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A teoria humeana da identidade pessoal
The humean theory of personal identity
A teoria humeana da identidade pessoal
Griot: Revista de Filosofia, vol. 5, núm. 1, pp. 1-20, 2012
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 14 Abril 2012
Aprovação: 09 Maio 2012
Resumo: Na primeira parte do artigo, apresento a infame teoria humeana da identidade pessoal. Infame porque seu próprio autor a rejeitou no Apêndice à sua obra máxima, o Tratado da Natureza Humana. Na segunda parte, apresento o Apêndice. A pergunta fundamental é: por que Hume rejeitou sua teoria inicial? Os comentadores dividem-se entre aqueles que vêem um problema menor, técnico, na explicação da crença na identidade pessoal e aqueles que vêem um problema maior, filosófico, que afetaria não só a seção “Da identidade pessoal” como todo o projeto empirista desenvolvido no Tratato da Natureza Humana. Na terceira parte, exponho alguns dos problemas (técnicos) que podem ter levado à insatisfação apresentada pelo Apêndice. Na quarta parte do artigo, exponho a interpretação ontológica, que vê no Apêndice a emergência de um problema filosófico, e tento mostrar sua implausibilidade.
Palavras-chave: Apêndice, Hume, Identidade Pessoal.
Abstract: In the first part of the paper, I present the infamous humean theory of personal identity. Infamous, because his own author rejected it in the Appendix of his greater work, the Treatise of Human Nature. In the second part, I present the Appendix. The fundamental question is: why does Hume rejected his early theory? The commentators divides themselves between those that see a minor, thecnical problem in the explanation of the belief in personal identity, and those that see a major, philosophical problem, which would affect not only the section “Of personal identity” but also the whole empiricist project developed in the Treatise. In the third part, I expose some of the (thecnical) problems that may have led to the insatifaction presented by the Appendix. In the fourth part, I expose the ontological interpretation, which see in the Appendix the emergence of a philosophical problem. I try to show its implausibility.
Keywords: Appendix, Hume, Personal Identity.
A seção “Da identidade pessoal”
A seção “Da identidade pessoal” dizia que os princípios responsáveis pela crença na identidade pessoal atuam no pensamento, e não nas percepções nelas mesmas, que são todas distintas e separadas. Como diz Ainslie (2001, passim), tal pensamento ou reflexão é constituído por idéias secundárias, ou seja, idéias que se referem às nossas próprias percepções: “apenas o pensamento encontra a identidade pessoal, quando, ao refletir sobre a cadeia de percepções passadas que compõem uma mente, sente que as idéias dessas percepções estão conectadas entre si, e que introduzem naturalmente umas às outras” (T 635). “Mas”, continua Hume,
todas as minhas esperanças se desvanecem quando¹ passo a explicar os princípios que unem nossas percepções sucessivas em nosso pensamento ou consciência. Não consigo descobrir nenhuma teoria que me satisfaça quanto a esse ponto (T 635-6, itálico meu).
Segundo Stroud, haveria dois modos de interpretar essa passagem:
(i) ela pode significar que Hume não tem qualquer esperança de explicar o que realmente une nossas percepções sucessivas numa mente ou consciência - o que atualmente as une de modo a constituir uma mente. (ii) Ou pode significar que ele não tem qualquer esperança de explicar quais características de nossas percepções e quais princípios da mente se combinam para produzir em nós o pensamento ou crença de que somos mentes individuais - o que une as sucessivas percepções em nosso pensamento, ou que nos faz pensar nelas como unidas juntas. Obviamente estas duas interpretações são diferentes (STROUD, 1977, p. 133; índices meus).
Chamarei a interpretação (i) de ontológica, e a (ii) de epistemológica. Qual é a correta?
Ellis (2006, p. 201-8) aponta o fato de que a nota após “quando” ajuda a esclarecer o problema descoberto por Hume no Apêndice. Nessa passagem, é indicado o momento em que uma revisão da seção “Da identidade pessoal” torna-se necessária, ou seja, “quando passo a explicar o princípio de conexão que as liga [as percepções], e que nos faz atribuir a elas uma real simplicidade e identidade” (T 635, itálico meu). Ellis observa que, na primeira edição do Apêndice, a nota se refere a uma página que trata dos princípios de associação por semelhança e causalidade e de sua aplicação à identidade pessoal6. Tudo indica, então, que a dúvidas humeanas devem ser interpretadas de acordo com a segunda interpretação listada por Stroud.
O que Hume veio a descobrir no Apêndice, então? Por que os princípios de associação, que funcionaram tão bem na explicação do objeto externo e da causalidade, revelam-se insatisfatórios no caso da identidade pessoal?
As últimas palavras do Apêndice sobre a identidade pessoal são pouco esclarecedoras:
há dois princípios a que não posso renunciar, mas que não consigo tornar compatíveis: que todas as nossas percepções distintas são existências distintas, e que a mente nunca percebe nenhuma conexão real entre existências distintas. Se nossas percepções fossem inerentes a alguma coisa simples e individual, ou então se a mente percebesse alguma conexão real entre elas, não haveria dificuldade alguma (T 636).
É unânime, entre os comentadores, a opinião de que esses dois princípios não são incompatíveis entre si, pois o segundo é uma conseqüência epistemológica da tese ontológica expressa no primeiro. A incompatibilidade deveria ocorrer, então, entre esses dois princípios, que são fundamentais na filosofia humeana, e um terceiro elemento. Qual é esse outro elemento? Presumivelmente, é a crença na identidade pessoal: como podemos formar a crença num eu simples e indivisível se nossas percepções não inerem numa substância e nem têm conexões reais umas com as outras?
Temos de explicar o seguinte: aparentemente, esse pronunciamento humeano candidata duas teses metafísicas como possíveis soluções para o problema da identidade pessoal: a inerência das percepções numa substância e a conexão real entre as percepções. Contudo, a nota no Apêndice identifica tal problema como uma dificuldade psicológica ou epistemológica, isto é, a dificuldade de explicar como a crença pode se originar dos princípios de associação.
É bem verdade que as possibilidades metafísicas do Apêndice estão ligadas a suas conseqüências epistemológicas: elas só seriam relevantes se pudéssemos perceber a relação de inerência ou a de conexão necessária. Ainda assim, elas são contrárias à nota porque, dessa forma, a crença na identidade pessoal não estaria vinculada às associações de idéias, à reflexão mediante idéias secundárias, mas sim à percepção de relações reais entre elas.
Na próxima seção apresento alguns dos problemas que poderiam ter sido suscitados pela aplicação dos princípios de associação. Ainda que eu deixe em aberto o motivo exato para as dúvidas de Hume, sustento que é esse aspecto de sua teoria que Hume julgou ser insatisfatório. Na última seção do artigo apresento uma interpretação que identifica um problema ontológico na tese humeana sobre a identidade pessoal. Procuro mostrar que essa interpretação é implausível, considerada sob a luz do projeto levado a cabo na filosofia humeana.
Após negar, na seção “Da imaterialidade da alma” (Tratado da Natureza Humana, Livro I, Parte IV, Seção 5), a existência da alma enquanto substância, Hume afirma, na seção “Da identidade pessoal” (Livro I, Parte IV, Seção 6), que não temos idéia alguma de nosso eu.
Segundo Hume, acreditamos na identidade pessoal porque confundimos as noções de identidade e diversidade. Embora tais idéias sejam claramente distintas, as “ações da mente” pelas quais as apreendemos são semelhantes. É essa semelhança que gera a confusão e, conseqüentemente, a crença na identidade quando, na verdade, temos apenas uma multiplicidade de objetos distintos:
A ação da imaginação pela qual consideramos o objeto ininterrupto e invariável e a ação pela qual refletimos sobre a sucessão de objetos relacionados são sentidas de maneira quase igual, não sendo preciso um esforço de pensamento muito maior neste último caso que no primeiro. A relação facilita a transição da mente de um objeto ao outro, e torna essa passagem tão suave como se contemplássemos um único objeto contínuo (T 253-4)2.
Esssas operações mentais são provocadas de acordo com o conteúdo das percepções, sendo que “os únicos objetos variáveis e descontínuos que supomos continuar são os que consistem em uma sucessão de partes conectadas por semelhança, contigüidade ou causalidade” (T 255). Assim, como diz Stroud (1977, p. 121), um primeiro passo é dado na direção contrária à dos metafísicos: não mais precisamos da noção de substância para mostrar como atribuímos identidade aos objetos. O que cabe a Hume, então, é provar que todos os objetos aos quais atribuímos essa noção são constituídos por uma sucessão das qualidades acima mencionadas.
O que Hume faz, com esse propósito, é estabelecer uma analogia entre os fenômenos da identidade material e mental. Exemplos de sua tese são casos nos quais desconsideramos mudanças que, a rigor, destroem a identidade dos objetos em questão. Por que fazemos isso? Porque as partes que constituem o objeto se relacionam de acordo com qualidades que ocasionam uma transição mental de tipo peculiar.
Sendo assim, impõe-se a questão: como atribuir identidade a um objeto quando o próprio observador, segundo a filosofia humeana, não é nada senão um feixe de percepções em constante revolução?
Nossos olhos não podem girar em suas órbitas sem fazer variar nossas percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa visão; e todos os outros sentidos e faculdades contribuem para essa variação. Não há um só poder na alma que se mantenha inalteravelmente o mesmo, talvez sequer por um instante (T 252-3).
Ou seja, a atribuição de identidade deve ser explicada não obstante nunca ser “encontrada” na experiência. Que não haja identidade no mundo físico parece concordar com as teses anti-metafísicas de Hume, segundo as quais não temos idéia alguma das substâncias ou formas substanciais dos antigos nem das qualidades primárias dos modernos (T 219-231). Ou seja, não há nenhum princípio inteligível que responda pela identidade dos objetos. Isso inclui, obviamente, a identidade do sujeito. E por isso a teoria humeana é tão interessante quanto difícil.
Para Hume, é da natureza dos objetos temporais a mutabilidade, que é dissimulada somente quando uma identidade proveniente do pensamento (ou seja, uma certa relação entre percepções) entra em cena:
A identidade que atribuímos à mente humana é apenas fictícia, e de um tipo semelhante à que atribuímos a vegetais e corpos animais. Não pode, portanto, ter uma origem diferente, devendo, do contrário, proceder de uma operação semelhante da imaginação sobre objetos semelhantes (T 259).
