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Uma análise sobre a linguagem e a intersubjetividade em Merleau-Ponty – em direção a um mundo que desconhecemos

An analysis of the language and the intersubjectivity in Merleau-Ponty – toward to a unknown world

Ronaldo Manzi Filho 1
Universidade de São Paulo, Brasil

Uma análise sobre a linguagem e a intersubjetividade em Merleau-Ponty – em direção a um mundo que desconhecemos

Griot: Revista de Filosofia, vol. 5, núm. 1, pp. 36-55, 2012

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 17 Março 2012

Aprovação: 02 Maio 2012

Resumo: este artigo visa à compreensão de Merleau-Ponty sobre a linguagem no começo da década de 50. Ou seja, visa à análise da linguagem num momento fundamental de sua experiência filosófica: num período entre sua tese de 1945 (Phénoménologie de la perception) e seus últimos escritos sobre a filosofia da carne. Veremos como o filósofo apropria-se das reflexões de Saussure, interpretando-as segundo um olhar fenomenológico, convergindo uma fenomenologia da fala com um problema claramente da sua filosofia: a intersubjetividade (que surge aqui enquanto uma intercorporeidade). O saldo dessa apropriação, como destacaremos, é um esboço da generalidade do sentir – um dos temas fundamentais em Le visible et l’invisible.

Palavras-chave: Linguagem, Deformação coerente, Fenomenologia da fala, Intercorporeidade.

Abstract: this article aims to understand how Merleau-Ponty conceives the language in the early 50’s. In others words, it aims the analysis of language in a fundamental moment of his philosophical experience: a period between his thesis of 1945 (Phénoménologie de la perception) and his later writings on the philosophy of the flesh. We will see how the philosopher appropriates the reflections of Saussure, interpreting them by a phenomenological point of view, converging a phenomenology of speech with a clearly problem of his philosophy: the intersubjectivity (which arises here as a intercorporeality). The balance of this appropriation, as highlighted, is an outline of the generality of the sense – one of the fundamental themes in Le visible et l'invisible.

Keywords: Language, Coherent deformation, Phenomenology of speech, Intercorporeality.

O começo da década de 50 é marcado, na experiência filosófica de Maurice Merleau-Ponty, principalmente pela análise da linguagem. Vários são os textos dedicados a esse tema. Entretanto, Merleau-Ponty não se “limita”, como nos seus primeiros trabalhos, a pensar a linguagem como um poder do corpo de se expressar, tal como o gesto. E nem a descrever a fala numa relação entre fala falada e fala falante.

Ele acrescenta pelo menos dois pontos em suas análises nessa época. O primeiro mostra como a expressão, assim como a percepção, é um modo de deformar o mundo. E, diante disto, ele chega num segundo ponto: na necessidade de incorporar às suas análises as teses da linguística. Noutras palavras, pensar como a percepção é um modo de deformar o mundo o leva a um impasse: como a linguagem seria acessível a outrem se cada pessoa deforma o mundo a seu modo?

É neste sentido que Merleau-Ponty, a meu ver, realiza uma interpretação bastante interessante dos cursos sobre a linguística de Ferdinand Saussure. Ora, sua pretensão de realizar uma fenomenologia da fala, antes do advento do estruturalismo, certamente é marcante – talvez um dos últimos modos de radicalizar o que ele compreendia por fenomenologia da percepção antes da obra de Saussure ser incorporada aos problemas estruturalistas na década de 60.

Sabemos que Merleau-Ponty foi um dos primeiros a desenvolver as análises de Saussure na academia francesa, mas sem com isto seguir os motes do estruturalismo que surge poucos anos depois. A seu ver, o que Saussure desenvolve não nos leva a este movimento, uma vez que a noção de estrutura “não tem aplicações filosóficas por ela mesma, mas ela pode ser apreendida por uma filosofia que a naturaliza tomando seus riscos e perigos” (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 210). Trata-se, literalmente, de interpretações diferentes da linguística.

Um fato que dá lugar a uma virada nas estratégias filosóficas no século XX: a passagem de uma fenomenologia, que parece encontrar seu próprio esgotamento, a uma das últimas tentativas de uma ontologia face à cena estruturalista, como comenta Vincent Descombes (1993, pp. 93-95).

Reparemos, aliás, como se trata de uma viragem marcante que, na década de 80, Bernard Sichère, diante de um total silêncio sobre a obra de Merleau-Ponty, pergunta-se:

o que foi a filosofia de Merleau-Ponty, como ela se formou, o que ela visava? Podemos também colocar de outro modo a questão: o que enfim se passou entre o ano 1953, em que Merleau-Ponty pronunciava sua Lição inaugural no Collège de France sob o título Éloge de la philosophie, e aquele inverno de 1970 em que Michel Foucault pronuncia a sua evitando cuidadosamente o nome filosofia? (SICHÈRE, 1982, p. 11).

Sem dúvida, uma questão que merece uma pesquisa. Aqui não tentarei responder à questão de Sichère. Pretendo, por outro lado, mostrar como a interpretação de Merleau-Ponty da obra de Saussure é peculiar. Penso que “apenas” esta interpretação merleau-pontyana de Saussure vale uma análise detalhada. Por exemplo, podemos perguntar se esta interpretação realmente o “livra” do impasse anterior, ou seja, se, afinal, há como outrem ser outra coisa para mim do que um mundo que desconheço – um problema difícil para se pensar a intersubjetividade.

É em direção a esse mundo “desconhecido”, a outrem, que iremos desenvolver aqui. O que primeiramente podemos notar é como essa fenomenologia da fala, que Merleau-Ponty parece desenvolver, é um esboço de sua filosofia da carne. Ou seja, ao radicalizar a concepção da comunicação na intersubjetividade, o filósofo nos encaminha a uma intercorporeidade já presente, a seu modo, desde a Phénoménologie de la perception. Na verdade, essa concepção da linguagem é um dos caminhos que o leva a uma filosofia da carne.

Este artigo visa, assim, três pontos específicos: o quê Merleau-Ponty compreende por deformação coerente; como ele busca superar os impasses dessa deformação a partir de uma leitura de Saussure; e, por fim, como ele parece buscar outros caminhos para pensar a intersubjetividade.

Uma deformação coerente

“A verdadeira psicanálise implica numa teoria bastante hábil de outrem: perceber outrem é decifrar uma língua” (MERLEAU-PONTY, 1988, p. 553). Com essa frase que encontramos nos cursos de Merleau-Ponty em Sorbonne, o filósofo destaca como a percepção implica um modo de trazer à tona o que outrem nos exprime – como se outrem nos exprimisse certa gramática corporal da qual seríamos capazes de decifrar. Mas, o estatuto desse “decifrar” ainda não nos parece claro nestas últimas aulas do curso sobre L’expérience d’autrui. O que é decifrar alguém?

Na Phénoménologie de la Perception, Merleau-Ponty destaca como a percepção está sujeita à ilusão ou ao erro sem que possamos reconhecer, no ato de perceber, se estamos tendo uma ilusão ou não. Isso leva o filósofo a afirmar que só podemos saber se se trata de uma ilusão ou não, numa outra percepção, que barraria a primeira, ou mesmo, nos levaria a outra ilusão. Mas esta possível assunção de uma ilusão é, para Merleau-Ponty, o preço de percebermos o mundo e não como um suposto “defeito” do aparelho corporal.

