Resumo: O presente artigo pretende mostrar que, não obstante as diversas observações do cosmos por diferentes povos antigos, a ciência, enquanto discurso teórico e generalizante da natureza, nasce entre os milésios. A razão para tal gênese se dá devido à conjunção entre o conceito grego de phýsis, o que pressupõe a busca de uma ordem metafísica para submeter o caos, e da geometria grega, uma ferramenta matemática estruturada sob generalizações permanentes. Mediante redução e ordem, o discurso generalizante e teórico dos físicos milésios, deu origem a um dos maiores legados da humanidade: o conhecimento científico.
Palavras-chave:S: CiênciaS: Ciência,GeometriaGeometria,PhýsisPhýsis.
Abstract: This paper intends to show that, in spite of several observations of cosmos performed by distinct ancient people, science, as generalizing and theoretical discourse of nature, was born among the Milesians. The cause for this genesis is the conjunction between the Greek concept of phýsis, wich presupposes the search for a metaphysical order to submit the chaos, and the Greek geometry, a mathematical tool based on permanent generalizations. Under reduction and order, the generalizing and theoretical dicourse of the Milesian physicists originated one of the greatest human legacies: the scientific knowledge.
Keywords: Science, Geometry, Phýsis.
Artigos
A conjunção entre phýsis e geometria na gênese da ciência
The conjuction between phýsis and geometry on the genesis of science
Recepção: 05 Abril 2013
Aprovação: 18 Maio 2013
Todos os povos antigos (pré-colombianos, egípcios, mesopotâmicos, hindus, chineses, gregos etc.) têm vestígios que comprovam a observação e a compreensão do céu. Segundo Bronowski (1992, p.189), “rudimentos de astronomia existem em todas as culturas, de forma que podemos inferir fazerem parte das preocupações de todos os povos primitivos do mundo”. A razão mais clara é a importância do calendário no estabelecimento de ciclos para semeadura e colheita, uma ordem fundamental para a produção agrícola, base do sedentarismo da raça humana.
Tomando-se as investigações sistemáticas da natureza empreendidas pelos gregos e pelos chineses, observa-se um aspecto comum. Ambas, de forma independente, buscaram fundamentar um porquê para a realidade observada. Assim, tanto a teoria grega dos cinco elementos fundamentais (fogo, terra, ar, água e éter) quanto a teoria chinesa das cinco fases (água, fogo, madeira, metal, terra) e dois pólos (yin, yang) têm um forte apelo metafísico, que não encobre, de modo algum, importantes descobertas realizadas por tão afastados cientistas.
Gregos e chineses fizeram observações interessantes acerca do céu observado. Empédocles de Agrigento (c. V a.C.), por exemplo, afirmou que “a Lua interrompe os raios do Sol quando passa por ele, projetando sombra sobre a Terra2”. Anaxágoras de Clazomena (na mesma época), nos diz que “o Sol empresta à Lua a sua Luz3”. Entre os chineses, “na última metade do século I a.C., Ching Fang escreveu: ‘a lua e os planetas são Yin; eles têm forma mas não têm luz. Isto eles recebem apenas quando o sol os ilumina’4”. (NEEDHAM, 1995, p. 227, tradução nossa).
Em que pese as mesmas observações e a mesma fundamentação metafísica para o porquê dos fenômenos da natureza, as ciências grega e chinesa tomaram rumos bastante distintos. De acordo com Kneller (1978), os chineses tinham álgebra, mas pouca geometria:
Devido a isso, a sua astronomia teórica não se desenvolveu. Ao contrário da geometria grega, que representou os movimentos dos corpos celestes em espaço tridimensional, as técnicas algébricas chinesas não subentendiam qualquer hipótese física particular. Por isso, a despeito de volumosos registros, careciam de uma teoria adequada do firmamento. (KNELLER, 1978, p.16).
