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Natureza humana e totalitarismo
Human nature and totalitarianism
Natureza humana e totalitarismo
Griot: Revista de Filosofia, vol. 1, núm. 1, pp. 39-48, 2010
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 15 Maio 2010
Aprovação: 01 Julho 2010
Resumo: Classificado pelo pensamento político contemporâneo como novidade singular na história da humanidade e considerado como exemplo emblemático da erosão do político, o fenômeno totalitário provocou polêmicas em relação aos termos utilizados no processo da sua compreensão. Por exemplo, quando se afirmou que o seu objetivo supremo era “transformar a natureza humana”, essa expressão causou ruído desconfortável aos ouvidos daqueles que, sintonizados à tradição metafísica, sempre definiram a natureza humana como uma essência imutável. Este artigo discute e aponta o significado e o alcance dessa expressão no pensamento político contemporâneo, desmistificando-a da sua origem metafísica.
Abstract: Classified by the contemporary political thought as a novelty unique in human history and is regarded as emblematic example of the erosion of political, totalitarian phenomenon provoked controversy regarding the terms used in the process of understanding. For example, when it stated that its ultimate goal was "to transform human nature," this expression noise caused discomfort to the ears of those who tuned in to the metaphysical tradition, have always defined human nature as an unchanging essence. This article discusses and shows the meaning and scope of that term in contemporary political thought, demystifying it of its metaphysical origin.
Keywords: Totalitarianism, Human Nature, Politics, Philosophy, Totalitarismo, Natureza humana, Política, Filosofia.
Dos pensadores contemporâneos que refletiram sobre o fenômeno totalitário, Arendt foi quem mas se destacou e, foi também, quem utilizou a expressão “ natureza humana” em um sentido diferente do habitual, ou seja, em sentido político e não metafísico ou filosófico na compreensão do totalitarismo. Assim, sua obra Origens do totalitarismo, não só apresentou ao mundo uma forma de dominação nova e sem precedentes na história da humanidade, mas apresentou, também, uma forma nova de se lidar com os acontecimentos, principalmente os acontecimentos políticos, que destroem, com efeito, os usos convencionados da investigação acadêmica ligada à tradição do pensamento ocidental. No entanto, ao conceber um sentido diferente à expressão tradicional do pensamento ocidental (“natureza humana”) entrou em polêmica com o filósofo político E. Voegelin.
Para quem aspira essencialmente um domínio total e seguro do homem e da história, o seu inimigo principal não é o mundo exterior, mas “a imprevisibilidade que advém do fato de que os homens são criativos, de que podem produzir algo novo que ninguém jamais previu” (ARENDT, 1990, p.509-510), isso sim, é insuportável. O poder total requer um mundo de reflexos condicionados, de “cidadãos” com o grau zero de espontaneidade, por isso, o objetivo supremo do totalitarismo “não é a transformação do mundo exterior ou a transformação revolucionária da sociedade, mas a transformação da própria natureza humana” (ARENDT, p.510)
A afirmação “transformar a natureza humana” soa mal aos ouvidos daqueles que estão acostumados, ou sintonizados à tradição que sempre procurou definir a natureza humana, como uma essência imutável, e concluir a partir daí, a impossibilidade de um domínio total. Quase todos os importantes assuntos da Filosofia, da Psicologia, da Religião e do dia-a-dia do homem envolvem a questão da natureza humana. A maior parte dos pensadores da Antigüidade grega, da Idade Média e até da época do iluminismo, nos séculos XVII e XVIII, assumiram o posicionamento favorável à existência da natureza humana, isto é, algo que, filosoficamente falando, constitui a “essência do homem”.
No que se refere, por exemplo, à teoria política que naturalmente começou com os gregos antigos, pois, eles foram, em sentido real, os primeiros a ter idéias políticas, todos os pensadores, de uma forma direta ou indireta, desenvolveram uma concepção de natureza humana. Ou seja, fundamentaram suas teorias políticas sobre aquilo que julgaram ser a “essência do homem”. Hobbes, por exemplo, constatou no homem a tendência natural para a destruição, e procurou a partir dessa constatação, elaborar um conjunto de princípios racionais, capaz de fornecer um poder político bastante forte para controlar essa tendência humana. Desse esforço, surgiu Leviatã e a justificação do absolutismo como a forma de governo mais adaptada à natureza humana.