Esse preço ganha uma dimensão interessante em La prose du monde quando o filósofo apropria-se de um conceito de André Malraux que está na obra La Création Artistique. Trata-se do conceito de deformação coerente (déformation cohérente).

Disse interessante porque esse preço de perceber o mundo possivelmente de modo ilusório, tomando-o como algo que ele não é, ganha “direito de cidadania” ao se dizer deformação. Se, por um lado, a ilusão só é possível porque o corpo é capaz de evocar uma pseudo presença (Cf. MERLEAU-PONTY, 1967, p. 392) ou uma quase realidade (Cf. MERLEAU-PONTY, 1967, p. 385) do mundo, isto se devia ao fato do corpo ser capaz de evocar o mundo de modo deformado.

Entretanto, ao dizer de deformação coerente, Merleau-Ponty assume que nós só percebemos o mundo de modo deformado. Essa deformação coerente seria uma espécie de distorção sistemática comandada por uma nova relação com o mundo – certa modulação do mundo (Cf. MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 29) presente no próprio ato de perceber.

Uma estratégia para compreendermos essa ideia seria retomar o que Merleau-Ponty entendia ao dizer que a fala é uma forma de sublimação do mundo. Ou seja, um modo de reencontrar as vias de sublimação que conserva e transforma o mundo percebido em um mundo falado (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 173): uma conservação e uma transformação que deforma o mundo.

Mas o interessante é que Merleau-Ponty destaca que essa deformação não acontece somente nessa sublimação do mundo: também na percepção há deformação, pois a percepção é já expressão (Cf. MERLEAU-PONTY, 1968, p. 14). A percepção estiliza e, por isso mesmo, deforma o mundo: “já a percepção estiliza, quer dizer, ela afeta todos os elementos de um corpo ou de uma conduta, de algum desvio comum em relação a certa norma familiar que eu possuo no fundo” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 84). Merleau-Ponty chega a dizer que “há significação desde que submetamos os dados do mundo a uma ‘deformação coerente’ [Malraux]” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 85).

Mas o que significa dizer que a percepção estiliza o mundo? O termo estilo nós já o encontramos na Phénoménologie de la Perception, ao afirmar que cada sujeito tem um estilo de ser, por exemplo. Entretanto, na década de 50, o estilo se refere ao modo que o sujeito toma o mundo diante das várias possibilidades:

cada vetor do espetáculo percebido coloca, para além de seu aspecto do momento, o princípio de algumas equivalências nas variações possíveis do espetáculo, ele inaugura por sua vez um estilo da explicitação de objetos e um estilo de nossos movimentos em relação a eles (MERLEAU-PONTY, 2004, pp. 174-175).

Merleau-Ponty privilegia um tema em especial em La prose du monde para desenvolver essa ideia: a pintura. Para ele, é na pintura que esta deformação se torna clara, uma vez que “assim como aquele da pintura, o sentido próprio da obra de arte não é primeiramente perceptível senão como uma deformação coerente imposta ao visível” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 128).

Efetivamente, a pintura coloca em primeiro plano algo que está presente em toda percepção. Como nos diz Mauro Carbone, ela coloca em primeiro plano a “(...) parte integrante da verdade [presente em toda percepção] precisamente porque os fenômenos se apresentam a nós numa ‘distorção originária’” (CARBONE, 2008, p. 93).

Merleau-Ponty visa aqui a arte não relativa à língua, tal como aparece em seu Livre en projet: “antes de descrever o mundo como mundo falado; – fazer aparecer o sentido como relevo, deformação coerente, o sentido corporal. E isso nas artes não relativas às línguas, como na percepção” (MERLEAU-PONTY, 1958-1960, p. 127).

Com efeito, a pintura é exemplar para pensar esta deformação. Por exemplo: sabemos que na idade clássica, os quadros são sempre analisados segundo a perspectiva geométrica. Malraux, por exemplo, interpreta esses quadros como uma representação da natureza. Quer dizer, como um modo de pôr em forma aquilo que vemos, tal como uma cópia do mundo que segue as normas de perfeição e acabamento que a natureza nos ensina a partir da nossa percepção. Tratar-se-ia assim menos de uma expressão de criação e mais de uma representação pictural. Para Merleau-Ponty, este tipo de interpretação é “mítico”. A seu ver, a pintura clássica é, com certeza, uma forma de arte de criação. Ela é uma expressão tal como a fala falante. Ela não é um “decalque” do mundo. Ora, não vemos jamais o mundo de uma forma geométrica...

Não se trata assim de uma forma de imitação, cópia ou decalque do mundo, mas de uma forma de deformá-lo. A perspectiva geométrica, por mais contra intuitivo que pareça, é, para Merleau-Ponty, uma deformação. Seja: uma deformação a seu modo (da perspectiva geométrica), já que podemos pintar o mundo a partir do nosso estilo que define a aparência mesma (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 88). Um estilo próprio à época; uma forma de ver o mundo ou “(...) um dos modos inventados pelo homem de projetar diante de si o mundo percebido e não o decalque deste mundo” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 72).

Dizendo ainda de outro modo: uma entre outras possibilidades de criar o mundo, mas uma possibilidade que instaura uma tradição: qualquer coisa que podemos reativar, pois a arte não é sem resto e “(...) o espaço do Renascimento por sua vez será pensado mais tarde como um caso muito particular do espaço pictural possível” (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 52).

Enfim, a pintura é uma forma de estilizar ou de criar o mundo e mesmo de metamorfoseá-lo (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 76). Ela nos faz ver outro mundo em nosso próprio mundo comum, pois “a pintura reordena o mundo prosaico e faz, se o queremos, um holocausto de objetos como a poesia faz arder a língua ordinária” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 89).

Sendo uma “reorganização do mundo”, ela é também um sistema de equivalências e de significações: deformar o mundo é criar um sistema. O estilo é o que torna possível essa sistematização coerente. Nesse caso, o estilo do artista é a matriz de um novo mundo, o “(...) índice geral e concreto da ‘deformação coerente’ pela qual ele [o estilo] concentra a significação ainda esparsa na sua percepção e a faz existir expressamente” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 86).

Devemos notar que Merleau-Ponty modifica aqui o que ele pensa sobre a criação. Em La structure du comportement, por exemplo, ele afirma que a produtividade própria do homem é o trabalho, ou seja, uma forma de negar a natureza. Para dizer a verdade, ele não retoma essa concepção na sua obra senão alusivamente. Por outro lado, na Phénoménologie de la perception, referindo-se ao corpo próprio, encontramos uma passagem enigmática como esta: “(...) nós o vemos secretar nele mesmo [no corpo] um ‘sentido’ que não lhe vem de parte alguma, o projetar sobre seu arredor material e o comunicar aos outros sujeito encarnados” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 230). É verdade que esta passagem é breve, mas, ao “pé da letra”, ela nos leva a pensar a criação artística a partir de uma criação ex nihilo.

