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O papel da arte apresentado por Herbert Marcuse em a ideologia da sociedade industrial
The role of art in Macuse presented by the ideology of industrial society
O papel da arte apresentado por Herbert Marcuse em a ideologia da sociedade industrial
Griot: Revista de Filosofia, vol. 5, núm. 1, pp. 120-140, 2012
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 23 Março 2012
Aprovação: 18 Abril 2012
Resumo: Este estudo tem como finalidade analisar a perspectiva da arte como parte do aparato de dominação social, desenvolvida na obra A ideologia da sociedade industrial, de Herbert Marcuse. Para isso, utilizaremos como referência constante as teorias propostas pelos filósofos da Escola de Frankfurt, em especial Theodor W. Adorno e Max Horkheimer no que diz respeito, sobretudo, ao termo “indústria cultural”, cujo conceito aparece no capítulo homônimo de A dialética do esclarecimento. Apoiaremo-nos também na tese de doutorado de Imaculada Kangussu, intituladaLeis da liberdade: as relações entre Estética e Política na Filosofia de Herbert Marcuse, e, ainda, nas demais obras marcuseanas, com destaque para Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud.
Palavras-chave: Marcuse, Ideologia, Sociedade, Capitalismo.
Abstract: This study aims to analyze the perspective of art as part of the apparatus of social domination, developed in work The ideology of industrial society, Herbert Marcuse. For this, we will use as reference in the theories proposed by philosophers of the Frankfurt School, particularly Theodor W. Adorno and Max Horkheimer in respect especially to the term "cultural industry", a term which appears in the chapter titled The dialectic of enlightenment. Apoiaremo us also in the doctoral thesis of Imaculada Kangussu, entitled Laws of Liberty: the relationship between aesthetics and politics in the philosophy of Herbert Marcuse, and also in other works of Marcuse, especially Eros and Civilization: A Philosophical inquiry Freud.
Keywords: Marcuse, Ideology, Society, Capitalism.
Introdução
Este estudo tem como finalidade analisar a perspectiva da arte como parte do aparato de dominação social, desenvolvida na obra A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional, de Herbert Marcuse, publicado originalmente em 1964. Nesse texto, o progresso da tecnologia, fundamentado pela consolidação de uma racionalidade instrumental, é apresentado com a finalidade de dominar a natureza e o homem. O filósofo afirma o fim da existência de uma consciência que ele, a partir da fenomenologia hegeliana2,. denomina como “infeliz”, sinalizando com isso que o aparato tecnológico é introjetado de tal maneira que impossibilita a formação de um posicionamento crítico perante a sociedade estabelecida como real. A capacidade da arte de manter viva a perspectiva de realização do princípio de prazer através da dimensão estética e da reconciliação entre espírito e matéria, apresentada anteriormente por Marcuse em Eros e Civilização, é refutada em A ideologia da sociedade industrial por uma primazia total do princípio de realidade que transforma a arte em um mecanismo subjugado às regras da sociedade dominante. Dessa forma, a arte perde sua capacidade de oposição à realidade estabelecida e passa a ser instrumento mantenedor da dominação social. A dimensão estética, antes considerada utópica e subversiva, se vê subjugada à unidimensionalização aparentemente hegemônica, que afeta a sociedade.
Tendo como objeto principal de estudo a supracitada obra marcuseana, utilizaremos como referência constante as teorias propostas pelos filósofos da Escola de Frankfurt, em especial Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Assim, no que diz respeito, sobretudo, ao termo “indústria cultural”, iremos nos apoiar no conceito apresentado no capítulo homônimo de A dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer (2006), onde os autores se referem à transformação da arte em “mercadoria cultural” e a seu poder de manipulação dos desejos dos seres humanos em determinação de uma crescente indústria de entretenimento que progride juntamente com os avanços tecnológicos da exibição imagética em massa. Utilizaremos também as contribuições de Walter Benjamim (1985) no artigo “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, que discorre sobre o surgimento da possibilidade de o objeto ser reproduzido por meios técnicos. Além disso, será de grande importância a referência aos comentadores das obras mencionadas, para exemplificação e fundamentação da posição pessimista de Marcuse durante o período de desenvolvimento de A ideologia da sociedade industrial.
Sociedade sem oposição: fundamentação ideológica da sociedade industrial contemporânea
A estrutura de defesa torna a vida mais fácil para um número de criaturas e expande o domínio do homem sobre a natureza. Em tais circunstâncias, os nossos meios de informação em massa encontram pouca dificuldade em fazer aceitar interesses particulares como sendo de todos os homens sensatos. (MARCUSE, 1973, p.13)
Na obra A Ideologia Alemã, Karl Marx (1998) afirma que as condições materiais determinam a consciência do sujeito. O método de produção capitalista se apropria de todas as esferas da subjetividade, transformando tudo em relações de consumo (reificação) e colocando o trabalho como mediador das relações sociais. O sujeito torna-se incapaz de realizar o processo de formação de sua consciência sozinho, pois o meio externo assume a função de determinar-lhe o que deve ou não pensar, fazer e, principalmente, consumir. As relações sociais que o determinam estão inseridas no processo de produção e consumo de mercadorias de tal forma que, para fazer parte da sociedade, esse sujeito deve, antes de tudo, se reconhecer como consumidor. Nesse sentido, o meio externo determina o sujeito fazendo com que ele se esqueça como ser consciente e se torne consumidor. Um processo circular, uma vez que o sujeito vende sua força de trabalho para a produção de mercadorias e somente se reconhece como sujeito quando consome essa mercadoria.
Na sociedade industrial contemporânea, o alcance da dominação dos meios materiais sobre o indivíduo tem seu alcance potencializado. O constante avanço da tecnologia possibilita a introjeção de uma ideologia dominante em todos os setores da vida humana, fazendo com que todos os espaços sejam dominados pelas leis do capital. A reprodução de seu discurso administrativo na maneira de organizar a sociedade é elevada ao ponto que o potencial crítico do sujeito seja impedido de constituir-se.
A partir da afirmação de que a luta pela existência humana é suavizada pelos avanços técnicos e científicos, a sociedade industrial firma-se no embate pela sobrevivência como principal possibilidade de realização segura das necessidades vitais do ser humano, minando qualquer projeto que critique seu modelo sistêmico de funcionamento, na qual a racionalidade se dá pela premissa de que a sociedade industrial é racional porque “é capaz de ‘entregar as mercadorias’ em escala cada vez maior” (MARCUSE, 1973, p. 17), sendo essas mercadorias necessárias (ou não) para a manutenção da existência.