Se a mente é um feixe de percepções, devemos perguntar de que modo esse feixe pode estar constituído de forma a crermos em sua identidade. Que todas as percepções sejam distintas e separáveis é um dos princípios da filosofia humeana,
[m]as, apesar dessa distinção e separabilidade, supomos que todo o curso de percepções está unido pela identidade. Por isso, é natural que surja uma questão acerca dessa relação de identidade: (i) ela é algo que realmente vincula nossas diversas percepções, (ii) ou apenas associa suas idéias na imaginação? Em outras palavras, quando fazemos uma afirmação sobre a identidade de uma pessoa, (i) observamos algum vínculo real entre suas percepções, ou (ii) apenas sentimos um vínculo entre as idéias que formamos dessas percepções? (T 259, índices meus).
O que observamos, nessa passagem, são duas alternativas para a resolução do problema: (i) ou a identidade pessoal é algo que observamos; (ii) ou ela é formada através da imaginação.
Segundo Hume, as relações que “produzem esse progresso ininterrupto de nosso pensamento, quando consideramos a existência sucessiva de uma mente ou pessoa pensante” (T 260) são a semelhança e a causalidade, tendo a contigüidade “pouca ou nenhuma influência neste caso” (ibid.). Quando Stroud (ver 1977, p. 260, n. 1) justifica a desconsideração da contigüidade, ele toma como um fato óbvio que percepções não estão no espaço. Contudo, como considerar a idéia de um objeto extenso qualquer à parte de seu conteúdo, que é espacial? Para Hume, se uma idéia se refere a um objeto extenso, ela somente o pode fazer por semelhança, o que significa que ela própria é extensa (ver FALKENSTEIN 1995; 2002).
Por que, então, excluir a contigüidade espacial? Não porque as percepções sejam essencialmente inextensas, como afirma Stroud, mas porque algumas delas são localizáveis no espaço, enquanto outras (a maioria delas, segundo Hume) não o são (cf. T 235). Essa constatação se dá pela observação do conteúdo das percepções, ou seja, baseia-se na fenomenologia das percepções. Presumivelmente, se as considerássemos de um ponto de vista científico, a teoria ontológica do final da seção “Da imaterialidade da alma” (T 232-251) se aplicaria: uma teoria suficientemente desenvolvida nos mostraria que todas as nossas percepções são modificações de nosso organismo.3
O que ocorre, então, é que a adoção da perspectiva da primeira pessoa nos incapacita de apreender a contigüidade espacial entre nossas percepções4. Como diz Flage (1982, p. 536), um sistema mental não é essencialmente caracterizado pela espacialidade. Resta-nos esclarecer de que modo operam as relações de semelhança e causalidade.
Atentemos pois para as duas relações identificadas por Hume como estando na origem da crença na identidade pessoal. Em primeiro lugar, observa-se uma semelhança entre as percepções de uma pessoa. Produzida pela memória, essa semelhança ajudaria, de alguma forma, a delimitar a variação característica da consciência, fornecendo assim uma base para a crença em sua unidade:
Pois o que é a memória, senão a faculdade pela qual despertamos as imagens de percepções passadas? E como uma imagem necessariamente se assemelha a seu objeto, a freqüente inserção dessas percepções semelhantes na cadeia de pensamento não deve conduzir a imaginação mais facilmente de um elo a outro, fazendo o todo se parecer com a continuação de um objeto único? (T 260-1).
De acordo com Green, Hume estaria aqui corrigindo a tese lockeana, “a qual afirmava que a lembrança de uma experiência passada é condição necessária e suficiente para a identidade entre a pessoa que lembra e a pessoa que teve a experiência” (1999, p. 107), isto é, de que a consciência é condição necessária e suficiente da identidade pessoal.
A contribuição de Hume a essa teoria teria sido a explicação genética dessa crença: a semelhança produz a identidade porque faz “o todo se parecer com a continuação de um objeto único”. Um objeto único, segundo a teoria humeana da identidade, é uma sucessão de percepções que, por serem semelhantes, facilitam a transição mental (ver T 203-4). Assim, a memória ajuda a mente a confundir um feixe de percepções completamente distintas (a própria mente) com um feixe de percepções perfeitamente semelhantes (o objeto singular). A memória, portanto, seria indispensável na constituição daquela consciência cuja identidade, segundo Locke, determinava a identidade de uma pessoa (ver NOONAN, 1991, p. 41).
A semelhança, contudo, é apreendida devido ao conteúdo fenomenológico das percepções, ou seja, não é uma relação que determina a existência de uma percepção em virtude da existência de alguma outra. Assim, se cada percepção é como uma substância, existindo separadamente de todas as outras, como elas podem estar unidas num mesmo feixe, se a semelhança não pode ser responsável por tal união? Sem a possibilidade de apelar a qualquer conexão real ou lógica entre elas, Hume afirma que o único modo de explicar a existência de uma percepção é a causalidade:
Podemos observar que a verdadeira idéia de uma mente humana é a de um sistema de diferentes percepções ou diferentes existências, encadeadas pela relação de causa e efeito, e que produzem, destroem, influenciam e modificam-se umas às outras. Nossas impressões originam suas idéias correspondentes; e essas idéias, por sua vez, produzem outras impressões. Um pensamento expulsa outro pensamento, e arrasta consigo um terceiro, que o exclui por sua vez (T 261).
Como salienta Kemp Smith (1966, p. 503), a ênfase na causalidade significa que a identidade pessoal tem, assim como os objetos externos, um modo de existir condicionado, ou seja, não possui uma identidade absoluta e essencialmente imutável5. Assim, embora tudo o mais mude, as relações causais entre as percepções são permanentes:
Assim como a mesma república individual pode mudar não só seus membros, mas também suas leis e constituições, assim também a mesma pessoa pode variar seu caráter e disposição, bem como suas impressões e idéias, sem perder sua identidade. Por mais mudanças que sofra, suas diversas partes estarão sempre conectadas pela relação de causalidade (T 261).
Contudo, é difícil compreender como a mera relação causal pode conservar a identidade de algo: se o universo admite a explicação causal promulgada pela ciência, segue-se que tudo é relacionado causalmente e, assim, segundo o critério humeano de que a causalidade é responsável pela relação de identidade, essa totalidade possuiria uma identidade tanto quanto os objetos particulares. Isto é, a mera relação causal não parece suficiente para determinar a identidade de algo. Deve haver, então, algo que restrinja o escopo da causalidade de tal modo a produzir identidade no âmbito somente de um certo conjunto de percepções. Argumentarei a seguir que o ponto de partida da investigação humeana são apenas as percepções que se localizam no corpo do sujeito. É a partir desse conjunto delimitado de percepções que as associações de idéias explicariam a crença na identidade pessoal.
A memória e a causalidade devem ser compreendidas em suas relações recíprocas. A memória, como diz Hume, é a “fonte” da identidade pessoal. Ela é, por assim dizer, o lado consciente da identidade (aspecto epistemológico ou fenomenológico), enquanto a causalidade é o lado inconsciente (aspecto ontológico ou físico) da nossa identidade: “se não tivéssemos memória, jamais teríamos nenhuma noção de causalidade e tampouco, por conseguinte, da cadeia de causas e efeitos que constitui nosso eu ou pessoa” (T 261-2).
Em Hume a memória, sendo a revelação da causalidade (e não sua produção), não é mais que uma evidência da identidade pessoal. Desse modo, pelo fato de não equacionar consciência e identidade pessoal, Hume admite estendermos a causalidade, e assim nossa identidade, até momentos dos quais não temos lembrança alguma:
Uma vez tendo adquirido da memória essa noção de causalidade, podemos estender a mesma cadeia de causas, e conseqüentemente a identidade de nossas pessoas, para além de nossa memória; assim podemos fazê-la abarcar tempos, circunstâncias e ações de que nos esquecemos inteiramente, mas que, em geral, supomos terem existido. Pois são muito poucas as ações passadas de que temos alguma memória (T 262).
Assim, identificando a identidade pessoal com uma relação que transcende o conteúdo da consciência, a teoria humeana estaria imune à crítica formulada por Reid:
não é estranho que a uniformidade ou identidade de uma pessoa deva consistir numa coisa que está continuamente mudando, e não é a mesma nem por dois minutos? [...] Nossa consciência, nossa memória, e toda operação de nossa mente, estão ainda fluindo como a água de um rio, ou como o próprio tempo (REID, 2002, p. 278).
Por essa razão, Reid não hesita em dizer que nossa identidade ou personalidade é indivisível. Reid tem, na posse de uma alma, que seria propriamente a parte indivisível de nosso ser, um critério infalível para a identidade pessoal: “eu não sou pensamento, não sou ação, não sou sentimento; sou algo que pensa, que age, que sente” (REID, 2002, p. 264).
Segundo Hume, ao contrário, as questões envolvendo identidade são incertas e insolúveis. Por quê? Porque a identidade não é encontrada na experiência, mas sim produzida por uma transição mental cuja operação não admite qualquer quantificação ou padronização:
A identidade depende das relações entre as idéias; e essas relações produzem a identidade por meio da transição fácil que ocasionam. Mas como as relações e a facilidade da transição podem diminuir gradativa e insensivelmente, não possuímos um critério exato que nos permita resolver qualquer controvérsia sobre o momento em que adquirem ou perdem o direito ao nome de identidade (T 262).
Identidades são produzidas, eis a conseqüência do atomismo humeano.
O Apêndice
De que modo uma semelhança entre percepções pode originar a crença na identidade pessoal? Segundo Hume, a semelhança facilita a transição mental entre uma percepção e outra, dessa forma conferindo uma certa unidade ao feixe. Mas por que há semelhança entre percepções? Ora, se minha memória de p se assemelha à minha percepção de p, ela se assemelha também à percepção de p tida por outro sujeito. Essa semelhança, contudo, facilita somente a transição mental entre as minhas percepções. Isso mostra que o escopo da semelhança não é universal, mas se restringe apenas a um conjunto determinado de percepções.
