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Considerações filosóficas sobre as entrevistas de solicitação de refúgio

Philosophical remarks on the asylum request interviews

Andressa Maciel Corrêa 1
Universidade Federal Fluminense; Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro , Brasil
Diogo de França Gurgel 2
Universidade Federal Fluminense, Brasil

Considerações filosóficas sobre as entrevistas de solicitação de refúgio

Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 1, pp. 44-60, 2021

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 10 Agosto 2020

Aprovação: 08 Novembro 2020

Resumo: No presente artigo, procuramos mostrar que o processo de solicitação de refúgio pode ter suas estruturas semânticas e políticas evidenciadas a partir de um acesso via filosofia da linguagem. Visando elucidar a natureza normativa dessa prática social e assumir uma postura crítica com relação ao tratamento dado à entrevista de refúgio conforme ela vem sendo feita no país, recorremos a certos conceitos elaborados por Wittgenstein em sua fase madura (como, por exemplo, os conceitos de regra e jogo de linguagem). De modo a conferir um tratamento mais completo ao objeto de estudo, acionamos também de autores do Círculo de Bakhtin, os quais exploram dimensões comunicacionais que o filósofo vienense não explorou propriamente – com especial ênfase nos “acentos de valor”. Visando coligir evidências empíricas relevantes para os nossos fins, foi realizada uma pesquisa de campo com profissionais e voluntários envolvidos nas entrevistas de solicitação de refúgio. Os relatos daí oriundos forneceram-nos mais bases para as considerações que fazemos acerca da fragilidade normativa do jogo de linguagem da entrevista e do intrincado sistema de valores que orienta a interação entre entrevistador (Oficial de Elegibilidade), intérprete e entrevistado (solicitante de refúgio).

Palavras-chave: Refúgio, Entrevista, Wittgenstein, Regras, Bakhtin.

Abstract: In this paper, we intend to demonstrate that the asylum request process can have its semantic and politic structures evidenced from an access via philosophy of language. In order to elucidate the normative nature of this social practice and to take a critical stance in relation to the treatment given to the refuge interview as it has been done in our country, we resort to certain concepts developed by the so called later Wittgenstein (as, for example, the concepts of rule and language game). Looking for a more complete treatment of our object of study, we also turn to the authors of Bakhtin’s Circle, which explore communicational dimensions that the Viennese philosopher did not properly explore – with special emphasis on “value accents”. In order to collect empirical evidence relevant to our purposes, a field research was carried out with professionals and volunteers involved in the asylum request interviews. The resulting reports provided us with more basis for the considerations we make about the normative fragility of the interview language game and the intricate value system that guides the interaction between interviewer (Eligibility Officer), interpreter and interviewee (asylum seeker).

Keywords: Asylum, Interview, Wittgenstein, Rules, Bakhtin.

Introdução

Em face dos grandes fluxos migratórios observáveis atualmente no cenário internacional e brasileiro, principalmente no que tange as migrações forçadas, o intuito do presente artigo será propor considerações acerca dos requisitos, dos instrumentos e do processo pelo qual o solicitante de refúgio tem que passar para lograr o status de refugiado atualmente no Brasil. O instrumental conceitual de que vamos dispor para efetuar o exame proposto foi forjado ao longo do século XX, no seio da Filosofia da Linguagem desenvolvida por Wittgenstein e pelo Círculo de Bakhtin. De modo mais específico, nossa abordagem buscará lançar luz sobre os mecanismos semântico-pragmáticos que norteiam a relação entre o Oficial de Elegibilidade, o intérprete e o solicitante no momento da entrevista. Nossos questionamentos girarão em torno da predicação de “fundado temor”, predicação esta que constitui o critério fundamental segundo o qual o Oficial avalia o relato do solicitante, de modo a conceder ou não a este o status de refugiado.

No Brasil, o asilo político a migrantes só é concedido se comprovada a existência do “bem fundado temor de perseguição devido à raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social, ou opinião política” (PIOVESAN, 2008, p.426). O princípio do “fundado temor” foi elaborado a partir do Estatuto do Estrangeiro e da Constituição Federal de 1988. Desde então, o migrante só pode receber o status de refugiado se convencer o Oficial da justeza de seu requerimento em uma situação de entrevista. A partir destas bases, problematizaremos a aplicabilidade das normas e dos critérios de elegibilidade no contexto das entrevistas de solicitação. Parece-nos que tais considerações críticas são prementes, tendo em vista a dramaticidade das questões envolvidas. Segundo o próprio manual da ACNUR:

A cessação da condição de refugiado suspende os direitos que acompanham a sua condição, podendo acarretar o retorno da pessoa ao país de origem e, com isso, no rompimento dos laços familiares, das redes sociais e das relações de emprego na comunidade onde o refugiado residia. Assim, uma aplicação prematura ou insuficientemente fundamentada das cláusulas de cessação pode trazer sérias consequências. Portanto, as cláusulas dever ser interpretadas estritamente e é necessário assegurar que os procedimentos para determinar a cessação geral sejam justos, claros e transparentes. (ACNUR, 1991, p.99)

