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Ausência e sujeição ao presente: a propósito da ontologia destes tempos em Michel Foucault
Francisco Vítor Macêdo Pereira
Francisco Vítor Macêdo Pereira
Ausência e sujeição ao presente: a propósito da ontologia destes tempos em Michel Foucault
Absence and subjection to the present: on the ontology of these times in Michel Foucault
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 1, pp. 1-20, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: A consolidação irrecusável de um regime de expansão-consumo-tolerância retifica toda manifestação simbólica do presente em uma vida comum. Os sintomas da hodierna civilização do consumo, nas subjetividades e em seus corpos, resumem a composição de sucessivas ordens - das relações individuais e coletivas - sob os signos do desenvolvimento econômico, das garantias jurídicas, da erotomania vulgar e das liberalidades banais; que se imantaram, sequazes, em todos os níveis de experiências e culturas no tempo presente. Os signos e os códigos atuais, de uma espécie de indiferença generalizada, convolam todas as complexas estruturas e performances de poder em roteiros cada vez mais precisos, sobre os quais a dessubstancialização do real e as experiências de uma paroxista ausência fazem-se ontologicamente imprimir. Em nossa tentativa de análise e desprendimento frente à novíssima (ir)realidade da tecnologia, do controle e do consumo sem travas, evocaremos ao último Foucault, que formula - na síntese de uma original ontologia do presente - a perspectiva de inéditas disposições éticas dos sujeitos e seus corpos, especificamente por meio da atualização da singular estetização de suas próprias existências.

Palavras-chave:Ontologia do presenteOntologia do presente,Estética da existênciaEstética da existência,SujeitoSujeito,CorpoCorpo,Ética de siÉtica de si.

Abstract: The irrecusable consolidation of an expansion-consumption-tolerance regime rectifies every symbolic manifestation of the present in a common life. The symptoms of today's civilization of consumption, in subjectivities and in their bodies, sum up the composition of suitable orders - of individual and collective relations - under the signs of economic development, legal guarantees, vulgar erotomania, and banal liberalities; who have magnetized themselves, minions, at all levels of experience and culture in the present time. The present signs and codes of a kind of generalized indifference convolve all the complex structures and performances of power into increasingly precise scripts, upon which the desubstantiation of reality and the experiences of a paroxysmal absence become ontologically imprinted. In our attempt to analyze and unleash the new reality of technology, control and consumption without locks, we will evoke the last Foucault, who formulates - in the synthesis of an original ontology of the present - the prospect of possible new ethical dispositions of the subjects and their bodies, specifically by updating a singular aesthetization of their own existences.

Keywords: Present time ontology, Aesthetic of existence, Subject, Body, Ethics.

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Artigos

Ausência e sujeição ao presente: a propósito da ontologia destes tempos em Michel Foucault

Absence and subjection to the present: on the ontology of these times in Michel Foucault

Francisco Vítor Macêdo Pereira1
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 1, pp. 1-20, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 21 Agosto 2020

Aprovação: 06 Dezembro 2020

Introdução: entre perdidos e ausentes, os que se dizem presents

A caracterização da ruptura entre os diferentes tipos de conhecimento - entre a moderna informação de cunho científico-oficial e o que se designa simplesmente por saber, entre os sistemas lógicos de análise dos conceitos complexos e os enunciados simples da multiplicidade pré-discursiva da vida desatenta às razões - não implica em evolução epistemológica ou refinamento científico que torne possível conhecer algo até então desconhecido, simplesmente não dito. Para além dos discursos do pensamento, dos poderes e dos saberes - a propósito do ser em seu tempo próprio -, a ontologia genealógica do presente2. analisa, com efeito, a pergunta acerca do ser e de seu conhecimento; mas não de maneira ascendente ou transcendente, tributária às formas ideais da razão ou às regras pragmáticas da ação comunicativa. Remete-se, antes, às especificidades históricas da construção interessada - nas verdades e em seus conceitos - à mercê das subjetividades.

Sem as empulhações antropológicas tão em voga desde a modernidade, Michel Foucault (1926-1984) não é o intelectual que divisa em seus estudos a oposição entre o saber moderno e o seu passado, entre a história da humanidade e a anunciação do seu devir; como quem contrapõe ciência a pré-ciência, racionalidade a irracionalidade, luzes a ignorância e verdade a erro. E ainda renega qualquer vocação inconspurcável dos saberes ao progresso - o qual não lhe parece senão algo estouvado, e bem imbricado na ordem do desenvolvimento genético-científico das verdades e seus efeitos de poderes sobre os seres na história: “[…] nas formas empíricas de saberes como, por exemplo, a biologia, a economia política, a psiquiatria, a medicina, o ritmo das transformações não obedece aos esquemas suaves e continuístas de desenvolvimento que normalmente se admite” (FOUCAULT, 1986, p. 03).

Foucault (1986) empresta, por sua percepção microfísica das relações de poderes, a compreensão de que a ruptura que existe para o ser no presente é muito mais tênue e radical do que qualquer novidade ou atualização cognitiva: que o que muda na esteira dos grandes movimentos da história é a própria positividade dos saberes ante a realidade; a qual estabelece para ela . Geschichte. uma rede lógico-conceitual capaz de criar e circundar espaços dobráveis de existência e interação produtiva entre praticamente todas as subjetivações. Tais subjetivações, por sua feita, se identificam e (se) servem (d)os poderes e (d)os seus efeitos, supostamente de maneira autônoma, mas não exatamente sob a calceta de suas disposições objetais.

De fato, não existe naquilo a que se poderia referir como uma memória coletiva, nem na história dos saberes constitutivos da realidade - tais quais os concebemos como seus sujeitos - uma mudança de conteúdos (refutação de erros antigos, nascimento de novas verdades), tampouco uma alteração precisa de fórmulas teóricas (renovação de paradigmas, modificação atual dos conjuntos sistemáticos), as quais pudessem anunciar à humanidade as possibilidades de redimir-se do que quer que seja. Isso porque todas as verdades da memória e da história não explicitam, nas bases discursivas do pensamento, a construção do lugar cognitivo deferido à introspecção e/ou à razão subjetivadas. Aliás, não há na circunlocução subjetiva da razãonada além de sua perdição e das narrativas de sua (re)captura. A remição dos sujeitos, seja à dominação moral, seja ao conhecimento ideal da realidade de seus seres, os mantém, por isso mesmo, à deriva de suas sensibilidades, distantes de um lugar próprio no presente, por alheios à criação de si mesmos ou aos cuidados do ente meramente refletido em seu tempo.

As construções modernas da subjetividade, a propósito, não permitem mais aos seres - no presente - o desenvolvimento de suas capacidades: artística de interagir, estética de interferir e ética de criticar os próprios projetos existenciais. São, adentro de si mesmas, ineptas até quanto ao questionamento de sua realidade exterior. A postulação da subjetividade, enfim, no lugar ideal do ser racional, forçosamente alça - os sujeitos todos - à objetivação ausente de suas existências: o que, em si, não é mais nenhum problema cognitivo, mas antes a representação da determinação de uma morada para o ser que o encerra - morbosa e reduzidamente - no discurso e na linguagem.

Trata-se aqui da improbabilidade desse ser assujeitado ao discurso moderno - dos saberes e dos seus efeitos de poderes - compreender e viver o seu próprio tempo presente; a não ser determinando-o analiticamente a partir dos acertos futuros ou pelas remições do passado; confrangendo-o às fronteiras de exigências culturais e cognitivas da história, posto que sem deixar nunca de remeter-se ao plano ou à representação das ideias (formas-pensamento da linguagem ., e sem que jamais entenda que ser quem realmente se é não é algo dado, natural; mas que deve ser inventado, atuado e compartilhado.

Conhecendo-se e cuidando-se a si

Conforme indica Foucault (1994a, p. 347), o que, modo geral, se valoriza como enunciado científico ou filosófico acerca da realidade é algo inteiramente estranho ao cuidado . ao conhecimento de si no tempo presente. O que, de fato, imanta esses enunciados e as suas formas - como regências em pauta aos discursos de controle e governabilidade da vida - é o mesmo que aferra os sujeitos todos às suas fadárias identidades, funções e destinações sociais. Afins à difusão de proposições, racional e cientificamente aceitáveis, os discursos e as verdades acerca desses sujeitos os tornam - consoante as relações e representações articuladoras de poderes e saberes - susceptíveis de serem infirmados ou autenticados: como contraentes dos mesmos procedimentos de produção e controle científico-racional da realidade. O que, a pretexto desses sujeitos, importa são a verificação e a responsabilização de seus comportamentos vitais: quanto à sua normalidade técnica e procedimental, para a manutenção de toda a ordem e produção do sistema-mundo-moderno.