Esse é o ponto da crítica de Butler à teoria lockeana, ao afirmar que a memória pressupõe a identidade assim como o conhecimento pressupõe a verdade (ver BUTLER, 1736, p. 302). Tal problema não atinge a teoria humeana pois, segundo ela, “a memória não tanto produz, mas revela a identidade pessoal” (T 262). Mas, devemos perguntar, a semelhança seria suficiente mesmo para apenas revelar a identidade pessoal?
Roth (2000) identifica um problema a partir da constatação de que o modelo humeano adotado para explicar a identidade pessoal é baseado na identidade dos objetos externos. A análise de Roth parte de dois pressupostos: (i) a rejeição da distinção entre percepções e objetos e (ii) a constatação de que nossa experiência é de uma pluralidade de objetos. A partir daí, surgiria um problema epistemológico7: as duas tendências ou atos mentais, que unificam nossas percepções e produzem as crenças na identidade pessoal e material, seriam incompatíveis. Vejamos por quê.
A primeira tendência tomaria um grupo de percepções relacionadas pela constância e coerência e formaria a idéia de um objeto independente. Tal como deve haver um princípio de identidade associado a essa tendência, a consciência de uma multiplicidade de objetos pressupõe um princípio de diferenciação. Como esse princípio poderia operar, se a crença na identidade pessoal, por sua vez, requer que não notemos a distinção e variabilidade de nossas percepções?
[S]e eu uno todas as minhas percepções (o que é necessário para a crença na identidade pessoal), então não posso ao mesmo tempo unir algumas dessas percepções excluindo algumas outras (o que é necessário para a crença na persistência de objetos distintos e independentes) (ROTH, 2000, p. 105).
Lembremos que, para Hume, a diferença é a negação de uma relação (ver T 15). Assim, ali onde há uma multiplicidade de objetos distintos, não pode haver um ato mental que, devido a relações naturais de idéias, abarque todas as percepções que constituem nossa experiência. Desse modo, como estender nossa identidade através do curso inteiro de nossas vidas se devemos, ao mesmo tempo, reconhecer uma multiplicidade de objetos distintos e independentes?
Uma solução para o problema encontrado por Roth seria interpretar a relação causal, responsável pela verdadeira idéia da mente humana (T 261), como uma associação não-natural, ou seja, de tal forma que não envolva em seu escopo todas as percepções já possuídas por nós. Dessa forma, seria justificada a constatação de Ellis (2006, p. 215), segundo a qual a crença na identidade pessoal não exige que a totalidade de nossas percepções seja apreendida e confundida num mesmo ato mental, o que, convenhamos, é uma exigência um tanto implausível. O objetivo da seção “Da identidade pessoal”, contudo, parece ser o de tomar a semelhança e a causalidade como relações naturais de idéias. É possível outra leitura da seção?
Waldow diz algo na direção daquilo que procuramos. Comentando a analogia entre o eu e uma república, que conclui com a afirmação de que “por mais mudanças que [uma pessoa] sofra, suas diversas partes estarão sempre conectadas pela relação de causalidade” (T 261), Waldow interpreta a causalidade da seguinte maneira:
essa dependência consiste no fato de que cada uma de nossas percepções é causada por outras (o que não implica, é claro, que essa causação envolva sempre a relação associativa de causação, enquanto oposta à semelhança e à contigüidade; toda associação de idéias é um processo causal) (2006: 9).
Assim, para Waldow, a causalidade que envolve a totalidade de nossas percepções deve ser compreendida como uma dependência associativa entre as percepções, ou seja, uma dependêndia que se manifesta por associações não apenas causais como também por semelhança e contigüidade. Desconsiderando o problema da evidência textual, deveríamos perguntar se essa interpretação da causalidade escaparia às críticas de Roth.
Se a transição mental ocorre de acordo com três princípios distintos, é plausível que ela não tenha como condição a desconsideração da distinção entre o conteúdo das percepções (distinção essa que fundamentaria o reconhecimento de uma multiplicidade de objetos). Afinal, a transição não se daria apenas através da semelhança (que é por excelência a relação constitutiva dos feixes de percepções objetivas), mas também pela contigüidade e pela causalidade. Que a contigüidade seja restituída ao domínio do mental não contradiz a doutrina humeana, que jamais chegou a excluí-la definitivamente: “é evidente que devemos nos limitar à semelhança e à causalidade, deixando de lado a contigüidade, que tem pouca ou nenhuma influência neste caso” (T 260, itálicos meus). Por que Hume concede a possibilidade de que a contigüidade possa ter uma influência, ainda que mínima? Ora, se a contigüidade espacial não pode abarcar todas as nossas percepções, visto que a maioria delas é inextensa, ainda assim ela se aplica ao conjunto formado pelas percepções extensas.
Teríamos, assim, um sentido de causalidade epistemologicamente transparente, ou seja, que poderia servir de evidência para a identidade pessoal por produzir uma transição fácil entre as percepções. Quando Hume descreve a causalidade operante entre nossas percepções ele parece ter em vista esse sentido amplo de causalidade:
Nossas impressões originam suas idéias correspondentes; e essas idéias, por sua vez, produzem outras impressões. Um pensamento expulsa outro pensamento, e arrasta consigo um terceiro, que o exclui por sua vez (T 261).
Poderíamos, a partir das considerações precedentes, distinguir a causalidade de três modos:
(i) Sentido ontológico: aqui a causalidade é apenas inferida, ou seja, a partir da observação de que impressões produzem idéias, de que as percepções “produzem, destroem, influenciam e modificam-se umas às outras” (ibid.), supomos que todas elas se relacionam causalmente. Mas não teríamos, no sentido estrito, uma idéia dessa causalidade. Isso estaria de acordo com a interpretação realista cética de Wright (1983), por exemplo, segundo a qual podemos conceber aquilo que não conseguimos imaginar. Contudo, há o problema da evidência textual: a seção “Da identidade pessoal” introduz a causalidade enquanto relação natural, isto é, enquanto produtora de uma associação entre idéias. Assim, mesmo que ontologicamente nosso organismo seja composto de uma multiplicidade de elementos materiais relacionados causalmente, esse fato, por si só, não explica como chegamos a nos conceber como pessoas, ou seja, como chegamos a acreditar que todas as nossas percepções estejam unidas pela relação de identidade.
(ii) Sentido epistemológico amplo: num sentido amplo, a causalidade que une todas as nossas percepções é compreendida como qualquer um dos princípios de associação de idéias (ver WALDOW 2006). Assim, as associações por semelhança, contigüidade ou causalidade contam igualmente como relações causais entre as idéias. É plausível que, havendo qualquer associação entre minhas idéias (qualquer dos três casos acima), deva haver alguma forma de identidade entre elas: afinal, sou eu que as tenho, e ninguém mais. É por isso que “a mesma pessoa pode variar seu caráter e disposição, bem como suas impressões e idéias, sem perder sua identidade” (T 261). Ou seja, apesar do pluralismo ontológico (variação das impressões e idéias) e do pluralismo psicológico (variação do caráter e disposição), a pessoa preserva sua identidade desde que haja uma continuidade nas ações mentais, continuidade essa que é explicada pela relação causal que conecta as percepções.
(iii) Sentido epistemológico estrito: a causalidade em sentido estrito é a relação natural que envolve a conjunção constante. Embora essa pareça ser a interpretação condizente com o texto da seção “Da identidade pessoal”, ela enfrenta várias dificuldades.
(i) Em primeiro lugar, é plausível que ocorra uma causalidade interpessoal entre percepções: quando uma percepção do tipo a ocorre em minha mente, uma outra do tipo b ocorre na de outra pessoa, e outra do tipo c ocorre na mente de uma terceira pessoa etc. É provável que isso ocorra num diálogo, como diz Noonan (1991, p. 97). Assim, se a mera semelhança não garantia a singularidade do feixe, a causalidade não o faria melhor: “isto quer dizer que conjunções constantes ocorrem entre vários tipos de percepções, independentemente de qual mente possua as percepções em questão” (STROUD 1977, p. 125).
(ii) Uma segunda crítica sustenta que, nem mesmo entre um feixe que tomamos, de antemão, como constituindo uma pessoa, a causalidade é adequada para explicar a crença na identidade pessoal. Isso porque a concepção humeana da causalidade exige uma regularidade incompatível com nossa vida mental.
De que modo a causalidade originaria a transição mental que Hume sustenta ser a origem da nossa crença? Para descobrirmos que um certo feixe é relacionado causalmente teríamos de observar que a percepção a, por exemplo, causa a percepção b. A tese humeana, prima facie, exige que todas as percepções estejam relacionadas causalmente. Teríamos de ter observado que a percepção b é causa da percepção c, e assim por diante. Ora, segundo a concepção humeana, isso seria possível somente se observássemos uma conjunção constante entre a e b, entre b e c, e conseqüentemente entre toda a seqüência abc... Isso exigiria que o surgimento de uma percepção qualquer fosse sempre acompanhado do surgimento de uma outra (e sempre a mesma) seqüência de percepções. Nossa experiência, contudo, torna tal regularidade uma exigência irrealista:
quando estou tendo a impressão de uma árvore, posso virar minha cabeça e receber a impressão de um prédio, mas a primeira impressão não é uma causa da segunda. A primeira não pertence a uma classe de percepções cada uma das quais tem sido sucedida por um membro de uma classe de percepções à qual pertence a segunda impressão. Nossas impressões de sensação não exibem tal regularidade. Novas experiências emergem em nossa consciência independentemente daquilo que aconteceu um instante atrás, de modo que não é verdade que cada uma de nossas percepções é causada por nossas outras percepções (STROUD, 1977, p. 126).
O que uniria os diversos segmentos numa mesma consciência? Como diz Stroud, se algumas impressões “aparecem na alma sem qualquer introdução”, o conjunto de nossas percepções não pode formar uma cadeia causal singular (ver STROUD, 1977, p. 127), isto é, cada segmento ou cadeia causal seria completo em si mesmo: uma impressão a¹ causa uma idéia a² que, por sua vez, está relacionada causalmente com a memória a³, que não tem nenhuma relação causal com b¹, e assim por diante.