Nos anos 50, por sua vez, Merleau-Ponty diz que a criação tem sua gênese na própria percepção: ela é uma forma de deformar o mundo, quer dizer, de estilizá-lo – “é precisamente esta ‘deformação coerente’ (A. Malraux) de significações disponíveis que as ordena a um sentido novo e faz transpor aos auditores, mas também ao sujeito falante, um passo decisivo” (MERLEAU-PONTY, 2000b, pp. 114-115). Assim, o sujeito não nega o mundo, nem “parte de nada”, ele toma os sentidos esparsos no mundo e os exprime, os deforma, criando um estilo de ver o mundo. “Como o pintor ou o poeta seriam outra coisa senão seu reencontro com o mundo?” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 89).

Notemos ainda que, criando, podemos falar de um modo de projeção, não da consciência, mas de um estilo, de uma forma de deformar. A meu ver, podemos dizer mesmo de um modo de invadir o mundo:

se a expressão é criadora com respeito ao que ela metamorfoseia, e justamente se ela o ultrapassa sempre o fazendo entrar numa configuração em que ele muda de sentido, isto já seria verdade nos atos de expressão anteriores, e mesmo em alguma medida de nossa percepção do mundo antes da pintura, porque ela projeta no mundo a assinatura de uma civilização, o traço de uma elaboração humana (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 97).

Essa assinatura, segundo o modelo da instituição, reafirma que não podemos partir do nada para criar algo: retomamos certos traços da tradição, uma vez que nenhuma obra é acabada, – todas as obras são uma abertura para um “horizonte de investigações” (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 98). O mesmo é válido para a fala: falar algo é reativar um sentido sedimentado na nossa história sedimentada. Isto é decisivo, porque, quando se fala, partindo de um saber sedimentado, abrimos outras possibilidades.

A meu ver, é fato que esta concepção em que se retomam os sentidos esparsos no mundo para criar algo é mais coerente com a própria fenomenologia da percepção. Lembremos: ela afirma que o sentido está nascente no mundo. Aliás, mais coerente com sua concepção da temporalidade, uma vez que o sujeito deve, segundo sua tese de 1945, reativar sentidos sedimentados para criar algo novo. Tal como o artista, podemos reativar um sentido “dormente” no mundo para exprimirmos segundo um estilo ou um modo aproximado (pois “o próprio da expressão não é jamais senão de ser aproximada” (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 295)).

Mas, se for possível exprimir um estilo, podemos exprimir mais do que intencionamos. Existe um excesso da fala sobre a intenção. Ela é, certamente, indireta. Quer dizer, falamos somente de modo alusivo e jamais de modo completo. Isso não significa que o sentido está subentendido na fala, mas que ela somente é compreensível indiretamente (segundo certo desvio). Na verdade, um excesso, porque o sujeito pode se surpreender em sua fala (Cf. MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 111). Aliás, esse surpreender, esse certo desvio da fala e sua intenção, não nos lembram, por exemplo, do lapso descrito por Freud?

Não à toa Merleau-Ponty parece fazer uma terceira via entre Freud e Husserl. Penso que ele percebe um debate que surge no curso de Franz Brentano, quando este afirma que um fenômeno psíquico deve ser pensado como um fenômeno que contém intencionalmente o objeto (como se o objeto estivesse imanente à consciência).

O objetivo central de Brentano, ao pensar esse fenômeno psíquico, era o de tentar clarificar os conceitos das ciências, como se fosse a tarefa maior da filosofia. Husserl herda a tarefa de pensar em uma crítica do conhecimento e em uma gramática, que antecede o plano lógico – uma gramática, que pudesse delimitar o campo do sentido e do não-sentido.

A aposta de Husserl é estabelecer uma gramática pura. Apesar de esse projeto ter sido abandonado posteriormente, ele surge nesse debate com Brentano. Ou seja, Husserl acredita (nessa época) que seria possível uma linguagem universal, acabada, sem fissuras, como defendeu em Logische Untersuchungen.

Por outro lado, outro aluno de Brentano, parecia mais desconfiado da intencionalidade da consciência: Freud age como se não pudéssemos “levar a cabo” a ideia de intencionalidade. Quer dizer, ele observa que há momentos em que o sujeito intenciona dizer algo e acaba dizendo outra coisa – como é o caso dos atos falhos, e por isso desloca o problema da intencionalidade da consciência para outra cena.

Nos atos falhos, o sujeito, pretendendo dizer uma coisa, diz outra. Ele desloca o sentido (expressão de seus desejos inconscientes). Como se Freud afirmasse, contra Husserl, que nem toda intencionalidade atinge seu alvo: há falas que falham na sua intenção, dizendo algo que preferiria esconder. Em outras palavras, trata-se de insistir que nem todo conteúdo intencional está disponível à consciência – como se houvesse um “querer dizer” que não se sabe ou que só se expressa em formas de sintoma, angústia, atos falhos, sonhos... Por isso insistir no fato de os atos falhos testemunharem a existência do recalque e da substituição mesmo na “saúde perfeita”.

Esse “querer dizer”, em Merleau-Ponty, aparece como uma terceira via: não há uma gramática pura, do mesmo modo não há, também, outra cena. Há, na verdade, um excesso na fala, uma deformação do que se tem a intenção de falar e do que se exprime, porque falar, assim como criar, é uma forma de se dispor novas possibilidades. A fala, nela mesma, é surpreendente, ela nos abre a algo novo, bem como uma obra de arte: ela institui uma tradição.

Mas essa situação é ainda enigmática. Se uma obra de arte inaugura uma tradição; se a fala nos abre a novos sentidos, afirmamos que aquilo que o sujeito exprime, mesmo que por um excesso, passa a existir a partir de seu estilo (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 160). E, como falar de uma tradição se esta existência parte do particular? O que podemos falar de universal se Merleau-Ponty mesmo afirma que “(...) o escritor é, ele mesmo, um novo idioma que se constrói, que inventa meios de expressão e de se diversificar segundo seu próprio sentido” (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 45)?

Merleau-Ponty parece seguir a tendência husserliana em seus últimos trabalhos para pensar este problema. Mais especificamente, quando Husserl desenvolve um estudo sobre a origem dos fenômenos ideais, tal como a geometria (Ursprung der Geometrie):

se quisermos compreender verdadeiramente como é possível o fenômeno da existência ideal, para uma pluralidade de sujeitos que não vivem no mesmo tempo de participar das mesmas ideias, a primeira coisa a se fazer é compreender como se incorporam os pensamentos de um só sujeito nos instrumentos culturais que irão lhe veicular exteriormente e os tornarem acessíveis aos outros (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 111).

Lembremos que o filósofo segue Husserl aqui: uma tradição é o esquecimento das origens. É por isso que, para Merleau-Ponty, tais fenômenos ideais têm sua origem esquecida: a fala.

Husserl faz, assim, o inverso de seus primeiros trabalhos: ao invés de buscar uma gramática universal, a fala individual pode nos indicar a universalidade. Merleau-Ponty observa que “é na nossa experiência do sujeito falante que se deve encontrar o germe de universalidade que nos permitirá compreender outras línguas” (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 112).

