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Retórica e justiça: aprofundamento aristotélico de indicações platônicas
Rhetoric and justice: aristotle’s deepening from plato’s indications
Retórica e justiça: aprofundamento aristotélico de indicações platônicas
Griot: Revista de Filosofia, vol. 4, núm. 2, pp. 84-95, 2011
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 13 Outubro 2011
Aprovação: 14 Novembro 2011
Resumo: Este artigo visa construir uma relação direta entre Aristóteles e Platão, no que respeita à sua Retórica e à primeira parte do Górgiasde Platão. Este Diálogo de Platão forneceu um aspecto fundamental e relevante: a retórica tem uma relação com o que é justo e injusto e pode ser usada com justiça se o orador for justo. Mas no Diálogo, Platão revela pela boca de Sócrates certo ceticismo frente a esta possibilidade da retórica. Mas seria possível ver, que Aristóteles tentou demonstrar em sua Retórica um caminho para a realização desta possibilidade? Este artigo diz sim a esta questão, e procura mostrar que Aristóteles estabeleceu as condições para esta realização.
Palavras-chave: Platão, Aristóteles, Retórica, Justiça.
Abstract: This article aims to construct a direct relation between Aristotle and Plato, in respect to his Rhetoricand the first part of Plato’s Gorgias. This Plato’s Dialog has furnished a fundamental and relevant aspect: the rhetoric has a relation with that, what is just or unjust, and it can be used with justice if the rector is just. But in Dialog, Plato reveals by Socrates’s mouth a relative skepticism with this rhetoric’s possibility. However, could be possible to see, that Aristotle tried to demonstrate in his Rhetoric a way to realize this possibility of rhetoric? This article says yes to this question, and it tries to show that Aristotle has established the conditions for this realization.
Keywords: Plato, Aristotle, Rhetoric, Justice.
Introdução
De acordo com os estudos de Werner Jaeger, é sabido, a partir da carta de Aristóteles escrita ao rei Filipe da Macedônia, que Aristóteles, tendo vivido 20 anos na companhia de Platão na Academia, chegou a ela por volta do ano 368/7 aos 17 anos (cf. JAEGER, 2002, p. 19). Neste sentido, chega ali justamente ao fim da segunda fase do pensamento platônico, quando a maior parte daquilo que Platão pensara a respeito da Retórica, e que podemos ver expressa principalmente em seus diálogos da segunda fase, intitulados Eutidemo e Górgias, já haviam sido pensados, e que se haviam transformado numa verdadeira polêmica anti-retórica que vai ser abordada no Fedro (cf. PLEBE, 1978, p. 21-34), que data do final dessa segunda fase, justamente no tempo em que Aristóteles chega à Academia. Segundo o testemunho de Julián Marias, “é evidente que ainda nos tempos de velhice de Platão, na Academia se considerava o Górgias como o texto definitivo do mestre contra a Retórica” (TOVAR, 1999, p. XXII). Contudo, faz-se importante notar que o Górgias não se tornara somente um parâmetro de pensamento anti-retórico; fora também um diálogo que, motivado por duas grandes figuras, quais sejam Sócrates e Górgias, fornecia o aspecto segundo o qual a retórica podia ser considerada de maneira relevante, caso fosse reconduzida e experimentada em sua essência própria. Parecia tornar-se claro para os membros da Academia não somente os problemas da retórica, mas também sua relevância ética e política se por ventura mantivesse a conexão própria que a mesma deveria ter com a justiça. Por isso, segundo meu parecer, torna-se relevante correr à procura de certa conexão entre retórica e justiça, que Platão deixa esboçar no seu diálogo Górgias, e que acaba por se fazer manifestamente presente na Retórica de Aristóteles.