Nosso eixo central de argumentação para proceder nossa análise crítica será o seguinte: refugiado e Oficial de elegibilidade não pertencem, em muitos casos, a uma mesma comunidade de falantes, ou seja, não possuem valores e códigos linguísticos semelhantes e, com frequência, o entrevistador (Oficial) não leva em conta que a interlocução é feita com alguém que joga, nas palavras de Wittgenstein, outros “jogos de linguagem”3 e, que, possui uma imagem de mundo (Weltbild) diferente daquela que vigora em sua comunidade. Sempre há, dentro de qualquer diálogo, a necessidade de uma negociação de regras de uso dos signos, de um rearranjo normativo entre os interlocutores para que haja compartilhamento de significados. Paul Grice entende que essa negociação deve se orientar por um “Princípio Cooperativo” segundo o qual, você deve “fazer sua contribuição conversacional tal como requerida, no estágio em que ela ocorre, dado o propósito ou direção aceita do intercâmbio linguístico em que você está envolvido” (GRICE, 1991, p.26). De acordo com esse filósofo e com outros contemporâneos celebrados (como John Searle), o significado final do proferimento de um falante nem sempre condiz com o que é expresso isoladamente (fora de contexto) pela sentença proferida. Ou seja: o que se diz (say), em muitos casos, é somente um veículo um tanto precário e falível para o que se intenciona dizer (mean). Por essa perspectiva, o mal-entendido é sempre uma possibilidade. Nas suas Investigações Filosóficas, Wittgenstein nos faz lembrar disso de um modo um tanto chistoso:

Alguém me diz: “Mostre um jogo às crianças!” Ensino-as a jogar dados a dinheiro, e o outro me diz: “Não tive em mente [gemeint] um jogo como esse”. Deveria ele ter tido uma vaga ideia da exclusão do jogo dos dados, no momento em que me dera a ordem? (WITTGENSTEIN, 1974, §71)

Durante a pesquisa realizada para a produção desse trabalho, deparamo-nos com diversos casos de indeferimento de solicitação que deixavam explícita a fragilidade normativa da prática da entrevista não somente no tocante aos mal-entendidos oriundos da grande diferença entre códigos linguísticos, mas também no tocante à grande diferença entre os acentos de valor empregados pelos envolvidos. Casos com essa natureza nos levaram a recorrer ao instrumental teórico forjado no seio do assim chamado “Círculo de Bakhtin” (com especial ênfase em Volochínov e seu Marxismo e Filosofia da Linguagem).

Cabe ressaltar, ainda no âmbito dessa introdução, que os relatos usados na última seção do artigo foram tirados da pesquisa de campo realizada com profissionais e voluntários que trabalham direta ou indiretamente com o processo de elegibilidade das entrevistas de solicitação. Foram entrevistados: 2 intérpretes refugiados (as), 2 voluntários (as) e 1 advogado (a) da Instituição Cáritas-RJ4.

1.O Regime Internacional dos Refugiados

A partir da Segunda Guerra Mundial, direitos individuais universais independentes foram lentamente ganhando espaço no cenário internacional, principalmente em relação ao tema dos apátridas e migrantes. Porém, mesmo que alguns artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos visem garantias no âmbito da imigração, a questão dos deslocamentos migratórios manteve-se ainda, por muitas décadas, em segundo plano.

Apesar da veemência política do Regime Internacional de Direitos Humanos (1945 - 1946) e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (em 1948, pela ONU), os Estados filiados à ONU não se mostraram muito dispostos, de início, a fazer reformulações substanciais em sua lógica e autonomia no tocante à questão do refúgio. Em um primeiro momento, a Declaração Universal dos Direitos Humanos servia somente “para regular apenas a relação entre os Estados e seus cidadãos” (REIS, 2004, p.152).

Em 1990, a ONU aprovou, em Assembleia Geral, a Convenção sobre Direitos dos Imigrantes, exigindo o mesmo tratamento no contexto do trabalho tanto para nacionais quanto para imigrantes legais. Este marco possibilitou um avanço no âmbito dos direitos, na integração, nas políticas de imigração e, na mesma esteira, exigiu a formulação de um instrumental jurídico apropriado para lidar com indivíduos advindos de fluxos migratórios distintos.

Atualmente, o principal instrumento internacional que embasa os Direitos dos refugiados é a Convenção de 1951 - considerada por alguns autores como o marco para um regime contemporâneo acerca do refúgio e uma maneira de regular esse fenômeno (ROCHA & MOREIRA, 2010). A partir deste marco, instituições, organizações e leis foram criadas como: a Organização de Unidade Africana (OUA), a Declaração de Cartagena, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR)5. No Brasil, foi criado o Comitê Nacional para Refugiados do Ministério da Justiça e Segurança Pública (CONARE), o Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815/80), a elaboração da lei de imigração (Lei Federal n. 13,445, de 24 de maio de 2017), a Cáritas (como instituição representante da sociedade civil e responsável por ações de assistência, proteção e integração de refugiados no Brasil), dentre outras.

Contudo, os parâmetros e políticas acerca do indivíduo migrante no cenário internacional conduzem, ainda hoje, a dilemas e incompletudes. Os Estados Nacionais ainda assumem posições muito díspares e obscuras sobre as regras de acesso ao território. Em muitos casos, tais políticas migratórias podem acabar infringindo Direitos Internacionais que deveriam ser concedidos a qualquer indivíduo. Dependendo da política migratória vigente em determinado país, a forma com que o estrangeiro será enquadrado legal e politicamente poderá criar sérios empecilhos para preservação de sua integridade física e mental e, no limite, de sua própria vida6.