Marcuse especifica a luta pela sobrevivência através de um processo que visa uma objetividade histórica na qual a sociedade industrial sai vencedora e onde os avanços da tecnologia diminuem o distanciamento do homem em relação à satisfação de sua necessidade e manutenção de sua existência. Dessa forma, o filósofo aponta dois problemas cruciais para o posicionamento de qualquer teoria crítica da sociedade industrial. O primeiro prevê que a vida humana deve ser vivida da melhor maneira possível, ou seja, deve ser tornada digna de viver; o segundo, que na sociedade industrial existem meios e modos capazes de melhorar a vida humana. A partir desses dois problemas fica-nos evidente a supremacia da sociedade tecnológica, que tem a racionalidade instrumental como forma dominante e que alcança, objetivamente e com mais facilidade, a realização desses dois pressupostos, uma vez que o progresso da técnica e o surgimento de novas mercadorias suavizam a luta pela existência e aproximam o sujeito daquilo que lhe é determinado como necessário. Assim, a sociedade dominante coloca como irracional o sujeito que se posiciona contra os meios materiais que lhe proporcionam mais conforto e diminuem sua necessidade de prolongar o esforço para manutenção da vida.
Adiante, o filósofo aponta a alteração das bases críticas realizada pelo crescente método de produção capitalista e destaca que a base desta crítica parte da oposição entre duas classes sociais – burgueses e proletários – como mediadores do movimento histórico de mudanças políticas e de consciência. A constante oposição de consciências na luta de classes mantinha viva uma vertente crítica à sociedade vigente. O desenvolvimento do capitalismo alterou a constituição destas bases críticas e foi, ilusoriamente, tornando homogêneas as diferenças entre ambas as classes, aproximando todos os sujeitos de seus desejos de consumo e unindo classes antagonistas em instrumentos mantenedores da ordem social vigente. Segundo Marcuse, “na falta de agentes e veículos de transformação social a crítica é, assim, levada a um alto nível de abstração.” (Marcuse, 1962, p.16). A crítica é abandonada a tal ponto que o pensamento e a ação são impossibilitados de realizarem-se em qualquer campo de atuação do sujeito. A realidade estabelecida é dada como irrefutável e única. Porém, o fato de a maioria aceitar o funcionamento desta sociedade não legitima o seu caráter irracional e repressivo, uma vez que ela atua administrando todos os campos do juízo humano, tornando a subjetividade do sujeito manipulada e mutilada pelas forças exteriores e materiais do mundo das mercadorias.
A ideologia da sociedade tecnológica aparece perante a massa como a única aceitável por possibilitar ao sujeito um caminho menos violento na busca pela sua sobrevivência, por ser aquela que entrega as mercadorias, por sublimar os desejos do sujeito fazendo que sejam possíveis as suas realizações. O movimento ideológico desta sociedade extremamente industrializada aliena e engana o sujeito, finda com a possibilidade de formação de sua própria consciência, o reduz a uma simples condição de marionete do sistema produtivo, determina o que ele deve vestir, comer, etc.. Essa ideologia assume o controle de tal forma que adentra em sua subjetividade por meio das evoluções técnicas e a domina, constituindo-a. Talvez a forma mais repressiva de todo o aparato produtivo da sociedade não seja o caráter do trabalho que aliena o trabalhador a funções estritamente mecânicas (a divisão onde o trabalhador participa apenas de uma parte do processo de produção, apertando só um parafuso do que virá a ser um automóvel), mas, sim, a capacidade de invadir todos os campos da vida do sujeito, introjetando ideologias e necessidades que fulminam com qualquer possibilidade de crítica e pensamento autônomo.
De cultura afirmativa a indústria cultural: transformação da cultura em aparato de dominação social
No livro Teoria crítica da indústria cultural, Rodrigo Duarte (2003) determina os pressupostos para o surgimento da crítica à indústria cultural e aponta dois textos cruciais para o entendimento dessa questão, que são A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica3., de Walter Benjamim, e Sobre o caráter afirmativo da cultura, de Marcuse.O texto de Marcuse possui relevante importância para a nossa abordagem sobre o assunto, pois nele, conforme afirma Duarte,
[...] as mais altas manifestações da cultura são entendidas, de um modo geral, como parte do que ele chama de “cultura afirmativa”, i.e., as obras de arte mais sublimes servindo como sucedâneo para a principal falta de acesso das classes subalternas, a partir da ascensão da burguesia, à igualdade por ela prometida quando era ainda uma classe revolucionária. (DUARTE, 2003, p. 20)
Para dar continuidade a essa explanação, faz-se necessário apresentar a definição de “cultura afirmativa”, que é, para Marcuse:
[...] aquela cultura pertencente à época burguesa que no seu próprio desenvolvimento levaria a distinguir e elevar o mundo espiritual-anímico, nos termos de esfera de valores autônoma, em relação à civilização. Seu traço decisivo é a afirmação de um mundo mais valioso, universalmente obrigatório, incondicionalmente confirmado, eternamente melhor, que é essencialmente diferente do mundo de fato da luta diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar para si “a partir do interior”, sem transformar a realidade de fato. Somente nessa cultura as atividades e os objetos culturais adquirem sua solenidade elevada tanto acima do cotidiano: sua recepção se converte em ato de celebração e exaltação. (MARCUSE, 1997, p. 95-96)
Voltando a Duarte para enfatizar a questão – antes de adentrarmos na possível relação da cultura afirmativa com o potencial de dominação imposto pela sociedade industrial através de captação total da arte pela tecnologia –, é importante destacar sua afirmação de que “a principal contribuição deste texto de Marcuse para o nosso tema é a descoberta precoce que o constructo estético, nesses três séculos de predomínio burguês, tem se destacado como elemento ideológico para a manutenção do status quo”. (DUARTE, 2003, p. 21)
A afirmação de Duarte, uma vez que evidência o apontamento de Marcuse em relação à transformação da cultura em um instrumento de dominação das massas desde a Idade Moderna, é crucial para o andamento de nossas observações. Com o advento das Revoluções Burguesas – em especial da Revolução Francesa ocorrida entre os anos de 1789 a 1799, que declara os Direitos dos Homens e dos Cidadãos, fortalecendo o acesso de todos à “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” – fez-se necessário à ampliação do alcance dos direitos necessários à sobrevivência para todos os homens. A cultura afirmativa previa aproximar o homem de seus direitos essenciais, mas essa esfera abstrata, fora da realização efetiva da mudança para uma vida menos exaustiva, culminou, em verdade, com uma falsa mudança nas relações sociais. Nessa cultura, a obra de arte acaba tornando-se parte do aparato mantenedor da dominação social. No texto Sobre o caráter afirmativo da cultura, Marcuse aponta a contradição que nasce quando essa cultura é usada como aparato de dominação social, uma vez que,
A cultura deve assumir a preocupação com a exigência de felicidade dos indivíduos. Mas os antagonismos sociais que a fundamentam admitem essa exigência na cultura somente enquanto interiorizada e racionalizada. Numa sociedade que se reproduz por meio da concorrência econômica, a simples exigência de uma existência feliz do todo já representa uma rebelião: remeter os homens à fruição da felicidade terrena significa certamente não remetê-los ao trabalho na produção, ao lucro, à autoridade daquelas forças econômicas que preservam a vida desse todo. (MARCUSE, 1997, p. 100).