Platão: a essência da retórica no Górgias e seus problemas práticos
A que conclusões chegam Sócrates e Górgias, as personagens principais do diálogo platônico, na primeira parte do Diálogo Górgias? Platão coloca na boca de Górgias o aspecto fundamental da retórica, isto é, aquilo que a torna essencial e seu problema: a retórica é exposta como arte de persuadir a respeito do que se crê (do que se pode tornar digno de confiança2.). É assim que Górgias se exprime no diálogo: “A persuasão é, de fato, a finalidade precípua da retórica” (PLATÃO, Górgias, 453a)3.; através desta arte se procura “convencer os juízes no tribunal, os senadores no conselho e os cidadãos nas assembléias ou em toda e qualquer reunião política” (PLATÃO, Górgias, 452e). Tal arte é, pois, aquela que “se exerce nos tribunais e demais assembléias” e “se relaciona com o justo e o injusto” (PLATÃO, Górgias, 454a), que deve, porém, “ser usada com justiça” (PLATÃO, Górgias, 457b). E a isto que Platão faz ser o parecer de Górgias a respeito da retórica, ele acrescenta, pela boca de Sócrates, que, na medida em que a pessoa que aprende retórica deve aprender a conhecer o que é justo e injusto, “de acordo com esse princípio, é justo quem aprendeu o que é justo” e “será, portanto, forçoso que o orador seja justo e, como tal, queira praticar ações justas”, de tal modo que “o orador necessariamente terá de ser justo” (PLATÃO, Górgias, 457b).
A retórica mostra-se, assim, portanto, como uma arte de persuasão em torno da crença sobre o que é justo ou injusto próprio de um orador em tribunais e assembleias que saiba o que é justo e, sendo justo, enquanto retórico, não queira praticar nenhuma injustiça.
Estas são as conclusões a que chega o diálogo entre Sócrates e Górgias na primeira parte do Diálogo (PLATÃO, Górgias, 447a – 461a). Elas definem o que seria para Platão a essência da retórica e isto nos fornece certas indicações de aspectos da retórica que Aristóteles certamente levará em consideração ao constituir a sua Retórica. Nesse sentido, a retórica e aquele que a utiliza ou perfaz possui um tropos, que convém pensar; possui o caráter de uma intenção, de uma atitude, de não querer praticar injustiça. A disposição da conduta (h=qoj) e do caráter (tropoj) torna-se, pois, essencial na retórica.
Pode-se de certo modo perceber que este é o ponto de partida de Aristóteles. Tentarei mostrar que é a partir desta compreensão do que deve ser a retórica que, então, Aristóteles a coloca num plano ético-político e a formula orientado pela seguinte pergunta: O que deve ser conhecido na retórica para que possa ser conduzida a esse caráter? Essa é a pergunta de Aristóteles. Este caráter é fundamentalmente ético e possui fins políticos. A retórica não é uma arte da fala em função de si mesma, mas está em função da política e é, desse modo, fundamentalmente ética4..
Platão deixa entrever, porém, uma série de problemas através do que Górgias postula como mau uso da Retórica. Fosse aquela a sua essência não haveria que trazer nenhum mal nem ser usada injustamente. É esta posição de Górgias que conduz à descrença socrática a respeito da retórica e que constitui a continuidade do diálogo que demonstra por parte de Platão certo ceticismo em relação às possibilidades da mesma de conduzir à justiça e os indivíduos a praticarem ações justas, e o faça vê-la muito mais como uma mera rotina (evmpeiri,a, ou experiência) para produzir prazer e satisfação a quem a usa independentemente de fazer o que seja justo.
Vejamos, pois, agora como Aristóteles toma aquele ponto de partida e pensa a sua retórica na perspectiva inicial enunciada por Platão através do diálogo entre Sócrates e Górgias.
Aristóteles: a essência da retórica e seu caráter prático
Aristóteles procura evitar o que eu chamaria de “ceticismo socrático” exposto no Górgias de Platão. Vendo que a disposição da conduta e do caráter torna-se essencial à retórica, ele procurará pensar sob que condições é possível que a retórica possa conduzir à justiça. Sua retórica se torna uma análise dessas possibilidades, na medida em que analisa fundamentalmente as virtudes do orador e as paixões dos ouvintes de que o orador precisa tomar conhecimento, se quer que seu discurso seja conducente à justiça. Trata-se de um conhecimento do h=qoj com vistas a uma justa construção política.