Estamos falando de indivíduos que foram levados ao extremo de suas capacidades físicas e emocionais em seus locais de origem e que, na dinâmica da entrevista de solicitação de refúgio, dependem de uma sobriedade e de uma competência comunicacional dificílimas de serem atingidas mesmo em condições normais. O esforço comunicacional que uma pessoa nessas condições tem que fazer passa pela tessitura de uma narrativa coerente e verossímil (contemplando vida pregressa, motivos de saída, trajeto, etc.) não a seus ouvidos, mas aos ouvidos do avaliador. É importante ressaltar que os critérios de coerência e verossimilhança com que trabalha o avaliador (Oficial de Elegibilidade) estão inteiramente apoiados nos códigos linguísticos que ele domina e nos valores culturais que ele compartilha com sua comunidade e que, na maior parte dos casos, o solicitante desconhece tais códigos e valores. O abismo linguístico e cultural pode ser tamanho, em determinados casos, que a entrevista precisa ser mediada por intérpretes. Em casos assim, a habilidade hermenêutica, a boa vontade e a boa-fé dos intérpretes (ou a ausência das mesmas) tornam-se fatores decisivos na sorte do solicitante.

Mas, antes de examinarmos as dificuldades trazidas pela prática da entrevista, consideremos as dificuldades relativas ao estabelecimento das normas que orientam tal prática. Sabe-se que nem todo migrante é refugiado, mas que todo refugiado é um migrante. Quais seriam, entretanto, as especificidades que distinguem a situação de refúgio de outros deslocamentos migratórios? A discussão acerca de quem é o “refugiado” e as disputas em torno da nomenclatura migratória estão na ordem do dia no cenário mundial. As próprias noções e definições conceituais que orbitam a concessão do status de refugiado têm sido objeto de discussão para vários autores (como HADDAD, 2008; CUNHA & ALMEIDA, 2008; FERRIS, 2011), os quais ressaltam os limites e tensões associadas à determinação desse status. Tais limites e tensões se evidenciam, por exemplo, na miríade de casos em que a tentativa de incluir o solicitante por parte do Estado (num movimento de proteção) resulta em um tipo de exclusão do mesmo, na medida em que sua presença na nova comunidade alimenta um sistema vicioso de violência e desigualdades. A própria categoria de refugiado7, apresenta-se, não sem conflito, como categoria normativa. Senão, vejamos:

São pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento, grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados. (ACNUR, 2018, p.8)

Temos, nesses documentos produzidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para refugiados (ACNUR) – Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado (1991) e o Módulo de Capacitação Metodologia e Técnicas para Entrevistar Solicitantes de Refúgio (2013) – uma tentativa de viabilizar uma lida padrão no processo de aquisição da condição de refugiado a qual gira, em termos conceituais, em torno do eixo do fundado temor. É evidente que, por uma questão de justiça, o legislador busca a impessoalidade e que, nessa busca, são de grande importância: a) o estabelecimento de critérios gerais de atuação, b) que esses critérios sejam dispostos em manuais e c) que esses últimos se constituam, por sua vez, como base teórica para os profissionais envolvidos. Porém, examinemos de modo mais cuidadoso esse ponto: assume-se como critério a presença do fundado temor, mas não há qualquer esclarecimento a respeito do que deve efetivamente ser admitido como fundamento. Do modo como compreendemos, as bases de fundamento em casos como esse são a coerência e a verossimilhança dos relatos. Mas, como foi sugerido acima, coerência e verossimilhança podem se mostrar categorias de uma ordem mais propriamente retórica e pragmática do que de ordem lógica.

Não é de se espantar, portanto, que a compreensão do relato, por parte do Oficial de Elegibilidade, possa se mostrar, com certa frequência, precária. Para que o fundado temor possa se tornar um critério mais satisfatoriamente aplicável, uma discussão filosófica em torno da expressão nos parece imprescindível. O tratamento filosófico que propomos envolve não somente um exame das barganhas semânticas (em sua coerência e verossimilhança), mas também fatores como o esquecimento pós-traumático e as limitações vocabulares no esforço de comunicação dos sofrimentos vividos. Em muitos casos, o refugiado não dispõe de um vocabulário satisfatório ou compatível para relatar o que ocorreu no processo de fuga. Em outros casos, as instituições responsáveis por este processo são limitadas em recursos ou em planejamento e não fornecem, por exemplo, o tradutor (intérprete) ou o suporte psicológico devido para os solicitantes. A seguir, aprofundaremos essas noções.

2. O processo de elegibilidade e as entrevistas de solicitação de refúgio

O reconhecimento do status de refugiado depende, segundo Fabrício Toledo de Souza, “de mecanismos de busca e produção de verdade sobre a trajetória do solicitante” (SOUZA, 2016, p.41), ou seja, deve ser amparado numa história verdadeira. Porém, salvo exceções, a própria noção de credibilidade se coloca em xeque – pois os modos pelos quais solicitantes, Oficiais de Elegibilidade e, eventualmente, intérpretes enxergam fatos físicos, sociais, valores e significados podem ser extremamente díspares. Quem valida se o discurso do refugiado é verdadeiro (se há o “fundado temor”) e o valor de suas palavras é o Oficial de Elegibilidade – e, o material que será examinado para a validação será a narrativa contada pelo próprio solicitante. Mas aquilo que se configura como traço de veracidade é algo assim tão compartilhado pelas partes envolvidas?