A descontinuidade e variabilidade das impressões de sensação ocorre porque elas são os primeiros elos de uma cadeia causal que surge, por exemplo, apenas por piscarmos os olhos ou virarmos a cabeça de um lado para outro. Segundo a ontologia humeana, isso equivale a uma mudança ou substituição de percepções, a qual aconteceria sem o suporte de qualquer ponto de referência. O que poderia fornecer esse ponto de referência? Presumivelmente a localização espaço-temporal do corpo do sujeito cognoscente. Afinal, é nele que ocorrem as percepções, tanto as extensas quanto as inextensas8.
De que modo, porém, o nosso próprio corpo poderia ser útil para a formação da crença em nossa identidade pessoal? Teríamos que ter uma idéia ou impressão dele, de tal forma que pudéssemos distinguir o nosso eu dos objetos externos. Como diz Hume, “a dificuldade, portanto, está em saber até que ponto nós somos objetos de nossos sentidos” (T 189).
Segundo o teoria humeana, porém, a idéia que temos de nossos corpos não é categorialmente distinta das percepções relativas aos objetos “externos” a nós:
não é propriamente nosso corpo o que percebemos quando olhamos para nossos membros e partes corporais, mas certas impressões que entram pelos sentidos; de modo que a atribuição de uma existência real e corpórea a essas impressões, ou a seus objetos, é um ato da mente tão difícil de explicar quanto o que estamos agora examinando [a atribuição de existência externa] (T 191).
Isto é, da perspectiva fenomenológica das percepções, não há distinção entre interno e externo, aparência e realidade: “todas as impressões (externas e internas, paixões, afetos, sensações, dores e prazeres) são originalmente equivalentes” (T 190).
Mascarenhas (2001, p. 286-8) nos lembra que tal doutrina está ligada à concepção humeana do espaço, segundo a qual esse não é algo anterior às nossas percepções, mas sim proveniente do modo como as percepções táteis e visuais aparecem diante da mente. Desse modo, “desde que a localização espacial das impressões corpóreas é da mesma espécie que a das outras impressões, elas não podem exercer a função privilegiada de unificar as percepções, sejam elas espaciais ou não” (2001, p. 287).
(iii) Alguns autores identificam a supressão do corpo e (conseqüentemente) da contigüidade espacial entre as percepções como o problema fundamental da teoria humeana. Devido a essa supressão, não haveria critérios para a individuação de percepções inextensas:
duas percepções exatamente semelhantes em mentes distintas podem diferir em suas relações causais [...] somente por diferirem em suas relações de precedência ou contigüidade com outras percepções. Porém, percepções simultâneas e exatamente semelhantes ocorrendo em mentes distintas só podem diferir em suas relações causais por diferirem em suas localizações espaciais (NOONAN, 1991, p. 100).
Ou seja, duas percepções f e g, especificamente idênticas e simultâneas, estão, para todas as outras percepções, nas mesmas relações de semelhança e de contigüidade temporal: se no feixe abcde a percepção c é idêntica a f, ela também é idêntica a g, pois f e g são qualitativamente idênticas; se a percepção e foi seguida pela percepção f, o mesmo pode ser dito dela em relação à percepção g, pois f e g são simultâneas.
Assim, segundo os critérios de semelhança e causalidade, tanto f quanto g poderiam estar contidas no feixe de percepções abcde, ainda que f e g fossem numericamente distintas. A solução seria negar que as duas percepções fossem indiscerníveis, mas isso só seria possível utilizando coordenadas espaciais para sua individuação. Segundo Pears, tal dificuldade é um sintoma do mentalismo humeano, que procura fundamentar a unidade mental tão somente sobre a contigüidade temporal, “uma teoria inapelavelmente inadequada” (1990, p. 143). Julgo que essas objeções estão, em suma, corretas. O meu ponto é que a solução que elas exigem é pressuposta pela teoria humeana.
Ainda que relute em classificar a teoria humeana como um materialismo, McIntire, por exemplo, diz o seguinte: "é a relação entre os eventos mentais e um corpo que serve para distinguir uma mente de outra” (1995, p. 725). A solução pressuposta por Hume, então, é a seguinte: embora nem todas as percepções sejam localizáveis espacialmente, todas elas estão causalmente ligadas a um corpo, um objeto físico: como se afirma na seção “Da imaterialidade da alma”, percepções inextensas estão conjugadas a impressões espaciais. Ou seja, percepções inextensas são causadas por objetos espaciais (cf. FALKENSTEIN, 1998, p. 342-3). Assim, percepções inextensas são individuadas ao identificarmos seus antecedentes causais9.
Qual é o papel do corpo, então? Ele resolve, a meu ver, o problema ontológico, ao estar relacionado causalmente às nossas percepções. Dada a causalidade entre nosso organismo, que é localizável espacialmente, e nossas percepções, é ilegítima a questão sobre a individuação das percepções inextensas. Mentes são, de fato, individuadas espacialmente. Ou seja, Hume não procura individuar mentes e percepções com base em critérios epistemologicamente transparentes (nesse caso, segundo a semelhança e a causalidade).
E por que o corpo não responde o problema epistemológico, ou seja, o problema da origem da crença na identidade pessoal? Segundo a teoria humeana do espaço, o corpo não é percebido como algo categoriamente distindo de nossas percepções extensas. Além disso, há percepções inextensas. Ainda que essas sejam individuadas por estarem conectadas a um corpo, elas não são localizáveis espacialmente. A contigüidade espacial baseada no corpo não teria, dessa forma, um papel na gênese da crença na identidade pessoal.
O que as dificuldades expostas nessa seção indicam é que, no Apêndice, Hume percebeu que a semelhança e a causalidade são insuficientes para explicar de que modo surge a crença na identidade pessoal. O ponto exato da dificuldade é tema de debate entre os comentadores. Meu objetivo aqui foi apenas apresentar algumas dessas interpretações.
Farei, a seguir, uma exposição e crítica de uma interpretação ontológica, que vê no Apêndice um grave dano ao empirismo humeano. Se minhas críticas forem plausíveis, uma evidência adicional será emprestada à leitura epistemológica desenvolvida na presente seção. Com isso espero mostrar que o Apêndice não coloca em questão o projeto filosófico humeano, cujo objetivo, fundamentado em seus pressupostos materialistas, era o de investigar a mente de modo análogo ao que os cientistas tratam dos outros objetos naturais.
Como é sabido, no Apêndice Hume retoma o tema da identidade pessoal e exprime dúvidas sobre sua teoria inicial: “ao fazer uma revisão mais cuidadosa da seção concernente à identidade pessoal, vejo-me perdido em um tal labirinto que, devo confessar, não sei nem como corrigir minhas opiniões anteriores, nem como torná-las coerentes” (T 633).
A dificuldade descoberta do Apêndice é apresentada assim:
[...] meu argumento parece ter uma evidência suficiente. Mas, tendo assim afrouxado o laço entre todas as nossas percepções particulares, quando passo a explicar o princípio de conexão que as liga, e que nos faz atribuir a elas uma real simplicidade e identidade, percebo que minha explicação é muito deficiente, e que só a aparente evidência dos raciocínios anteriores pode ter-me levado a aceitá-la (T 635; itálico meu).
A seção “Da identidade pessoal” dizia que os princípios responsáveis pela crença na identidade pessoal atuam no pensamento, e não nas percepções nelas mesmas, que são todas distintas e separadas. Como diz Ainslie (2001, passim), tal pensamento ou reflexão é constituído por idéias secundárias, ou seja, idéias que se referem às nossas próprias percepções: “apenas o pensamento encontra a identidade pessoal, quando, ao refletir sobre a cadeia de percepções passadas que compõem uma mente, sente que as idéias dessas percepções estão conectadas entre si, e que introduzem naturalmente umas às outras” (T 635). “Mas”, continua Hume,
todas as minhas esperanças se desvanecem quando¹ passo a explicar os princípios que unem nossas percepções sucessivas em nosso pensamento ou consciência. Não consigo descobrir nenhuma teoria que me satisfaça quanto a esse ponto (T 635-6, itálico meu).
Segundo Stroud, haveria dois modos de interpretar essa passagem:
(i) ela pode significar que Hume não tem qualquer esperança de explicar o que realmente une nossas percepções sucessivas numa mente ou consciência - o que atualmente as une de modo a constituir uma mente. (ii) Ou pode significar que ele não tem qualquer esperança de explicar quais características de nossas percepções e quais princípios da mente se combinam para produzir em nós o pensamento ou crença de que somos mentes individuais - o que une as sucessivas percepções em nosso pensamento, ou que nos faz pensar nelas como unidas juntas. Obviamente estas duas interpretações são diferentes (STROUD, 1977, p. 133; índices meus).
Chamarei a interpretação (i) de ontológica, e a (ii) de epistemológica. Qual é a correta?
Ellis (2006, p. 201-8) aponta o fato de que a nota após “quando” ajuda a esclarecer o problema descoberto por Hume no Apêndice. Nessa passagem, é indicado o momento em que uma revisão da seção “Da identidade pessoal” torna-se necessária, ou seja, “quando passo a explicar o princípio de conexão que as liga [as percepções], e que nos faz atribuir a elas uma real simplicidade e identidade” (T 635, itálico meu). Ellis observa que, na primeira edição do Apêndice, a nota se refere a uma página que trata dos princípios de associação por semelhança e causalidade e de sua aplicação à identidade pessoal6. Tudo indica, então, que a dúvidas humeanas devem ser interpretadas de acordo com a segunda interpretação listada por Stroud.
O que Hume veio a descobrir no Apêndice, então? Por que os princípios de associação, que funcionaram tão bem na explicação do objeto externo e da causalidade, revelam-se insatisfatórios no caso da identidade pessoal?
As últimas palavras do Apêndice sobre a identidade pessoal são pouco esclarecedoras:
há dois princípios a que não posso renunciar, mas que não consigo tornar compatíveis: que todas as nossas percepções distintas são existências distintas, e que a mente nunca percebe nenhuma conexão real entre existências distintas. Se nossas percepções fossem inerentes a alguma coisa simples e individual, ou então se a mente percebesse alguma conexão real entre elas, não haveria dificuldade alguma (T 636).