Do que se pode tornar digno de confiança e do que lhe favorece (pi,stij e h=qoj)
Segundo Aristóteles, o que se faz digno de crédito, de fé, de confiança, a crença (pi,stij), que é efetivamente digna de ser levada em consideração na fala do orador pelos que ouvem, é a demonstração, “pois damos crédito a tudo quando entendemos que algo está demonstrado”5 . (ARISTÓTELES, Retórica, A 1355a 5-6); mas no discurso retórico, que segundo ele consiste em ser “a faculdade de considerar em cada caso o que convém para persuadir” (ARISTÓTELES, Retórica, A 1355b 25-26), não segundo sullogismo,j, o que é próprio da dialektikh,, mas segundo evntu,mhma6., que conduz à construção das convicções próprias dos argumentos retóricos, é de fundamental importância a conduta (h=qoj) do falante, “pois damos mais crédito e antes de tudo às pessoas descentes” (ARISTÓTELES, Retórica, A 1356a 6-7). Além disso, pode-se dizer, segundo Aristóteles, kuriwta,thn e;cei pi,stin to. h=qoj, o que poderíamos traduzir da seguinte maneira: a conduta carrega dominantemente consigo a dignidade de confiança, a credibilidade.
E o que justamente o orador precisa ter para que seus argumentos retóricos possam ser de fato dignos de confiança?
Segundo Aristóteles, são três as causas pelas quais cremos além das demonstrações: fro,nhsij kai. avreth. kai. eu;noia, isto é, a ponderação (prudência, discernimento ou sabedoria prática), a virtude e o bom senso (ou bom juízo, benevolência) (cf. ARISTÓTELES, Retórica 1378a 9-10). A ponderação ou discernimento, que Aristóteles compreende já em sua Ética a Nicômaco como sendo uma virtude dianoética, é definido por ele no livro A da Retórica da seguinte maneira: fro,nhsij d v evsti.n avreth. dianoi,aj( kaq v h]n eu= bouleu,esqai du,nanqai peri. avgaqw/n kai. kakw/n tw/n eivrhme,nwn eivj euvdaimoni,an( isto é, “o discernimento ou prudência é uma virtude da inteligência mediante a qual se pode decidir acerca dos bens e males, que, como se tem dito, encaminha-se para a boa ventura, a felicidade” (ARISTÓTELES, Retórica, 1366b 21-23). A virtude é assim definida: vAreth. d v evsti. me.n du,namij( w`j dokei/( poristikh. avgaqw/n kai. fulaktikh,( kai. du,namij euvergetikh. pollw/n kai. mega,lwn( kai. pa,ntwn peri. pa,nta, ou seja, “a virtude é, segundo parece, o poder criador e conservador de bens, e a capacidade de fazer toda sorte de muitos e grandes benefícios acerca de tudo” (ARISTÓTELES, Retórica, 1366a 36sq).
O termo euvnoi,a tem no texto o sentido de fazer bom juízo do outro, algo como uma espécie de ter o outro em boa conta. Certamente é por esse significado do termo que a tradução de que nos utilizamos usou a palavra benevolência; este termo, porém, encobre o caráter do nou/j presente no termo euvnoi,a) Por isso optamos pela palavra bom senso. Aqui ela apenas aparece citada por Aristóteles e não anteriormente definida como as demais. A dianoi,a, própria do nou/j, tem de possuir sem dúvida no plano da ética o caráter de uma euvnoi,a, a fim de que a conduta do falante possa chegar a tornar-se digna de crédito pelo ouvinte. Ela tem o caráter de uma boa intenção, de um juízo reto por parte do falante em relação ao ouvinte, que não tende a promover o engano através do discurso simplesmente por interesse ou satisfação própria, mas deve estar plena de sinceridade e honestidade.
A compreensão do que é justo e bom que se manifesta na conduta
Percebe-se, pois, como o caráter ético está intimamente imbricado com a retórica. Aristóteles, assim como Platão deixa transparecer na primeira parte do Górgias, compreende que o retórico deve saber o que é justo e injusto. Essa visão está presente de tal modo que em sua Retórica torna-se tema de discussão o que são e qual o papel das virtudes e o conhecimento a respeito do que são os atos justos e injustos e suas causas (cf. ARISTÓTELES, Retórica, A 9, 1366b 1-23 e A 10-13).