Comecemos nossa argumentação com um exame de certos problemas de tradução clássicos: Umberto Eco (ECO, 2005, p. 63) ressalta que, eventualmente, uma palavra em uma determinada língua pode não cobrir todo o campo semântico coberto por sua suposta correlata em outra língua. Um exemplo desta ocorrência é quando o próprio autor compara o significado das palavras alemãs “Baum”, “Holz” e “Wald” com as palavras francesas “arbre”, “bois” e “forêt”. Tendo como base o português, podemos dizer que a palavra francesa “bois” indica mais de um referente, servindo tanto para madeira, quanto para bosque. Em contrapartida, a palavra alemã “Holz” designa somente madeira, mas não bosque. Como se vê, o campo semântico de uma palavra em uma determinada língua pode não ter a mesma extensão daquela que se aciona no ato de sua tradução. É importante ressaltar que, em situações em que sutilezas da tradução podem chegar a decidir pela vida ou pela morte de um indivíduo humano, como no caso da avaliação da solicitação de refúgio (a qual gira em torno da defesa de um “fundado temor”), as diferenças semânticas entre itens correlatos de diferentes sistemas de linguagem podem assumir tons dramáticos.

Entretanto, diversas e numerosas são as formas de ruídos e falhas de comunicação que podem ocorrer em uma entrevista de solicitação de refúgio. Elas se estendem muito para além da mera disparidade de códigos linguísticos: consideremos o esquecimento por trauma, a intimidação por superioridade hierárquica, desconhecimento da língua, mas, sobretudo, o emprego de diferentes de quadros valorativos (axiológicas) por parte dos envolvidos. Nas próximas seções, apresentaremos ocorrências reais de tal espécie de mal-entendido.

O importante neste momento do presente artigo é que fique patente que a maior parte das regras e procedimentos para uma interpretação da narrativa dos solicitantes não constam em leis ou em resoluções, mas estão elencadas em diretrizes e orientações feitas pelo ACNUR. E é importante ressaltar que essas bases normativas não estão alheias a algumas das dificuldades que sublinhamos aqui. Segundo o módulo de capacitação Metodologia e Técnicas do Acnur (2013), por exemplo, o “ônus da prova pode ser satisfeito mesmo que o solicitante seja incapaz de fornecer provas concretas, uma história coerente e plausível sobre o tipo de perseguição que teme e as causas deste temor” (ACNUR, 2013, p. 54). Mas, em geral, a complacência prevista e sugerida pelo manual só é efetivamente aplicada se pautada por medidas ad hoc de acolhimento por parte dos governos8.

3. Um olhar para o processo de elegibilidade a partir de Wittgenstein

Visando lançar mais luz sobre as formas de ruídos e falhas de comunicação que podem ocorrer em uma entrevista de solicitação de refúgio, pareceu-nos de grande valia recorrer ao arcabouço conceitual elaborado por Ludwig Wittgenstein a partir da década de 1930 do século passado.

O pensamento filosófico desenvolvido por Wittgenstein possui, segundo Costa (2002), duas fases bastantes distintas, sendo a primeira influenciada, sobretudo, pelo logicismo de Frege e Russell e a segunda marcada por um trato não mentalista da semântica da linguagem corrente. Essa chamada segunda fase, à qual vamos nos remeter mais longamente aqui, é notoriamente voltada para uma crítica ao referencialismo9 e ao essencialismo que orientam a tradição filosófica e a teorização ocidental de modo geral. A concepção de significado elaborada pelo filósofo em sua maturidade é muito valiosa para a nossa tentativa de elucidação da dinâmica conversacional da solicitação de refúgio. Conceitos como “uso”, “jogos de linguagem”, e “regras”, os quais ganham um tratamento mais bem-acabado por parte do filósofo em sua obra Investigações Filosóficas, auxiliar-nos-ão nessa tarefa, como veremos.

Wittgenstein, em diversas passagens de suas Investigações Filosóficas (e, em especial, no intervalo que vai do parágrafo 89 ao 92), realiza uma crítica a toda e qualquer Filosofia sistemática que procure estabelecer de modo absoluto uma normatividade privilegiada de análise. O filósofo enfatiza que toda busca pelos fundamentos e pela essência última da linguagem está fadada ao fracasso. Ressalta que a filosofia, diferindo da ciência, não é teórica, isto é, não atua por meio de hipóteses, descobertas e provas. Wittgenstein desenvolve, em sua maturidade, a ideia de que reflexão filosófica atua ao nível gramatical, ou seja, ao nível das regras de uso dos signos, comparando e contrastando usos adequados e usos inadequados (abusos) da linguagem. De acordo com ele, é a partir desta investigação gramatical, que se torna possível a remoção de mal-entendidos que “dizem respeito ao uso das palavras, provocados, entre outras coisas, por certas analogias entre as formas de expressão em diversas áreas de nossa linguagem” (WITTGENSTEIN, 2017, §90).

Ancorando-se, portanto, nessa concepção de filosofia (a qual atua por meio de apontamentos gramaticais) deveríamos, ao nos depararmos com um abuso de linguagem corrente em uma dada situação, focar em dissolver tal abuso por meio de certos métodos como, por exemplo, o contraste do uso abusivo com usos correntes do mesmo signo ou a apresentação de situações contrafactuais notoriamente absurdas do signo em questão de modo a fazer ver o absurdo do uso proposto (em geral, por conta de um devaneio teórico). Ou seja, o intuito não seria fornecer fundamentos ou explicações acerca de determinada circunstância de uso, mas tão somente descrever uma certa dinâmica da linguagem (factual ou contrafactual) de modo a lançar luz sobre a dinâmica de nossa linguagem ordinária como expressão de nossas demandas sociais genuínas (consonâncias normativas próprias de uma forma de vida).