Nesse caminho, não é estranho que Merleau-Ponty analise os estudos de Husserl para desenvolver certa fenomenologia da linguagem. Entretanto, é contra intuitivo que, nesse desenvolvimento, Merleau-Ponty aproxime Husserl com sua interpretação do trabalho de Ferdinand Saussure. Ele afirma, por exemplo, que:

sem dúvida, creio eu, Husserl se aproxima aqui de alguns aspectos da linguística contemporânea e, em particular, de Saussure. O que Husserl denomina fenomenologia da linguagem, retorno ao sujeito falante, não é somente uma exigência do pensamento filosófico, mas da linguística mesma, tal como Saussure a concebe. Não basta tratar objetivamente as línguas que são dadas, é preciso estimar o sujeito falante, é preciso acrescentar à linguística da língua a linguística da fala (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 112).

Como podemos compreender esta aproximação entre uma fenomenologia da linguagem e a linguística contemporânea?

Retornando ao sujeito falante – uma leitura da obra de Saussure

Não há duvida que os Cours de Linguistique Générale de Saussure foram um marco na experiência intelectual francesa. Esses cursos foram o ponto de partida (implementado por outros, tal como Roman Jakobson, Algirdas Julius Greimas, Louis Hjelmslev e o círculo linguístico de Praga) para um fenômeno que, talvez, não tenha se igualado a nenhum outro na França: o advento do estruturalismo que colonizou, de modo homogêneo, todas as áreas das ciências humanas depois dos anos 60. Apesar da sua morte prematura, Merleau-Ponty viveu o “escândalo” existencialista e assistiu ao “escândalo” estruturalista. Mas, de fato, a leitura de Merleau-Ponty de Saussure é bem distante do que iria se desenvolver na França. Ele vê, de modo peculiar, nos trabalhos de Saussure, uma convergência com a fenomenologia e a possibilidade de uma linguística da fala. Como o filósofo realiza essa leitura, é o que nos interessa ressaltar aqui.

A clássica a distinção que Saussure realiza na linguística entre linguística diacrônica e linguística sincrônica. Um problema claramente temporal, porque podemos pensar a língua numa sucessão e numa simultaneidade: “é sincrônico tudo o que se relaciona ao aspecto estático de nossa ciência, diacrônico tudo que se refere a evoluções. Do mesmo modo, sincronia e diacronia designarão respectivamente um estado da língua e uma fase de evolução” (SAUSSURE, 1949, p. 117). Desse modo, Saussure não deixa de observar que essa diferença de natureza entre termos sucessivos e termos coexistentes não nos impede de pensar estes termos redutíveis a uma única ciência: a linguística.

Saussure propõe, assim, que pensemos a língua como um sistema de valores, definindo o valor segundo duas variáveis:

1) segundo relações de dessemelhanças – em que uma palavra poderia ser trocada por algo dessemelhante: por uma ideia, por exemplo.

2) segundo relações de semelhanças – em que uma palavra pode ser comparada com outra com o mesmo valor (Cf. SAUSSURE, 1949, p. 159).

Assim, o valor de qualquer palavra só pode ser determinado pela relação que ela estabelece com outras ao seu redor. Disso resulta que, é pela limitação de cada palavra em relação à outra que se sabe sua significação. Ela se define, desse modo, por aquilo que ela não é em relação aos outros termos: “sua mais exata característica é ser o que as outras não são” (SAUSSURE, 1949, p. 162).

Não há, portanto, nenhuma positividade na língua, senão diferenças de termos que se opõem. Num texto dedicado a Jean-Paul Sartre, por exemplo, Le langage indirect et les voix du silence, Merleau-Ponty afirma que aquilo que apreendemos em Saussure é que os signos um a um não significam nada, pois cada um deles exprime menos um sentido do que a marca de um desvio de sentido entre ele mesmo e os outros (Cf. MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 49). Há como uma ligação lateral ou de desvio entre os signos (Cf. MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 51).

Saussure utiliza-se de um exemplo bastante ilustrativo para pensarmos na oposição entre sincronia e diacronia. Ele nos convida a pensar numa partida de xadrez (Cf. SAUSSURE, 1949, pp. 124-127). Em primeiro lugar, o jogo tem regras (como os princípios constantes da Semiologia). Ao começar o jogo, ao avançar um peão, por exemplo, o jogo de relações de valores entre as casas do tabuleiro modificam instantaneamente. O outro jogador, ao responder sua jogada, modifica novamente os valores entre as casas. E assim sucessivamente.

De fato, se tomarmos a partida num dado momento, veremos que os valores de cada casa são determinados pela relação das peças nesse momento, independente de como se chegou ali – é esse jogo de relações, nesse momento dado, que Saussure faz uma analogia com a sincronia da língua. Mas como se chegou nessa relação de valores só pode ser determinada pelas jogadas sucessivas que ambos fizeram até ali – são essas sucessões no tempo que ele denomina de sincronia.

Em primeiro lugar, há um mérito nisso para Merleau-Ponty:

Saussure mostra admiravelmente que se as palavras e, em geral, a língua, consideradas através do tempo, - ou, como ele diz, segundo a diacronia -, oferecem, com efeito, o exemplo de todos os deslizes semânticos, não é a história da palavra ou da língua que dá o seu sentido atual e, por exemplo, não é a etimologia que me dirá o que significa no presente o pensamento (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 33).

Entretanto, Merleau-Ponty tende a discordar daquela posição de Saussure entre diacronia e sincronia. A seu ver, podemos revisar alguns pontos importantes da concepção saussuriana entre sincronia e diacronia (Cf. MERLEAU-PONTY, 1988, p. 85). Segundo Merleau-Ponty, essa oposição pode ser superada, uma vez que isto indica uma lógica interna na própria língua, como se ela se envolvesse nela mesma (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 35). Ou seja, a língua falada pode, a qualquer momento, romper com o sistema presente, onde qualquer substituição possa ocorrer – modo de dizer que há um poder na sincronia de invadir a diacronia ou que a sincronia não é jamais “toda em ato”, ela está sempre submetida à fala falada. Ele diz que “tomando por tema a fala, é na realidade num novo meio que Saussure transportou o estudo da língua, é uma revisão de nossas categorias que ele começou” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 33). Moutinho nos indica essa transformação:

(...) a diacronia, que deve apontar as substituições no tempo, não as relações, não pode fazê-lo sem pressupor sistemas no começo e no fim, como se a evolução linguística fosse agora ‘a transformação de uma estrutura sincrônica em uma outra estrutura sincrônica’. E inversamente: o sistema sincrônico, se deve ser envolvido pela diacronia, deve comportar ‘mudanças latentes ou em incubação’, por isso não deve ser jamais um sistema ‘todo em ato’ (MOUTINHO, 2006, p. 291).

A língua, não sendo um sistema todo em ato, está aberta: cada momento convoca outros. Se tomarmos um momento específico, sincrônico, a língua nos reenvia a outro momento – ela invoca, num presente vivo, como ele denomina, outros momentos (assim como definia a temporalidade na Phénoménologie de la Percpetion) que implica numa história sedimentada e da qual podemos reativar. Numa palavra: implica numa instituição. Merleau-Ponty, desse modo, insere uma temporalidade na sincronia que a teoria de Saussure desconhece.