O retórico deve conhecer para cada caso os caminhos do bem, da beleza e da justiça, as formas de governo para aconselhar, os móveis da ação e sua condição, o que caracteriza o ato justo e o ato injusto, e isto de tal maneira que se manifeste na conduta.
Para Aristóteles, ta. me.n ga.r h;qh fanera. kata. th.n proai,resin( h` de. proai,resij avnafe,retai pro.j to. te,loj( isto é, “as condutas se manifestam segundo as resoluções e a resolução está diretamente referida a um fim”7. (ARISTÓTELES, Retórica, A 8, 1366 a 15-16). O orador fala em favor de uma determinada coisa, e isto já tem de estar de certa maneira discernido e decidido em sua fala, de tal modo que se torne manifesto ao ouvinte o seu te,loj. Neste sentido, o que no fim das contas é que se torna fundamentalmente digno de crédito é o que nem é tanto o orador, mas aquilo em favor do que ele fala. Isto é o que segundo Heidegger caracteriza fundamentalmente a pi,stij (cf. HEIDEGGER, 2002, p. 118). Segundo ele:
Aristóteles diz: o lo,goj (discurso) precisa ser de tal modo considerado, “que torna digno de crédito o próprio orador”, que por si mesmo dá a impressão de que a coisa é de tal modo concorde. E Aristóteles diz expressamente: Através do próprio discurso e do modo como o próprio orador fala, o h=qoj precisa se tornar visível. A partir do próprio discurso precisa emergir a pi,stij) (HEIDEGGER, 2002, p. 120s)
A partir do momento em que Aristóteles vincula a manifestação do fim no discurso retórico à resolução que se revela na conduta do orador, ele nos coloca no inteiro plano da ação e da ética. É o fim da ação conducente ao bem e à boa-ventura que tem de se tornar patente no discurso retórico. Por isso o conhecimento do que é justo e injusto é tão importante na retórica.
A atenção ao momento oportuno e o conhecimento e anúncio de sua ocasião prática
O discurso retórico é guia da ação política. “À ação pertence o fato de que ela emerge ocasionalmente a partir de uma resolução.” (HEIDEGGER, 2002, p. 189), aqui, é importante notar o aspecto temporal da ação: “A ação mesma tem seu te,loj no kairo,j.” (HEIDEGGER, 2002, p. 189) Para Aristóteles, a relevância do kairo,j não está tanto no fato de que há um momento oportuno para cada discurso (coisa que também desenvolve na Retórica A 3, 1358b, 14-21). Kairo,j é sempre um momento em que o bem se exprime sob a forma do que é conveniente e útil. No Fedro, também Platão apresenta o horizonte em que se pode tematizar na retórica a questão do tempo como kairo,j8. (cf. PLATÃO, Fedro 272 a) Isto se remonta a Górgias que teria justamente pensado a oportunidade vinculada ao discurso retórico como o conhecimento das ocasiões quando se deve falar ou calar9.. Aristóteles vai mais longe quando devolve ao conceito seu horizonte propriamente ético e político, que certamente já era premente na máxima de Pítaco: kairo.n gnw/qi, isto é: “Conhece a oportunidade” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vitae Philosophorum I, 79, 10).
Na Retórica, Aristóteles mostra que o discurso se conjuga a partir de três coisas: a partir de quem fala, sobre o que fala e em relação a quem fala (cf. ARISTÓTELES Retórica A 3, 1058a – 1058b). O ouvinte é considerado o fim para o qual concorre essa conjugação do discurso, isto é, o último elo da corrente. Aristóteles assegura que o ouvinte é ou espectador (que contempla e especula em torno do que ouve) ou juiz. Aristóteles possuía dois termos para esses respectivos modos de ouvir do ouvinte: o qew/roj e o kri,ton. Em sendo juiz, discerne acerca de coisas já sucedidas ou sobre coisas que estão por acontecer. Como membro da assembléia, o ouvinte juiz discerne a respeito de coisas futuras. Enquanto membro do tribunal, o juiz julga sobre fatos passados. Daqui se depreende que na compreensão aristotélica – e certamente na compreensão grega em geral, que nós também herdamos – a assembléia existia para discernir sobre coisas futuras e os tribunais existiam para o discernimento a respeito dos fatos passados. Enquanto espectador que contempla e especula em torno do que ouve, o ouvinte reflete em torno do possível, do conjunto de coisas que podem ser demonstradas como possibilidades. A partir disto é que ele assegura que são três os tipos de discurso na retórica: deliberativo, judicial e demonstrativo.