Um dos eixos centrais do pensamento de Wittgenstein em sua maturidade é sua concepção não essencialista e não referencialista de significado: o filósofo defende, nas Investigações Filosóficas, a ideia de que o significado de uma palavra é seu uso, indo contra a toda uma tradição que via o significado como algo mental (WITTGENSTEIN, 2017, §43; §138). Sempre buscando reconduzir a linguagem a seus usos correntes (o único lastro semântico genuíno de que dispomos, posto que não arbitrário), ele pensa a atividade filosófica como uma atividade terapêutica de atuação tópica, por assim dizer:

Queremos construir uma ordem no nosso conhecimento do uso da linguagem: uma ordem para a finalidade determinada; uma das muitas ordens possíveis; não a ordem. Para esta finalidade, iremos sempre de novo realçar diferenciações que as nossas formas habituais de linguagem facilmente deixam passar. Daí pode parecer que consideramos ser nossa tarefa reformar a linguagem [...] não existe um método em filosofia, o que existe são métodos, por assim dizer, diferentes terapias. (WITTGENSTEIN, 2017, §132; §133)

Wittgenstein (2017, §§60-70) desenvolve, também, a ideia de que muitos de nossos conceitos naturalmente formados, ao invés de deverem sua formação e aplicabilidade a uma definição unívoca, decorreriam, em geral, de semelhanças (semelhanças de família) encontradas nos diferentes usos das palavras em determinados “jogos de linguagem”10. O filósofo ressalta que um mesmo termo geral poderá receber usos bem diferentes, ocorrendo entre esses usos, contudo uma sobreposição de traços – alguns partilhariam certas características, mas não haveria, em geral, características presentes rigorosamente em todos os usos de um certo termo geral.

Se entendermos que classificações se fazem com conceitos e que conceitos se formam, em geral, por semelhança de família, fica mais fácil compreender a tarefa filosófica da terapia gramatical que Wittgenstein propõe: o primordial, para a tarefa de elucidação gramatical e, logo, para uma terapia da linguagem, seria entender e estabelecer relações entre os jogos e não considerar cada jogo de linguagem isoladamente. A explicitação das regras do jogo (as regras de uso dos signos) por meio de comparações e contrastes com outras possibilidades normativas é eficaz para a dissolução dos mal-entendidos existentes (decorrentes de teorizações abusivas). Posto de uma outra forma, o filósofo propõe uma abordagem do significado de uma palavra tendo sempre como pano de fundo a pluralidade de seus usos correntes e não metafísicos (WITTGENSTEIN, 2017, §67).

De acordo com Wittgenstein “compreender uma linguagem significa dominar uma técnica” (WITTGENSTEIN, 2017, §199). Poderíamos evitar os equívocos causados pelos desentendimentos de linguagem (por imagens mal-construídas ou pela incapacidade de se entender qual o jogo está sendo jogado, por exemplo) na medida em que nos tornamos capazes de discernir entre cada sistema normativo e suas regras e de comparar esses sistemas.

No tocante à nossa análise da prática da entrevista de solicitação de refúgio, os métodos e ferramentas fornecidas por Wittgenstein nos permitem enxergar com mais agudeza as fontes de mal-entendidos. Nossa proposta é que compreendamos a prática da entrevista como um jogo de linguagem: jogo da entrevista e busquemos delinear traços de sua normatividade.

Em seu relato, o(a) intérprete(a) [I¹], afirma não entender por que alguns migrantes que passaram pelas mesmas situações que ele passou não tiveram, enquanto solicitantes, seus pedidos aceitos. Ele(a) também é refugiado(a) e trabalha atualmente como intérprete, atuando na tradução de solicitações feitas em francês, inglês, lingala e outros dialetos africanos. Mas, ao fazer considerações sobre suas competências na prática da entrevista, ele(a) mesmo(a) responde à sua própria dúvida: “Eu consegui crescer e ir bem porque eu entendi como funciona o sistema, você tem que dizer como eles querem. Eu aprendi” [I¹]. Daí se depreende que jogo da entrevista exige do solicitante que busque não somente evitar a violação de um “sistema” de regras conversacionais pouco familiar, mas que busque também evitar a violação da meta-regra da autoridade do receptor. A sanção aplicada à violação de tais regras é muito mais severa do que aquela aplicada ao indivíduo que, por exemplo, interrompe sistematicamente a conversa “durante uma reunião de amigos para um bate-papo em uma mesa de bar” (MARCONDES, 2017, p. 64). A sanção comumente aplicada em casos como esse último é algum tipo de advertência e não a sumária e peremptória deportação.

Feita uma apresentação sumária das bases do pensamento do chamado “Segundo Wittgenstein”, perguntemo-nos: que benefícios pode nos trazer a aplicação da terapia filosófica, conforme proposta por Wittgenstein, em nossa pesquisa acerca dos aspectos semânticos e pragmáticos da prática social de solicitação de refúgio? Como pensar o “fundado temor” quando este termo pode ser compreendido e utilizado (tanto para o refugiado quanto para o intérprete e o Oficial) de diversas formas, i.e., quando este termo pode ser compreendido e utilizado tendo como pano de fundo sistemas normativos, analogias e quadros de valores distintos?

O Oficial de Elegibilidade, ao entrevistar o refugiado, terá que fazer perguntas acerca da sua saída, trajeto e chegada no Brasil. Porém, que questões ele perguntará e quais serão suas expectativas de resposta? Há todo um rol de crenças, pressupostos, intenções e expectativas em jogo – isso tanto do lado do solicitante quanto do lado do Oficial (havendo ainda, eventualmente, o lado do intérprete).