A explanação deste texto citado por Duartefoi realizada como tentativa de criar um pano de fundo para entrarmos na teoria da indústria cultural a partir de seu conceito presente em A dialética do esclarecimento. Dessa forma, nesse percurso histórico-filosófico, pretendemos alcançar a visão pessimista de Marcuse em relação à obra de arte em A ideologia da sociedade industrial.
Duarte destaca que no título do capítulo sobre a indústria cultural (“Indústria cultural – o esclarecimento como mistificação das massas”) Adorno e Horkheimer já atentam para o fato de que “não se trata de cultura feita pela massa para seu consumo, mas de um ramo de atividade econômica, industrialmente organizado nos padrões dos grandes conglomerados típicos da fase monopolista do capitalismo [...]” (DUARTE, 2003, p. 50).
O surgimento dessa indústria pode ser relacionado à ideia do filósofo Max Weber sobre o desencantamento ou desmistificação do mundo, que é a passagem da relação de assimilação e proximidade com a natureza para uma relação de distanciamento e separação da mesma, ou seja, os elementos estruturantes e controladores da sociedade dita “pré-capitalista” (como o mito e a autoridade religiosa) começam a ruir frente aos avanços da tecnologia. Faz-se necessário, então, a criação de um poder ideológico capaz de suprir a ausência de controle e que poderia assumir o lugar de formador da identidade do sujeito, utilizando amplamente os avanços tecnológicos – tais como o rádio, o cinema e, a mais cruel com seus propósitos, a televisão. Surge um novo ramo industrial, denominado posteriormente pelos autores da Escola de Frankfurt de indústria cultural, cuja função é a produção de “mercadorias culturais” capazes de influenciar diretamente a subjetividade, passando a manipular, a moldar e a controlar de tal maneira o sujeito que lhe suprassume qualquer possibilidade de criação autônoma de subjetividade que venha a contestar as vontades da sociedade administrada pelo capital.
A indústria cultural vai de encontro com a capacidade do sujeito de ajuizar e construir uma subjetividade que seja plenamente sua. É nesse ponto que Adorno e Horkheimer realizam um paralelo com o esquematismo kantiano. De acordo com Duarte,
É a partir dessa “relação a objetos” que Horkheimer e Adorno se apropriam do conceito de esquematismo no sentido de mostrar em que medida uma instância exterior ao sujeito, industrialmente organizada no sentido de proporcionar rentabilidade ao capital investido, usurpa dele a capacidade de interpretar os dados fornecidos pelos sentidos segundo padrões que originalmente lhe eram internos. (DUARTE, 2003, p. 54)
Outra questão relevante para a nossa abordagem sobre a indústria cultural é o seu caráter irracional elevado a uma base produtiva que se tornou altamente racionalizada através da repetição exaustiva de seu cânone ideológico divinizado como a única capaz de prover o sujeito de suas necessidades. Em outras palavras, “para demonstrar a divindade do real, a indústria cultural limita-se a repeti-lo cinicamente” (apud DUARTE, 2003, p. 63). Podemos dizer, então, que a ideologia proposta pela indústria cultural atua com uma violência sutil que introjeta seu cânone através da falsa promessa de felicidade encontrada no consumo das mercadorias. Assim, ela toma para si, pouco a pouco, toda a capacidade de constituição da subjetividade, administrando o sujeito para atuar conforme as leis ditadas pelos “senhores” donos do capital.
Tanto a definição de “cultura afirmativa” feita por Marcuse quanto o diagnóstico apresentado por Rodrigo Duarte sobre a indústria cultural, possuem relação com a visão apresentada por Marcuse – que é o nosso objeto de discussão – em A Ideologia da Sociedade Industrial, onde a arte é vista como pertencente ao aparato mantenedor da administração exercida pelo capital.
A sociedade tecnológica apresenta novas formas de controle, agindo segundo a promessa de suavização da existência através do progresso tecnológico. Ela reajusta o conceito de liberdade através da promessa de conforto e de uma vida melhor. A definição cultural anterior torna-se obsoleta para os propósitos da classe dominante da época. Na sociedade industrial abordada por Marcuse, essa classe não apenas controla as massas, mas também dita seus paradigmas ideológicos na subjetividade, destruindo qualquer possibilidade de posicionamento crítico, determinando todos os juízos do sujeito, e por fim, dominando-o em todos os seus campos de atuação, seja pela vertente objetiva das relações sociais entre os homens ou pela dominação subjetiva com a utilização maciça dos meios de difusão tecnológica. A sociedade industrial não permite a consolidação de uma interioridade que não seja administrada.
Para Marcuse,
o aparato impõe suas exigências econômicas e políticas para a defesa e a expansão ao tempo de trabalho e ao tempo livre, à cultura material e intelectual. Em virtude do modo pelo qual organizou a sua base tecnológica, a sociedade industrial contemporânea tende-se a tornar-se totalitária. Pois “totalitária” não é apenas uma coordenação política terrorista da sociedade, mas também uma coordenação técnico-econômica não terrorista que opera através da manipulação das necessidades por interesses adquiridos. (MARCUSE, 1973, p. 24-25)
O aparato, em nossa leitura, condiz também (além de todos os campos de evolução tecnológica voltados para a produção de mercadorias) com a utilização da obra de arte – principalmente na transformação da cultura em mercadoria cultural e o alcance das mídias de difusão de imagens – para a captação da subjetividade e introjeção das ideologias do capital. Na organização deste aparato, o papel da indústria cultural é o de dar conta deste “tempo livre”, transformar o espaço livre do sujeito em um espaço que não fuja às ideologias regentes da sociedade.