É unânime, entre os comentadores, a opinião de que esses dois princípios não são incompatíveis entre si, pois o segundo é uma conseqüência epistemológica da tese ontológica expressa no primeiro. A incompatibilidade deveria ocorrer, então, entre esses dois princípios, que são fundamentais na filosofia humeana, e um terceiro elemento. Qual é esse outro elemento? Presumivelmente, é a crença na identidade pessoal: como podemos formar a crença num eu simples e indivisível se nossas percepções não inerem numa substância e nem têm conexões reais umas com as outras?
Temos de explicar o seguinte: aparentemente, esse pronunciamento humeano candidata duas teses metafísicas como possíveis soluções para o problema da identidade pessoal: a inerência das percepções numa substância e a conexão real entre as percepções. Contudo, a nota no Apêndice identifica tal problema como uma dificuldade psicológica ou epistemológica, isto é, a dificuldade de explicar como a crença pode se originar dos princípios de associação.
É bem verdade que as possibilidades metafísicas do Apêndice estão ligadas a suas conseqüências epistemológicas: elas só seriam relevantes se pudéssemos perceber a relação de inerência ou a de conexão necessária. Ainda assim, elas são contrárias à nota porque, dessa forma, a crença na identidade pessoal não estaria vinculada às associações de idéias, à reflexão mediante idéias secundárias, mas sim à percepção de relações reais entre elas.
Na próxima seção apresento alguns dos problemas que poderiam ter sido suscitados pela aplicação dos princípios de associação. Ainda que eu deixe em aberto o motivo exato para as dúvidas de Hume, sustento que é esse aspecto de sua teoria que Hume julgou ser insatisfatório. Na última seção do artigo apresento uma interpretação que identifica um problema ontológico na tese humeana sobre a identidade pessoal. Procuro mostrar que essa interpretação é implausível, considerada sob a luz do projeto levado a cabo na filosofia humeana.
O problema epistemológico
Podemos considerar a interpretação ontológica tomando como ponto de partida a análise feita por Wolff. Segundo esse autor, Hume teria iniciado o Tratado com um preceito fundamental: o conhecimento empírico poderia ser explicado em termos, somente, do conteúdo das percepções (ver 1995, p. 158). Hume teria descoberto, contudo, que a atividade da mente é que é o princípio fundamental para a constituição da experiência. A estrutura da filosofia humeana, porém, tornaria inexprimíveis tais atividades, visto que as entidades identificadas pela teoria, as percepções, são todas particulares. Ou seja, são incapazes de representar uma atividade.
Por isso, segundo Wolff, quando procura explicar a atividade que gera a relação causal, por exemplo, Hume apela a uma impressão de reflexão. Assim, Hume “é forçado a expressar suas melhores idéias numa linguagem completamente inadequada a elas” (ibid.). Qual é o fundamento dessa interpretação? O que significa dizer que Hume pressupõe uma mente ativa, ao invés de uma mente redutível às percepções e aos princípios de associação? Ora, se a atividade da mente, tanto quanto o conteúdo empírico, contribui para o caráter dessa experiência, tal atividade deve ser conduzida por princípios inatos, anteriores à experiência. Wolff compara esse pressuposto à tábua de categorias kantiana, que dá forma ao dado sensível (ver 1995, p. 173-4).
Wolff explica assim a relação causal: “as impressões associadas agem como estímulos para ativar uma propensão inata; o resultado é uma disposição mental para imaginar uma idéia relacionada quando da presença de uma impressão” (1995, p. 164). O autor fala numa propensão inata, anterior à experiência sensível. Ora, essa “disposição mental” deve, então, ser considerada como transcendendo o conteúdo da experiência? Penso que não.
Robinson e Nathanson, seguindo o caminho delineado por Wolff, aplicam a tese das disposições mentais para esclarecer o Apêndice. Segundo Robinson, as explicações do objeto externo e da conexão necessária pressupunham uma mente cujas propensões produziam tais crenças. Quando passou a explicar a crença na identidade pessoal, contudo, Hume teria percebido que seus princípios empiristas eram incompatíveis com a entidade pressuposta nesses outros casos: “sua explicação de por que pensamos ter uma idéia do eu depende da existência de um eu” (1995, p. 698).
Por que, contudo, Hume jamais abandonou suas teses sobre o objeto externo e a conexão necessária? Embora o Apêndice tenha sido como que um golpe de misericórdia na teoria da identidade pessoal, cuja exposição não foi sequer retomada na Investigação sobre o Entendimento Humano, o mesmo não ocorre com as duas outras teses. Ou seja, a falha descoberta a respeito da identidade pessoal não afeta essas outras explicações.
Nathanson, por sua vez, retoma as teses de Robinson e com pequenas modificações defende-a. Para isso, ele faz um importante esclarecimento, o qual revela um pressuposto desse grupo de intérpretes. Entender esse pressuposto torna mais simples descartá-lo.
Se o Apêndice mostra que a mente é um conjunto de disposições, e se essas disposições não podem ser percepções, há um grave dano ao empirismo humeano. Como vimos anteriormente acerca da interpretação de Wolff, o empirismo teria de acomodar uma estrutura inata à mente. Como diz Nathanson, isso implicaria que as associações de idéias descobertas por Hume não podem ser redutíveis a um mero jogo entre idéias, mas sim a uma relação entre as idéias e uma mente: duas idéias são semelhantes (ou contíguas, ou relacionadas causalmente) para uma mente, e não em si mesmas. A ordem no mundo ideal seria espontânea, não-derivada passivamente da experiência: “as propensões que estou invocando são propriedades da mente, e não das percepções” (1976, p. 44), diz Nathanson. Ou seja, para além da tábula rasa, a mente do empirismo seria muito mais substancial que o feixe de percepções humeano, cuja existência prescindiria de um palco. Segundo Wolff, Robinson e Nathanson, haveria não só um palco (a mente) como todo o elenco (as propensões e disposições da mente) esperando pela platéia (as percepções).
Como diz Beauchamp, contudo, é implausível que em quatro ou cinco parágrafos Hume tenha rejeitado todo o Livro I do Tratado: “Hume está genuinamente perplexo acerca do modo de proporcionar uma explicação mais profunda dos princípios de associação [...] Hume exprime um desencanto com todas as teorias conhecidas, inclusive com a sua” (1979, p. 39).
Beauchamp assinala que a interpretação de Wolff convenceu alguns comentadores de que os atos mentais ou imaginativos atuantes no decorrer do Livro 1 pressupunham um eu sintetizador à la Kant, ou seja, um eu estruturado de acordo com princípios anteriores à experiência. O que eu defendo é uma interpretação materialista da teoria humeana: o universo é matéria em movimento, máxima que, segundo os projetos de Hobbes e Hume, deveria ser seguida não só nas ciências naturais como nas ciências morais (ver RUSSELL 1988, p. 409-10).
O ponto culminante dessa concepção é encontrado justamente nos temas ora analisados, onde o eu (Hume também usa os termos mind e soul), tido por alguns como reduto inexpugnável do espírito e do livre-arbítrio, é identificado por Hume como um feixe de percepções relacionadas causalmente. É desse feixe que surge a consciência (e, conseqüentemente, a identidade pessoal), ou seja, ela não ocorre noutro âmbito que não o da matéria em movimento.
Beauchamp diz duas coisas que resumem a concepção ontológica que atribuo a Hume e que servirão de introdução àquilo que direi a seguir: “Não vejo razão alguma para que Hume não possa explicar redutivamente todo discurso sobre faculdades, propensões e conexões em termos de cadeias causais entre percepções [...] Talvez ele não consiga reduzir coerentente atividades mentais a percepções, mas ainda não vi qualquer argumento que mostre que ele não o possa” (1979, p. 40-1).
Segundo Nathanson, sua interpretação mostra que as associações entre idéias ocorrem desde que tais idéias afetem uma mente. Vejamos uma das explicações de Hume para a associação de idéias: “Teria sido fácil fazer uma dissecção imaginária do cérebro, e mostrar por que, ao concebermos uma determinada idéia, os espíritos animais se espalham por todas as vias contíguas, despertando as outras idéias relacionadas à primeira” (T 60). Deveríamos, aqui, pressupor uma mente para realizar as associações? Se as percepções são redutíveis a eventos físicos, o cérebro desempenharia uma função análoga à da mente: é nele que ocorrem os movimentos dos espíritos animais etc. Deveríamos dizer que o cérebro funciona de acordo com princípios? Com disposições e propensões anteriores à experiência? Isso parece correto, mas da mesma forma que a cor dos olhos ou o formato do nariz é anterior à experiência. Ou seja, os princípios do cérebro não são anteriores à toda experiência. Eles podem o ser em relação à experiência individual, mas não anteriores à experiência da espécie.
Mesmo que haja propensões ditas inatas, elas são causadas. A ordem em nossa mente, assim como a ordem na natureza, surge por acaso e necessidade (sem uma razão, mas não sem causas). Assim, não é necessário postular uma mente para explicar as associações de idéias. Ou melhor, se nos referirmos à mente, estamos nos referindo veladamente a um conjunto de fatos e princípios para sempre fora do âmbito do nosso entendimento. Mas não fora do âmbito da natureza, onde tudo tem uma causa: “o início do movimento na própria matéria é a priori tão concebível quanto sua comunicação a partir da mente, da inteligência” (HUME 1992, p. 106-7). Não são os princípios de associação padrões que identificam o “movimento” de nossos pensamentos? Por que pensar que tais associações, então, surgem da estrutura da mente e não das relações entre o homem e seu meio ambiente? Ou seja, das relações entre a parte e o todo: o que é o feixe de percepções pessoal senão uma parte de um todo determinado causalmente?
Cada indivíduo está em perpétua mudança, bem como toda parte de cada indivíduo; mas o todo, não obstante, permanece aparentemente o mesmo. Não seria razoável esperar a ocorrência de uma situação desse tipo, ou mesmo estar seguro dela, a partir das circunvoluções eternas da matéria não-direcionada? (HUME 1992, p. 109-10).