Um exemplo de mal-entendido ocorrido nesses moldes pode ser visto no relato de um solicitante de asilo turco, o qual estava se aplicando para conseguir o status de refugiado na Suíça – como apresentado por Waisman e Serricella (2016)11. Ao escutar do solicitante a declaração de que tinha escapado com vida de uma situação sumamente adversa ao se esconder nas montanhas (“mountains”) perto da sua cidade natal, o Oficial negou a aplicação. A razão exposta pelo Oficial (avaliador) – um suíço que realizava a entrevista em inglês – foi a de que a cidade estava situada entre colinas (“the town was situated amid hills”) e não entre montanhas (mountains). Entretanto, na Turquia, o correlato de “mountain” se aplicava, também, a regiões de colinas (“hills regions”), ou seja, o termo para “montanha” não diferia do termo usado para “colina” em determinados contextos.

4. Os acentos de valor e a entrevista de solicitação de refúgio

Por mais que seja, de modo inconteste, um marco na história da Filosofia da Linguagem, Wittgenstein tratou muito pouco de certos aspectos que são muito caros a todos aqueles que pesquisam os usos políticos e jurídicos da linguagem. Um ponto que nos interessa muito diretamente aqui e que foi um tanto negligenciado pelo filósofo austríaco é o dos conflitos normativos (valorativos e ideológicos em geral) que permeiam as situações conversacionais em que o valor (moral, estético, político,...) dos itens lexicais fica em primeiro plano. Entendemos que certas considerações sobre o tema feitas pelos integrantes do célebre Círculo de Bakhtin serão de grande auxílio e permitirão complementações ao tratamento que vimos dando até aqui ao jogo da entrevista de solicitação de refúgio.

Para Valentin N. Volochínov12, a fala e a linguagem em geral são indissociáveis das estruturas sociais marcadas por valorações e hierarquias. Nessa medida, elas sempre envolvem “conflitos, relações de dominação, adaptação ou resistência à hierarquia ou utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder” (YAGUELLO, 2010, p.14). A linguagem apresenta-se, portanto, como uma arena onde se digladiam valores. De acordo com o pensador russo, é somente no encontro com um outro – com suas crenças, seus valores – que a significação axiológica (o que Bakhtin por vezes chama “a língua viva”) de uma frase pode se dar.

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Volochínov confere grande ênfase à natureza pública e axiológica da linguagem. Ele se opõe à abordagem sincrônica da linguagem proposta pelo estruturalismo francês, posicionando-a na base daquilo que chama de “objetivismo abstrato” (VOLOCHÍNOV, 2018, p. 147) e procura sublinhar a dependência contextual das sentenças em sua dimensão semântica. Fica patente em seus escritos que uma sentença efetivamente articulada é uma enunciação e que uma enunciação é sempre saturada e tomada pelo seu contexto “será definido pelas condições reais do enunciado e, antes de tudo, pela situação social mais próxima” (VOLOCHÍNOV, 2018, p.204). É nesta contraposição axiológica que cada pessoa orienta seus atos, ou seja, no plano da alteridade. “A palavra está sempre repleta de conteúdo e significação ideológica13 ou cotidiana” (VOLOCHÍNOV, 2018, p.181)

Volochínov se posiciona contra o objetivismo da linguística estruturalista francesa (que traz o enunciado como um fenômeno da fala, e, como tal, desvinculado, para fins de análise, do sistema sincrônico do sistema da língua). Mas não somente contra ele. Ele faz frente também ao “subjetivismo individualista”, de acordo com o qual um ato de fala é um ato fundamentalmente individual que pode ser explicado “a partir das condições da vida psicoindividual do indivíduo falante” (VOLOCHÍNOV, 2018, p.200). Parece-nos que é precisamente nesse ponto que Volochínov e, em certa medida, os demais membros do Círculo de Bakhtin (Bakhtin e Medvedev), mais se aproximam de Wittgenstein. De acordo com Volochínov, “a enunciação é de natureza social” (ibid.) e

a significação não está na palavra nem na alma do falante, nem na alma do ouvinte. A significação é um efeito da interação entre o falante e o ouvinte no material de um dado conjunto sonoro. É uma faísca elétrica surgida apenas durante o contato de dois polos opostos. (VOLOCHÍNOV, 2018, p. 232-233).

Daí se pode inferir que a oposição do filósofo russo não só à linguística tradicional, mas também à toda tradição filosófica de abordagem da linguagem culmina com a defesa de uma abordagem dialógica da linguagem: “nem só sistema abstrato, nem só expressão individual” (FARACO, 2009, p. 136). Em sua concepção, a linguagem não é uma unidade simples, mas um o vasto universo de vozes sociais (idioletos e socioletos) em barganha e conflito.

De modo sumário, podemos dizer que a filosofia da linguagem desenvolvida pelo Círculo de Bakhtin pretende realçar o caráter agonístico da linguagem e a heteroglossia14 que constitui as relações sociais. Como diz Faraco, o ponto fundador da perspectiva dos integrantes do Círculo a esse respeito é o seguinte: “o mesmo mundo quando correlacionado comigo ou com o outro, recebe valorações diferentes, é determinado por diferentes quadros axiológicos” (FARACO, 2009, p.21).