As imagens difundidas devem estar em consonância com o avanço da produção de mercadorias, instigando constantemente o desejo de consumir cada vez mais mercadorias impostas como necessárias. Dessa forma, o caráter irracional, “sua produtividade e eficiência, sua capacidade para aumentar e disseminar comodidades, para transformar resíduos em necessidade e a destruição em construção” (MARCUSE, 1973, p. 29), torna-se racional. O fato de o sujeito não consumir, de se recusar a entrar na esfera de consumo exagerado, o deixa à margem da sociedade. Ser racional é consumir e identificar-se necessariamente com o que lhe é imposto para consumo, pois “as criaturas se reconhecem em suas mercadorias; encontram sua alma em seu automóvel, hi-fi, casa em patamares, utensílios de cozinha” (MARCUSE, 1973, p. 29).
É evidente, em todo o desenvolvimento deste tópico, a percepção do caráter totalitário da sociedade industrial, e como a indústria de bens de cultura coaduna com a manutenção dessa totalidade. Ao oferecer uma imensa gama de mercadorias disponíveis para o consumo, a sociedade industrial proporciona a ilusão da liberdade e a introjeção de mercadorias a todo instante, conclama a criação de novas necessidades materiais e intelectuais eficazes contra o posicionamento crítico da sociedade em questão. O totalitarismo assume uma característica abstrata, dá-se agora por meio da livre escolha entre mercadorias e serviços, impossibilita o surgimento de uma subjetividade autônoma constantemente destroçada pelas novas mercadorias que prometem suavizar a luta pela existência, pelo constante aparecimento de falsas necessidades, pelo progresso técnico como única racionalidade possível.
Para finalizar, convém destacarmos a abordagem da obliteração da dimensão interior por parte da ideologia imposta como racional pela sociedade industrial. A esse respeito, Marcuse subentende a existência de uma dimensão interior distinta e antagônica da realidade, o que dá a idéia de uma “liberdade interior”, ou, nas palavras do filósofo, “a produção e a distribuição em massa reivindicam o indivíduo inteiro e a psicologia industrial deixou de há muito de limitar-se à fábrica” (MARCUSE, 1973, p. 30-31). O resultado disso é a identificação imediata do indivíduo com a sociedade. A dimensão interior é incapaz de resistir e acaba por sucumbir perante as necessidades da realidade. A perda da interioridade finaliza a possibilidade de um posicionamento crítico da racionalidade, o status quo cria raízes e silencia qualquer possibilidade de oposição.
Legitimando o diagnóstico pessimista de sua obra, Marcuse firma a posição de estabelecimento da realidade tecnológica como a única possível, onde o sujeito está alienado e completamente envolvido pela realidade alienada que o cerca e, ainda, pela “falsa consciência” que se funda como real. A dimensão da realidade é a única que “está em toda a parte e tem todas as formas” (MARCUSE, 1973, p. 31).
O pensamento unidimensional e a arte
Neste tópico apontaremos um diagnóstico das formas de controle exercidas pela sociedade unidimensional. Através da análise de sua lógica de dominação, que se baseia, sobretudo, no consumo das mercadorias e no cânone ideológico de glorificação do progresso técnico, realizaremos uma reflexão sobre a forma estética nessa sociedade administrada.
É válido ressaltar que em A Ideologia da Sociedade Industrial, Marcuse abandonou o otimismo da obra anterior, Eros e Civilização, em relação ao papel libertador da arte, para posicionar-se posteriormente, segundo a pesquisadora Imaculada Kangussu, em uma posição conformista em que “o otimismo desaparece e a ênfase recai na função conformista, cooptadora, levada a cabo, sobretudo, pela chamada por Adorno, indústria cultural.” (KANGUSSU, 2010, p. 206-207)
Este teor da arte em conformidade com o seguimento de uma sociedade pautada no progresso tecnológico, que dissemina uma falsa liberdade através do oferecimento de uma gama enorme de mercadorias descartáveis, servirá de pano de fundo para tratarmos dos pormenores da organização da sociedade diagnosticada por Marcuse em A ideologia da sociedade industrial. A partir do primeiro capítulo da obra, intitulado “As Novas Formas de Controle”, o filósofo inicia seu diagnóstico da sociedade industrial colocando em questão a primazia do oferecimento da liberdade pautada no progresso tecnológico. Segundo Marcuse (1975), a máxima dessa sociedade é oferecer uma falsa liberdade democrática racional que suprime a individualidade e funda-se na mecanização dos desempenhos4..
A sociedade industrializada administra e institucionaliza a liberdade, os direitos e a consciência dos indivíduos na direção do seu empreendimento de dominação, ou, nas palavras de Marcuse:
Liberdade de pensamento, liberdade de palavra e liberdade de consciência foram – assim como o livre empreendimento, que elas ajudaram a promover e proteger – idéias essencialmente críticas destinadas a substituir uma cultura material e intelectual obsoleta por outra mais produtiva e racional. Uma vez institucionalizados, esses direitos e liberdades compartilham do destino da sociedade da qual se haviam tornado parte integral. (MARCUSE, 1973, p. 23)
Mas qual é esse destino da sociedade ao qual estão inclusos a institucionalização da liberdade e dos direitos do indivíduo? A premissa artística enquadra-se nesta institucionalização? Estas e outras questões surgem numa primeira leitura da obra marcuseana, portanto, cabe-nos delinear a lógica de funcionamento desta sociedade antes de continuar nos pormenores destas institucionalizações. A crescente sociedade industrial pode ser tida como fruto do processo de racionalização Iluminista, ou seja, a partir da dissolução do mito e da superação do homem em relação à natureza, o entendimento, que venceu a superstição mitológica, assume o papel principal de busca por conhecimento do ser humano. Nesse sentido, o progresso do entendimento está intrinsecamente relacionado a um processo de elevação da técnica, da experiência científica, e de uma racionalização objetiva, de modo que a sociedade industrial pauta-se no progresso desta razão objetiva, onde tudo é passível de quantificação. Assim, este modelo que utiliza a razão como um instrumento para o progresso material é imposto em todas as esferas da atividade social do ser humano, de maneira que “quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz.” (ADORNO & HORKHEIMER, 2006, p. 41).
Em outras palavras, tal como a redução da liberdade e dos direitos dos indivíduos a uma administração da sociedade pautada na razão instrumentalizada ocasiona danos severos à subjetividade, a própria razão que legitima esses atos compactua com a regressão de todas as esferas humanas ao ditame do capital. Nesse ponto, Marcuse entra na questão sobre o aparato técnico e social, produzido por esta lógica de dominação da razão instrumental, a fim de delimitar as divisões da atuação das máximas progressistas tecnológicas nos âmbitos da economia, da política e da cultura. Segundo ele, “o aparato impõe suas exigências econômicas e políticas para a defesa e a expansão ao tempo de trabalho e ao tempo livre, à cultura material e intelectual” (MARCUSE, 1973, p. 24), de modo que a organização da sociedade capitalista industrial possui a tendência de tornar-se totalitária, uma vez que atua através da manipulação dos interesses e das necessidades dos indivíduos que a compõe.