Ao instaurar uma temporalidade na sincronia, Merleau-Ponty coloca a fala como a expressão do sistema da língua. Ele privilegia, nesse caminho, o presente vivo como a atualização da língua, a sincronia viva que é reativada na diacronia. A fala é a expressão desta reativação: “a fala é o que dizemos; a língua é o tesouro no qual o sujeito extrai para falar; é um sistema de possibilidades” (MERLEAU-PONTY, 1988, p. 84).

A fala, é então, o meio de abertura de possibilidades da língua, ela é, ao mesmo tempo, a reativação do sistema linguístico e o que torna presente a possibilidade do novo a partir do qual a contingência da vida pode sempre entrar na ordem da língua.

Digamos que a contingência e mesmo o arbitrária são constitutivos de toda tradição. Isto é, o que é arbitrário é a formação de uma tradição: é porque o signo é arbitrário que ele não conhece outra lei que a tradição, e é porque ele se funda sobre a tradição que ele pode ser arbitrário. A língua é compreendida, assim, como uma Gestalt em movimento “(...) evoluindo em direção a algum equilíbrio e capaz inclusive, uma vez que este equilíbrio é obtido, de perdê-lo em seguida como por um fenômeno de usura e de buscar um novo numa outra direção” (MERLEAU-PONTY, 1988, p. 85).

Toda questão, como se vê, está em torno da fala, na intenção do sujeito falante de ser compreendido, mesmo que este expresse mais que intenciona. Ora, “o que sustenta a invenção de um novo sistema de expressão é, portanto, o esforço dos sujeitos falantes que querem se compreender e que retomam como um novo modo de falar os resquícios usados de outro modo de expressão” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 50).

É certo que esta não parece ser a intenção de Saussure, já que ele considera a língua como o objeto da linguística. Entretanto, observa Merleau-Ponty, é só na fala que a língua ganha textura e é, de fato, realizada – é só na fala que a sincronia é acessível ao sujeito e Saussure mesmo aponta para isto:

a sincronia só conhece uma perspectiva, aquela dos sujeitos falantes, e todo seu método consiste em recolher suas testemunhas; para saber em qual medida uma coisa é uma realidade, seria preciso e bastaria pesquisar em qual medida ela existe para a consciência dos sujeitos. A linguística diacrônica, ao contrário, deve distinguir duas perspectivas; uma, prospectiva, que segue o curso do tempo; a outra, retrospectiva, que a retoma: por isso um desdobramento do método (...) (SAUSSURE, 1949, p. 128).

É verdade que nem toda fala instaura uma tradição. Quer dizer, falamos sempre, mas é somente em alguns momentos específicos que a fala pode instituir uma nova forma de falar. Há, lembremos, a fala falada e fala falante. A fala falada é possível e vivemos normalmente num estado em que a fala é já falada.

No entanto, é sempre possível que uma fala possa mudar a sincronia da língua. É possível que a particularidade de um sujeito falante possa ser sublimada, partilhada e, quem sabe, universalizada.

Para Saussure, é a língua constituída e sedimentada que interessa à linguística e é somente quando uma fala falante é incorporada por outros sujeitos que se deve pensar numa atualização da sincronia da língua.

Merleau-Ponty, certamente, está de acordo com Saussure sobre esse ponto, mas, ele não deixa de notar que esta qustão esconde um problema: é somente na fala que a língua pode aparecer. A fala e a língua não podem ser fenômenos independentes uma da outra. Moutinho nota isto quando afirma que

a razão básica reside no fato de que Saussure realiza um corte entre elas [a língua e a fala] a fim de desenvolver apenas uma ciência dos signos, enquanto Merleau-Ponty as mantêm intimamente ligadas porque está preocupado sobretudo com a gênese do sentido, e apenas por isso ele vai desenvolver não uma semiologia, mas uma fenomenologia da fala (MOUTINHO, 2006, pp. 297-298).

Com efeito, podemos ler passagens de Merleau-Ponty em que a fala está no interior da reflexão sobre a linguagem:

no presente ou sincronicamente o uso atual não se reduz à fatalidade legada pelo passado e Saussure inaugura ao lado da linguística da língua que a faria aparecer, no limite, como um caos de eventos, uma linguística da fala que deve mostrar nela, a cada momento, uma ordem, um sistema, uma totalidade sem as quais a comunicação e a comunidade linguística seriam impossíveis (MERLEAU-PONTY, 2004, pp. 33-34).

Não por acaso o objetivo do filósofo é uma descrição da experiência vivida através da fala para pensar o sentido sincrônico da língua. Como se a fala de um sujeito pudesse instaurar uma nova operação na língua. Nesse caminho, a gênese do sentido só pode ser pensada na atividade viva do sujeito falante, segundo as suas intenções e seus “deslizes” no sentido. Falar, sem dúvida, é um modo de deformar o mundo, mas também uma forma de instituir um novo sentido e mesmo “mais verdadeiro que a verdade” (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 92).

Estamos diante do problema entre o individual e o universal. No seu texto sobre Le langage indirect et les voix du silence, Merleau-Ponty desenvolve essa questão através de uma reflexão da origem do sentido que está latente na tradição. Leiamos, por exemplo, esta passagem:

mesmo quando é possível datar a emergência de um princípio para si, ele estaria anteriormente presente na cultura à titulo de familiaridade ou de antecipação e a tomada de consciência que o põe como significação explícita não faz senão finalizar sua longa incubação num sentido operante (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 52).

Mas, parece que há uma “sorte de instalação” no universal que ele não explicita suficientemente a meu ver:

a história verdadeira vive, portanto, toda de nós. É no nosso presente que ela toma a força de recolocar no presente todo o resto. O outro que eu respeito vive de mim como eu dele. Uma filosofia da história não me tira nenhum de meus direitos, nenhuma das minhas iniciativas. É verdade somente que ela acrescenta às minhas obrigações de solitário, aquela de compreender outras situações além da minha, de criar um caminho entre minha vida e aquela dos outros, quer dizer, de me exprimir. Pela ação da cultura, eu me instalo nas vidas que não são a minha, eu as confronto, eu manifesto uma à outra, eu as torno compossíveis numa ordem da verdade, eu me faço responsável por todas, eu suscito uma vida universal, como eu me instalo de um só golpe no espaço pela presença viva e espessa do meu corpo (MERLEAU-PONTY, 2000b, pp. 93-94).

Outro modo de pensar a relação entre o individual e o universal está presente em La prose du monde. Ele retoma sua concepção da fala enquanto sublimação do mundo, uma forma que conserva e transforma o mundo percebido em mundo falado (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 173). Mas, assim, toda fala é uma forma de retomar o mundo vivido e de transformá-lo, ou melhor, de deformá-lo, porque, tal como ele diz no resumo de um curso contemporâneo a La prose du monde, “a expressão propriamente dita, tal que a obtém a linguagem, retoma e amplifica uma outra expressão que se desvela à ‘arqueologia’ do mundo percebido” (MERLEAU-PONTY, 1968, pp. 12-13).