É de acordo com esta reflexão prévia em torno dos modos como o discurso é ouvido e os tipos de discursos engendrados a partir deles, que Aristóteles compreende os tempos do discurso do orador. Ao investigar os tempos do discurso ele estabelece que: para o orador cujo ouvinte é o deliberante, isto é, o membro que ocasionalmente discerne e delibera em assembléia sobre coisas que hão de vir, o tempo é o futuro (o` me,llwn), “pois aconselha acerca do que está por vir, seja persuadindo seja dissuadindo” (ARISTÓTELES, Retórica A 3, 1058b 14 – 21). Para o orador forense, isto é, aquele que fala ocasionalmente ao ouvinte que julga no tribunal a respeito dos fatos passados, o tempo é o passado (o` geno,menoj), pois sempre fala sobre o que se sucedeu seja na acusação ou na defesa (cf. ARISTÓTELES, Retórica A 3, 1058b 14 – 21). Por fim, para o orador que tem como ouvinte o espectador, isto é, aquele que ouve em função de especular sobre um conjunto de possibilidades que podem ser demonstradas, o tempo é o presente (o` parw,n), ainda que levem em conta o passado, enquanto recordam, ou o futuro, enquanto fazem conjecturas (cf. ARISTÓTELES, Retórica A 3, 1058b 14 – 21).
A partir dessa breve caracterização sobre os tempos do discurso, pode-se verificar como Aristóteles não leva em conta, nesse caso, o tempo como um momento oportuno de falar ou calar, assim como sugeria o pensamento de Górgias e a indicação do próprio Platão no Fedro (cf. PLATÃO, Fedro, 272a). É muito provável pelo que se diz na Ética Nicomaquéia e na Ética a Eudemia, que essa atitude de atenção à ocasião certa de falar ou calar na assembléia ou nos tribunais seja um pressuposto fundamental de quem faz uso da palavra. A atenção à ocasião adequada de falar ou calar pode ser importante para chegar a bom termo e favorecer a comunidade a possibilidade de alcançar o que é útil. Mas este só pode ser um pressuposto implícito, pois não aparece na Retórica qualquer referência a essa compreensão. Como ocasião adequada para qualquer atitude humana que se constituir no tempo como boa, o kairo,j está melhor caracterizado nos textos da Ética Nicomaquéia e da Ética Eudemia. Esta compreensão deve certamente ser pressuposta na Retórica na medida em que o ato de falar em assembléia ou no júri é uma atitude ocasional, que exige atenção ao momento. Do mesmo modo, o orador e o ouvinte, ao discernirem em assembléia, devem estar atentos ao momento de agir de tal ou qual maneira, pela compreensão do que é útil ou nocivo na deliberação a ser tomada.
É, pois, na Ética a Nicomaquéia, e mais especificamente no Livro A, capítulo 6, e na Ética Eudemia, especialmente no Livro A 1217b, que o termo kairo,j se encontra conceitualmente determinado dentro do “sistema categorial” do Estagirita. Ver-se-á que o conceito assume em Aristóteles uma perspectiva ética que o caracteriza inicial e fundamentalmente como um tempo ético.
Após assegurar que “toda arte e todo método, e do mesmo modo toda ação e escolha, parece tender a algum bem” e que “o bem é aquilo a que todas as coisas tendem”, e após estabelecer que dentre os fins “uns são atividades e outros obras”, no livro A da Ética a Nicomaco, Aristóteles assegura que “se existe algum fim de nossos atos que queiramos por ele próprio e os demais por ele... é evidente que este fim será o bom e o melhor” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1094a). Após estabelecer esta assertiva, Aristóteles apresenta, então, a ciência à qual pertence a investigação deste fim supremo que nossos atos buscam por si próprio, e certifica-se de que “a política” é a “principal e mais eminente diretiva” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1094a 25-28) que conduz à compreensão deste fim que é tanto o bem do indivíduo quanto o da cidade. Assim se estabelece na Ética a Nicômaco o objeto da investigação.