Supor que a mente seja dotada de propensões e disposições que condicionam a experiência ou as associações de idéias é supor que o pensamento é uma causa ativa, ou seja, uma causa incausada. Contudo, não só o materialismo ontológico de Hume contradiz isso, como seu próprio empirismo exige que, onde houver conteúdo de pensamento, deve haver uma experiência anterior. E a experiência, para um filósofo materialista, não é nada mais que o produto da interação entre dois objetos materiais (ver BUCKLE, 2007, p. 562).
Ao contestar Cleantes, para quem toda ordem requer um desígnio, Filo diz o seguinte:
Em todos os exemplos que já presenciamos, as idéias são copiadas dos objetos reais e são ectípicas, não arquetípicas, para expressar-me em termos eruditos. Você reverte essa ordem e dá precedência ao pensamento. Em todos os casos que presenciamos, o pensamento não tem influência sobre a matéria, exceto naqueles em que essa matéria está de tal modo conjugada ao pensamento a ponto de exercer igualmente uma influência recíproca sobre ele (HUME, 1992, p. 112).
Desse modo, ainda que se possa, em algum sentido, dizer que a mente também seja responsável pelo conteúdo da experiência, esse conteúdo deve, segundo o princípio da cópia, ter sido copiado de eventos externos: as idéias são ectípicas, e não arquetípicas. Ou seja: as disposições e propensões mentais são, numa filosofia naturalista, causadas.
De que modo uma semelhança entre percepções pode originar a crença na identidade pessoal? Segundo Hume, a semelhança facilita a transição mental entre uma percepção e outra, dessa forma conferindo uma certa unidade ao feixe. Mas por que há semelhança entre percepções? Ora, se minha memória de p se assemelha à minha percepção de p, ela se assemelha também à percepção de p tida por outro sujeito. Essa semelhança, contudo, facilita somente a transição mental entre as minhas percepções. Isso mostra que o escopo da semelhança não é universal, mas se restringe apenas a um conjunto determinado de percepções.
Esse é o ponto da crítica de Butler à teoria lockeana, ao afirmar que a memória pressupõe a identidade assim como o conhecimento pressupõe a verdade (ver BUTLER, 1736, p. 302). Tal problema não atinge a teoria humeana pois, segundo ela, “a memória não tanto produz, mas revela a identidade pessoal” (T 262). Mas, devemos perguntar, a semelhança seria suficiente mesmo para apenas revelar a identidade pessoal?
Roth (2000) identifica um problema a partir da constatação de que o modelo humeano adotado para explicar a identidade pessoal é baseado na identidade dos objetos externos. A análise de Roth parte de dois pressupostos: (i) a rejeição da distinção entre percepções e objetos e (ii) a constatação de que nossa experiência é de uma pluralidade de objetos. A partir daí, surgiria um problema epistemológico7: as duas tendências ou atos mentais, que unificam nossas percepções e produzem as crenças na identidade pessoal e material, seriam incompatíveis. Vejamos por quê.
A primeira tendência tomaria um grupo de percepções relacionadas pela constância e coerência e formaria a idéia de um objeto independente. Tal como deve haver um princípio de identidade associado a essa tendência, a consciência de uma multiplicidade de objetos pressupõe um princípio de diferenciação. Como esse princípio poderia operar, se a crença na identidade pessoal, por sua vez, requer que não notemos a distinção e variabilidade de nossas percepções?
[S]e eu uno todas as minhas percepções (o que é necessário para a crença na identidade pessoal), então não posso ao mesmo tempo unir algumas dessas percepções excluindo algumas outras (o que é necessário para a crença na persistência de objetos distintos e independentes) (ROTH, 2000, p. 105).
Lembremos que, para Hume, a diferença é a negação de uma relação (ver T 15). Assim, ali onde há uma multiplicidade de objetos distintos, não pode haver um ato mental que, devido a relações naturais de idéias, abarque todas as percepções que constituem nossa experiência. Desse modo, como estender nossa identidade através do curso inteiro de nossas vidas se devemos, ao mesmo tempo, reconhecer uma multiplicidade de objetos distintos e independentes?
Uma solução para o problema encontrado por Roth seria interpretar a relação causal, responsável pela verdadeira idéia da mente humana (T 261), como uma associação não-natural, ou seja, de tal forma que não envolva em seu escopo todas as percepções já possuídas por nós. Dessa forma, seria justificada a constatação de Ellis (2006, p. 215), segundo a qual a crença na identidade pessoal não exige que a totalidade de nossas percepções seja apreendida e confundida num mesmo ato mental, o que, convenhamos, é uma exigência um tanto implausível. O objetivo da seção “Da identidade pessoal”, contudo, parece ser o de tomar a semelhança e a causalidade como relações naturais de idéias. É possível outra leitura da seção?
Waldow diz algo na direção daquilo que procuramos. Comentando a analogia entre o eu e uma república, que conclui com a afirmação de que “por mais mudanças que [uma pessoa] sofra, suas diversas partes estarão sempre conectadas pela relação de causalidade” (T 261), Waldow interpreta a causalidade da seguinte maneira:
essa dependência consiste no fato de que cada uma de nossas percepções é causada por outras (o que não implica, é claro, que essa causação envolva sempre a relação associativa de causação, enquanto oposta à semelhança e à contigüidade; toda associação de idéias é um processo causal) (2006: 9).
Assim, para Waldow, a causalidade que envolve a totalidade de nossas percepções deve ser compreendida como uma dependência associativa entre as percepções, ou seja, uma dependêndia que se manifesta por associações não apenas causais como também por semelhança e contigüidade. Desconsiderando o problema da evidência textual, deveríamos perguntar se essa interpretação da causalidade escaparia às críticas de Roth.
Se a transição mental ocorre de acordo com três princípios distintos, é plausível que ela não tenha como condição a desconsideração da distinção entre o conteúdo das percepções (distinção essa que fundamentaria o reconhecimento de uma multiplicidade de objetos). Afinal, a transição não se daria apenas através da semelhança (que é por excelência a relação constitutiva dos feixes de percepções objetivas), mas também pela contigüidade e pela causalidade. Que a contigüidade seja restituída ao domínio do mental não contradiz a doutrina humeana, que jamais chegou a excluí-la definitivamente: “é evidente que devemos nos limitar à semelhança e à causalidade, deixando de lado a contigüidade, que tem pouca ou nenhuma influência neste caso” (T 260, itálicos meus). Por que Hume concede a possibilidade de que a contigüidade possa ter uma influência, ainda que mínima? Ora, se a contigüidade espacial não pode abarcar todas as nossas percepções, visto que a maioria delas é inextensa, ainda assim ela se aplica ao conjunto formado pelas percepções extensas.
Teríamos, assim, um sentido de causalidade epistemologicamente transparente, ou seja, que poderia servir de evidência para a identidade pessoal por produzir uma transição fácil entre as percepções. Quando Hume descreve a causalidade operante entre nossas percepções ele parece ter em vista esse sentido amplo de causalidade:
Nossas impressões originam suas idéias correspondentes; e essas idéias, por sua vez, produzem outras impressões. Um pensamento expulsa outro pensamento, e arrasta consigo um terceiro, que o exclui por sua vez (T 261).
Poderíamos, a partir das considerações precedentes, distinguir a causalidade de três modos:
(i) Sentido ontológico: aqui a causalidade é apenas inferida, ou seja, a partir da observação de que impressões produzem idéias, de que as percepções “produzem, destroem, influenciam e modificam-se umas às outras” (ibid.), supomos que todas elas se relacionam causalmente. Mas não teríamos, no sentido estrito, uma idéia dessa causalidade. Isso estaria de acordo com a interpretação realista cética de Wright (1983), por exemplo, segundo a qual podemos conceber aquilo que não conseguimos imaginar. Contudo, há o problema da evidência textual: a seção “Da identidade pessoal” introduz a causalidade enquanto relação natural, isto é, enquanto produtora de uma associação entre idéias. Assim, mesmo que ontologicamente nosso organismo seja composto de uma multiplicidade de elementos materiais relacionados causalmente, esse fato, por si só, não explica como chegamos a nos conceber como pessoas, ou seja, como chegamos a acreditar que todas as nossas percepções estejam unidas pela relação de identidade.
(ii) Sentido epistemológico amplo: num sentido amplo, a causalidade que une todas as nossas percepções é compreendida como qualquer um dos princípios de associação de idéias (ver WALDOW 2006). Assim, as associações por semelhança, contigüidade ou causalidade contam igualmente como relações causais entre as idéias. É plausível que, havendo qualquer associação entre minhas idéias (qualquer dos três casos acima), deva haver alguma forma de identidade entre elas: afinal, sou eu que as tenho, e ninguém mais. É por isso que “a mesma pessoa pode variar seu caráter e disposição, bem como suas impressões e idéias, sem perder sua identidade” (T 261). Ou seja, apesar do pluralismo ontológico (variação das impressões e idéias) e do pluralismo psicológico (variação do caráter e disposição), a pessoa preserva sua identidade desde que haja uma continuidade nas ações mentais, continuidade essa que é explicada pela relação causal que conecta as percepções.
(iii) Sentido epistemológico estrito: a causalidade em sentido estrito é a relação natural que envolve a conjunção constante. Embora essa pareça ser a interpretação condizente com o texto da seção “Da identidade pessoal”, ela enfrenta várias dificuldades.
(i) Em primeiro lugar, é plausível que ocorra uma causalidade interpessoal entre percepções: quando uma percepção do tipo a ocorre em minha mente, uma outra do tipo b ocorre na de outra pessoa, e outra do tipo c ocorre na mente de uma terceira pessoa etc. É provável que isso ocorra num diálogo, como diz Noonan (1991, p. 97). Assim, se a mera semelhança não garantia a singularidade do feixe, a causalidade não o faria melhor: “isto quer dizer que conjunções constantes ocorrem entre vários tipos de percepções, independentemente de qual mente possua as percepções em questão” (STROUD 1977, p. 125).
(ii) Uma segunda crítica sustenta que, nem mesmo entre um feixe que tomamos, de antemão, como constituindo uma pessoa, a causalidade é adequada para explicar a crença na identidade pessoal. Isso porque a concepção humeana da causalidade exige uma regularidade incompatível com nossa vida mental.