O filósofo enfatiza que toda a organização social pauta-se em uma espécie de culto em torno do crescente progresso técnico e tal progresso afirma-se pela exibição do aparato tecnológico e pelo êxito da produtividade científica e mecânica à disposição dessa organização socia5l.. Marcuse atenta para o movimento constante deste aparato em direção ao controle intensivo da subjetividade através da introjeção de novas necessidades materiais e intelectuais que atuam, por sua vez, como a mais eficiente forma de controle da liberdade subjetiva. Essas novas necessidades possuem um papel importante, senão central, na manutenção do status quo da sociedade industrial. É através delas que a base social do consumo é perpetuada e sua repressão é exercida, pois o sujeito não pode sequer decidir entre as suas necessidades vitais e as novas necessidades que aparecem muito mais atrativas. Desse modo, o consumo dessas novas necessidades é constantemente exigido pelo aparato tecnológico, que envolve o sujeito e coopta sua individualidade para o processo de produção material. Assim, toda a sua possibilidade de liberdade individual resume-se ao consumo e identificação com as novas necessidades, tornando, aparentemente, esse aparato tecnológico como o sistema mais racional possível, mas que, na verdade, esconde por trás de si o duro processo que envolve sua fascinação irracional, a fim de que ele consuma o máximo de mercadorias possíveis. Isso transforma essas novas necessidades falsas em necessidades sem as quais o sujeito não seria capaz de perpetuar a sua existência. Para Marcuse, a racionalidade deste processo e a repressão que dele é fruto estão intimamente ligadas, pois
Quanto mais racional, produtiva, técnica e total se torna a administração repressiva da sociedade, tanto mais inimagináveis se tornam os modos e os meios pelos quais os indivíduos administrados poderão romper sua servidão e conquistar sua própria libertação. (MARCUSE, 1973, p. 28)
A racionalidade técnica impede a tomada de consciência do indivíduo que não dá conta de sua posição de servidão, sempre impedido de tomar consciência pelo predomínio das necessidades e possíveis satisfações que a sociedade industrial oferece. A liberdade do indivíduo é, assim, constantemente sufocada pela velocidade com que as necessidades surgem, e as promessas de novas satisfações irrompem com força total em sua realidade material. Dessa forma, respondemos a pergunta feita anteriormente que questiona se o destino do indivíduo nesta sociedade é tornar-se um conformista em relação ao progresso tecnológico, onde sua liberdade e seus direitos são instituídos e limitados pela administração técnica. Agora, cabe-nos responder se a premissa artística também se enquadra nesta institucionalização.
A partir da tentativa de sistematização dessa sociedade, da análise da continuidade da obra marcuseana, e da revelação de sua terceira posição6. em relação à forma estética, convém-nos apontar que a arte, no período de terceira posição marcuseana, compactua com a administração repressiva da sociedade industrial e tem seu potencial libertador e questionador reduzido perante o avanço da técnica.
Neste viés de conformidade e utilização da arte como parte do aparato mantenedor da sociedade industrial, é válido destacarmos as considerações de Marcuse acerca da difusão em massa de uma ideologia da cultura dominante e a existência de uma indústria de diversões. O processo de produção coopta as vertentes da criação imaginativa para seus propósitos, de maneira que a indústria da propaganda atua criativamente como difusora de estilos de vida que compactuam com o status quo, glorificando o ideal do progresso tecnológico e oferecendo massivamente uma ideologia de consumo, que por fim, tal como um pregador, prega a identificação do indivíduo com aquilo que consome. Em relação à indústria de diversões, devemos destacar a imensa propagação de filmes que exaltam a ideologia da sociedade dominante7. e, principalmente, sua função de aproximar o âmbito do trabalho ao âmbito da vida privada na tentativa de administrar o tempo livre do sujeito. E isso é feito de maneira para que o tempo livre se confunda com o tempo de trabalho e o sujeito não tenha tempo para refletir sobre a sua condição de existência e, muito menos, para se posicionar de maneira crítica contra a sociedade industrial.
Após essas reflexões, fica patente a mudança de visão do filósofo relativa à sua obra anterior e a obra em questão, A ideologia da sociedade industrial, em que a arte perde sua capacidade emancipadora e encontra-se cooptada ao aparato tecnológico de dominação.
Linguagem na sociedade industrial
No quarto capítulo de A ideologia da sociedade industrial, Marcuse realiza um diagnóstico sobre o universo linguístico que circunda o indivíduo na sociedade industrial, onde há a abertura da utilização da palavra como propaganda. Aqui, segundo o filósofo, “A Consciência Feliz – a crença em que o real seja racional e em que o sistema entrega as mercadorias – reflete o novo conformismo traduzida em comportamento social.” (MARCUSE, 1973, p. 92). Essa “nova crença” que fundamenta a posição apática do sujeito perante a sociedade administrada é fortemente disseminada pelas evoluções criativas no âmbito da linguagem da propaganda. Dessa forma, a linguagem da propaganda caracteriza-se como uma linguagem que traduz o pensamento unidimensional, impondo modos de comportamento e propagando a ideologia de conformidade e aceitação aos cânones do bem-estar proporcionado pelo progresso tecnológico. Nas palavras de Marcuse, é uma “linguagem de administração total” (MARCUSE, 1973, p. 93). Essa linguagem atua como repelente de elementos, de estruturas e de movimentos não conformados com a sociedade unidimensional. A capacidade incrível de operacionalização da palavra aparece como a característica marcante da linguagem unidimensional, em que se destaca sua habilidade de moldar, através da locução, os comportamentos sociais.
É por meio das palavras que ordens de consumo são ditadas, ideologias são aceitas e difundidas. Com o mínimo possível de complexidade, a sociedade industrial operacionaliza a palavra, a “torna o conceito sinônimo do conjunto de operações correspondentes” (MARCUSE, 1973, p. 94), transforma o simbólico em sinônimo da coisa. Nesse sentido, a linguagem atinge uma concepção behaviorista, ou seja, baseia-se na operacionalização da linguagem e na tentativa de determinar os comportamentos. De acordo com Marcuse,
Aquele [o conceito] não tem qualquer outro conteúdo que não o designado pela palavra no uso anunciado e padronizado, esperando-se que a palavra não tenha qualquer outra reação que não o comportamento anunciado e padronizado. A palavra se torna um clichê e, como tal, governa a palavra ou a escrita; assim, a comunicação evita o desenvolvimento genuíno do significado. (MARCUSE, 1973, p. 94-95)
A linguagem unidimensional nomeia a coisa não somente através de seu modo de funcionar, mas fecha o significado, excluindo outros modos de nomear. O conceito, assim como a linguagem, é fechado, impedido de designar algo que não seja conforme os fins ideológicos da sociedade dominante. A vitória da unidimensão tecnológica se dá pelo fechamento do espaço do uso crítico da linguagem. Em síntese, na sociedade unidimensional não existe espaço para o discurso que busca posicionar-se contra as determinações da sociedade vigente, de modo que a unificação dessa linguagem em um denominador comum (a deflagração da realidade como a melhor e a única possível) é o atestado máximo da vitória do controle sobre indivíduo.
