores, no segundo, lhes é tirado. Então, nada lhes resta senão a anarquia: “a anarquia nasce quase sempre da tirania ou da inabilidade do poder democrático, não da sua impotência” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 304).

Em resumo, para além de uma simples descrição dos perigos iminentes à democracia norte-americana, no texto que analisamos Tocqueville adverte sobre o tênue limite existente entre a legitimidade da ação popular e o risco de sua degradação numa forma hegemônica de tirania. O império moral da maioria não somente elimina as dissidências ideológicas entre os cidadãos, mas inibe o exercício de sua liberdade do pensamento, tornando-os artífices de uma força, aparentemente natural, cujo objetivo consiste na opressão das minorias, alheias a qualquer forma de representação política. Desse modo, a tirania da maioria ganha força na medida em que os indivíduos abdicam da única forma de autonomia que possuem: sua liberdade política. A esta altura, também a igualdade de condições já não pode subsistir. Veem-se, portanto, demolidos os pilares que sustentam o estado democrático. Não há democracia que persista sob estas condições e, assim, também podemos identificar algo de profético nas palavras do presidente James Madison, citadas por Tocqueville na conclusão deste capítulo VII: “a anarquia reina em tal sociedade tanto quanto no estado natural, em que o indivíduo mais fraco não tem nenhuma garantia contra a violência do mais forte” (MADISON apud TOCQUEVILLE, 2005, p. 305). Não se trata, pois, de um determinismo trágico dos acontecimentos históricos, mas de uma advertência que se projeta, do século XIX aos nossos dias, com o intuito de impedir que a democracia, sob uma nova face, “ressuscite” o despotismo, do legítimo ao tirânico, numa mesma forma de governo.

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ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato Social. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores)

SANTOS, Célia Quirino dos. Tocqueville: a realidade da democracia e a liberdade ideal. Instituto de estudos avançados da Universidade de São Paulo. Texto disponível em http://www.iea.usp.br/iea/textos/santostocqueville.pdf Acesso em outubro de 2012.

TOQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes – de certas leis e certos costumes políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrático. Tradução de Eduardo Brandão; prefácio, bibliografia e cronologia de François Furet. Vol. I – 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Coleção Paidéia)

Notas

1Agradeço, particularmente, aos professores Helena Esser dos Reis e Renato Moscateli, pela preciosa contribuição e pela amizade de sempre.

2Menstrando em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: jreinaldomartins@gmail.com

3Notadamente, para Rousseau a Vontade Geral se distingue da vontade de todos. Enquanto a primeira visa, exclusivamente, o interesse comum, a vontade de todos se refere aos interesses privados. Se, por um lado, a Vontade Geral é a reunião das vontades e interesses comuns em cada indivíduo participante do pacto social, a vontade de todos nada mais representa senão um somatório das vontades particulares. Exatamente por não estar vinculada ao interesse comum, a vontade de todos pode não atendê-lo e, portanto, ferir a Vontade Geral. Desse modo, o império da maioria descrito por Alexis de Tocqueville parece se localizar mais próximo à vontade de todos. Como exemplo, podemos notar a ação direta da maioria exercida sobre o poder legislativo, conforme demonstra o seguinte fragmento: “é comum acontecer que os eleitores, nomeando um deputado, lhe tracem um plano de conduta e lhe imponham certo número de obrigações positivas, de que ele não poderia afastar-se. Salvo o tumulto, é como se a própria maioria deliberasse em praça pública.” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 290). Para Santos (2012, p. 4), mesmo assim, “no cerne da questão pode-se encontrar o apelo que é feito a cada um e a todos para que exerçam uma ação política organizada, adequada a cada realidade, de tal forma que o agir na esfera pública seja o ato mais importante de cada cidadão”.

4Tal igualdade, segundo Coutant (2007), nada tem a ver com a igualdade política defendida por Tocqueville. Longe da igualdade política, meta a ser alcançada por um governo democrático, a igualdade individualizada conduz à destruição do próprio indivíduo político. Este conceito de “igualdade aplicada às inteligências” leva a identificar as opiniões da maior parte e a igualá-las à vontade do todo. Esta igualdade das inteligências implica em uma crença cega na maioria numérica (cf. COUTANT, 2007).

5Todavia, alerta Tocqueville, isso sempre dependeria dos estados dos partidos, ao que ilustra: “quando uma nação está dividida entre vários grandes interesses inconciliáveis, o privilégio da maioria muitas vezes é desprezado, porque se torna demasiado penoso submeter-se a ele” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 291).