De modo anterior a qualquer comprovação discursiva sobre o real, contrafeita à dominação de cada tradição - que ressumbre ainda a verisdição das ordens científicas e/ou filosóficas -, a estilização ontológica de si .à qual se refere Foucault como técnica de si ou atuação ético-estética sobre a própria vida (FOUCAULT, 1994b, p. 752) . remete os sujeitos, sem embargo, à necessidade de assumirem decidida, corajosamente as suas próprias existências: qual ethos inteiramente autêntico, sob a égide do conhecimento e do cuidado inexcedíveis (do ser de si mesmo), consigo e com os outros, em seu particular tempo presente3..

Não noutro sentido, o Sócrates platônico . que é, segundo Foucault (1994b, p. 683), o verdadeiro parresiasta (ousando viver livremente a verdade de sua existência mediante o preço da própria vida) ., ao corroborar com a máxima do conhece-te a ti mesmo, faz exultar em sua subjetividade a decisão por uma vida filosófica autêntica: não simplesmente racional nem dada à lógica nula em superação das aporias discursivas, mas inteira e corajosamente ética. Sujeito, por isso mesmo, exortado a conhecer-se plenamente, sem quaisquer mais subterfúgios, garantias, promessas ou emulações - a fim de atuar em si e de curar de si, direta e artisticamente, qualquer pretensão alheia à sua vontade e ao conhecimento de seu corpo.

Para o pensamento ocidental nasce daí - estreme - a ontologia como possibilidade à livre atuação ético-estética: a qual, sem adstringências, sem refregas mais com nenhum termo adiante, afora ou alheio ao self, alça o ser ao centro de toda a compreensão, experimentação e vivificação de seus sentidos sobre a própria realidade. A coragem total da verdade de/sobre si mesmo implica, para tanto, em se estar necessária e completamente livre para se dizer e se atuar, licenciado de todos os pruridos, despedido dos interesses de ocasião e dos falsos pudores, francamente conforme a verdade daquilo que se pensa e que, de fato, se é: sem quaisquer apanágios, para consigo e os demais. Porquanto a vida filosófica exija que se tenha a coragem de dizer, expressar e atuar a existência de maneira honesta, sincera e em consonância ao cumprimento estrito da verdade de si, requer-se, por último, que se seja, em si - para o governo de si e dos outros -, inteira e igualmente aquilo que se diz e se pensa a respeito dos demais.

Disso se depreende que a disposição existencial à parresía é o que ontologicamente possibilita a relação de uma vida harmônica e singular: entrediscurso e ação, entre lógos e bíos. O sujeito parresiasta é, enfim, aquele que expõe em sua vida, em seu corpo e em suas atitudes - sem véus, isenções nem distanciamentos - a verdade em que corajosamente, e sem mais quaisquer ressalvas, acredita: exclusivamente pelo fato de que nisso se traduz inteiramente aquilo que ele mesmo é. Filósofo, portanto, não pode ser considerado, nesse sentido, senão o ser que necessária e atualmente vive conforme o que sabe, ou seja: de acordo, sem exceção, com a verdade de si. Ele não se subtrai, sob nenhum título, prerrogativa ou identidade, ao que lhe arrogue ou ao que se lhe outorgue - de fora - ao cumprimento de uma ordem, à exação de um mandato, à distribuição de uma licença ou ao exercício de uma procuração ou motivo pessoal de poder.

A autoridade sobre os demais não lhe é igualmente, em nenhuma medida, um regalo; é-lhe, antes, algo de que tem de desbastar-se, curar-se: a fim de que não conviva com ninguém senão a partir das experiências as quais lhe são inteiramente próprias. O que interessa ao filósofo, junto aos demais com quem comparte a sua existência, são as relações heterárquicas e horizontais de liberdade, amizade e erótica - no que justamente lhe proporcionem as condições de vida ao genuíno governo de si e dos outros. Mesmo nas situações em que age como um mestre, nos exercícios da conversão do olhar e da preparação para o conhecimento de si .epistrophé, paraskeué), ao parresiasta não lhe concernem o expediente de nenhum convencimento em disputa, nem qualquer ascendência senhoril sobre os seus companheiros e convivais. O que ele sabe ter de cultivar são as artes de si, as artes vitais .technai tou biou): a serem ativadas, de modo sui generis, por meio das experiências estéticas contraídas e sustentadas especificamente entre si e os seus amigos, amantes, e todos aqueles a quem reciprocamente ele admire e respeite. As amizades e os amores filosóficos não lhe perquirem da vida outro próposito, que não o do conhecimento e o do cuidado, de si e dos demais. Nessas relações de aprendizagem para a vida boa e bela (kalòs kai agathòs), digna de ser vivida, quem se amigam substancialmente são os próprios corpos - os quais se buscam, se doam de maneira prazenteira: a experimentarem-se, coonestarem-se e disporem-se na indefectível ativação das técnicas vitais para a invenção ética e estética de si mesmo.

As técnicas vitais permitem aos indivíduos efetuar um certo número de operações em seus próprios corpos, em suas almas, em seus pensamentos, em suas condutas, de um modo tal que os transforme a si mesmos, que os modifique, com o fim de alcançar um certo estado de perfeição, ou de felicidade, ou de pureza, ou de poder sobrenatural etc. Permitam-me que chame a esse tipo de técnicas, as técnicas ou tecnologias de si mesmo (of the self) (FOUCAULT, 1990 p. 35-36, grifos do autor).

Essa conversão do olhar .epistrophé), à qual Foucault (2006b) se refere como condição à preparação (paraskeué) do conhecimento e do cuidado de si (gnothi heauton e epimeleia heauton), exorta àquele que busca uma vida filosófica a não ter de ocupar-se senão consigo mesmo: desviando o seu olhar e a sua atenção de tudo o que não lhe diz respeito, e daquilo que - de sobra - não passa de aparência furtiva e mera opinião. Conhecer-se e cuidar-se consistem, nesse sentido pleno de uma vida filosófica - conforme o comentário de Foucault (2006b) acerca da sabedoria socrática -, na verdadeira e única tarefa de converter-se a/em si mesmo. A exigência para isso não pode ser, contudo, nada menos do que a total coragem da verdade.

A conversão consiste, primeiramente, em se desviar das aparências. Encontramos então o elemento da conversão como maneira de se desviar de alguma coisa (desviar-se das aparências). Consiste, em segundo lugar, em fazer, dos outros, o retorno a si, constatando a sua própria ignorância e decidindo-se, justamente, a ter cuidado consigo e a ocupar-se consigo. Finalmente, num terceiro momento, a partir desse retorno a si, que nos conduzirá à reminiscência, poder-se-á retornar à própria pátria, a das essências, da verdade e do Ser (FOUCAULT, 2006b, p.189).

Não obstante o risco da própria vida, o filósofo parresiasta não se submete a nenhum tipo de domínio, contraente de sua vontade ou que lhe mitigue a liberdade, mesmo que isso venha a lhe resultar em diversas situações de perigo - o que normalmente ocorre. De jeito nenhum, ele declina da coragem da verdade, não permitindo jamais imanizar ou sujeitar a sua vontade - e o seu ser - sob a detença de alguma custódia, tutela, garantia, promessa ou ameaça. Ainda que a instituição ou o sistema dos poderes lhe oponha o libelo da loucura, da perversão, do desvio, da marginalidade, da desqualificação moral ou dos vícios, ele nunca deixará de ser - em sua vida, no seu presente - o que ele de fato é e deseja ser. A coragem em exercer a autoria da própria vida, a despeito de todas as normativas, censuras, restrições ou suasões exteriores ao seu ser, é, portanto, o requisito essencial da parresía - ou de uma vida plena e verdadeiramente filosófica: levada a efeito pelas técnicas ou artes de si (technai tou biou).

É conforme a exigência ética e estética de que se crie ou de que corajosamente se invente a própria existência - como nada menos do que uma notável e original obra de arte - que, por último, a função crítica da filosofia converte-se inteiramente: ao imperativo socrático do conhecer-se e do cuidar-se a si mesmo. Para tanto, a coragem de pensar e enunciar a verdade, tanto quanto de vivê-la conformemente, é algo imprescindível ao sujeito: que se arrisca a postulá-la a fim de, sem mais quaisquer reservas, anteparos ou senões, atuá-la plena e desimpedidamente, abjurando todas as aparências e opiniões a seu respeito.