De fato, enquanto a ciência dos pré-socráticos caminhou, com a geometria, rumo à generalização, os chineses, com a álgebra, caminharam para a singularidade. A lamentação do matemático chinês Yang Hui (c. 1275), que criticou fortemente seus predecessores pela utilização de uma metodologia problema a problema, é reveladora deste diagnóstico:
No século XIII, contudo, algumas mentes foram ficando muito insatisfeitas com os métodos predominantemente empíricos sobre os quais a ciência da agrimensura tinha sido baseada. Em seus dois livros, Hsu Hu Chai Chhi Suan e Suan Fa Thung Pien Pên Mo, ambos de 1275, Yang Hui criticou fortemente Li Shun-Feng e Liu I, que se contentaram em usar métodos sem elaborar suas origem teórica (yuan) ou princípio (chin). ‘Os homens do passado’, ele disse, ‘mudaram o nome de seus métodos de problema a problema, então como nenhuma explanação específica foi dada, não há meios de falar sobre sua origem ou base teórica’5. (NEEDHAM, 1995, p.104, tradução nossa).
Ou seja, mesmo que os chineses tenham legado à humanidade os quatro grandes inventos (fabricação de papel, impressão6, compasso e pólvora), foram os pré-socráticos que estabeleceram, com a generalização, as bases para a futura ciência moderna. De fato, a Revolução Científica ocorreu efetivamente na Europa Ocidental, herdeira da ciência generalizante dos antigos gregos, e não na China, onde seus astrônomos dispunham de um rico acervo de novas7, cometas, posições estelares e outras observações celestes, mas careciam de uma teoria que pudesse representar de uma forma geral este rico acervo de informações singulares.
Foi a Grécia de Anaximandro, importante cientista de Mileto, que legou à posteridade uma deslumbrante concepção geométrica do cosmos. Segundo Jaeger (2001, p.203), “o conceito de cosmos constituiu até nossos dias uma das categorias essenciais de toda concepção do mundo, embora nas modernas interpretações científicas tenha gradualmente perdido o sentido metafísico original”.
A concepção da Terra e do mundo em Anaximandro é uma vitória do espírito geométrico. É o símbolo visível da monumentalidade proporcional, própria do pensamento e da essência total do homem arcaico. O mundo de Anaximandro é construído segundo rigorosas proporções matemáticas. O disco terrestre da concepção homérica não passa de uma representação ilusória. Na realidade, o caminho diário do Sol do Oriente para o Ocidente passa por baixo da Terra, de modo a reaparecer no Oriente, seu ponto de partida. O mundo não é, assim, uma meia esfera, mas uma esfera completa, em cujo centro se situa a Terra. São circulares não só o caminho do Sol, mas também o da Lua e das estrelas. (JAEGER, 2001, p.198).
Figura 1. Representação Geométrica do Cosmos de Anaximandro
Uma tal representação do cosmos, de viés geométrico, com proporções definidas em múltiplos de três, e que pressupõe o equilíbrio da Terra por estar situada numa posição central, privilegiada em relação às esferas celestes, revela um grau de especulação teórica entre os gregos pré-socráticos que não encontra similitude na sociedade chinesa, possuidora, não obstante, de dados consideráveis acerca de fenômenos celestes observados, mas sem registros de uma sistematização teórica generalizante de tal acervo:
Sabemos que os chineses fizeram a distinção entre estrelas e planetas e, por isso, reconheceram o comportamento de muitos corpos celestes. É um povo que fez a observação e registro duma supernova8 no ano de 1054 d.C. O fenômeno foi registrado com tal precisão que é possível saber que: a estrela que na altura foi vista a explodir deu origem à conhecida hoje como a nebulosa do caranguejo. Os antigos chineses, observadores ancestrais do céu, conseguiam também prever eclipses e os seus registros astronômicos mais antigos remontam ao século XIII a.C. (MORAIS, 2010, p.32).
Outra civilização com muita tradição na observação e registro de fenômenos celestes, além da grega e da chinesa, era a babilônica. Mas, assim como os chineses, os babilônicos não possuíam uma imagem geométrica dos movimentos celestes, e a ligação entre os cálculos aritméticos e as observações dos planetas advinha da manipulação complexa de operações numéricas:
Eles possuíam técnicas matemáticas para lidar com cálculos envolvendo números grandes e operações complicadas. Faziam uso de séries de sequências, composta de números que aumentavam ou diminuíam de maneira constante. Puderam, assim, calcular o movimento diário do Sol e da Lua através do zodíaco e prever o surgimento da lua nova (que indicava o começo de um novo mês). Eram capazes, também, de prever eclipses lunares e a possibilidade de eclipses solares. Tais predições eram baseadas não em modelos geométricos dos corpos celestes, mas em procedimentos inteiramente aritméticos, ou seja, em cálculos de tabelas construídas a partir de observações registradas. O interessante é que todas as constantes numéricas foram calculadas de maneira engenhosa para fornecer as periodicidades e resultados quantitativamente acurados, sem a intervenção de qualquer modelo ou figura geométrica. (PIRES, 2008, p.12 e 13).