Esse universo linguístico é marcado pela união de termos opostos que funciona como um princípio da lógica de dominação, em que expressões como “bomba limpa” e “garoa radioativa inofensiva” são “as criações extremas de um estilo normal” (MARCUSE, 1973, p. 96)8.. Seguindo o raciocínio do filósofo, esta unificação de termos opostos atenta para a característica dominante do estilo linguístico comercial e político, que se torna imune ao discurso crítico e à potência de recusa. Para Marcuse, “ao exibir suas contradições como sinal de sua veracidade, esse universo da locução se fecha contra qualquer outra locução que se apresente em seus próprios termos” (MARCUSE, 1973, p. 97). Em outras palavras, o caráter irracional linguístico dessa unidade aparece como força contra os discursos que visam criticá-la.
Adiante, Marcuse irá apontar uma reflexão sobre a técnica linguística da indústria da propaganda, na qual a palavra e a escrita são construídas com a finalidade de causar impacto e transmitir a imagem que rapidamente penetra na subjetividade, incitando a identificação com determinadas ideologias e o consumo constante de novos bens materiais. Desse modo, as expressões propagandísticas assumem a forma de ordenações sugestivas, essas expressões adotam o caráter de prescrições, fazendo com que toda a comunicação propagandista assuma essa forma mais elevada: a constituição de um “caráter hipnótico” (MARCUSE, 1973, p. 98). Assim, a linguagem da propaganda promove uma autoidentificação do sujeito com o discurso, transformando esse discurso ideologicamente manipulado em principal formador da constituição do indivíduo, promovendo uma identificação passivamente aceita de sujeito e função, sujeito e consumo e, principalmente, sujeito e sociedade.
Nota-se que a linguagem da sociedade unidimensional adota uma postura funcional e anti-histórica atém-se aos fatos imediatos, e repudia a reflexão histórica dos acontecimentos. Deste modo, atenta contra uma constituição dialética da linguagem, pois não convém para a sociedade industrial que o sujeito torne-se ciente de seu papel como agente transformador da história. Sendo assim, essa linguagem dominante não possibilita de maneira nenhuma a reflexão, pelo contrário, ela se fecha em seu conteúdo totalitário. Ou, nas palavras de Marcuse, “A linguagem fechada não demonstra nem explica – comunica decisão, sentença, comando.” (MARCUSE, 1973, p. 106).
A conquista da consciência infeliz: dessublimação repressiva
Marcuse irá abordar, nesse capítulo, como a evolução progressista de uma racionalidade tecnológica pautada nos ditames do Capitalismo, tendo por fim último a maximização dos lucros e exploração total da força de trabalho, liquida com a possibilidade de oposição realizada na dimensão estética, na “cultura superior”, onde a realidade refuta e ultrapassa a cultura, transformando-a em um mecanismo subjugado às regras da sociedade dominante. Dessa forma, a cultura perde sua capacidade de oposição à realidade estabelecida e funda-se como instrumento mantenedor da dominação social.
A realidade social dominadora e repressiva capta a cultura, minando a possibilidade da constituição de outra dimensão opositora e antagônica à realidade dominante. A realidade liquida o distanciamento necessário para a devida apreciação da obra de arte ao proporcionar a sua reprodução e exibição maciçamente, liquidando também o poder transcendente de elevação a outra dimensão contestadora da realidade estabelecida. Essa aproximação transforma a cultura superior em mercadoria.
Com a evolução tecnológica foi necessário o desenvolvimento de meios que impossibilitassem a contestação do sistema social dominante, mistificando as massas através da técnica da reprodução e consumo, colocando-as satisfeitas e felizes diante da realidade dominadora.
O homem se torna unidimensional, passa a fazer parte totalmente de uma sociedade dominadora, perde seu caráter subjetivo que antes encontrava possibilidade de realização na dimensão cultural, funda seus pés em uma dimensão de falsas necessidades. Para Marcuse, essa materialização da cultura superior e a sua cooptação pela realidade unidimensional dominadora impossibilitam o homem de recordar-se de sua condição partida, de sua consciência infeliz, de sua posição frente as “falsas promessas”, da divisão entre matéria e espírito. O homem se torna ingênuo, alienado, se identifica com a totalidade repressiva da sociedade, aceita sua condição de dominado e explorado, adquire uma consciência que aceita feliz a dominação.
Marcuse aborda, ainda, outro processo que auxilia na destruição dos elementos de oposição presentes na cultura superior. Trata-se do processo de dessublimação da cultura. O filósofo parte da concepção de sublimação descrita por Freud como um processo que fortalece o sujeito ao desviar as pulsões dos seus alvos primeiros para alvos mais elevados, aceitos socialmente, onde a pulsão não é reprimida, mas encontra uma maneira aceita socialmente para se expressar. Segundo Freud, a sublimação é, por excelência, a atividade artística, o refúgio para as pulsões. Ainda para Freud, a sublimação possui um caráter repressivo, pois ao se desviar do seu alvo primário ela atinge a possibilidade de exprimir-se socialmente, uma vez que a sociedade é repressiva. Para Marcuse, a sublimação freudiana pode ser desdobrada em sublimação desrepressiva, em que a pulsão é ampliada, e dessublimação repressiva, que implica uma retirada dos impedimentos das pulsões e a realização imediata dessas pulsões. Esta é a adotada pela sociedade dominante.
Parece que tal dessublimação repressiva é de fato operante na esfera sexual e que aqui, como na dessublimação da cultura superior, opera como subproduto dos controles sociais da realidade tecnológica, que amplia a liberdade enquanto intensifica a dominação. (MARCUSE, 1973, p. 82)
A dessublimação que implica a retirada dos impedimentos para a realização imediata das pulsões acarreta uma institucionalização desta da sexualidade. A dessublimação institucionalizada dispõe de meios para a realização da sexualidade condicionada aos fatores aceitos socialmente, que tem por objetivo manter a posição dominante sobre o povo. Podemos tomar como exemplo disso o advento da revolução sexual que, através da evolução tecnológica dos métodos contraceptivos, ocasionou uma libertação das genitálias – não da sexualidade (o Eros) – o que é extremamente interessante para a sociedade dominante, já que, ao descarregar a libido, o sujeito se conforma com a sua situação e não a questiona.