Foucault (2006b), em evidenciação a essa verdadeira ontologia do presente, e em superação definitiva às tradicionais questões da teoria do conhecimento moderno - acerca da natureza, dos limites lógico-racionais da realidade e da formulação válida da cognição do sujeito - nos remete hipercriticamente ao diálogo e à compreensão de nós mesmos; posto que não de modo analítico nem introspectivo, haja vista não pretender - sob nenhuma insígnia ou previsão - a solução final para quaisquer dos dilemas do humano. Na condição de intelectual localizado e atento demais a tudo o que lhe sucede no presente, antes de qualquer sistema de proposições, ele visa - ética e genealogicamente - a disposição atitudinal do ser: inteiro e específico, em seus respectivos mundo e tempo atuais.

Entre a decisão a uma vida filosófica e a ontologia do tempo presente é a estimulação ético-estética do ser - a inventar-se, investir-se e presidir-se - que lhe confere a coragem total da verdade: de, a despeito de tudo, assumir todo o risco de dizer, atuar e viver o que de fato pensa; numa liberdade plenamente atual, sem mais licenças nem devires, e pela qual ousa pagar com o preço da própria vida. Não há ênfase - a si, de si mesmo, em suas reflexões - à ordem discursiva de acréscimos e composições cognitivas, nem a quaisquer prescrições eminentemente morais, para a coação de suas condutas. O que se há de exigir do ser é a coragem de atuar(-se) - de consumir-se imperterritamente à vida como esteta de si, como cultor de uma inaudita obra de arte. Uma obra insculpida em seu próprio corpo, com o cinzel da vontade, na ranhura de suas carnes; tal qual espantosa e ineludível experiência estética, sem disfarces nem rebuços… e não mais de acordo ao cumprimento de nenhum roteiro, tampouco à realização de alguma promessa, a qual lhe haja sido gerada ou hospedada em representações de narrativas alhures aos seus sonhos e à sua própria existência.

Sob esse aspecto, importa ao ser que - este - se veja e se volte inteiramente para si: de modo pleno e atual, abjurando a seu respeito a eficácia de toda profecia, não retratando racionalmente mais a sua personalidade - nem conforme o logos da história nem como imagem inconsciente, refletida no abalo entre os domínios abstratos da natureza, a ascendência patriarcal e as potências da divindade. Não se arroga mais ao ser esteta de si que continue igualmente inventariando justificativas, a propósito de prerrogativas e identidades, encapsuladas em prédicas do direito ou da ação comunicativa.

Injunta, porém, às instituições de outorga à sua civilização no mundo, a vontade como potência do sujeito segue esboroando-se à cata das posições e representividades históricas da modernidade e da era dos direitos. Ao contrário disso, a atenção e a atuação vitais desse sujeito - ser de si mesmo - hão de fazer-se ontologicamente presentes, doravante, como invulgar e atual tarefa de si, como construção inexcedível e própria: ao mesmo tempo em que política e eticamente instem-se as suas criações e práticas adrede ao governo de si e dos outros (sobre si e o seu mesmo corpo, em encontro estético aos dos demais: em fruições e estilizações a propósito da erótica, da amizade, da espiritualidade e da ergonomia dos prazeres, como novas e autênticas atitudes e comportamentos de vida).

Os pensamentos do professor do Collège de France consistem, daí, em táticas, em estratégias, em estilizações, em fogos de artifício… a inspirarem a invenção ética do ser de si mesmo… em estetizações existenciais atuadas de modo inusitado e criativo… além de, cada vez mais, intensas no uso filosófico dos prazeres: sem que se pespeguem mais nas regras lógicas dos discursos e de suas comezinhas verdades ou ainda nos parâmetros graves da normalidade censora… mas investidas à oportunidade tensa e sutil de se erguerem como um front do próprio corpo às anteposições de prestigiadas visões do mundo. São pensamentos que não têm, por isso mesmo, nenhum caráter salvacionista, composicional, nem responsabilidade alguma em conferir respostas - ao que/a quem quer que seja - na conta injuriosa do certo ou do errado. No entanto, como vibráteis petardos (que não almejam senão consumir-se na alacridade e no regozijo de seu lançamento), eles fazem tremer os sujeitos mal aspectados, refalsados sob a pele de suas identidades postiças e asidos ao zimbório de seus discursos exteriores.

Por derradeiro, a atitude limite do ser que se faz artífice de si, assumindo a sua sombra e dinamizando a sua luz (na lâmina das experiências consigo!), é o que verdadeiramente interessa. A atitude, não de insensata negação nem de árida interiorização, mas de experimentação trabalhada e intensa para a humanidade de si, incorporada diante do outro no mundo - no que isso tenha de vívido, indefinido e encantador - converte-se na experiência fecunda e imponderável da matéria filosófica para o desafio da própria vida.

Não se trata, diante disso, de se ser ou não assaltado pelo bonde de Foucault, pelo frisson da intelligentsia brasileira, diante dos preclaros dispositivos foucaultianos ou foucaudianos . aqui pouco importa. Interessa, sim, a sua ontologia do tempo presente; aquela que o autor se propõe a compor de si/em si, no/para o cuidado de si e dos outros: desde a arqueologia que empreende - como desbaste à positividade dos saberes - até a ética que não preside, mas que encarna, com o ânimo total da verdade, o encantamento e as experiências de si entre os corpos; em atendimento à coragem total de ser, de estar e de atuar estética e inteiramente em seu próprio tempo e lugar.

Saber, Poder e Ética de si no Tempo Presente

Fazer Filosofia, ser ético, portanto, não pode ser senão atuar, enérgica e desafiadoramente, em vivazes performances: as quais, em simultâneo - sem guião -, permitam ao ser esgarçar as malhas do poder e, visceralmente, ao revés de seus efeitos e dispositivos de saber (em clivagem aos mesmos, por si mesmo), permitam-no desnudar-se e apresentar-se de maneira genuína e audaz: cínica, irônica, estóica, epicurista e parresiasta4.. contrafeita às sucessões, de todas as ordens, editadas à domesticação de seu corpo, dos dos demais, de suas vontades e comportamentos vitais.

Mediante a mais atual, aguda, direta e contundente coragem de conhecer-se e diagnosticar-se a si, propriamente em sua mortalidade diante dos poderes, filosofa aquele/a que assume a verdade da própria vida… e se arroja, sem mais medos nem detenções, ao ergon, à tarefa ética de perceber dessa vida uma cura, um cuidado: dedicado todo à elaboração, em si, de uma verdadeia obra de arte - prazerosa, admirável de se ver, de se sentir e, sobretudo, digna de se apreciar e de se viver.

Foucault (2006b) sabe que não há de ser, senão assim: porque as identidades assujeitadoras dos indivíduos - como condição científico-existencial a recidivar desde a modernidade - tratam lado a lado (e posicionalmente como títeres dialéticos) todas as relações da vontade e do conhecimento; auferindo delas a pretensão de produzir discursivamente a totalidade e o controle das dores e distensões, em face das flexões do poder; das possibilidades, ambições e esperanças dos sujeitos, em derivação ao seu alienado tempo presente.

À revelia da vontade de seus corpos, da ancestral intuição e sabedoria de seus sentimentos e em favor apenas da agitação de suas (cons)ciências, postiças e postulantes, as subjetividades seguem… inobstante a segurança dos direitos, a comodidade das tecnologias (que, a todo o tempo, lhes assistem) e a despeito da precisão e certeza de suas informações… recalcadas em culpas monumentais, mergulhadas na pobreza sem arte, descuidadas da própria vida (que em algum lugar passa longe de si) e sem nenhum amor.

À sombra da miséria sistemática do self e em justaposição rendida ao fideicomisso moderno (dos predicados racionais e dos regimes de seus poderes), hoje, essas subjetividades adejam… se desassossegam e se contorcem por penosamente pleitear o descobrimento da verdade… sem saber, no entanto, em que empregar a energia de seus corpos, tampouco o que fazer de suas próprias vidas.

Sob a sujeição dos direitos e de suas identidades, manietadas pelos regimes de trabalho e produção, examinadas ainda pelos olhares da clínica e dos poderes censores e, agora mais do que nunca, arremessadas à descartabilidade do consumo, tais consciências assujeitadas (resultantes do domínio da racionalidade e da cientificidade discursivas) podem até ser diagnosticadas - nesse sentido todo caro à psicanálise - conforme o padecimento de algumas pulsões e/ou desejos retesados. Entretanto, são elas mesmas que, de ordinário, determinam as escansões físico-econômicas e políticas - sob cujas síncopes reboam a inércia de suas vontades e a pusilanimidade de seus quereres.