Somos levados a pensar que o sujeito pode reativar a língua através da amplificação da expressão enquanto percepção do mundo. Mais uma reativação e uma amplificação que se refere ao estilo do sujeito – a seu modo particular de ver o mundo: “cada vetor do espetáculo percebido coloca, para além de seu aspecto do momento, o princípio de algumas equivalências nas variações possíveis do espetáculo, ele inaugura por sua vez um estilo da explicitação de objetos e um estilo de nossos movimentos em relação a elas” (MERLEAU-PONTY, 2004, pp. 174-175).

Quer dizer, “(...) o problema de saber como se pode comunicar sem o auxílio de uma Natureza pré-estabelecida e sobre a qual nossos sentidos se abririam, como somos entes no universal por aquilo que temos de mais próprio” (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 65). Podemos perguntar: como é possível a Van Gogh, por exemplo, fazer de sua arte algo que institui uma tradição? Como um estilo individual pode passar a ser “(...) um modo de formulação tão reconhecível pelos outros, tão pouco visível por ele tal como sua silhueta ou seus gestos cotidianos” (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 67)?

“Eu fui você”: retomando o problema da intersubjetividade com outras peças?

Tentemos compreender um fenômeno aparentemente simples: como é possível que minha fala seja acessível a outrem? Para Merleau-Ponty, essa questão é fundamental. Vejamos, por exemplo, essa passagem que encontramos em seu projeto de ensino no Collège de France:

é-nos preciso ver como nossa encarnação mesma, pelo uso linguístico que nós fazemos do nosso corpo, é o que nos permite de certa maneira de não permanecer confinados nos limites de nosso ponto de vista, tal como ele é definido pelo corpo ‘natural’ (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 24).

Quer dizer, é preciso explicar como a expressão individual é acessível a outrem e mesmo passível de ressignificação. Em La Prose du Monde, esse problema está em tono da junção do individual e do universal. Assim, “(...) a expressão, a linguagem, por exemplo, é o que nós temos de mais individual, ao mesmo tempo em que se endereçam aos outros, ela se faz valer como universal” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 120). Como é possível essa passagem?

Se retomarmos à Phénoménologie de la Perception, lemos que a unidade e a pluralidade não são excludentes, já que podemos pensar num terreno comum em que eu e outrem frequentaríamos. Isto é, o mundo que partilhamos nos garante um mundo comum, uma coexistência que deve ser vivida por cada um (Cf. MERLEAU-PONTY, 1967, p. 410): somos consagrados a um mesmo mundo.

Algo muito próximo disso é recolocado aqui para se pensar essa relação entre individual e universal. Esse terreno comum é agora o da cultura. Quer dizer, no momento da expressão, outrem, a quem me endereço, e eu, que exprimo, estamos ligados sem concessão – nem de sua parte, nem da minha, – pela ação da cultura. Trata-se de um meio em que podemos invadir outem e “fazer parte de sua vida”, eu torno a vida de outrem compossível com a minha, suscitando uma vida universal.

Ora, essa compossibilidade, quer dizer, esta possibilidade de nos instalarmos ao mesmo tempo em outras vidas, na ordem da verdade, aparece em Merleau-Ponty como “cega”. Não se trata de um ato consciente, nem inconsciente, mas espontâneo. Como se fôssemos capazes de nos instalarmos cegamente nessa compossibilidade, tal como o corpo se instala no mundo. Entretanto, esta operação do corpo, assim como das palavras ou das pinturas, permanece obscura: ela parte de nós, como os gestos, sem sabermos ao certo como (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 122).

Uma compossibilidade cega tal como dizemos de um reconhecimento cego entre os corpos, é, assim, uma promiscuidade entre os corpos, porque “(...) é justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem e ele o encontra como um prolongamento miraculoso de suas próprias intenções (...)” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 406). Na verdade, Merleau-Ponty associa sua reflexão sobre a linguagem sempre com esta dinâmica entre os corpos – esta mesma promiscuidade está presente na linguagem e é colocada em evidência pelo seu excesso de significação:

a linguagem é então este aparelho singular que, como nosso corpo, nos dá mais do que nela introduzimos, seja apreendendo nós mesmos nosso pensamento falando, seja escutando os outros. Pois quando escuto ou quando leio, as palavras nem sempre vêm atingir em mim significações já presentes. Elas têm o poder extraordinário de me jogar para fora de meus pensamentos, elas praticam no meu universo privado fissuras pelas quais outros pensamentos fazem irrupção. ‘Nesse instante, pelo menos, eu fui você’ diz Jean Paulham (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 298).

Seguindo o que descreve Paulham somos tentados a aproximar essa ideia com o que Merleau-Ponty diz sobre a reciprocidade da fala: “(...) minha fala é recortada lateralmente por aquela de outrem, eu me ouço nele e ele fala em mim, é aqui a mesma coisa to speak to et to be spoken to” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 197).

Entretanto, neste instante em que há uma sorte de fissura do universo privado, estamos também próximos do que encontramos em algumas patologias. É desse modo que vemos como alguns sujeitos descrevem a fala de outrem como presentes na sua cabeça ou no seu corpo, como nas alucinações verbais que lemos no trabalho de Daniel Lagache que Merleau-Ponty cita em vários momentos (Les hallucinations verbales et la parole):

quer seja como pensamos as relações entre doença e o homem são, é preciso que, na sua existência normal, a fala seja de uma natureza tal que nossas variações doentias sejam e permaneçam a cada instante possível. É preciso que haja em seu centro algo que a torne suscetível destas alucinações (MERLEAU-PONTY, 2004, pp. 26-27).

Assim, se a fala está próxima desta alucinação verbal, como compreender esta referência a Paulham? O que significa dizer que a fala nos leva a uma situação em que “eu fui você”?

Podemos, primeiramente, lembrar como no primeiro curso ministrado em Sorbonne, sobre La conscience et l’acquisition du langage, Merleau-Ponty ensinava a seus alunos que havia um impasse para se pensar a intersubjetividade. O filósofo localizava este impasse nas reflexões de Husserl e Max Scheler. Como se tivéssemos que escolher entre dois pontos:

1. tentativa de aceder a outrem partindo do ‘cogito’, da ‘esfera de pertencimento’. 2. Recusa deste problema e uma orientação em direção à ‘intersubjetividade’, quer dizer, a possibilidade de partir sem pôr o ‘cogito’ primordial, a partir de uma consciência que não é nem eu nem outrem (MERLEAU-PONTY, 1988, p. 41).

Aos seus olhos, Husserl não consegue unir essas duas possibilidades e Scheler nega a primeira escolha. Na verdade, se nos debruçarmos sobre a Phénoménologie de la Perception, perceberemos que era esse mesmo impasse que estava em jogo:

(...) se o Eu que percebe é verdadeiramente um Eu, ele não pode perceber um outro; se o sujeito que percebe é anônimo, o outro ele-mesmo que ele percebe também o é, e quando queremos, nesta consciência coletiva, fazer aparecer a pluralidade de consciências, iremos reencontrar as dificuldades às quais pensamos ter escapado (MERLEAU-PONTY, 1967, pp. 408-409).