Ele está disposto a resolver a seguinte questão: Qual é o bem ao qual a política aspira e qual é o supremo entre todos os bens que podem realizar-se? (cf. ARISTÓTELS Ética a Nicômaco, A 4, 1095b 14-17). Aristóteles assegura que “quase todo mundo está de acordo quanto ao seu nome, pois tanto a multidão como os refinados dizem que é a boa-ventura (euvdaimoni,an)” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, A 4, 1095a 18-19), ou como se traduz comumente, a felicidade10. Além disso, Aristóteles assegura que todo mundo “admite que o viver bem (to. eu= zh/n) e o agir bem (to. eu= pra,ttein) é o mesmo que ser feliz” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, A 4, 1095a 19-20). Porém, como compreender o viver e obrar bem e, resumidamente, como compreender o conceito de bem (avgatw/n)?
Da mesma maneira como na investigação ontológica, o método pelo qual Aristóteles procura a determinação do conceito de bem é o categorial. Segundo Aristóteles, “como o bem se diz de tantos modos como o ser” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, A 6, 1096a 23-24), ele se predica em todas as categorias, ou seja, ele se diz segundo as figuras da predicação. É assim que kairo,j é compreendido como sendo o bem, dito segundo a figura da predicação cro,noj (tempo), ou po,te (quando).
Na Ética a Eudemo, o contexto de reflexão, considerado, porém, em geral, como anterior à Ética a Nicômaco, é semelhante a esta. Mas possui algumas peculiaridades. Aristóteles começa por determinar que a boa-ventura é a melhor de todas as coisas que se pode almejar. Este tema, porém, se apresenta como um assunto difícil e que somente a filosofia especulativa é capaz de resolver “segundo a ocasião oportuna” (kata. to.n epiba,llonta kairo,n) (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, A 1214a 13-14). “Mas nós devemos considerar primeiro em que consiste a vida boa (to. eu= zh/n) e como ela pode ser obtida” (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, 1214a 14-15). Aristóteles se propõe a discutir o fato de alguns sustentarem que o discernimento (th.n fro,nhsin) é o maior bem, outros que é a virtude (th.n avreth,n) e outros ainda que é o prazer (th.n hvdonh,n) (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, A1214a 30-33). Aristóteles enxerga que há três modos de vida (bi,ouj o;ntaj), nos quais estes bens são experimentados: a vida política (politiko.n), a vida filosófica (filo,sofon) e a vida prazerosa (avpolaustiko,n) (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo 1215a 35 – 1215b 1). Destas, a vida filosófica diz respeito à contemplação da verdade; a vida política implica em ocupar-se de ações belas (honrosas) que emergem da virtude; e a vida prazerosa a que se orienta pela satisfação dos prazeres do corpo (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo 1215b 1-5). Aristóteles questiona a vida de satisfação corporal e se pergunta se de fato pode conduzir à felicidade. Deixando para mais tarde a resolução desse problema, Aristóteles passa a se perguntar primeiramente sobre a virtude e discernimento: eles próprios ou as ações que deles emergem são partes do bem? (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, 1216a 37- 1216b2). E acima de tudo, Aristóteles dá-se conta de que é preciso primeiro saber o que é o bem, de tal maneira que se caracterize como o melhor (to. a;riston) no homem. E assim, evitando trilhar o caminho platônico da teoria das formas para resolver o problema (cf. ARISTÓTELES, Ética a Eudemo 1217b), uma vez que, segundo ele, “mesmo concedendo que ideias e a ideia do bem existam no mais pleno sentido, certamente isto não é útil para a vida boa e para a conduta” (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, 1217b 23-25), Aristóteles constitui seu caminho a partir da colocação dos múltiplos significados do bem. E aqui também se anuncia o fato de que “o bem se diz de várias maneiras assim como o ente”, e segundo as figuras da prediação, o bem é dito como sendo “na entidade o intelecto e Deus, no qual a justiça, no quanto a medida, no quando a oportunidade...” (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, 1217b 25-32). E assim, do mesmo modo que na Ética Nicomaquéia, o kairo,j é compreendido como sendo o bem, dito segundo a figura da predicação po,te (quando), ou cro,noj (tempo).