Como fator biopolítico de vidas matáveis, os regimes de sucessivas e estruturais traições, frustrações, sujeições e rejeições - da modernidade ao presente - envergam os sujeitos, em todas as representações de sua humanidade ocidental, à condição de criaturas politicamente afásicas, ética e criticamente apáticas e sempre mais indiferentes… ademais de esteticamente horrendas: reduzidas, em meio à mesquinhez - do egoísmo mais atual e maduro das instituições -, ao espectro ou à ausência brutal de uma vida própria.

Foucault (2006a) é precisamente o detonador dessa história moderna de produção à morte da humanidade - a qual ora aplasta os sujeitos em dispositivos de poderes jurídicos e autômatos; submetendo-os, cediços, à correlação positiva das determinações tecnocientíficas, das disciplinas. incitações tecnocratas; arrojando-os, por último, à extra-discursividade dos atuais identitarismos, pluralismos e falsas liberdades democráticas; convertendo-os - imponderadamente, como meros corpos-massa - ao alvedrio mendaz das necropolíticas de consumo, destruição e descarte da vida.

Em resistência ao arrasamento antropológico e à desrealização vital de seu tempo, o Professor do Collège de France formulou o que se convém denominar de uma ética de si - como espécie de empenho ou de estilização existencial, dedicada a uma ontologia do tempo presente5.. Disso se segue a sua busca por analisar, antes de qualquer coisa ou aspecto defuncionalidade do real, como se caracterizam os saberes e os dispositivos de poder do/acerca do sujeito - e a sua constituição ao longo da história: “Não é, pois, o poder, mas o sujeito aquilo que constitui o tema geral de minhas investigações”6..

Ainda segundo Foucault (1976), não foi senão através de um jogo insistente que se pôde constituir - lentamente ao longo dos últimos três séculos e meio - um saber do/acerca do sujeito e de sua humanidade: não exatamente sobre a sua forma e a sua história, mas a respeito daquilo que o cinde, que o possibilita . autoriza (ou, por exceção, respalda) a poder serora isto ora aquilo; aquém do que - principalmente . o inflija a seguir escapando de si mesmo. Conforme esse entendimento, igualmente a propósito de uma microfísica do poder, a centralização racional dos saberes e de seus alcances subjetivos não extrapola nunca - consoante a tradição identitária do pensamento moderno - a contemplação das posições do discurso, ou a fácies da existência refeita à sintaxe das regências do saber-poder.

Ao arrepio das acusações categoriais de prerrogativas, atributos e funções, contrafeito à escrituração de suas culpas e de seus acertos, ao ser-sujeito da tradição moderna só lhe resta autenticamente uma saída para a libertação de si: lançar-se, audaz - sem que se lhe inflija mais nenhuma sujeição, sem mais preguiça nem covardia -, ao itinerário que o emancipe de ser - prejudicado à minoridade racional - . agente de si mesmo. Firme na atitude, na resolução em que despretenda para si o ideal de um roteiro ou o bom senso de um projeto existencial, arriscando-se na dureza de suas próprias experiências - diretas e corporais -, poderá o sujeito, sem mais a injunção de predicados, libertar-se das expectações e programações assujeitadoras da modernidade: demitindo-se, em definitivo, dos anteparos de licenças e tutelas, dedicando-se à feitura (resoluta e intrépida!) da ética de si, e não contando para tanto senão com o seu próprio corpo e vitalidade.

Remeter o ser a uma consciência exterior, a um entendimento em órbita à gravidade do que se lhe magnetiza ao redor da importância da massa racional - para uma análise meramente mórfica e de enfeixamento elíptico às curvaturas do real - pode até qualificá-lo como sujeito sagaz, alígero e existencialmente promissor (herdeiro de uma promessa! habilitado a um estado ulterior!), mas não sem tragicamente alienar-lhe da propriedade de seu corpo e de seu lugar no tempo presente, anulando-lhe o potencial de atuação no sentimento, no conhecimento e no cuidado de si mesmo.

Dizer, enfim, que algo é verdadeiro para o ser em razão da medida ou do cômputo daquilo que exata e sistematicamente corresponde aos problemas da realidade é o mesmo que limitar, de maneira sinalagmática e abstrusa, o ato de conhecer a um processo autômato e superficial, como que ao arremedo da equilibração de uma equação; ademais de relegar o cometimento da existência a uma mórbida passividade - igualmente impediente à construção ética e autodeterminada do ser de si no mundo.

Diga-se que, em suas intenções vívidas e localizadas, sem refolhos, nas dobraduras onde se metia a denunciar as ingerências mortíferas da biopolítica e os racismos dos saberes clínicos e jurídicos, o experimentador das microfísicas do poder não almejava - no azo da herança deste ou daqueloutro projeto de subjetividade - relacionar de modo exato as formações discursivas vigentes com as práticas sociais que elas comportam (nas quais os sujeitos, soezes, buscam se acomodar, representando e/ou executando de maneira cabotina os seus papéis).

Ao contrário, e para além disso (ao mesmo tempo em que critica a ideia de progresso no espírito, no horizonte da grande história), Foucault (2006b) descerra a viabilidade de um estudo genealógico e eticamente intestino: entranhado à composição mesma dos sujeitos como resultado ou efeito da imantação de dispositivos de produção, circulação e representação de valores, diferenças e interesses no emaranhado conceitual dos discursos e dinâmicas do poder. Da detenção a esse enleio, da modernidade ao presente, é que se ponderam, se projetam e se descrevem, historicamente em profusão, a realidade e as suas lógicas a propósito da subjetividade racional.

É preciso, pois, livrar-se do sujeito constituinte, livrar-se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica. É isto que eu chamaria de genealogia; isto é, uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo dos acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história (FOUCAULT, 1986, p. 07).

A isso equivale dizer que os discursos de saberes e os regimes de (in)formação desde/sobre os sujeitos e os seus (contra)domínios de poder concertam-se, grosso modo, a partir de condições técnico-produtivas externas a eles mesmos (formais, objetais); situando-se, historicamente, como elementos ou dispositivos práticos de impressão e controle essencialmente econômicos e estratégicos. Os seus efeitos correspondem, por seu turno, à formação similar dos sistemas de verdades e pensamentos, tanto quanto sustentam - de modo impessoal e atávico - a dominação das vontades desses mesmos sujeitos, da modernidade até o tempo presente.

Sob o aspecto tríplice da campanha científica da normalidade, dos imperativos do desenvolvimento técnico e social e da imprescindibilidade econômica de sua própria humanidade, em meio ainda à repetição e à diferença de suas exigências cognitivas, práticas, simbólicas e identitárias, os sujeitos modernos, eles mesmos, refundem(-se) e conferem(-se) - quanto aos objetos de sua (re)produção e de sua incoerência - à totalidade de seus simulacros discursivos. Mesmerizam-se à ordem compulsiva da alienação, à oclusão das mesmas dominações de uns sobre os outros, insensíveis à (re)edição das sucessões de suas misérias no mundo da história.

As condições para que apareça um objeto de discurso, as condições históricas para que dele se possa ‘dizer alguma coisa’ e para que dele vários sujeitos possam dizer coisas diferentes, as condições para que ele se inscreva em um domínio de parentesco com outros objetos, para que possa estabelecer com eles relações de semelhança, de vizinhança, de afastamento, de diferença, de transformação - essas condições são numerosas e importantes. Isto significa que não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo, lancem a sua primeira claridade. Mas esta dificuldade não é apenas negativa; não se deve associá-la a um obstáculo cujo poder seria, exclusivamente, o de cegar, perturbar, impedir a descoberta, mascarar a pureza da evidência ou a obstinação muda das próprias coisas; o objeto não espera nos limbos a ordem que vai liberá-lo e permitir-lhe que se encarne em uma visível e estupefaciente objetividade; ele não preexiste a si mesmo, retido por algum obstáculo aos primeiros contornos da luz, mas existe sob as condições positivas de um feixe complexo de relações (FOUCAULT, 2000, p. 51, grifos do autor).

Essas relações são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais; regras de comportamento, sistemas normativos e redes comunicacionais; manuais de procedimentos técnicos, tipos metodológicos de abordagem, atuação e classificação; símbolos e modos de caracterização, produção e representação da realidade - sem que estejam em absoluto presentes como propriedade ou característica intrínseca aos seus copiosos objetos. Não, não são essas relações que internamente são detectadas, diagnosticadas em sua novidade ou invariavelmente trazidas à luz, quando os sujeitos as empreendem ou as descrevem conforme a análise lógico-racional das dinâmicas de sua produção e investimento no mundo.