Dizer que alguma coisa é natural ou por natureza significa dizer que esta coisa existe necessária e universalmente como efeito de uma causa necessária e universal. Significa dizer, portanto, que tal coisa não depende da ação e intenção dos seres humanos. Assim como é da natureza dos corpos serem governados pela lei natural da gravitação universal, como é da natureza da água ser composta por H2O, ou como é da natureza da abelha produzir mel e da roseira produzir rosas, também seria por natureza que os homens sentem, pensam e agem. Existem, as mais variadas idéias do que vem a ser essa essência, mas sempre houve um ponto em comum de que tal essência existe e alguma coisa há que diferencia o ser humano de qualquer outra coisa no universo. A mais difundida é a visão clássica, a visão racional, herdada principalmente da Filosofia Grega: o que mais distingue o homem dos demais animais é o fato de que ele é um ser racional.
O filósofo político E. Voegelin (1979), por exemplo, se mostrou atônico com o fato de Arendt julgar possível pensar uma coisa tal como “transformar a natureza humana”. Segundo as observações de Voegelin, é absolutamente impossível mudar ou transformar uma natureza; seria uma “contradição de termos; lidar com a ‘natureza’ de uma coisa significa destruir a coisa” (VOEGELIN apud YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 235). Arendt, porém, ao referir-se em Origens do totalitarismo, a uma transformação da natureza humana, a sua preocupação fundamental era com aquilo que aparece, com o fenômeno. Referia-se, portanto, a transformações suficientemente radicais nas condições humanas para tornar impossível o exercício de capacidades observáveis sob outras condições, menos radicais; referia-se à destruição de qualquer possibilidade de essas capacidades aparecerem.
Ela, portanto, não estava a referir-se como parece ter pensado Voegelin, em sintonia com a tradição, à uma suposta realidade postada por trás do fenômeno, uma natureza oculta ou uma essência invisível e imutável. Pois, para ela, não é provável que aquele que é capaz de conhecer, determinar e definir a essência natural de todas as coisas que o rodeiam e que não são ele, seja capaz de fazer o mesmo a seu próprio respeito. Seria o mesmo que pretender pular sobre a própria sombra. E mais, não há nada que o autoriza “a presumir que o homem tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas as têm”. Em outros termos, “se temos uma natureza ou essência, então certamente só um deus pode conhecê-la e defini-la”. (ARENDT, 1983, p.18).
Arendt quer, realmente, evidenciar, conforme nos lembra Roviello (1990, p.164), a “fragilidade de uma humanidade que não é ‘imutável’, no sentido em que não é dada a cada indivíduo pela natureza, já que pode ser destruída”. Isto é, as propriedades que são tradicionalmente atribuídas ao homem, tão logo desaparecem sob condições totalitárias, com isso, fica evidente de que elas não dependem de uma natureza imutável. Giovanni Sarttori (1981, p.140), por exemplo, compartilha dessa opinião e admite também, de que “o homem tem uma natureza que não é imutável; em conseqüência, sua chamada ‘natureza’ é moldável e se adapta a uma gama muito extensa de ‘compreensão’”. Ou seja, o que a democracia, por exemplo, não consegue dos seus cidadãos um Estado totalitário obtém dos seus súditos. Aquilo que parece ser inconcebível para uma pessoa suportar, em condições normais, é suportado num campo de concentração. “Comportamentos impensáveis pelo homem ocidental são possíveis no oriente”. Na história da humanidade foram muitas as revoluções e reformas que falharam justamente porque se basearam numa psicologia equivocada, numa concepção errônea da natureza humana. Aliás, alguma coisa não está certo quanto à constatação da natureza humana, afinal, os próprios pensadores discordaram entre si ao longo do tempo, originando deste modo, na busca da melhor forma de governo, três posições distintas: Monarquia Absoluta ( Hobbes), Democracia ( Spinoza, Rousseau) ou Constitucional Representativo ( Locke, Kant).