A história da gênese da ciência indica que, para compreender melhor a infinidade de coisas que se apresentam, precisa-se, pois, de redução e ordem. O cientista deve ordenar os fatos através de uma teoria, um quadro da realidade que dê conta dos fenômenos, sua essentiae imago. Com a geometria, a ciência grega dispôs de uma ferramenta teórica que a habilitou, mais do que a chineses e babilônios, a transcender os fenômenos observados e expressá-los segundo leis gerais.
Uma questão importante que precisa ser levantada advém do reconhecimento da geometria no Egito antigo. Por que os egípcios, que possuíam a geometria, não promoveram então o nascimento da ciência de leis gerais? De fato, os Papiros de Moscou (c. 1850 a.C.) e de Ahmes (c. 1650 a.C.) demonstram a presença da geometria no Egito antigo bem antes dos milésios (Tales previu o eclipse solar de 585 a.C.). Do segundo papiro, considerado o mais importante pela extensão de conhecimentos matemáticos legados e também conhecido por Papiro Rhind9., pode-se destacar como os egípcios ensinam a calcular a área do círculo: “sem justificar, ele diz que tal área é igual à área de um quadrado cujo lado é 8/9 do diâmetro do círculo” (GARBI, 2010, p.14).
Figura 2. Papiro de Ahmes
Analisando, porém, a geometria egípcia constante nos Papiros, e comparando-a à futura geometria dos gregos, pode-se concluir, tal como Cajori (2007, p.43), que os egípcios “levaram a geometria não mais além do que o absolutamente necessário para os seus desejos”, ou, como Garbi (2010, p.12), que eles a desenvolveram de forma “indutiva, basicamente para finalidades práticas como a Agrimensura, a Arquitetura e as obras de irrigação”.
Esse faraó (Sesóstris) realizou a partilha das terras, concedendo a cada egípcio uma porção igual, com a condição de ser-lhe pago todos os anos certo tributo; se o rio carregava alguma parte do lote de alguém, o prejudicado ia procurar o rei e expor-lhe o ocorrido. O soberano enviava agrimensores para o local, para determinar a redução sofrida pelo terreno, passando o proprietário a pagar um tributo proporcional ao que restara. Eis, ao que me parece, a origem da geometria, que teria passado do Egito para a Grécia. (Heródoto apud GARBI, 2010, p.12).
Portanto, se há consenso entre os historiadores da matemática de que os gregos buscaram no Egito seus conhecimentos de geometria, também é preciso destacar que, com os gregos, a geometria eleva-se de um patamar de metodologia aplicada na resolução de problemas de agrimensura para um patamar de teorização especulativa, ou, em outras palavras, os gregos promoveram o descolamento da geometria de sua gênese experimental.
Assim, enquanto o Papiro de Ahmes “reúne 85 problemas de Aritmética e Geometria, e mostra, sem justificação, como resolvê-los” (GARBI, 2010, p.13), o Sumário Eudemiano10 atribui a Tales, o fundador da escola física milesiana, cinco teoremas de geometria elementar, puramente teóricos:
i. Um círculo é bisseccionado por qualquer diâmetro:
ii. Os ângulos da base de um triângulo isósceles são congruentes:
iii. Os ângulos opostos pelo vértice são congruentes:
iv. Dois triângulos são congruentes se eles têm um lado e dois ângulos congruentes:
v. Um ângulo inscrito em um semicírculo é um ângulo reto:
Em resumo, a partir da escola jônica, de tradição geométrica, fundada por Tales, os gregos elevam a geometria e esta passa a descolar-se da realidade para adquirir um estatuto próprio, com conceitos, abstrações e teoremas. Kant, no prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura descreve uma série de iluminações, acontecimentos fundadores que põem a razão humana rumo à ciência, dentre os quais, a revolução empreendida por Tales na matemática11.