Elas não desenham a trama, a racionalidade imanente, a nervura ideal que ressurge . totalmente ou em parte . quando afinal se dissecam (os objetos de seu investimento) na condição radical de um conceito puro ou como verdade empiricamente intuída/ imaginada a partir de seus mais recentes fenômenos. Elas (as relações de conhecimento e produção da modernidade) não definem, de fato, a constituição interna (de nenhum objeto), mas sim o local ou as circunstâncias em jogo, intermitentes às disputas e aos discursos a seu respeito: permitindo-lhe (ao objeto, em sua hipótese discursiva) (re)aparecer justapondo-se aos demais .objetos): inaugurando e situando identitariamente a razão em postulação de sua inteligibilidade, para a exposição de sua funcionalidade. A confirmação ou a definição de suas diferenças, a repetição periódica de suas origens ou ainda a recessividade de suas gerações não correspondem, no entanto, a nenhuma irredutibilidade ontológica, tampouco a quaisquer derivações de sua heterogeneidade em meio à ordem seletiva da realidade e de suas derradeiras ocorrências.

O que importa à genealogia ética do ser - em seu próprio tempo presente - não é, pois, a nupérrima conta de nenhuma verdade, nem o atendimento ao ideal de qualquer humanidade… pouco ou nada valendo a promessa que se lhe haja feito ou a herança que se lhe tenha predestinada. A contrapelo dos discursos e das tratativas do conhecimento, o que não mais se espera é que as vidas sigam sob a indistinta produção da modernidade - à guisa da concorrência ignominiosa entre vontade e consciência: programadas e compactadas pela técnica, reificadas pelo insumo descomunal dos instrumentos tecnológicos… desprovidas de sabor, totalmente isentas de poesia e de beleza… incoerentes ao amor, à amizade, à erótica e aos prazeres… sem nenhum diálogo mais com os corpos e a natureza, sem ter mais o que celebrar… além da estupidez… de seus rituais e memórias em degredo… da própria presença e assinatura estética alienadas de seu tempo.

Um lugar para cada coisa neste mundo

Tudo aquilo que hoje . por referência, não por casuística, tampouco por evolução científica . se pode divisar e inventariar como a modernização do mundo, em conformidade à sua progressiva virtualização, ou ainda ajustado ao que resulta das sensações defasadas às programações do desejo, situa-se, de fato, como peça ou resultado efetivo das realizações difusas do poder: à mercê da minaz e ressentida (re)produção das atuais subjetividades. Sob o infinitesimal controle das cautelas racionais, reféns das campanhas por éticas . direitos a mais, subjugadas à sanha por tecnologia e ao culto estúpido em ascensão do consumismo e indiferença generalizados, essas subjetividades tornam-se, por sua vez, sempre mais indispostas a assumir as suas existências como práticas de singularização vital.

Ao anúncio ou à presunção de suas autoridades, à deriva das regras e valores institucionais, ou tal qual pantomimas de suas celebridades, esses mesmos sujeitos - acerbos mediante a voracidade persecutória e identitária dos poderes - ora definham: ausentados de si, quase que em absoluto manietados à imobilidade e à decepção política de seus personalismos. Jazem então sedados ao catre da dessubstancialização midiática ou rebotados à desrealização, sem travas, de seus comportamentos vitais.

Por sua feita, à semelhança de uma solução de continuidade, capaz de veicular os seus efeitos como produto de dispositivos que funcionam e que pretendem seguir dominando todos os sentidos sem sujeito, os discursos do poder-saber seguem à ênfase da definição de quais são as relações de interesses razoáveis e possíveis na ordem comunicativa moderna: dada a objetividade de suas representações e a racionalidade deferente e mendaz de suas discussões e argumentações. A despeito de qualquer consciência ou sensibilidade dos sujeitos, sobre cujas vidas dobram-se esses efeitos, tais relações seguem permissivamente dispostas: tanto no polimorfismo versátil das próprias subjetivações quanto na polissemia inútil e sem estofo de seus enunciados.

Toda essa (ir)realidade sem mais assentamento no tempo presente não é, no entanto, um produto comum do progresso humano, nem um patamar ascensional da história, muito menos o corolário da iluminação de um espírito universal - mas o resultado de algo perspicaz em introjetar, no decalque da consciência, tudo o que admitam as subjetividades imprimir sob a sua ordem racional. De maneira oclusiva e sobrelevante, disposta principalmente por meio das séries identitárias da moral, dos modismos e das aparências discursivas, os sujeitos seguem - na ordem do discurso e da produção da normalidade - aderindo eia ao controle e à vigilância total de uns sobre os outros.

Em negação a isso, ao tomar consigo os esforços de uma filosofia vital - que arroga ao sujeito o atino de suas decisões e ações, como imbatível atuação ético-estética de si -, Foucault (1976) pressente, já desde a sua genealogia do poder-saber, que toda e qualquer compreensão a propósito do ser de si doravante haveria, diante do mundo, de irromper… e de necessariamente se fazer… no corpo: posto que vigiado de todos os lados, ainda que assujeitado às disciplinas e aos regimes de todos os poderes, mesmo que subsumido na ordem de todas as coisas e efeitos discursivos a ele sobrepostos.

É estudando, pois, a formação histórica das sociedades capitalistas, através de suas pesquisas pelo Collège de France, que Foucault (1999) compreende a constituição dos dispositivos de poder (discursivos, econômicos, políticos, comportamentais, institucionais e culturais) e de saber (científicos, conceituais, regimentais e simbólicos) sobre a dinâmica contingencial das urgências e necessidades dos sujeitos e seus corpos. Trata-se de dispositivos os quais precisamente transformaram os indivíduos em sujeitos da modernidade: conduzidos mimeticamente pelo anúncio de suas promessas, ladeados pelos valores morais da sociabilidade burguesa e tornados, cada vez mais, ausentes de si - pelo sequestro produtivo de seus corpos, de suas forças e de suas vontades.

Sob o azorrague das dinâmicas de controle . repressão/incitação/contenção., os efeitos da política, para a produção da vida e da morte (além da própria mecânica dos poderes e de suas práticas), converteram-se no principal parâmetro de saberes sobre a resistência e a estimulação dos sujeitos, precisamente a partir de seus corpos: alienando-lhes e capitalizando-lhes - em simultâneo - as pretensões e representações de praticamente todas as suas disposições e vontades comuns. São efeitos e resultados os quais se expandiram - anonimamente - por toda a parte… divisando, insuflando e efetuando as formas e procedimentos (da clínica, do direito, do adestramento) por meio dos quais, desde a modernidade, as técnicas de dominação (quer diretas e disciplinares, quer subliminares e afetivas) se imantaram - irresistíveis - e se assomaram - sequazes - sobre a massa impessoal de corpos devolutamente assujeitados. Desde então, destruíram-se incontinenti as amizades, arruinaram-se os amores, e os sentidos estéticos - indispensáveis à compreensão filosófica de suas existências - estiveram mitigados.

Percebe-se, dessa maneira, que a dominação que o poder exerce dá-se à conta das exigências em busca por uma suposta e unívoca verdade fundamental do sujeito - a despeito da base corporal e materialmente diversa que lhe anima e que lhe sustenta a vida em suas expressões singulares. Essa dominação estende-se, por conseguinte, às redes axiológicas e normativas (hoje comunicativas e midiáticas) . advindas, supinamente, das instituições e referenciais intersubjetivos do direito, da educação, da política, da religião, da família e de todas as demais organizações sociais: as quais, ora tramadas por consumismo e indiferença atrozes, perseguem - obliterada, desesperada e, cada vez mais, inutilmente - algum sentido ou razão para o vazio, em que ora se encerra o sujeito sem mais conexão consigo no tempo presente.

Pela insistência em se saber de uma verdade assim, exilada e irresoluta, humanamente perdida, esvaziada e disforme, esse mesmo sujeito tem - de modo incessante - plangido sob o acúmulo da normose e disciplinamento dos poderes… e tido mortificado o seu corpo à insensibilidade e alteridade técnica da alma moderna.

[...] pudemos mostrar como as técnicas disciplinares de poder, consideradas em seu nível mais tênue, mais elementar, no próprio corpo dos sujeitos, haviam conseguido mudar a economia política do poder, haviam-lhe modificado os aparelhos; bem como também essas técnicas, incidentes sobre o corpo, haviam, não só provocado um acúmulo de saber, mas também individuado domínios de saberes possíveis; e, depois, como as disciplinas de poder aplicadas aos corpos haviam feito sair desses mesmos corpos sujeitados algo que era uma alma-sujeito, um ‘eu’, uma psique a ser dita e a ser ouvida a todo custo (FOUCAULT, 1999, p. 221, ‘grifos do autor’).