Portanto, a nossa humanidade definitivamente não é uma natureza, ela é simplesmente uma condição que pode sempre ver-se alienada, se não for reconhecida e garantida pela instituição jurídica-política da sociedade. Sendo assim, não é crime negar as afirmações sobre a existência de uma natureza humana imutável ao longo dos tempos e as declarações sobre a impossibilidade de um domínio total. Essas idéias provenientes de um mundo longínquo onde se viviam em segurança parecem não fazer sentido para nós. Os acontecimentos políticos do nosso tempo nos ensinaram que o homem possui um poder tão grande, capaz de se transformar no que ele desejar. Nos campos de concentração o totalitarismo desmascarou a idéia de uma natureza humana imutável, ao tornar possível, o que certamente era imprevisível e desconhecido por todos aqueles, que, por mais de dois mil anos de filosofia, definiram e redefiniram a natureza do homem. Na realidade, a experiência dos campos de concentração, como constatou Arendt (1990, p.167), mostrou bem que a “natureza” do homem só é “humana” na medida em que abre ao homem a possibilidade de ele se tornar algo de não-natural por excelência, a saber, um homem. Nesses laboratórios, o totalitarismo demonstrou sem piedade alguma, que é “possível fazer tudo o que se quiser com o homem” (FREYER, 1965, p.149), inclusive destruí-lo a qualquer momento como se fosse mosquito. Portanto, nesses laboratórios o desejo totalitário foi plenamente realizado.
No lugar de “natureza humana” deve-se falar de “condição humana”, uma expressão política que não deve ser interpretada em termos metafísicos, como se as atividades que nela se realizam devessem se realizar de uma forma única e para todo o sempre. Afinal, para viver, o homem necessita constantemente dar conta da “vida e da sua reprodução”; de um mundo que o proteja das intempéries da natureza e de um espaço que lhe proporcione a interação política. A humanidade do homem não é algo definível teoricamente. São acontecimentos que se manifestam nas suas ações, palavras, pensamentos e obras. Todas as propriedades tradicionalmente atribuídas à natureza do homem desapareceram sob condições totalitárias. Isso significa dizer que elas não eram uma natureza imutável, mas construídas e garantidas a partir de artifícios convencionais, como a legalidade, a cidadania, o respeito à pluralidade humana e a posse garantida de um lugar próprio e de uma ocupação social, condições artificiais sem as quais não subsiste a dignidade da existência humana.
Apesar de não ter inventado a crueldade, o massacre coletivo, o genocídio e não ser o primeiro a imaginar a instituição do campo, no entanto, nos lembra Baudouin (2000, p.171), o regime totalitário conferiu-lhe uma significação sem precedentes na história; administrando a prova da “super fluidez do homem”. Nesses laboratórios o totalitarismo consegue, então, obter o seu “cidadão” perfeito e ideal de reflexos puramente condicionados, capaz de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável. Cidadão pronto para não obedecer a “nenhum outro princípio organizador a não ser o Estado, encarnado na pessoa do chefe” (RICOEUR, 1995, p.151). “Horríveis marionetes”, afirma Arendt (1990, p.506), “com rostos de homem, todos com o mesmo comportamento do cão de Pavlov, todos reagindo com perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para a morte”. Esse processo de mudança ou transformação do homem se dá em três tempos: mata-se a pessoa jurídica, mata-se a pessoa moral e mata-se a individualidade.
A morte da pessoa jurídica está associada à produção de apátrida, isto é, o totalitarismo priva o homem dos seus direitos, e lhe transforma em fora – da – lei no seu próprio país; desta forma, ao torturá-los nos campos de concentração ou mesmo matá-los, o totalitarismo lida com “alguém” cuja existência não é reconhecida por nenhuma lei. Assim sendo, do ponto de vista jurídico o castigo ou o homicídio pura e simplesmente não aconteceu; a morte da pessoa moral significa tornar a morte anônima, ou sem qualquer significado quer para os parentes, quer para conhecidos e amigos. Essa façanha é conseguida quando o totalitarismo interdita toda e qualquer solidariedade, todo e qualquer protesto e apaga a linha de demarcação entre vítimas e carrascos; a morte da individualidade ou a morte psíquica significa a destruição da espontaneidade, a capacidade do homem de iniciar algo novo com seus próprios recursos, ou seja, significa transformar os indivíduos em “feixes de reações”. Essa é a etapa mais árdua, porém, mais importante para o totalitarismo, significa o triunfo do sistema.