No caso de Scheler, seria possível uma espécie de corrente de experiência psíquica indiferenciada ou uma mistura de si e de outrem. Ora, Merleau-Ponty parece recuperar essa ideia com Paulham, na fala é possível que “eu fui você”. Deste modo, não estaríamos diante do solipsismo insuperável que nos propõe Husserl? Mas não parece ser este o caminho de Merleau-Ponty. Este solipsismo insuperável aparece como um estranhamento, mas que não impede, ao menos é assim que nos parece, que tenhamos uma experiência de ser outrem. Por quê?

Se for possível dizer que, ao menos neste instante, “eu fui você”, dizemos também de uma experiência de estranhamento: fui algo que jamais fui antes; fui algo estranho a mim mesmo: você. Ora, a própria sensação de estranhamento coloca em evidência que há algo que não nos pertencia, mas que nos invade de algum modo. Uma experiência sempre presente na literatura segundo Merleau-Ponty:

o que há de arriscado na comunicação literária, o que há de ambíguo e irredutível à tese de que todas as grandes obras de arte não é um defeito provisório da literatura, da qual esperaríamos liberá-las, é o preço que é preciso pagar para se ter uma linguagem conquistadora, que não surge para enunciar o que já sabíamos, mas nos introduz às experiências estranhas, às perspectivas que jamais seriam as nossas e nos destitui enfim de nossos prejuízos (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 127).

Portanto, não há uma “corrente de experiência psíquica indiferenciada” ou “uma mistura de si e de outrem” como sugere Scheler. Ora, se a fala nos instala num mundo que não temos a chave (Cf. MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 97), é porque esta experiência é como uma deformação coerente de nós mesmos: a fala de outrem, seu mundo estranho, nos invade. É por este motivo que Merleau-Ponty fala da surpresa, da desorientação ao ouvir alguém:

(...) é preciso que em algum momento eu seja surpreendido, desorientado e que nós nos reencontremos, não mais naquilo que temos de semelhante, mas naquilo que temos de diferente, e isto supõe uma transformação de mim mesmo e assim também de outrem: é preciso que nossas diferenças não sejam mais como qualidades opacas, é preciso que elas se tornem sentido (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 198).

Com efeito, não sabemos o que outrem irá nos falar. Estamos sempre nesta possibilidade de sermos surpreendidos com seu mundo “estranho” que Merleau-Ponty insiste em dizer que “é preciso” acontecer, porque sem esse estranhamento, não haveria realmente um outro. O filósofo parece dar uma explicação fenomenológica para esse caso: “falar, essencialmente, não é dizer sim ou não, é fazer existir algo linguisticamente. Falar supõe a utilização da contingência, do absurdo” (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 217).

A meu ver, é a partir deste estranhamento face à contingência da fala que Merleau-Ponty busca ir além da Phénoménologie de la Perception. Se a fala nos leva para um mundo estranho, ela ultrapassa assim o gesto corporal. É preciso que a língua faça um sentido, pois “(...) é-lhe essencial de se ultrapassar como gesto, ela é o gesto que se suprime como tal e se ultrapassa em direção a um sentido” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 196). Um gesto que suprime como tal e nos revela o que há de próprio em nós: nossa produtividade (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 197). E, se outrem é realmente Outrem, podemos perceber sua produtividade.

Entretanto, Merleau-Ponty fala também da surpresa e da desorientação na percepção do gesto de outrem. O estilo de outrem pode nos surpreender:

na percepção de outrem, tal acontece desde que o outro organismo, ao invés de ‘se comportar’ como eu, se utilize face as coisas de meu mundo de um estilo que me é primeiramente misterioso, mas que pelo menos me apareça subitamente como estilo, porque ele responde a algumas possibilidades das quais as coisas de meu mundo estavam nimbadas (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 198).

Tanto em um caso, como em noutro, percebemos algo de estranho, mesmo que não sejamos capazes de definir exatamente o que é esse estranhamento. Os gestos de outrem nos suscita um mistério que não sabemos necessariamente o porquê. Suas falas, também: nos levam a um mundo desconhecido que não sabemos precisar:

podemos, entrando num lugar, ver que algo foi modificado, sem saber dizer o quê. Entrando num livro, experimento que todas as palavras se modificaram, sem poder dizer o quê. Novidade de uso, definido por algum e constante desvio da qual não sabemos primeiramente nos dar conta, o sentido do livro é linguageiro (MERLEAU-PONTY, 2004, pp. 183-184).

Resumindo, podemos dizer: os gestos em geral e, a linguagem, em especial, é um modo de se endereçar a outrem; inclusive, a linguagem é um gesto que está na ordem da cultura; mas este gesto linguístico é carregado de uma compossibilidade que nos invade. A fala de outrem pode nos fazer entrar num mundo desconhecido devido ao seu excesso de significação; e, mesmo, ela pode nos deformar.

E, assim mesmo, o que é próprio da linguagem é que ela passe despercebida. Eis uma das particularidades da linguagem segundo o filósofo: ao mesmo tempo em que ela nos envolve e nos deforma, ela passa “cega”, despercebida, pois “quando alguém – autor ou amigo, – soube se exprimir, os signos são imediatamente esquecidos, só permanece o sentido, e a perfeição da língua é justamente de passar despercebida” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 16).

Tudo se passa como se esse mundo estranho seja instituído de modo despercebido em nossa vida. Este sentido estranho é já uma nova possibilidade de exprimir o mundo, de estilizá-lo. Esta experiência em que “eu fui você” é uma assunção de um novo mundo – ele passa a ser o meu mundo: ele nos invade e nos deforma.

Ler é uma dessas experiências. Segundo Merleau-Ponty, quando se lê Stendhal, “eu crio Stendhal, eu sou Stendhal lendo-o, mas é porque primeiramente ele soube me instalar nele. A realeza do leitor é somente imaginária, pois ele toma toda sua potência desta máquina infernal que é o livro, este aparelho de criar significações” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 20).

Não é por acaso que a experiência de ler um livro está numa reflexão sobre a intersubjetividade: quando lemos, assumimos significações de outros, – o autor nos permite viver significações desconhecidas que podemos tomar como nossas. Merleau-Ponty retoma aqui um problema central da sua reflexão sobre a intersubjetividade; desta vez, próximo da solução husserliana: “mas tudo isto começou pela cumplicidade da fala e de seu eco, ou, para usar da palavra enérgica que Husserl aplica à percepção de outrem, pelo ‘acoplamento’ da linguagem” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 21).

Como podemos ver, o dilema entre Husserl e Scheler está ainda presente. O acoplamento da linguagem é ainda uma possibilidade na intersubjetividade tal como Husserl dizia que a percepção de outrem é como um ‘fenômeno de acoplamento’ (Cf. MERLEAU-PONTY, 1997, p. 178). Ou como Merleau-Ponty coloca em evidência na Phénoménologie de la perception, o acoplamento é um prolongamento miraculoso do corpo, um modo familiar de tratar o mundo. Estamos assim diante de uma intercorporeidade da linguagem tal como na tese de 1945 em que o corpo de outrem e o meu formam um só todo; o verso e reverso de um mesmo fenômeno?

Na Phénoménologie de la perception esta intercorporeidade ainda não é clara. Ora, se um corpo tem seus hábitos e sua história, como é possível falar de um todo, uma vez que cada corpo tem um drama “particular” e que não podem ser justapostos? É certo que, quando um corpo desejo outro corpo, ele o deseja cegamente – como se ele desejasse um estilo, certo modo de ser; mas, este corpo mesmo possui um estilo. Como pensar essa mistura de estilos tal como o verso e o reverso de um só fenômeno?