Não obstante o cadafalso desse fundamento, ou toda a sordidez dessa alma perseguida pelas luzes, talvez, ironicamente, o maior perigo que da razão subsista - ao sujeito miseravelmente adormentado pelo diagnóstico de tantas verdades - seja o de, no presente, pretender-se ainda resgatado por alguma promessa ou profecia: a qual o arrebate, enfim, das inconsequências de seu mundo e de sua humanidade horrendos. Caso o conhecimento que pretende de si reduza-se à condição de uma alma trânsfuga do consumismo e da banalidade, ou não entenda para si outro cuidado que não o de ser galhardoado pelo personalismo do eu ideal (que é, que tem de ser! mas que não sabe o que lhe faz ser como tal necessariamente um a priori), o sujeito seguirá custodiado, minorado à inconsciência de suas próprias potências … bem como o seu corpo não será - sendo - mais do que uma massa modelar aos saberes/poderes que o detêm e controlam.

[...] em lugar de dar fundamento ao que já existe, em lugar de reforçar com traços cheios linhas esboçadas, em lugar de nos tranquilizar com esse retorno a essa confirmação final, em lugar de completar esse círculo feliz que anuncia, finalmente, após mil ardis e igual número de incertezas, que tudo se salvou; sejamos talvez obrigados a continuar fora das paisagens familiares, longe das garantias a que nos cremos habituados, em um terreno ainda não esquadrinhado e na direção de um final que não é fácil prever (FOUCAULT, 2000, p. 44).

O longo e contínuo trabalho do pensamento no fio do tempo, o despertar e o progresso da consciência na recuperação monumental da história, a sua aparente e perpétua retomada nas promessas e heranças discursivas das tradições, o movimento arrematado - posto que ininterrupto e duplicado - das ações providenciais e emergenciais, o eterno elastério a uma origem teorética (e sempre inaugural) de retomada trágica do horror e, finalmente, o coroamento do reino histórico-transcendental no espírito humano apriorístico: nada disso, no plano suave das lógicas e na ordem limpa dos discursos, livrará o sujeito e a sua humanidade do perigo a que nos refere Foucault (2000).

A despeito de, a cada reviravolta paradigmática do tempo, a cada serviço ou faxina em manutenção da história e do lugar das coisas em conformidade ao mundo, sucederem-se acordos à celebração da paz e cooperação para o desenvolvimento, estamos e seguimos todos em perigo… Tudo isso, toda a obra em reminiscência/descendência/ascendência à humanidade (e à sua autoria), não corre então o risco de desaparecer, liberando à disposição filosófica um espaço em aberto, sem exterioridades nem promessas nem dignidades de nenhum tipo?

Além da história, onde estaríamos?

No corpo que se expõe, sem quaisquer garantias, a correr esse e todos os perigos, a arriscar-se inteiro, despido de pretextos e sem metas ou roteiros estabelecidos, é que está, pois, a ocasião filosófica e febril a uma vida autêntica: que nega a ascendência numinar da cognição exterior a si, desvestindo-se de toda a moral umbrosa, do bafio das oportunidades da história em série. Referimo-nos ao corpo desnudado em uma vida que não empreende senão o genuíno conhecimento de si, ademais da ética no cuidado total de sua própria existência: estética e corajosamente inventada junto às artes e técnicas vitais - da liberdade, da amizade, da erótica e da ergonomia dos prazeres.

Da sensação de vazio e dos simulacros extemporâneos da (pós-)modernidade que se fragmenta… porque, pesada, não se suporta mais inteira como corpo teórico acabado… e despenca em suas lânguidas tentativas de salvar o conceito ou a promessa de sujeito…, é daí, dos interstícios de toda essa densidade esfumada e muito confusa… compacta e armazenada em tecnologias e teorias até a absolutizante virtualização do presente…, que Foucault (2006b) assume chegar aos interstícios microfísicos e de resistência vital: anteriores a toda a ordem de formação e enunciação lógico-racional da realidade - a qual se sobrepõe e se (pro) (intro)mete, até agora, em meio aos sujeitos… moldando, por fim, as concepções temporais e culturais da própria história (da grande História da Humanidade!).

Das fímbrias ou dos pontos marginais de desfiliação/desvinculação das heranças, da abjuração de todos os anúncios proféticos e do descrédito das promessas dessa história é que, sem embargo, os sujeitos ontologicamente desviantes ousam - no tempo e no espaço de suas vidas - arrenegar as séries de complexos e imposturas sobre si: de perspectivas tão específicas e diversificadas quanto as diferenças que, de fato, se repetem de corpo humano para corpo humano; conforme a disposição sinistra e racista (ou não) dos que pretendem seguir sob os ritos dissimuladores do poder… ensaiando, apenas sob a outorga dos seus efeitos e ardis, a hipostasia dos sujeitos alheados de si.

Vitimados pelo ódio que, ao fim, sentem de si mesmos, e de todos os outros que obsedadamente lhes pareçam uma presença opressiva à madurez de seu egoísmo, os sujeitos perdidos de si - que ainda hoje, mesmo circundados por tanto horror, aspiram à alienação do poder - ora se deparam ontologicamente com a sua própria inexistência: ante o entendimento tardio e descoroçoado de que, entre todos os preceitos morais da humanidade, decerto o único do qual ser nenhum terá como ausentar-se é aquele que corresponde à tarefa ética de ­- sem mais qualquer sujeição - conhecer-se e cuidar-se a si mesmo.

Do empenho ético consigo, à dissociação de todos os cativeiros de seu tempo, o sujeito esteta de si (que se conhece, e eticamente cultiva a sua própria existência) é aquele que então - presentemente - está a desvelar as atualizações funcionais, (a)efetivas, eletivas e locais (de diversos perversosdispositivos), invariavelmente conformadas aos expedientes de uma razão que segue operando na ciclópica trama discursiva da história: transida sobre ela mesma, atravessando-lhe e consumindo-lhe as suas carnes, e da qual ele ora se ocupa em unicamente desenlear-se.

Com efeito, a pretexto dos sucessos dessa história - em confirmação à destinação do mainstream de suas personagens, aos segredos em iniciação de seus agentes, às promessas há muito anunciadas -, continuam enredando-se aparentemente as vidas e as grandes narrativas oficiais da humanidade: conforme o rol dignitário da expulsão e da destruição da morada na qual se conspurcou a sua criação. Todavia, das franjas espúrias desses movimentos (e babados todos), inoportunamente à justiça de suas hierarquias, ao mérito de suas descendências, à técnica minuciosa de seus editais, ao lixo de toda a sua culpa - sem nenhum desespero, herdeiros de mais nada -, os loucos, os desviados, os anormais, os obscenos, os que estão fora da curva, das caixas e dos armários, os vagabundos, escandalosos, pervertidos que soçobram, os poetas e os artistas livres, talvez, não tenham nada a dizer nem a ensinar frente os holofotes da ciência, da mídia e da academia: envoltas às disputas de tanto ódio e diferenças pequeno-burguesas.

Ainda assim, filosoficamente junto aos seus amigos e aos seus amores, malgrado todas as imprecações, condenações e esconjuros os quais lhes progride arrojando a história da humanidade, estes réprobos, estetas de si, seguem - desde a invenção de um sentido todo próprio às suas vidas - nos lumpens e alcouces da periferia, inteiramente vivos e dedicados ao seu tempo presente; e vão elaborando, do máximo de suas experiências e do cuidado uns com os outros - sem mais quaisquer medos nem ressentimentos -, verdadeiras obras de arte.

Os sujeitos, decididos assim a uma vida filosófica, dedicados a curarem-se de todas as aparências, mazelas e opiniões a pretexto de si, sabem, no entanto, que as técnicas vitais à estetização de suas existências não prescindem do enfrentamento ético e diuturno a todas as investidas do poder - contra os seus corpos, a sua arte, as suas estilizações e a sua própria vida. A sua sabedoria consiste em compreender que os seus itinerários vitais - por ousados e verdadeiros - estão todo o tempo em perigo, mas igualmente na constatação de que poder algum equivale à liberdade e ao sentido próprio de dispor-se corajosamente ao conhecimento, ao cuidado e à invenção de si mesmos.