Para os fins do presente trabalho, interessa-nos ressaltar a grande contribuição trazida pelos conceitos de acento avaliativo e pluriacentuação para a filosofia da linguagem. Volochínov e os demais membros do círculo tinham ciência do seu papel de pioneiros, de desbravadores de um campo muito pouco conhecido15, como se pode atestar na seguinte passagem:

Os contextos não se encontram lado a lado, como se não percebessem um ao outro, mas estão em estado de interação e embate tenso e ininterrupto. Essa alteração da ênfase valorativa da palavra em diferentes contextos é totalmente ignorada pela linguística e não encontra nenhuma expressão na doutrina da unidade da significação. (VOLOCHÍNOV, 2018, p.197)

A originalidade dessa abordagem reside no fato de que os atores do Círculo de Bakhtin adentram a questão do significado e da comunicação a partir dos conflitos normativos e barganhas de significado e não a partir dos pressupostos de compartilhamento (marca das escolas anglófonas e do próprio Wittgenstein). Sua tematização e exame dos “pesos” distintos adquiridos pelas palavras e frases em contextos comunicacionais (no discurso, slovo, como um todo) nos permitem compreender melhor o modo de atuação dos valores e hierarquias no jogo de linguagem da entrevista de solicitação. Em suma: Volochínov e companhia nos mostram que conflitos semânticos muito frequentemente refletem disparidades ideológicas.

Mas indo ainda além das constatações, os pensadores russos propõem um posicionamento diante da “heteroglossia dialogizada” (FARACO, 2009, p.58). Trata-se da formação de uma consciência comunicacional que busca a “dialogização das vozes sociais, isto é, o encontro sociocultural dessas vozes” (ibid.). Por essa perspectiva, autorar é “orientar-se na atmosfera heteroglóssica; é assumir uma posição estratégica no contexto da circulação e da guerra das vozes sociais; é explorar o potencial da tensão criativa da heteroglossia dialógica; é trabalhar nas fronteiras” (FARACO, 2009, p. 87).

Após essa discussão preliminar de certos aspectos da filosofia da linguagem desenvolvida no Círculo de Bakhtin, passemos agora a uma aplicação mais direta do instrumental fornecido pelos autores russos ao nosso objeto de estudo. O excerto transcrito abaixo é parte do relato feito por um(a) intérprete (doravante, I)16 que entrevistamos em nossa pesquisa de campo e ilustra muito bem o que temos em mente quando falamos em mal-entendidos decorrentes de disparidade entre acentos de valor:

[...] Para mim um intérprete é muito importante, por exemplo. A gente as vezes fala o dialeto, entendeu? E no dialeto não tem muitas palavras científicas, entendeu? A gente tem um jeito de falar essas palavras. Mas, não existe, entendeu? Essa palavra não terá equivalente no nosso dialeto. Até a palavra ‘Direito” não existe no meu dialeto. Muitas palavras não existem [...] não é uma língua científica, entendeu? É uma língua cultural, mas não é científica. Muitas palavras não existe mesmo. Quando a pessoa relata no dialeto é muito difícil, aí vai precisar de um intérprete que tem um conhecimento daquilo, para traduzir. O que vai depender muito se está traduzir do jeito que a pessoa falou sem botar realmente as palavras que existe em português, vai ser difícil. Tipo assim[...]. alguém que foi torturado e ao falar que foi torturado, na hora de traduzir do jeito que a gente fala no dialeto, pode ser traduzido como ‘esculachado’, entendeu?. É bem diferente, entendeu? Aí, tipo, imagina o intérprete em vez de traduzir que a pessoa foi ‘torturado’ e foi vítima, aí a pessoa vai traduzir: ‘ele foi esculachado’. Já diminui o peso. A palavra no meu dialeto pode ser traduzida como ‘bater nele’, esculachar alguém. Na minha dialeto pode ser escrita como ‘Kobeta’. Isso porque é um dialeto, entendeu? Não temos uma língua científica, muitas palavras não existem no dialeto. A gente fala de outro jeito. Se a pessoa quer traduzir, não tem na mente o peso, então pode traduzir outra coisa entendeu? Bom[...] realmente vai estar traduzindo o que a pessoa está falando, mas não está traduzindo isso. [I¹]

A discrepância entre os campos semânticos cobertos pelo termo “esculachar”, no português carioca, e pelo termo “Kobeta” no dialeto em questão é muito elucidativa para a compreensão de que os conflitos semântico-pragmáticos presentes no jogo da entrevista se espraiam muito para além de uma mera questão de referência dos itens lexicais. Como se pode notar no relato, o termo “Kobeta” permite expressar uma extensão conceitual muito superior à extensão de cada um dos seus correlatos em português (“esculachado” ou “torturado”). A decisão sobre a tradução mais apropriada passa pela compreensão dos pesos distintos que os signos do português recebem em seus usos mais correntes. O(a) intérprete procura exprimir essa diferença de pesos ou de acentos de valor, em português, por meio da diferença hierárquica (numa escala de graus de violência) entre “esculachado” e “torturado”. Na dinâmica da entrevista, quando se tem por objetivo a defesa do “fundado temor”, a tradução de “Kobeta” por “torturado” é muito mais adequada do que por “esculachado”, tendo em vista que a primeira palavra provavelmente assumiria um peso valorativo muito superior, no ajuizamento feito pelo Oficial de Elegibilidade, do que a última. O(A) intérprete procura mostrar que, se o Oficial ou o intérprete traduzirem a palavra sem entender seu “peso” (acento apreciativo), este estará fadado a “traduzir outra coisa”. Não basta, portanto, ao solicitante fazer referência às dificuldades pelas quais passou. É preciso ainda dominar ou encontrar quem domine a força axiológica dos termos que emprega e de seus correlatos no código linguístico do Oficial. A inépcia no âmbito axiológico pode inviabilizar de modo incontornável de requerimento do status de refugiado.