Ao ler o primeiro livro da Ética a Nicômaco podemos notar como Aristóteles vincula o tempo à discussão em torno do bem a ser perseguido no pensamento ético. De antemão, o tempo (cro,noj) é para Aristóteles na Ética a Nicômaco tomado como uma categoria, isto é, uma maneira segundo a qual se diz o que é, o ente enquanto tal, aquilo que está sendo. Para ele, tal como o ser se diz de vários modos, o bem também se deixa dizer segundo o esquema das categorias, dentre as quais se encontra o tempo11. Na física o tempo é pensado segundo a sucessão e mencionado duplamente segundo o antes e o depois. Na ética, porém, o tempo é pensado como o instante oportuno de uma ação. Assim é que o próprio Aristóteles proclama: “o bem se diz de tantos modos como o ser (pois se diz na categoria de substância [evn tw/| ti,] como Deus [o` qeo.j] e o entendimento [o` nou/j]; e na de qualidade as virtudes, e na de quantidade a justa medida, e na de relação o útil, e na de tempo a oportunidade [evn cro,nw| kairo,j], e na de lugar a residência, etc.)” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco 1096a, 23-27, grifo meu).
Sobre o conceito de kairo,j pode-se, pois, dizer antecipadamente que se trata em Aristóteles de uma maneira de dizer o bem segundo o esquema da categoria de tempo (cro,noj): segundo a categoria de tempo o bem é dito como sendo kairo,j. Além disso, segundo o que segue no texto da Ética a Nicômaco, pode-se também dizer que Aristóteles concebe ciências do bem, que, ditas segundo este esquema categorial, poderiam ser ditas ciências da “oportunidade” (evpisth,mh tou/ kairou/) sendo estas na guerra a estratégia, na enfermidade a medicina etc. O mesmo aconteceria para cada categoria. Na Ética a Eudemo, o kairós não será pensado diferentemente. O texto é praticamente um paralelo sinóptico.
Isto significa que o discurso retórico conducente ao bem, não sabe simplesmente da oportunidade de quando falar ou calar, mas da oportunidade de um falar que aponta para a ação oportuna e, portanto, conducente ao bem. A ação oportuna é o bem dito segundo a categoria de tempo. É ela que o orador deve conhecer e que seu discurso deve enunciar.
Por isso é de fundamental importância na Retórica de Aristóteles que o orador possa ter as condições suficientes para saber o que é útil e conveniente em cada discurso nas assembleias deliberantes, homenagens ou tribunais, a fim de que isso possa se tornar manifesto na conduta do orador, além do conhecimento do momento oportuno para a ação que o discurso enuncia.
Conclusão
Pode-se verificar, portanto, que Aristóteles procura assegurar as seguintes inquietações de Platão: 1) aceita por princípio definidor que a função da retórica é a persuasão que tem por finalidade conduzir os interlocutores nas assembléias e tribunais a alcançar o que é justo, assumindo assim um caráter ético-político; 2) reconhece que o orador precisa exprimir essa mesma justiça em sua própria conduta a fim de que seu discurso seja digno de crédito por parte do ouvinte; 3) assegura que o orador precisa conhecer o momento oportuno, e não somente como o conhecimento da mera hora de falar, mas fundamentalmente da oportunidade da própria ação convocada pelo discurso. Ora, é em função desses elementos que se pode indicar brevemente como Aristóteles resguarda em sua proposta para a retórica as preocupações que Platão já estabelecera no Górgias e no Fedro. Sua proposta terá em vista superar as aporias práticas encontradas por Platão, superando o caráter cético presente na visão platônica quanto às possibilidades próprias da retórica para assegurar o seu fim ético-político e reconstituindo a dignidade da retórica como arte da persuasão conducente à justiça.
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Notas
Autor notes