Essa etapa limita-se cada individuo a ser fundamentalmente um exemplar de uma “espécie”, já não podendo agir, mas apenas reagir ao ambiente, por reflexo condicionado: os campos produzem em massa homens sem alma, ou seja, homens cuja psicologia já não é possível compreender, e cujo regresso ao mundo inteligível, quer psicologicamente quer de outra maneira qualquer, assemelha-se à ressurreição de Lázaro. Nessas condições, o indivíduo perde até mesmo a consciência do seu próprio rosto (isto é, algo que serve para exprimir “quem” ele é). Isto é, já nem sequer consegue lembrar que tem um rosto, como nos lembra R. Antelme (apud ROVIELLO, 1990, p.168), ao narrar sua própria experiência que prefiro reproduzir integralmente:
Primeiro vi aparecer um rosto. Eu tinha-me esquecido. Só carregava um peso sobre os ombros. O olhar dos SS, a sua maneira de ser conosco, sempre o mesmo, significavam que para ele não existia qualquer diferença entre este ou aquele rosto de detido (...). Por outro lado, ninguém devia exprimir ao SS, através do rosto, nada que pudesse constituir o inicio dum dialogo (...) tínhamos chegado ao ponto de fazermos um esforço para negar o nosso próprio rosto, para o tornar semelhante ao do SS. Negado, duplamente negado, ou então, tão risível e provocador como uma máscara – seria literalmente provocar um escândalo levar sobre os ombros algo do nosso antigo rosto, a máscara de homem.
Quando esse sistema provou que qualquer ato, por mais inimaginavelmente horripilante que fosse considerado até então, lhe era possível, estava-se diante do “mal radical” – crime imperdoável e impunível. Ou seja, o regime totalitário, mesmo sem saber, produziu crimes impossíveis de serem punidos ou perdoados. Esses crimes são males impossíveis de serem explicados, pelos “maus motivos do interesse pessoal, avareza, cobiça, ressentimento, desejo pelo poder e covardia (...) o ódio não podia vergar, o amor não podia suportar e a amizade não podia perdoar” (ARENDT, 1990, p.510). Imperdoável porque mesmo para o perdão há limites. Como nos lembra Ricoeur (1995, p.160), o perdão é aquilo que somente as vítimas podem conceder. É também o que somente elas podem recusar. Ninguém pode decretar em seu lugar que determinado crime monstruoso deve um dia ser perdoado pelos parentes próximos das vítimas ou por aqueles que se salvaram do terror. Ninguém tem o controle do tempo do sofrimento e do tempo do luto. Impunível porque o mais alto grau de condenação, a pena de morte, é irrisória face à amplitude do mal realizado. Com o enforcamento de Eichmann, por exemplo, o mal não foi reparado. E mais, esse mal cometido, era inteiramente desconhecido pelos nossos aparatos jurídicos – ele estava acima de qualquer tipo de legalidade humana; o direito está absolutamente incapaz de aplicar uma pena que seja proporcional ao mal cometido sem se tornar ele próprio inumano, ou seja, sem se auto-destruir.
Certamente, a maior parte dos grandes testemunhos do século XX gritaram aos céus, e tiveram a impressão de que lá não havia ninguém, pois, estavam diante de algo absolutamente inconcebível tanto pela nossa tradição de pensamento como pela própria religião. Como explicou Arendt (1990, p.510), é inerente a toda nossa tradição filosófica que não possamos conceber um “mal radical”, e isso se aplica tanto à teologia cristã, que concedeu ao próprio diabo uma origem celestial, como a Kant, o único filósofo que, pela denominação que lhe deu, ao menos deve ter suspeitado de que esse mal existia; embora logo o racionalizasse no conceito de um “rancor pervertido” que podia ser explicado por motivos compreensíveis.