De que modo a causalidade originaria a transição mental que Hume sustenta ser a origem da nossa crença? Para descobrirmos que um certo feixe é relacionado causalmente teríamos de observar que a percepção a, por exemplo, causa a percepção b. A tese humeana, prima facie, exige que todas as percepções estejam relacionadas causalmente. Teríamos de ter observado que a percepção b é causa da percepção c, e assim por diante. Ora, segundo a concepção humeana, isso seria possível somente se observássemos uma conjunção constante entre a e b, entre b e c, e conseqüentemente entre toda a seqüência abc... Isso exigiria que o surgimento de uma percepção qualquer fosse sempre acompanhado do surgimento de uma outra (e sempre a mesma) seqüência de percepções. Nossa experiência, contudo, torna tal regularidade uma exigência irrealista:
quando estou tendo a impressão de uma árvore, posso virar minha cabeça e receber a impressão de um prédio, mas a primeira impressão não é uma causa da segunda. A primeira não pertence a uma classe de percepções cada uma das quais tem sido sucedida por um membro de uma classe de percepções à qual pertence a segunda impressão. Nossas impressões de sensação não exibem tal regularidade. Novas experiências emergem em nossa consciência independentemente daquilo que aconteceu um instante atrás, de modo que não é verdade que cada uma de nossas percepções é causada por nossas outras percepções (STROUD, 1977, p. 126).
O que uniria os diversos segmentos numa mesma consciência? Como diz Stroud, se algumas impressões “aparecem na alma sem qualquer introdução”, o conjunto de nossas percepções não pode formar uma cadeia causal singular (ver STROUD, 1977, p. 127), isto é, cada segmento ou cadeia causal seria completo em si mesmo: uma impressão a¹ causa uma idéia a² que, por sua vez, está relacionada causalmente com a memória a³, que não tem nenhuma relação causal com b¹, e assim por diante.
A descontinuidade e variabilidade das impressões de sensação ocorre porque elas são os primeiros elos de uma cadeia causal que surge, por exemplo, apenas por piscarmos os olhos ou virarmos a cabeça de um lado para outro. Segundo a ontologia humeana, isso equivale a uma mudança ou substituição de percepções, a qual aconteceria sem o suporte de qualquer ponto de referência. O que poderia fornecer esse ponto de referência? Presumivelmente a localização espaço-temporal do corpo do sujeito cognoscente. Afinal, é nele que ocorrem as percepções, tanto as extensas quanto as inextensas8.
De que modo, porém, o nosso próprio corpo poderia ser útil para a formação da crença em nossa identidade pessoal? Teríamos que ter uma idéia ou impressão dele, de tal forma que pudéssemos distinguir o nosso eu dos objetos externos. Como diz Hume, “a dificuldade, portanto, está em saber até que ponto nós somos objetos de nossos sentidos” (T 189).
Segundo o teoria humeana, porém, a idéia que temos de nossos corpos não é categorialmente distinta das percepções relativas aos objetos “externos” a nós:
não é propriamente nosso corpo o que percebemos quando olhamos para nossos membros e partes corporais, mas certas impressões que entram pelos sentidos; de modo que a atribuição de uma existência real e corpórea a essas impressões, ou a seus objetos, é um ato da mente tão difícil de explicar quanto o que estamos agora examinando [a atribuição de existência externa] (T 191).
Isto é, da perspectiva fenomenológica das percepções, não há distinção entre interno e externo, aparência e realidade: “todas as impressões (externas e internas, paixões, afetos, sensações, dores e prazeres) são originalmente equivalentes” (T 190).
Mascarenhas (2001, p. 286-8) nos lembra que tal doutrina está ligada à concepção humeana do espaço, segundo a qual esse não é algo anterior às nossas percepções, mas sim proveniente do modo como as percepções táteis e visuais aparecem diante da mente. Desse modo, “desde que a localização espacial das impressões corpóreas é da mesma espécie que a das outras impressões, elas não podem exercer a função privilegiada de unificar as percepções, sejam elas espaciais ou não” (2001, p. 287).
(iii) Alguns autores identificam a supressão do corpo e (conseqüentemente) da contigüidade espacial entre as percepções como o problema fundamental da teoria humeana. Devido a essa supressão, não haveria critérios para a individuação de percepções inextensas:
duas percepções exatamente semelhantes em mentes distintas podem diferir em suas relações causais [...] somente por diferirem em suas relações de precedência ou contigüidade com outras percepções. Porém, percepções simultâneas e exatamente semelhantes ocorrendo em mentes distintas só podem diferir em suas relações causais por diferirem em suas localizações espaciais (NOONAN, 1991, p. 100).
Ou seja, duas percepções f e g, especificamente idênticas e simultâneas, estão, para todas as outras percepções, nas mesmas relações de semelhança e de contigüidade temporal: se no feixe abcde a percepção c é idêntica a f, ela também é idêntica a g, pois f e g são qualitativamente idênticas; se a percepção e foi seguida pela percepção f, o mesmo pode ser dito dela em relação à percepção g, pois f e g são simultâneas.
Assim, segundo os critérios de semelhança e causalidade, tanto f quanto g poderiam estar contidas no feixe de percepções abcde, ainda que f e g fossem numericamente distintas. A solução seria negar que as duas percepções fossem indiscerníveis, mas isso só seria possível utilizando coordenadas espaciais para sua individuação. Segundo Pears, tal dificuldade é um sintoma do mentalismo humeano, que procura fundamentar a unidade mental tão somente sobre a contigüidade temporal, “uma teoria inapelavelmente inadequada” (1990, p. 143). Julgo que essas objeções estão, em suma, corretas. O meu ponto é que a solução que elas exigem é pressuposta pela teoria humeana.
Ainda que relute em classificar a teoria humeana como um materialismo, McIntire, por exemplo, diz o seguinte: "é a relação entre os eventos mentais e um corpo que serve para distinguir uma mente de outra” (1995, p. 725). A solução pressuposta por Hume, então, é a seguinte: embora nem todas as percepções sejam localizáveis espacialmente, todas elas estão causalmente ligadas a um corpo, um objeto físico: como se afirma na seção “Da imaterialidade da alma”, percepções inextensas estão conjugadas a impressões espaciais. Ou seja, percepções inextensas são causadas por objetos espaciais (cf. FALKENSTEIN, 1998, p. 342-3). Assim, percepções inextensas são individuadas ao identificarmos seus antecedentes causais9.
Qual é o papel do corpo, então? Ele resolve, a meu ver, o problema ontológico, ao estar relacionado causalmente às nossas percepções. Dada a causalidade entre nosso organismo, que é localizável espacialmente, e nossas percepções, é ilegítima a questão sobre a individuação das percepções inextensas. Mentes são, de fato, individuadas espacialmente. Ou seja, Hume não procura individuar mentes e percepções com base em critérios epistemologicamente transparentes (nesse caso, segundo a semelhança e a causalidade).
E por que o corpo não responde o problema epistemológico, ou seja, o problema da origem da crença na identidade pessoal? Segundo a teoria humeana do espaço, o corpo não é percebido como algo categoriamente distindo de nossas percepções extensas. Além disso, há percepções inextensas. Ainda que essas sejam individuadas por estarem conectadas a um corpo, elas não são localizáveis espacialmente. A contigüidade espacial baseada no corpo não teria, dessa forma, um papel na gênese da crença na identidade pessoal.
O que as dificuldades expostas nessa seção indicam é que, no Apêndice, Hume percebeu que a semelhança e a causalidade são insuficientes para explicar de que modo surge a crença na identidade pessoal. O ponto exato da dificuldade é tema de debate entre os comentadores. Meu objetivo aqui foi apenas apresentar algumas dessas interpretações.
Farei, a seguir, uma exposição e crítica de uma interpretação ontológica, que vê no Apêndice um grave dano ao empirismo humeano. Se minhas críticas forem plausíveis, uma evidência adicional será emprestada à leitura epistemológica desenvolvida na presente seção. Com isso espero mostrar que o Apêndice não coloca em questão o projeto filosófico humeano, cujo objetivo, fundamentado em seus pressupostos materialistas, era o de investigar a mente de modo análogo ao que os cientistas tratam dos outros objetos naturais.
O problema ontológico
Podemos considerar a interpretação ontológica tomando como ponto de partida a análise feita por Wolff. Segundo esse autor, Hume teria iniciado o Tratado com um preceito fundamental: o conhecimento empírico poderia ser explicado em termos, somente, do conteúdo das percepções (ver 1995, p. 158). Hume teria descoberto, contudo, que a atividade da mente é que é o princípio fundamental para a constituição da experiência. A estrutura da filosofia humeana, porém, tornaria inexprimíveis tais atividades, visto que as entidades identificadas pela teoria, as percepções, são todas particulares. Ou seja, são incapazes de representar uma atividade.
Por isso, segundo Wolff, quando procura explicar a atividade que gera a relação causal, por exemplo, Hume apela a uma impressão de reflexão. Assim, Hume “é forçado a expressar suas melhores idéias numa linguagem completamente inadequada a elas” (ibid.). Qual é o fundamento dessa interpretação? O que significa dizer que Hume pressupõe uma mente ativa, ao invés de uma mente redutível às percepções e aos princípios de associação? Ora, se a atividade da mente, tanto quanto o conteúdo empírico, contribui para o caráter dessa experiência, tal atividade deve ser conduzida por princípios inatos, anteriores à experiência. Wolff compara esse pressuposto à tábua de categorias kantiana, que dá forma ao dado sensível (ver 1995, p. 173-4).
Wolff explica assim a relação causal: “as impressões associadas agem como estímulos para ativar uma propensão inata; o resultado é uma disposição mental para imaginar uma idéia relacionada quando da presença de uma impressão” (1995, p. 164). O autor fala numa propensão inata, anterior à experiência sensível. Ora, essa “disposição mental” deve, então, ser considerada como transcendendo o conteúdo da experiência? Penso que não.
Robinson e Nathanson, seguindo o caminho delineado por Wolff, aplicam a tese das disposições mentais para esclarecer o Apêndice. Segundo Robinson, as explicações do objeto externo e da conexão necessária pressupunham uma mente cujas propensões produziam tais crenças. Quando passou a explicar a crença na identidade pessoal, contudo, Hume teria percebido que seus princípios empiristas eram incompatíveis com a entidade pressuposta nesses outros casos: “sua explicação de por que pensamos ter uma idéia do eu depende da existência de um eu” (1995, p. 698).