6Sobre esse tema, valeria a pena estabelecer uma aproximação entre o que se entende pelo império da maioria, desenvolvido por Alexis de Tocqueville na obra analisada, e o primado do impessoal (a-gente), abordado por Heidegger no § 27 de Ser e Tempo (adiante, ST). Para este autor, o homem, em sua vivência cotidiana, está sob a constante sujeição dos outros: “ele não é si-mesmo, os outros lhe retiraram o ser. Os outros dispõem a seu bel-prazer sobre as cotidianas possibilidades de ser do homem. [...] Decidido é somente o domínio dos outros, não surpreendente, despercebido e já assumido” (ST, p. 363; Sein und Zeit [adiante, SZ], p. 126). Nessa ausência de surpresa, o impessoal desenvolve uma verdadeira ditadura entre os homens: “gozamos e nos satisfazemos como a-gente goza; lemos, vemos e julgamos sobre literatura e arte como a-gente vê e julga; mas nos afastamos também da ‘grande massa’ como a-gente se afasta; achamos escandaloso o que a-gente acha escandaloso. A-gente, que não é ninguém determinado e que todos são, não como uma soma, porém, prescreve o modo de ser da cotidianidade” (ST, p. 365; SZ, p. 127). No que se refere ao aspecto ético e político, destacamos a ausência de responsabilidade social como o primeiro sintoma do primado do impessoal: “pode-se incumbir de tudo com a maior facilidade, porque não há quem tenha de responder por algo. Sempre ‘era’ a-gente e se pode dizer, no entanto, que não foi ‘ninguém’. [...] Cada um é o outro e nenhum é ele mesmo” (ST, p. 367; SZ, p. 128).

7O modelo dos Estados Unidos, afirma Tocqueville, apresenta-se diametralmente oposto àquele da Europa: nos Estados Unidos, “como a maioria é a única força a que é importante agradar, contribui-se com ardor para as obras que ela empreende.” Ao contrário, “na Europa emprega-se para essas mesmas coisas uma força social infinitamente menor, porém mais contínua” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 293).

8O significado de justiça não é plenamente desenvolvido por Tocqueville nesta obra, permanecendo como desafio latente para os estudiosos de seu pensamento. Contudo, as intuições que existem acerca desse tema parecem relacionar a soberania do gênero humano e a justiça a alguma noção ética.

9No texto Tocqueville on Threats to Liberty in Democracies, de Melvin Richter, encontramos um subtítulo que versa sobre este assunto: “A tirania/despotismo da maioria democrata que suprime as liberdades de pensamento e expressão.” Segundo Richter (2007, p. 251), “ao tratar dos regimes, tipos de sociedade, ou movimentos antitéticos à liberdade, [Tocqueville] minimizou os efeitos do medo produzidos pelo uso ou a ameaça da força.” Ao invés disso, parece ter enfatizado o poder das sanções políticas sobre o exercício da liberdade do pensamento.

10No capítulo X da segunda parte do Livro I de A Democracia na América, Tocqueville dá um bom exemplo – oriundo de sua observação dos Estados Unidos do século XIX – acerca da tirania de uma maioria, os brancos, sobre o futuro de duas minorias específicas: os negros, advindos da África, e os índios americanos. Naquele contexto, como recorda Mendes (2007, p.134), os índios já haviam sido “praticamente dizimados e os negros, que lutaram pela liberdade, seguiam uma segunda luta, a de igualdade de condições.” Em relação aos brancos, destaca Tocqueville, tanto os índios, quanto os negros “não têm em comum nem o nascimento, nem a fisionomia, nem a língua, nem os costumes. Ocupam, ambos, uma posição igualmente inferior no país onde vivem; experimentam, ambos, os efeitos da tirania; e embora sejam diferentes as suas misérias, podem acusar os mesmos autores delas. Não se poderia dizer, ao ver o que se passa no mundo, que o europeu é para os homens das demais raças o que o próprio homem é para os animais? Faz com que sirvam ao seu uso, e quando não os pode curvar, destrói-os. A opressão, de um só golpe, tirou aos descendentes dos africanos quase todos os privilégios da humanidade! O negro dos Estados Unidos perdeu até a lembrança de sua própria origem [...] compram-no, muita vezes, ainda no ventre materno, e, por assim dizer, ele começa a ser escravo antes de nascer” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 244). Quanto ao destino dos aborígines que outrora habitaram o território da Nova Inglaterra, os Narragansetts, os Moicanos, o Pecots, “não mais vivem senão na lembrança dos homens” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 247-249).

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Notas
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2 Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
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