Todos aqueles que se empenharam em negar o ser do mal, em “exterminar o ser do mal”, sempre acreditaram absolutamente que a injustiça exercida no seu mais alto grau implica uma contradição e que, como tal, ela deve conduzir a uma autodestruição de que seus próprios práticos não estariam isentos. A falsidade e a má intenção potenciadas a um grau infinito implicam impossibilidades lógicas e a realização do mal deveria, então, equivaler à sua irrealização. Todavia, no mundo totalitário, o mundo da contradição existente, a injustiça suprema – sua característica fundamental, em vez de levar seu autor a um cataclismo final, lhe permite, antes, enfrentar a realidade. Quando após anos de propaganda odiosa esses inimigos irredutíveis, Hitler e Stalin, subitamente se reconciliaram, a ficção, em vez de ser estourada pelo choque dessa suprema mentira, de alguma forma ultrapassou e estabilizou por um momento o poder de seus mestres.
Esse mal tornado possível pelos regimes totalitários nos campos de concentração, não pode ser compreendido no sentido geral, como simplesmente algo negativo, nocivo e prejudicial à alguém. Não pode ser compreendido como imperfeição, sofrimento ou pecado. Portanto, não é o mal, que, Plotino, por exemplo, o último filósofo antigo, definiu como “a privação do bem” e que os escolásticos precisaram: a privação de um bem devido. A cegueira, por exemplo, é um mal, porque faz parte do homem o direito de ver. Se ele é incapaz de ver o invisível, apesar de ter bons olhos, ele não pode se lamentar, pois a vista não é feita para ver as coisas mais além de um campo limitado. A idéia é então de que o mal se define negativamente. Ele é puro nada, um vazio no ser. Esse mal, também, não é o mal que como pensava Kant, se encontrava enraizado, por exemplo, nas profundezas insondáveis da alma humana.
O homem quer naturalmente ser feliz. Ou seja, a sua vontade está voltada para o que ele considera como seu bem. Os filósofos mais antigos explicaram que os homens se enganam facilmente sobre o que é seu bem, ou seja, que ele facilmente comete atos ruins porque não vê o que isso pode-lhe custar. Ao roubar, por exemplo, se busca evidentemente um bem, a violação produz prazer, matar apazigua a cólera, mentir permite sair de uma situação embaraçosa. É preciso, porém, pagar um preço. Os atos totalitários, porém, estão numa outra categoria, não são seguidos por nenhum prazer imaginável por homem comum, são atos que parecem desumanamente desinteressados. Isto é, aqueles que os praticam parecem atraídos pela pura transgressão da regra. Causam medo porque não são compreendidos, parecem estar alheios à humanidade comum. Não é complicado compreender, por exemplo, o ladrão, o violador, o assassino, porque encontramos em nossa alma pontos de ressonância, e não é necessário adentrar-se profundamente em nós mesmo para encontrarmos em algum grau, o que comumente se chama avidez, luxúria, violência. Todavia, diante dos atos totalitários, ficamos desconcertados como ficaríamos diante de um milagre, um milagre ao contrário, uma exceção negativa às leis comuns da natureza.
O homem deseja seu bem, porém, não há nos atos totalitários nenhum bem concebível. Afinal, todos aqueles que sofreram o comunismo ou o nazismo, ou que simplesmente, com alguma aplicação, o estudaram, foram permanentemente perseguidos pela indagação: por quê? Por que comprometer o esforço de guerra, dispensar grande soma em dinheiro, sobrecarregar os transportes, mobilizar exército para simplesmente descobrir numa pequena cabana uma criancinha judia apenas para assassiná-la? Por que, quando não existe nenhum tipo de oposição organizada, estando tudo submisso e obediente, prender milhões de seres humanos, mobilizar o aparato policial e judiciário para simplesmente fazê-los confessar crimes inimagináveis e manifestamente absurdos e, uma vez que confessados, reunir o povo para fazê-lo representar a comédia da indignação e obrigá-lo a participar na execução? Por que, na véspera de uma guerra programada, fuzilar a metade do corpo de oficiais generais?