Por que, contudo, Hume jamais abandonou suas teses sobre o objeto externo e a conexão necessária? Embora o Apêndice tenha sido como que um golpe de misericórdia na teoria da identidade pessoal, cuja exposição não foi sequer retomada na Investigação sobre o Entendimento Humano, o mesmo não ocorre com as duas outras teses. Ou seja, a falha descoberta a respeito da identidade pessoal não afeta essas outras explicações.
Nathanson, por sua vez, retoma as teses de Robinson e com pequenas modificações defende-a. Para isso, ele faz um importante esclarecimento, o qual revela um pressuposto desse grupo de intérpretes. Entender esse pressuposto torna mais simples descartá-lo.
Se o Apêndice mostra que a mente é um conjunto de disposições, e se essas disposições não podem ser percepções, há um grave dano ao empirismo humeano. Como vimos anteriormente acerca da interpretação de Wolff, o empirismo teria de acomodar uma estrutura inata à mente. Como diz Nathanson, isso implicaria que as associações de idéias descobertas por Hume não podem ser redutíveis a um mero jogo entre idéias, mas sim a uma relação entre as idéias e uma mente: duas idéias são semelhantes (ou contíguas, ou relacionadas causalmente) para uma mente, e não em si mesmas. A ordem no mundo ideal seria espontânea, não-derivada passivamente da experiência: “as propensões que estou invocando são propriedades da mente, e não das percepções” (1976, p. 44), diz Nathanson. Ou seja, para além da tábula rasa, a mente do empirismo seria muito mais substancial que o feixe de percepções humeano, cuja existência prescindiria de um palco. Segundo Wolff, Robinson e Nathanson, haveria não só um palco (a mente) como todo o elenco (as propensões e disposições da mente) esperando pela platéia (as percepções).
Como diz Beauchamp, contudo, é implausível que em quatro ou cinco parágrafos Hume tenha rejeitado todo o Livro I do Tratado: “Hume está genuinamente perplexo acerca do modo de proporcionar uma explicação mais profunda dos princípios de associação [...] Hume exprime um desencanto com todas as teorias conhecidas, inclusive com a sua” (1979, p. 39).
Beauchamp assinala que a interpretação de Wolff convenceu alguns comentadores de que os atos mentais ou imaginativos atuantes no decorrer do Livro 1 pressupunham um eu sintetizador à la Kant, ou seja, um eu estruturado de acordo com princípios anteriores à experiência. O que eu defendo é uma interpretação materialista da teoria humeana: o universo é matéria em movimento, máxima que, segundo os projetos de Hobbes e Hume, deveria ser seguida não só nas ciências naturais como nas ciências morais (ver RUSSELL 1988, p. 409-10).
O ponto culminante dessa concepção é encontrado justamente nos temas ora analisados, onde o eu (Hume também usa os termos mind e soul), tido por alguns como reduto inexpugnável do espírito e do livre-arbítrio, é identificado por Hume como um feixe de percepções relacionadas causalmente. É desse feixe que surge a consciência (e, conseqüentemente, a identidade pessoal), ou seja, ela não ocorre noutro âmbito que não o da matéria em movimento.
Beauchamp diz duas coisas que resumem a concepção ontológica que atribuo a Hume e que servirão de introdução àquilo que direi a seguir: “Não vejo razão alguma para que Hume não possa explicar redutivamente todo discurso sobre faculdades, propensões e conexões em termos de cadeias causais entre percepções [...] Talvez ele não consiga reduzir coerentente atividades mentais a percepções, mas ainda não vi qualquer argumento que mostre que ele não o possa” (1979, p. 40-1).
Segundo Nathanson, sua interpretação mostra que as associações entre idéias ocorrem desde que tais idéias afetem uma mente. Vejamos uma das explicações de Hume para a associação de idéias: “Teria sido fácil fazer uma dissecção imaginária do cérebro, e mostrar por que, ao concebermos uma determinada idéia, os espíritos animais se espalham por todas as vias contíguas, despertando as outras idéias relacionadas à primeira” (T 60). Deveríamos, aqui, pressupor uma mente para realizar as associações? Se as percepções são redutíveis a eventos físicos, o cérebro desempenharia uma função análoga à da mente: é nele que ocorrem os movimentos dos espíritos animais etc. Deveríamos dizer que o cérebro funciona de acordo com princípios? Com disposições e propensões anteriores à experiência? Isso parece correto, mas da mesma forma que a cor dos olhos ou o formato do nariz é anterior à experiência. Ou seja, os princípios do cérebro não são anteriores à toda experiência. Eles podem o ser em relação à experiência individual, mas não anteriores à experiência da espécie.
Mesmo que haja propensões ditas inatas, elas são causadas. A ordem em nossa mente, assim como a ordem na natureza, surge por acaso e necessidade (sem uma razão, mas não sem causas). Assim, não é necessário postular uma mente para explicar as associações de idéias. Ou melhor, se nos referirmos à mente, estamos nos referindo veladamente a um conjunto de fatos e princípios para sempre fora do âmbito do nosso entendimento. Mas não fora do âmbito da natureza, onde tudo tem uma causa: “o início do movimento na própria matéria é a priori tão concebível quanto sua comunicação a partir da mente, da inteligência” (HUME 1992, p. 106-7). Não são os princípios de associação padrões que identificam o “movimento” de nossos pensamentos? Por que pensar que tais associações, então, surgem da estrutura da mente e não das relações entre o homem e seu meio ambiente? Ou seja, das relações entre a parte e o todo: o que é o feixe de percepções pessoal senão uma parte de um todo determinado causalmente?
Cada indivíduo está em perpétua mudança, bem como toda parte de cada indivíduo; mas o todo, não obstante, permanece aparentemente o mesmo. Não seria razoável esperar a ocorrência de uma situação desse tipo, ou mesmo estar seguro dela, a partir das circunvoluções eternas da matéria não-direcionada? (HUME 1992, p. 109-10).
Supor que a mente seja dotada de propensões e disposições que condicionam a experiência ou as associações de idéias é supor que o pensamento é uma causa ativa, ou seja, uma causa incausada. Contudo, não só o materialismo ontológico de Hume contradiz isso, como seu próprio empirismo exige que, onde houver conteúdo de pensamento, deve haver uma experiência anterior. E a experiência, para um filósofo materialista, não é nada mais que o produto da interação entre dois objetos materiais (ver BUCKLE, 2007, p. 562).
Ao contestar Cleantes, para quem toda ordem requer um desígnio, Filo diz o seguinte:
Em todos os exemplos que já presenciamos, as idéias são copiadas dos objetos reais e são ectípicas, não arquetípicas, para expressar-me em termos eruditos. Você reverte essa ordem e dá precedência ao pensamento. Em todos os casos que presenciamos, o pensamento não tem influência sobre a matéria, exceto naqueles em que essa matéria está de tal modo conjugada ao pensamento a ponto de exercer igualmente uma influência recíproca sobre ele (HUME, 1992, p. 112).
Desse modo, ainda que se possa, em algum sentido, dizer que a mente também seja responsável pelo conteúdo da experiência, esse conteúdo deve, segundo o princípio da cópia, ter sido copiado de eventos externos: as idéias são ectípicas, e não arquetípicas. Ou seja: as disposições e propensões mentais são, numa filosofia naturalista, causadas.
Notas
2 Como de praxe na literatura sobre Hume, cito por “T” o livro A Treatise of Human Nature. L. A. Selby-Bigge, ed. 2nd ed. revised by P. H. Nidditch. Oxford: Clarendon Press, 1978. A tradução utilizada é a de Débora Danowski (Tratado da Natureza Humana. São Paulo: UNESP, 2001).
3 Afirmarei, a seguir, que a contiguidade espacial desempenha sim um papel importante na teoria da identidade pessoal. Para isso, é importante que se distinga a contigüidade espacial enquanto tese epistemológica e enquanto tese ontológica.
4 Conforme Biro (1994), Hume se compromete, seguindo a tradição da filosofia moderna, com uma investigação fenomenológica da mente. Ainda assim, como sustenta John Wright (1983), é plausível que toda essa fenomenologia seja ontologicamente ligada à uma base neurosifiológica.
5 Assim, devemos tomar com cuidado a afirmação humeana de que cada percepção é uma substância (T 233). O propósito deve ter sido apenas o de mostrar que a noção de substância, aplicando-se às percepções (ou seja, às entidades paradigmaticamente consideradas como acidentes), não tem nenhum poder explicativo. Ao contrário, o que explica os fenômenos é a descoberta das relações causais que os objetos e eventos mantém entre si, e não de distinções ontológicas ou qualitativas. Como fica evidente na seção “Da identidade pessoal”, isso não é menos verdadeiro a respeito da mente do que a respeito dos objetos externos.
6 A nota original se refere a T 260, da passagem “if disjoined by the greatest...”, no primeiro parágrafo, até “… this sucession amidst all its variations”, no terceiro parágrafo.
7 E não metafísico, como querem aqueles que se concentram nos critérios de individuação mental. O problema metafísico seria o de fornecer critérios necessários e suficientes para a identificação de uma mente (a primeira alternativa de Stroud). O problema psicológico é o de saber como surge a crença na identidade de uma mente (a segunda alternativa).
8 Ver PEARS, 1990, p. 145 e FALKENSTEIN, 1995, passim.
9 Garrett afirma que essa localização derivativa das percepções inextensas não resolveria o problema, “[p]ois não podemos dizer qual, dentre duas percepções qualitativamente idênticas e simultâneas, é o efeito de um processo fisiológico em certo corpo, a menos que uma dessas percepções já esteja unida [bundled] com as percepções que constituem a mente associada a esse corpo” (1981, p. 353). Essa incapacidade ocorreria somente se a investigação humeana se desse na terceira pessoa. Contudo, o método introspectivo de Hume implica que todas as percepções estão, de antemão, unidas. Ou seja, no momento em que uma percepção ocorre, ela já está bundled com minhas outras percepções. Na perspectiva da primeira pessoa, jamais se coloca a questão sobre se uma dada percepção pertence a essa ou àquela mente.
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