Eis nosso problema: um estilo não se apaga frente a outro mesmo que ele nos invada. Permanece como que uma espécie de afrontamento, que fica explícito na reflexão sobre a linguagem, porque “a leitura é um afrontamento entre os corpos gloriosos e impalpáveis de minha fala e aquela do autor” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 21). Quer dizer, não há simplesmente uma leitura passiva: suas palavras se tornam minhas; seus sentidos se tornam instituídos e algo que podemos sempre ultrapassar a partir de nossa própria gramática:

(...) a fala de outrem vem tocar em nós nossas significações, e nossas falas vão, como atestam as respostas, tocar nele suas significações, nós nos invadimos um sobre o outro na medida em que pertencemos a um mesmo mundo cultural e, primeiramente, à mesma língua, e meus atos de expressão e aqueles de outrem se destacam da mesma instituição (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 194).

Estamos novamente diante daquele dilema entre Husserl e Scheler? Trata-se do mesmo problema com outras peças? “Eu fui você” quer dizer: 1) uma compossibilidade cega; 2) uma experiência de estranhamento: de invasão e de deformação coerente; 3) uma experiência também de instituição e de pertencimento que partilha de uma surpresa e uma desorientação; 4) uma espécie de acoplamento; 5) e, ainda, um afrontamento.

Essa descrição, entretanto, é um esboço da concepção tão fundamental de seus últimos escritos: a carne. Quer dizer, uma descrição do corpo enquanto prolongamento do mundo em que somos ao mesmo tempo um corpo único, mas que parte de uma mesma carne. Vejamos como ele anuncia essa problemática ao questionar a relação com outrem a partir da linguagem: “(...) este outro é feito de minha substância e, entretanto, ele não é mais eu. Como isto é possível?” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 187)

Não há dúvidas que algo sobre a concepção da carne está aqui presente: certa confusão e fusão entre minha carne e aquela de outrem. Mas, também, uma segregação: somos esta “parte” do mundo mesmo que partilhemos todas as suas outras “partes”, somos próximos e distantes ao mesmo tempo de tudo. Leiamos esta passagem:

quando escuto, não é preciso dizer que tenho a percepção auditiva de sons articulados, mas o discurso se fala em mim; ele me interpela e ressoo, ele me envolve e me habita a tal ponto que não sei mais o que é de mim e o que é dele. Nos dois casos, projeto-me em outrem, eu o introduzo em mim (...) (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 28).

Há aqui um esboço de descentramento: nesta projeção-introjeção não sabemos exatamente onde estamos e onde outrem está. Algo próximo de um transitivismo infantil. Essa projeção-introjeção na fala parece ser o ponto central para se compreender o que o filósofo irá desenvolver nos seus últimos escritos:

seria preciso então chegar a uma outra ideia da projeção segundo a qual a fala de outrem não desperta somente em mim pensamentos já formados, mas ainda me conduz a um movimento de pensamento em que eu não seria capaz sozinho e me abre finalmente à significações estrangeiras. É preciso então aqui que eu admita que eu não vivo somente meu próprio pensamento mas que, no exercício da fala, eu me torno aquele que escuto (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 165).

Na Phénoménologie de la perception vemos algo diferente. Na sua tese de 1945, ele diz, por exemplo, que mesmo que sejamos solidários à cólera de um amigo, jamais podemos sentir o que ele sente, uma vez que, para ele, esta é uma situação vivida, para mim, é uma situação apresentada (Cf. MERLEAU-PONTY, 1967, p. p. 409). Agora ele fala, a partir de uma reflexão sobre a linguagem, que “eu fui você” e não que a intersubjetividade deva lembrar o mundo infantil, já que não podemos viver esse transitivismo como tal. Há aqui uma mistura mais profunda, um esboço da verdadeira intercorporeidade em que os corpos estão numa dinâmica de projeção-introjeção entre eles.

Merleau-Ponty sublinha isso quando ele nos destaca duas ambiguidades:

o estudo da percepção não poderia nos ensinar senão uma ‘má ambiguidade’, uma mistura da finitude e da universalidade, do interioridade e do exterioridade. Mas há, no fenômeno da expressão, uma ‘boa ambiguidade’, quer dizer, uma espontaneidade que completa aquilo que pareceria impossível, a considerar os elementos separados, que reúne em um só tecido a pluralidade de mônadas, o passado e o presente, a natureza e a cultura (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 48).

No fenômeno da expressão, nessa “boa ambiguidade”, estamos num mesmo tecido de pluralidade de mônadas. No estudo da fala, no fenômeno concreto da linguagem, somos levados a pensar que “fomos” outrem segundo uma pulsação de nossas relações (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 30). E, sobretudo, que “quando eu falo ou quando eu compreendo, experimento a presença de outrem em mim e de mim em outrem” (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 121).

Na verdade, o estudo sobre a fala é, no fundo, um estudo sobre a intersubjetividade, ou melhor, um estudo sobre a intercorporeidade, uma vez que, na expressão, “eu fui você” somos invadidos por um mundo estranho. Entramos, enfim, num jogo de invasão entre os corpos que nos sugere um descentramento em que, através de uma operação de projeção-introjeção, não sabemos mais exatamente quem sou eu e quem é outrem (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 185). Uma invasão tal como entre os corpos... Mas ainda permanece uma questão: como é possível que este outro que é feito da mesma “substância” que eu seja um Outro?

A solução de Merleau-Ponty parece seguir uma radicalização desta descoberta do fenômeno da expressão “eu fui você” ou, como dirá no seu curso sobre a instituição: “(...) o único objetivo honrável que poderíamos se propor ao escrever: viver diante dos outros e diante de si mesmo de modo indiviso” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 273). Tudo se passa como se o sentir fosse generalizado. Trata-se de uma generalidade do sentir que a Phénoménologie de la perception “ainda” desconhece.

Mas, insistamos, estamos diante de um esboço do que Merleau-Ponty irá desenvolver nos anos seguintes? Ele esboça a intercorporeidade anônima que partilham os corpos? Somos de uma mesma carne? Penso que ele sugere uma generalidade que torna possível pensar a aparição de outrem na juntura do mundo e de nós mesmo (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 192).

Eis, a meu ver, como surge essa relação carnal do corpo com outros corpos, enquanto inserção primeira no mundo e na verdade (Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 193). Um modo de relação, certamente, que aparece, entre outras coisas, a partir de uma reflexão sobre o acoplamento em Husserl e uma interpretação dos cursos sobre a linguística de Saussure.

Referências bibliográficsa

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MOUTINHO, Luiz Damon Santos. Razão e experiência – Ensaio sobre Merleau-Ponty. Rio de Janeiro: UNESP, 2006.

SAUSSURE, Ferdinand. Cours de Linguistique Générale. Paris: Payot, 1949.

SICHÈRE, Bernard. Merleau-Ponty, le corps de la philosophie. Paris: Granet, 1982.

Autor notes

1 Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – Brasil. Bolsista CNPq.
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