Portanto, o horror que se apoderou das pessoas diante do que o comunismo e o nazismo lhes infligiram é radical por não possuir raízes na interioridade do sujeito; ele é radical porque deixou de estar limitado pelas motivações ou tendências naturais em que se enraíza, segundo a compreensão kantiana, por exemplo. Ele não é uma fatalidade, nem o resultado inevitável dos veredictos que emanam de uma potência superior estranha e fulgurante. O mal não é o ponto de fuga raro de uma malignitude e de uma perversidade excessivas, ele é simplesmente a conseqüência da atrofia das faculdades humanas por excelência, que são o pensamento e o juízo. O mal, portanto, é algo que tem origem numa ausência, a ausência de pensamento. O exemplo mais emblemático está na pessoa de Adolf Eichmann, um antigo diretor do escritório IV-B-4 da Secretaria Central de Segurança do Reich. O burocrático que metodicamente coordenava horários ferroviários para enviar os elementos indesejáveis aos campos de extermínio. Um homem que não era estúpido e muito menos, “fraco de memória”, porém, “incapaz de discernir o certo do errado” (ARENDT, 1983, p.42); um homem disposto a cumprir com as suas obrigações, ou seja, disposto simplesmente a cumprir ordens, algo que para E. Canetti (1995, p.303), prêmio Nobel de literatura em 1981, “é mais antiga que a fala, pois, se assim não fosse, os cães não a entenderiam”. Um homem, portanto, que chegou a ponto de declarar, que “teria mandado até seu próprio pai à morte, se isto lhe tivesse sido ordenado” (ARENDT, 1983, p.58). Um homem que apesar de declarar ter lido Kant, aparentemente, não o tinha compreendido, visto que a filosofia moral de Kant está estritamente ligada à faculdade de juízo que o homem possui e que exclui a obediência cega. Enfim, Adolf Eichmann, era simplesmente, um homem incapaz de pensar de se colocar no lugar do outro. Não discerniu o sentido de suas ações, não compreendeu que o mal que fizera era o mal; ele estava preocupado apenas em obedecer e executar as ordens do chefe, e em nenhum momento, sequer, pensou no motivo que o levava a obedecer. Obedecer sem pensar no que te leva a obedecer é um erro fatal. Assim, o mal radical não é profundo, não tem raízes. É obra de indivíduos que criaram um vazio interior, de indivíduos insensíveis ao mundo. Mal radical é, portanto, o que Arendt denominou, também, de “banalidade do mal”, uma vez que se trate sempre, no sistema totalitário, como no caso Eichmann, da destruição do pensamento, uma destruição dissimulada, generalizada, despercebida e, nesse sentido, banal, mas igualmente escandalosa prefigurando o aniquilamento escandaloso da vida. “Banalidade” não quer dizer, de maneira alguma, “inocência”; a história de Eichmann, por exemplo, não é absolutamente a de um inocente.
Portanto, sem serem perversos nem sádicos, indivíduos assustadoramente normais, isto é, em perfeita e boa consciência, cometeram crimes de uma nova espécie, ou seja, sem precedentes. Apesar de incapazes de julgar, eles se arrogam no direito de decidir de uma forma radical e sem qualquer piedade, quem deve e quem não deve habitar neste planeta. O comportamento de Eichmann, um homem incapaz de distinguir o bem do mal, não significa, porém, apenas um ponto negativo, mas também um benefício que é, muito simplesmente, o de preservar a possibilidade do próprio pensamento. De acreditar no bem que significa muito mais que uma adesão ao pensamento, mas sim, a própria fé no pensamento. Uma fé suficiente para interrogar qualquer valor como caráter fundamental do pensamento. Contra uma sociedade de fabricação e de massificação, a exigência de pensar se torna necessária, para além do intervalo onde se desenvolve o processo vital. Mas é importante não limitar o pensamento a sua solidão, mas orientá-lo em vista de seu desenvolvimento em julgamento. No espaço político das aparências e da partilha com os outros, pensar o bem não é fazer o bem. Não se trata, portanto, nem de se “engajar”, nem de “militar”, mas antes de reunir o universal ao particular, de “avaliar” e de “decidir”.
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