Com a dessublimação, a arte é arrasada, sendo transformada em cultura popular, onde a satisfação mediada pela obra é substituída por uma satisfação imediata. A arte perde seu caráter de sublimação com a sua dominação total pela realidade social e, com o fim de sua possibilidade bidimensional, sua principal potência é perdida. A potência alienante da arte vai se perdendo na sociedade dominante extremamente industrializada. Essa alienação artística é positiva para Marcuse, pois ela é a alienação da sociedade alienada pelo sistema capitalista. A possibilidade da bidimensionalidade que a arte oferece (como a fuga da sociedade dominante e a realização das pulsões reprimidas) é fechada. O local da negatividade, da contestação, e da recusa de dominação, é fechado. As obras de arte perdem, assim, seu lugar.
A recusa da sociedade é absorvida pela própria sociedade dominante tecnológica que ela contesta. Por exemplo, imaginemos um movimento artístico que surge aquém da sociedade dominante e realiza uma crítica a essa sociedade, expondo suas contradições e posicionando-se contra a indústria cultural. Esse movimento até consegue reunir alguns seguidores, mas chegará o momento em que a própria indústria cultural irá cooptar esse movimento e o transformar em um de seus produtos. O avanço tecnológico e financeiro capta as consciências, faz surgir um universo racional tecnológico que, com seu aparato, bloqueia qualquer fuga da realidade. Nele, a liberdade da recusa é reprimida e sua compensação se torna o sucesso financeiro.
Por fim, para Marcuse, a verdade está na dimensão da obra de arte, e a unidimensionalização é uma falsa reconciliação. A realidade tecnológica termina com qualquer possibilidade de reconciliação entre o real e o possível, uma vez que a realidade invalida a forma e a própria essência da arte. O caráter alienado da obra de arte é capaz de expressar a verdade presente na forma estética, pois a arte representa a alienação da sociedade alienada.
A imaginação, a arte e a grande recusa.
Nesse tópico, pretendemos analisar o conceito marcuseano de Grande Recusa, as possíveis interseções deste conceito com a esfera artística e, principalmente, o papel da fantasia na obra de Marcuse. Procuraremos entender o conceito de Grande Recusa como uma não aceitação da racionalidade instituída, como uma crítica da administração estabelecida pela sociedade industrial e pautada no progresso tecnológico e, ainda a Grande Recusa como um “protesto contra o estado de coisas dado, [que] só pode ser expressa livremente na arte”. (KANGUSSU, 2008, p. 150)
A Grande Recusa se funda como uma possível contestação da sociedade vigente, tendo sua realização privilegiada na esfera artística. Marcuse transforma a Grande Recusa em uma atitude radical diante do mundo pautado na lógica da produção capitalista. Essa atitude radical possui uma relação entrelaçada com a fantasia, pois “a potência cognitiva da fantasia reside em sua capacidade de manter a memória e as aspirações de realização integral e a verdade da Grande Recusa.” (KANGUSSU, 2008, p. 174).
A fantasia possui um papel importante no desenvolvimento teórico de Marcuse em Eros e Civilização, obra anterior à Ideologia da Sociedade Industrial. Nela, o filósofo designa um local privilegiado para a instância da fantasia. De acordo com ele,
A fantasia desempenha uma função das mais decisivas na estrutura mental total: liga as mais profundas camadas do inconsciente aos mais elevados produtos da consciência (arte), o sonho com a realidade; preserva os arquétipos do gênero, as perpétuas, mas reprimidas idéias da memória coletiva e individual as imagens tabus da liberdade. (MARCUSE, 1999, p. 132-133)
É válido lembrar que em Eros e Civilização a arte possui um papel diferente do assumido em A ideologia da sociedade industrial. Naquela, a arte mantém a capacidade de emancipação perante a realidade e, através da instância da fantasia, é capaz de rememorar o momento anterior à introjeção do princípio de realidade, ou seja, rememora um momento anterior à cisão do aparelho psíquico. Assim, a instituição da fantasia como possibilidade, através de seus produtos (as obras de arte), é capaz de suscitar para uma realidade diferente, menos repressiva que a da realidade efetiva. Para Marcuse, diferentemente de Freud, a imaginação constitui uma recusa à aceitação das limitações da realidade vigente. Desse modo, já nos é possível apontar, em Eros e Civilização, mais especificamente no capítulo “Fantasia e Utopia”, a relação do conceito de Grande Recusa com a arte – produto mais elevado da fantasia. “Essa Grande Recusa é o protesto contra a repressão desnecessária, a luta pela forma suprema de liberdade – ‘viver sem angústia’”. Mas essa ideia só poderia ser formulada sem punição na linguagem da arte. (MARCUSE, 1999, p. 139)
Fica-nos clara, em Eros e Civilização, a reinterpretação marcuseana de Freud, suscitando um lugar privilegiado para a fantasia na busca por caminhos contrários à conformidade com a ordem dominadora da sociedade. Nesse sentido, a fantasia aparece como uma cesura no aparelho psíquico, que permanece livre do julgo do princípio de realidade. Já em A Ideologia da Sociedade Industrial, Marcuse adverte que “a imaginação não permaneceu imune ao processo de espoliação.”9 . (MARCUSE, 1973, p. 229). Nesse sentido, fica-nos clara a transformação da posição marcuseana em relação à forma estética.10 O filósofo é, de início, otimista, e, posteriormente, conformista.