Nenhum poder é, assim - para o ser de si mesmo -, algo que se adquira, arrebate ou compartilhe; tampouco corresponde a qualquer coisa que se guarde, se herde, se transmita, se perca ou que se deixe escapar. Todo poder se exerce, na verdade, em meio à profusão de performances, relações desiguais - e sempre móveis - entre as subjetividades postas em oposições essenciais: alienadas contínua e artificiosamente às sucessões de tensões, e aos abalos de contrariedades conflitivas. Relações as quais, no entanto, não têm: “absolutamente como base primordial proibir, impedir, ou dizer ‘você não deve’” (FOUCAULT, 1994a, p. 187, ‘grifos do autor’).

D’outro modo, improvável é que qualquer poder se dividida entre aqueles sujeitos que - simplesmente por força, casuística ou tradição - o detêm, e os que por ele são/estão detidos ou cancelados; haja vista que, dentro do mesmo assentamento e da reserva de suas forças e instituições, o processo de exercer e de sofrer ações e efeitos de poder não se efetiva nunca em um mesmo nível de relação entre os assentados.

Tal dinâmica ostensiva faz com que os corpos dos sujeitos contenham - vil, imperceptivelmente - a representação imagética do que é comum; do que se (as)sujeita e se dissimula na busca da mesma sexualidade, dos mesmos gostos vulgarizados, dos iguais prazeres comezinhos, das atitudes e das metas mais indistintas e exteriores, dos comportamentos, hábitos e identitarismos que simplesmente convêm… além dos discursos e das conceituações que viralizam… e que se generalizam de maneira banal, corriqueira, inconsequente e egoísta.

Veja-se, então, que as dinâmicas e os resultados do poder não se dispõem precisamente em regras claras, como em um jogo. Em suas apostas não há perdas e ganhos consecutivos - ora de um lado, ora do outro -; há o aviltamento completo dos sentidos e das ações, a obnubilação reversa do humano na contenda e na comenda do humano.

O poder das práticas orgânico-funcionais - então efetivadas pelas redes de saberes, discursos e disciplinas da/sobre a realidade - pretende determinar, de fato, toda a existência possível: diante da qual não reste mais nenhuma intimidade, sequer cumplicidade. Todo aquele que resista à condição invisível, invencível e insensível - por isso amorfa, sem gosto e sem vontade própria - de suas dinâmicas, e intente a representação autônoma de seu modus vivendi, rompe com a ordem de funcionamento da realidade e… de chofre, passa a ser apenas tolerado ou mesmo sistematicamente perseguido.

O caráter relacional do poder implica, pois, que nenhum sujeito esteja aquém às suas ingerências e indigitações, e que as próprias lutas contra os seus domínios e o seu exercício não se efetivem de outro lugar (afora à sua gravidade ou à sua órbita); haja vista que um espaço assim não existe… e que nada está isento de poder. Qualquer luta, portanto, é sempre resistência… e como há poder, há, entrementes, resistência… e é especificamente nela - sem se entregar nunca - que contra-atuam os sujeitos: filosoficamente decididos, ao preço de suas próprias vidas, a compor de sua existência uma obra de arte. Consoante nos diz Foucault (1994a): “[…] o poder não é somente uma força negativa, mas também uma força produtiva. Ele está sempre presente e, onde há poder, há resistência - sem que esta jamais esteja em posição de exterioridade ao poder” (FOUCAULT, 1994a, p. 740-1).

Por outro lado, percebe-se que, se não houvesse resistência, as relações de poder não investiriam os seus cálculos - de fora a fora - na arregimentação de prós e contras às suas ambições. Tudo apenas se resumiria - se assim fosse - a uma questão de obediência ou de revolta. Sucede, que nas situações em que os sujeitos não têm promovidos ou satisfeitos os seus desejos, são eles próprios quem pretendem lançar mão das relações de poder (das mesmas que os assujeitam): na porfia ora de concessão ora de exceção - e vindita - ao que lhes é negado ante os demais. Ou ainda se insurgem - partidária, republicanamente - contra aquilo/aquele que lhes faz prosseguir desejando. A resistência é, portanto, o que é anterior; ela é o móvel inventado e original, e permanece superior a todas as outras forças em meio aos processos discursivos e suasórios do poder. É a resistência que dispõe - sob o seu efeito composicional, contraditório e dialético - as relações e as performances de poder a mudanças e atualizações constantes. Nesse sentido, complementa Foucault (1994a): “Eu considero, portanto, que a palavra resistência é a palavra mais importante, a palavra-chavedessa dinâmica” (FOUCAULT, 1994a, p. 740, grifos do autor).

É entre os domínios do poder, de seus dispositivos e efeitos - para além da história das palavras e das coisas -, onde, com ênfase, se encontram todos os sujeitos: ora agitados em suas demonstrações, ora apascentados em seus interstícios; invariavelmente urgidos - como resistência - entre os atos e intervalos de seus ímpetos, acomodações e atuações vitais. É, pois, em meio/por meio da resistência que - de algum modo - seguem-se exercendo as relações de poder: laterais ou efetivas (contrárias e conciliáveis, suaves e intransponíveis); tanto quanto os jogos, as vontades e as perseguições da verdade; e ainda os contra-ataques do discurso, a sua crítica social e também (sem exceções ou idealismos) a ironia do artista, o cinismo do filósofo, a ousadia do poeta.

Disso se segue que é a resistência ao poder (ou minimamente aos expedientes de suas reduções e de suas seduções) que arroja os sujeitos à tarefa indeclinável de se postularem: na condição de seres eticamente livres e autodeterminados - ainda que à revelia do alvedrio cativo da realidade (em face de suas durezas dialéticas, a despeito de suas hostilidades teórico-conceituais e da variação de suas injustiças e implicações). Aquilo de que Foucault (2005, 2006a, 2006b) se apercebe, na última fase de seus escritos - a propósito da genealogia ética de si -, é que, sem embargo, poucos são os sujeitos que têm coragem total para tanto, e que o preço da ética de si não pode ser outro que o risco da própria vida. É que a atuação dos sujeitos à sua liberdade, para além dos escombros da humanidade e dos simulacros de promessas em sua história moderna, só pode se dar - no tempo presente - como matéria à estetização ética e ontológica de sua própria existência.

Diante disso é que Michel Foucault (1976, 1990) nos diz igualmente que todos os construtos do poder se compõem a partir da força de torque, da vontade implícita e calculada - assujeitada de maneira local econcentrada nos corpos anonimamente humilhados, nas suas reservas e dissensões .; mas não nas disciplinas exteriores, hierárquica e unilateralmente estabelecidas, tampouco supostamente conformes à ordem natural e/ou racional, distribuída soberanamente sob a procuração de um governo no mundo:

As relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não precisamente subjetivas. Se, de fato, são inteligíveis, não é porque sejam efeito, em termos de causalidade, de outra instância que as explique, mas porque atravessadas de fora a fora por um cálculo: não há poder que se exerça sem uma série de miras e de objetivos. Mas isso não quer dizer que resulte da decisão ou da escolha de um sujeito individualmente. Não busquemos a equipe que preside a racionalidade, nem a casta que governa, nem os grupos que controlam os aparelhos de Estado, nem aqueles que tomam as decisões econômicas mais importantes, tampouco os que gerem o conjunto da rede de poderes que funciona em uma sociedade (e a faz funcionar); a racionalidade do poder é a das táticas muitas vezes bem explícitas no nível limitado em que se inscrevem - desfaçatez local do poder - que se encadeando entre si, invocando-se e propagando-se, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmente efeitos anônimos de conjunto (FOUCAULT, 1976, p. 124-5).

Em meio à impessoalidade do gênio da história e à ausência de representações a inscreverem-se no rol das misérias, interessa avaliar o teor dos posicionamentos subjetivos em face dos novos arranjos e efeitos de conjunto do tecnicismo, e de seus poderes, nas sociedades (pós) modernas: a sucederem-se, então, como manhãs cinzas de uma civilização de consumo, falsa tolerância e indiferença. Trata-se aqui do escopo de negar - com a coragem da própria vida - o alastramento progressivo dos dispositivos de dominação/incitação do poder (até os corpos dos sujeitos e o parcelamento de saberes a seu respeito): detidos no interior horrendo e universalizado de uma morada inóspita, na qual ora parece haver se convertido toda a dinâmica da vida social no presente.

Hábeis a alardear a emancipação dos sujeitos no antro racional do bem-estar, do avanço tecnológico e da democracia representativa, tanto quanto na suficiência ególatra do conhecimento além de si - sem, no entanto (e sob nenhum aspecto), contemplar as criaturas de carne que são seviciadas e homiziadas, entretidas e desencantadas… e que hoje apenas vagam na poluição ruidosa da contemporaneidade…, os discursos de poder seguem traduzindo na história a postulação dos direitos sobre a humanidade inteira, o seu senhorio, a sua vida, a sua autoria e a sua morte.