No Protágoras 343a-b, Platão faz referência aos Sete Sábios, homens que se destacaram por sua sabedoria e que, por isso, desfrutavam de grande prestígio junto aos antigos gregos: “Tales, de Mileto; Pítaco, de Mitilene; Biante, de Priene; nosso Solão; Cléobulo, de Lindos; Misão, de Queneu; e o lacedemônio Quilão, que é tido como o sétimo do grupo”. (PLATÃO, 2002, p.95).
Segundo Diógenes Laêrtios (2008, p.23), em Vidas I.40, “Dicáiarcos apresenta quatro nomes sempre aceitos, constantes da lista – Tales, Bías, Pítacos e Sôlon”. Esta é uma informação bastante ilustrativa do apreço da sociedade grega, altamente politizada e judicializada, para com a geometria, pois, dentre os sábios consensuais, além dos políticos Bías de Priene, Pítacos de Mitilene, e Sôlon de Atenas, encontra-se um geômetra: Tales.
A busca de um fundamento originário para os fenômenos (os chineses também o buscavam, mas sem geometria) e a geometria (os egípcios a possuíam, mas apenas para aplicações práticas), são os fatores que levaram os milésios pré-socráticos, e não os egípcios ou os chineses, a infundirem uma tendência especulativa ao pensamento, provocando o nascimento da ciência enquanto discurso sobre a realidade através de leis generalizantes.
Possuindo uma forte tendência especulativa, os gregos elevaram a matemática de um patamar de metodologia aplicada na solução de problemas cotidianos, como os enfrentados pelos agrimensores do faraó, para a forma de uma teoria abstrata, generalizante e simplificada, no sentido de “reunir coisas que à primeira vista parecem diferentes, na esperança de sermos capazes de reduzir o número de coisas diferentes e, assim, compreendê-las melhor” (FEYNMAN, 2005, p.53).
Há de se reconhecer, portanto, a capacidade de generalização teórica dos gregos, cujo pensamento irá transcender a mera observação dos fenômenos observados em busca de uma ordem. Esta busca é a grande obsessão da filosofia grega: “estabelecer um discurso que falasse sobre a natureza íntima das coisas, a qual permanece a mesma em meio à multiplicidade de suas manifestações”. (ALVES, 2010, p.45).
A ciência, pois, enquanto discurso teórico, generalizante e preditivo dos fenômenos, encontra suporte em duas pilastras fundamentais presentes entre os gregos: phýsis e geometria. Com efeito, “pensando a phýsis, o filósofo pré-socrático pensa o ser, e a partir da phýsis pode então aceder a uma compreensão da totalidade do real”. (BORNHEIM, 2001, p.14).
No conceito grego de phýsis estavam inseparáveis as duas coisas: o problema da origem – que obriga o pensamento a ultrapassar os limites do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da investigação empírica, do que deriva daquela origem e existe atualmente. (JAEGER, 2001, p.196).
Por seu turno, a geometria “se trata de um conhecimento do que existe sempre12, mas não do que nasce e morre logo”. (PLATÃO, 1996, p.65).
A aritmética impulsiona a alma para a essência e as Ideias, ao permitir, sobretudo, conceber realidades ‘unas’, que são os números. A geometria impulsiona a alma para a essência e as Ideias, ao permitir, principalmente, conceber seres ‘eternos’ (como o são as Ideias): o quadrado, o triângulo, o círculo etc., cujas definições e propriedades são imutáveis. (PLATÃO, 1996, p.65).
Será, portanto, a conjunção entre phýsis, que inclui a questão do fundamento originário, e geometria, enquanto conhecimento do que é eterno e imutável, o fator determinante para o nascimento da ciência entre os milésios. A essentiae imago do cosmos por Anaximandro é, pois, uma proposta ousada para quem não dispunha de instrumentos de observação e de medição além do gnómon13 e do relógio de água conhecido como clepsidra14, e do acervo de observações de outras civilizações.
Tal ousadia é fruto do espírito grego, cujo pensamento, a partir do conceito originário de phýsis e da geometria, vai além da experiência sensorial para a especulação de uma teoria generalizante sobre o cosmos.