Em A ideologia da sociedade industrial, Marcuse defende que na sociedade industrial as distâncias entre a realidade e a fantasia foram perigosamente reduzidas, o que ocasionou uma ruptura ao poder da imaginação de posicionar-se contra a realidade estabelecida. Isso ocorre de tal forma que “Ao reduzir e até cancelar o espaço romântico da imaginação, a sociedade forçou a imaginação a se experimentar em novos terrenos, nos quais as imagens são traduzidas em aptidões e projetos históricos.” (MARCUSE, 1973, p. 228). Assim, a participação da imaginação é reduzida simplesmente ao processo de produção material. O que antes estava “fora do jogo”, conseguia atestar sua invalidade no campo da produção de necessidades materiais e, ainda, comprometia-se apenas com a sua incrível potência da produção de realidades fantásticas, é, agora, subsumido pela lógica da razão técnica, onde, segundo Marcuse, a ideia romântica de “ciência da Imaginação” assume, cada vez mais, um aspecto empírico. (MARCUSE, 1973, p. 229)
Na sociedade industrial, a imaginação é cooptada e lhe é inferido um caráter científico e racional, onde ela, juntamente com o sistema material, milita contra a criação de um novo sujeito que, por sua vez, é capaz de posicionar-se criticamente perante as determinações da sociedade tecnocrata. O poder e eficiência desta sociedade repousam nos métodos conjuntos de realidade e imaginação que impossibilitam a formação deste sujeito. De fato, é evidente a ampliação do caráter totalitário dessa sociedade, mas não é um totalitarismo conhecido e, sim, um totalitarismo sutil, que lida com a cooptação da subjetividade individual, não permite a criação de sujeitos capazes de questionarem sua lógica de funcionamento e, a todo instante, disfarça seu caráter totalitário com o oferecimento em massa de uma falsa liberdade pautada na capacidade de consumo. Em síntese, é um totalitarismo que administra, através de seu controle ideológico e de cooptação da imaginação, tanto a subjetividade quanto a vida material do sujeito. Em relação a isso, Marcuse afirma que,
Em sua fase mais avançada, a dominação funciona como administração. E nas áreas superdesenvolvidas de consumo em massa, a vida administrada se torna a boa vida de todos, em defesa do que os opostos estão unidos. Esta é a forma pura de dominação. (MARCUSE, 1973, p. 234)
É importante destacar que, anteriormente, Marcuse classificara a fantasia como um lugar especial na psique humana. Ela é capaz de recordar o momento em que o ser humano se constitui somente do princípio de prazer. Com a introjeção do princípio de realidade e a cisão do aparelho psíquico, a fantasia atua como a rememoração do momento de supremacia do princípio de prazer. Na sociedade industrial ocorre uma primazia total da realidade sobre a fantasia, fazendo com que até mesmo as satisfações das necessidades de prazer sejam controladas pela realidade.
Convém ressaltar, ainda, que nesse tópico tratamos de um trânsito entre os conceitos de fantasia, grande recusa e arte, baseados principalmente no nono capítulo de Eros e Civilização e da conclusão de A ideologia da sociedade industrial. Portanto, é viável finalizá-lo não com a afirmação ostensiva do caráter pessimista de Marcuse entre 1955 a 1964, mas, sim, com a ponta de esperança com a qual o filósofo encerra A ideologia da sociedade industrial: exaltando a posição daqueles que recusaram os ditames da sociedade totalitária e permaceram críticos perante a eles:
A teoria crítica da sociedade não possui conceito algum que possa cobrir a lacuna entre o presente e o seu futuro; não oferecendo promessa alguma e não ostentando êxito algum, permanece negativa. Assim ela deseja permanecer leal àqueles que, sem esperança, deram e dão sua vida à Grande Recusa. (MARCUSE, 1973, p. 235)
Conclusão
O pensamento de Marcuse em relação à arte apresentou uma constante variação em diversas posições. A proposta de analisar o papel da arte em A ideologia da sociedade industrial é por si só um desafio. Nessa obra, encontramos um Marcuse pessimista quanto à capacidade de mudanças estruturais na sociedade vigente. Sociedade essa pautada em uma intensa louvação dos avanços técnico-científicos, permeada por uma autoafirmação ideológica vista de dois lados e com um fortíssimo viés totalitário. Sendo assim, não é de se estranhar que a posição do filósofo, ao diagnosticar essa sociedade, soe de maneira extremamente pessimista.
Marcuse, nessa obra, transita entre as sociedades totalitárias capitalistas e comunistas, apresentando os principais aspectos que caracterizam ambos os modos de governo. Ele aponta como a racionalidade científica e progressista pauta-se como único modelo possível de racionalidade, unidimensionalizando a sociedade sob a batuta de um único maestro, o princípio de realidade potencializado pela recorrente busca de desempenho social. A sociedade industrial passa a determinar todos os campos da vida do sujeito, atua sobre sua subjetividade sutilmente, cooptando-a para si com a introjeção de juízos, findando a separação entre realidade e imaginação, induzindo determinadas máximas afirmativas de sua superioridade baseadas na premissa de que diminui as carências através da entrega de mercadorias. Dessa forma, ela legitima uma falsa liberdade, pois, através das inúmeras escolhas possíveis de mercadorias, esconde-se, e muito bem, um imenso índice de irracionalidade desse processo de produção material.
Na perspectiva do campo artístico, a premissa anterior da arte como a capacidade de suscitar outra dimensão, mais prazerosa, diferente da realidade, é deixada de lado, pois, na sociedade industrial, até mesmo a imaginação torna-se coisificada. A arte torna-se uso do aparato técnico de dominação, a tecnologia põe a coloca a serviço da ideologia dominante. Dessa forma, o caráter negativo da obra de arte perde-se em meio à positividade da crescente indústria que a transforma em puro entretenimento.
Como dito anteriormente, a perspectiva marcuseana divide-se em quatro momentos. A Ideologia da Sociedade Industrial reflete sua posição conformista, o que não permanecerá em seus escritos futuros. No artigo A arte na sociedade unidimensional, publicado em maio de 1967, ele diz:
Assim, desde os anos 30, encontramos a busca intensificada e metódica de uma linguagem nova, de uma linguagem poética como linguagem revolucionária, de uma linguagem artística como linguagem revolucionária. Isso implica o conceito de imaginação como faculdade cognitiva, capaz de transcender e romper o feitiço do establishment. (MARCUSE, 2005, p. 260-261)
É visível a retomada de um local privilegiado para a faculdade da imaginação, mas o filósofo enfatiza que somente uma imaginação não cooptada pelo establishment pode tornar-se produtora de uma arte revolucionária. Contudo, essa perspectiva de exaltação da posição da arte continua dominante no pensamento marcuseano e deságua em sua última obra: A Dimensão Estética. Nela, a capacidade revolucionária da arte de posicionar-se contra a unidimensionalização da sociedade adquire sua forma apoteótica em uma crítica à ortodoxia marxista.
Assim, concluímos esta monografia apontando para a relevância do diagnóstico marcuseano da sociedade de sua época, mas não pelo seu alto teor pessimista, e, sim, pelo rigor da análise que expõe os mecanismos de controle material e subjetivo exercidos pela sociedade pautada no progresso técnico-científico. Recorremos, também, novamente, ao final de A ideologia da sociedade industrial, onde um sorriso de esperança brilha perante o totalitarismo da sociedade por meio daqueles que perpetuaram a Grande Recusa. Por fim, com essa ponta de esperança marcuseana, remetendo às manifestações de 1968, conclamamos a todos que coloquem a “Imaginação no Poder”.
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Notas
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