No inventário, ou no cálculo da memória dessa mesma história, no registro de suas tantas assinaturas, o quinhão de descontentamento dos sujeitos não é negociado mais ante o diagnóstico político dos pontos fracos ou inconsistentes dos sistemas; muito menos na individuação dos culpados, para a reprovação de suas transgressões e o recredenciamento de seus sentidos à manutenção dos compromissos. Dentro da civilização de consumo e de direitos em excesso, tudo ora se abrevia na sujeição sem travas ao poder: que, aferrado à inconsistência e/ou à insensibilidade dos próprios sujeitos, impõe-se (apenas) como programa absoluto de uma mendaz realização .a qualquer custo - feliz.

No reino da cultura tecnológica, na sanha dos identitarismos fantasmais, nas bases do multiculturalismo, dos direitos de muitas gerações e do mercado da diversidade total, os sujeitos têm - enfim, na linha de sua humanidade, por suas tantas marcas e informações (on line) - tornados insulsos os seus corpos: e vaticinam agora, desde o presente de sua aldeia global, a aurora da tolerância e do gozo como garantias de uma liberalidade supostamente incondicionada e sem termos. Tudo, pois, para ser feliz nesta hora parece estar disposto: na incitação e na segurança dos automatismos, no conforto e na previsão para já. Como se deve ser, agir e comprar. Comprar tudo! Sobretudo comprar! A fim, de em seguida, (se) destruir…

Paradoxal, contudo, é que nunca antes - com tanta tecnologia, com tanto conforto, com esse gradiente enorme de comunicabilidade, direitos e segurança - tivemos de igualmente trabalhar, nos isolarmos, desconfiarmos demasiadamente - sem exceções - uns dos outros… e seguirmos, assim, adoecidos… encerrados em vidas avassaladoramente horríveis e tão ausentes. Nessa morada pós-moderna da humanidade, fulcrada em moralidade técnica, em manuais que confabulam censura e estímulo, em indicadores éticos de eficiência, deferência e descarte, as vidas enlevam-se, por último, nos festins da erotomania, da glutonaria e da tecnologia, e a felicidade converte-se na quantidade miserável de satisfação que a riqueza consegue gerar e administrar aos instintos. Tragados por sua civilização de consumo e por sua (sub)cultura de banalidade, os sujeitos, por ultimo, se suportam: em meio à tensão sinistra das sensações que se reduzem, cada vez mais, ao frenesi na espinha dorsal.

Diante dessa lógica de e-commerce e de shopping center, Foucault (1986, 1990) rejeitaria - por sua genealogia dos avanços e digressões do poder - qualquer posição isenta ou ideia neutra ante a atual desrealiação do real. Por detrás das propostas lógico-racional-comunicativas - dos discursos, direitos e aparatos de poder da (pós)modernidade -, ele antes entrevê a disposição sinistra para instrumentar, conformar, imantar e matar os sujeitos todos sob a sua ordem produtiva.

Inexiste, portanto, uma realidade exterior a ser decifrada ou um lugar privilegiado da crítica contra o poder e a programação de suas crises: é nos próprios corpos traídos, e drogados pelas tecnologias do conforto e da satisfação - em suas ranhuras, na inscrição de suas carnes às flexões de disciplinas e incitações -, que se imprime hoje a realidade uniformizadora e consumista: a qual as subjetividades - desde as suas posições de identidades e concessões - seguem gananciosamente admitindo como conhecimento para além de si… relegando as suas próprias vidas à conta daquilo que a história, em suas grandes narrativas, malmente consegue inventar e contar… e oficialmente inventariar às autorizações da necropolítica.

Conclusão(?)

A partir das (des)realizações lógicas do espírito racional, a humanidade (pouco importando o que se tome nessa cifra do humano) não vive - nem herdará - uma época feliz de desenvolvimento e gratificação. Na interceptação do trajeto histórico da modernidade - sobre ela mesma -, todos os esforços sinceros, mesmo os intelectuais, devem arrojar-se a explicitar a situação hodierna do vazio de significados: gerado pelo atroz e estúpido avanço das razões e tecnologias de produção, consumo e reificação das vidas dos sujeitos.

Sem que se haja ainda presenciado genuíno progresso humano no carro oficial, ou na ode elegíaca do real e do racional, o que talvez de mais importante as pesquisas de Foucault permitam divisar seja a possibilidade de criarmos - no único meio de resistência vivencial, e não discursiva (no corpo humano palimpsesto, violentado, adormentado, drogado, alienado, traído e vendido), a rejeição e a própria repugnância ante as tecnologias condicionadoras da dominação sem sujeito.

Tal dominação converte as subjetividades - sob todos os vertiginosos signos do poder, ao preço da vida de emoções e prazeres autênticos - às formas esquálidas de sensações furtivas, e cotadas ao preço da maceração de seus corpos-massa pelas (sub)culturas do consumo. Contra todo esse morticínio - sob as atuais regras de produção da humanidade -, o que ética e esteticamente nos resta saber é se temos, ou não, a coragem total de fazermos de nossas vidas uma verdadeira obra de arte.

Material suplementar
Referências
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité: la volonté de savoir. Paris: éditions du Seuil, 1976.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
FOUCAULT, Michel. Tecnologías del yo y otros textos afines. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S.A. 1990.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2006a.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o cuidado de si. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2005.
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. v.02. Édition établie par Daniel Défert. Paris: Galllimard, 1994a.
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. v.04. Édition établie par Daniel Défert. Paris: Galllimard, 1994b.
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as coisas. Tradução de Sandra Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta das Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do sujeito. 2º ed. Trad. de Márcio Alves da Fonseca; Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006b.
GROS, Fréderic. Foucault: a coragem da verdade. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2004.
Notas
Notas
2 ‘‘Tradicionalmente, a ontologia é o campo da análise delimitado pelas estruturas metafísicas do ente. Fazer ontologia do presente quer dizer juntar dois campos - a história e a metafísica - que parecem incompatíveis. A essa crítica que é indubitavelmente legítima, pode-se replicar que Foucault não foi o primeiro a usar esse oxímoro. Por um lado, o próprio Kant, em seu texto sobre o Iluminismo, ocupa esse duplo terreno da reflexão’’ (GROS, 2004, p. 50).
3 Dos últimos escritos de Foucault exsurge uma temática aparentemente inédita, a que corresponde justamente a inclusão de um sujeito esteta de si - tal como índice de uma genuína atuação ética, em seu específico tempo presente. Essa fase seria denominada de genealogia ética do sujeito, e é basicamente composta por suas duas últimas obras inseridas no projeto d’A História da Sexualidade: O Uso dos Prazeres (1983) e O Cuidado de si (1984), além de As Confissões da Carne (1984) - obra incompleta, da qual a sua morte nos privou. O autor, que havia sido acusado de historicamente esvaziar o sujeito de suas teorizações, fá-lo, nesse momento de sua obra, ressurgir: como ser capaz de resistir a todas as formas de sujeição.
4 Em seu projeto d’A História da sexualidade, mais especificamente no Cuidado de si (1984), Foucault descreve, em meio à atuação das escolas filosóficas da antiguidade tardia - epicurismo, estoicismo, cinismo -, a disposição ética dos sujeitos a estilos autênticos de vida: compartidos na empiria direta e presente do cotidiano, afeitos às percepções e às sensações da amizade, da erótica, da medicina da alma, da espiritualidade, da dietética, da economia doméstica, da ergonomia e do uso dos prazeres.
5 Originalmente a respeito da formulação ético-estética - de uma ontologia do tempo presente, como radical diagnóstico existencial em disposição ao conhecimento e ao cuidado de si -, desenvolvida por Foucault no ano de 1984, a partir de sua leitura e entendimento do artigo de Immanuel Kant, intitulado Was ist Aufklärung? (Berlinische Berichter, dezembro de 1784), ver o artigo em que ele mesmo comenta a pretexto dos conceitos de esclarecimento, maioridade e ética de si: Qu’est-ce-que les lumières? In: Foucault, M. Dits et écrits, v. 04, p.753-7.
6 Foucault, M. Dits et écrits, v. 02, p. 223. Todas as traduções das obras originais de Foucault são livres e de minha responsabilidade.
Autor notes
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife – PE, Brasil. Professor de Filosofia do Instituto de Humanidades e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (IH/POSIH/UNILAB), Redenção – CE, Brasil.
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