Visando pôr em evidência a complexidade psicológica e social do problema comunicacional que temos em mãos, apresentaremos um caso em que, para além das decisões de tradução, os envolvidos precisam lidar com a naturalização de condições de agressão extremas por parte da solicitante. O excerto abaixo é parte do relato de um voluntário (V)17 que trabalha com o atendimento a solicitantes de refúgio na instituição Cáritas.

O que me impactou mais [...] esses últimos dias eu estava fazendo um processo de solicitação com uma mulher da Filipinas que trabalhou em situação análoga à escravidão como empregada doméstica e ficou alguns anos em Singapura antes de vir para o Brasil e aí, inicialmente, quando perguntei para ela como tinha sido a vida dela em Singapura, ela falou, tipo: ‘tudo bem. A vida era como ela era’. [...] eu perguntava: ‘-Existia algum tipo de violação? Existia alguma violência? Até chegar no ponto de entender o que estava vivendo em Singapura. Eu acho que ela sabia, mas que não sabia que aquilo consistia em crime. De que o fato dela não receber o salário pelo trabalho feito, que ela trabalhava 24 horas diárias e estava à disposição da família o tempo todo e que ficava trancada dentro de casa ou que não podia comer a mesma comida ou que apanhava da família [...] isso consistia em crime contra a vida dela. Então, foi um exercício que para mim é muito difícil de falar. Até que ponto eu posso falar assim: ‘- Você estava vivendo uma situação análoga à escravidão. Aquilo caracterizava um crime’. Para ela a vida era assim. Sempre foi assim. [...] Mas era a forma que acontece. Então você aceita ou você vai embora, né? Então assim, [...] no processo das entrevistas é ressignificar as histórias e as que não é algo que é aceitável, né? E aí você chega cheia de dedos para falar: ‘-Olha você era escrava. Aquilo que você viveu no Brasil seria considerado uma situação análoga à escravidão’. Porque uma pessoa não pode trabalhar mais de tantas horas por dia sem receber ou então [...] E eu vi que para ela foi muito difícil, porque eu fui perguntando: ‘-O que aconteceu? E como era o tratamento?’ E aí ela começou a chorar e pediu desculpas: ‘- Nossa devo ser uma pessoa muito boba para ter aguentado viver isso, né?’. [V¹]

Observamos, neste relato, como as diferenças entre os contextos socioculturais e os abalos psicológicos sofridos interferem decisivamente na descrição/caracterização da realidade do solicitante em deslocamentos migratórios forçados. A classificação adequada (no código dominado pelo Oficial) de uma certa vivência pode abrir caminho para a compreensão dessa vivência como traumática. Entretanto, a própria solicitante não tinha total clareza acerca do motivo de seu sofrimento. Se, em um caso como esse, a solicitante não emprega a palavra “escravidão” ou algum correlato com o mesmo acento de valor no código linguístico adotado pelo Oficial, dificilmente esse último será convencido de que se encontra diante de uma situação de fundado temor.

Examinemos ainda um outro caso de indeferimento do pedido decorrente de um ruído no âmbito dos valores. Em nossa pesquisa de campo, o(a) advogado(a) entrevistado (doravante, A) fez o seguinte esclarecimento: o CONARE pode indeferir a solicitação de refúgio se o Oficial de Elegibilidade avaliar a narrativa apresentada pelo solicitante como “contada de forma genérica” e, para ilustrar o que poderia provocar esse julgamento, relatou o caso de um solicitante que terminou por enfraquecer seu relato ao procurar “satisfazer” um Oficial que afirmava, reiteradamente, que os detalhes fornecidos não eram “suficientes”. No caso mencionado, diz o(a) advogado(a), por mais que o solicitante relatasse tudo o que estava em sua memória, esbarrava sempre no juízo de insuficiência por parte do Oficial.

Com muita frequência, os solicitantes têm dificuldades com os tempos verbais no português (por exemplo, usando verbos no presente do indicativo para narrar fatos passados). Em outros casos, usam somente palavras soltas na tentativa de apresentar o contexto, como: “aí, aí, no trabalho [...]gente com arma, atira, corre [...]carro, corre, poeira” [A]. Na falta de entendimento, o Oficial repete diversas vezes a mesma pergunta e não raro, nestas circunstâncias, faz uma avaliação da narrativa como “genérica e contraditória”.

Esperamos ter deixado patente, à essa altura, que o(a) solicitante se depara com um sistema pré-estabelecido de acentos de valor no jogo da entrevista e que o processo para conseguir o status de refugiado só será bem sucedido se ele ou ela discorrer acerca das situações vividas não somente de modo consistente e coerente, e dentro de um certo código linguístico, mas também dentro do quadro de valores esperado. Diz Faraco (2009, p. 50): “os signos não apenas refletem o mundo (não são apenas um decalque do mundo); os signos também (e principalmente) refratam o mundo”. O juízo de valor final feito pelo Oficial acerca da legitimidade da solicitação de refúgio é embasado em muitos juízos de valor intermediários, concernentes, em grande parte, às escolhas vocabulares que o solicitante faz: há todo um jogo de relevâncias naquilo que se diz e naquilo que não se diz. E isso se dá mesmo no caso daqueles atos de fala que deveriam se mostrar simples descrições de fatos passados.

Muito frequentemente, no jogo da entrevista, são exigidos conhecimentos contextuais que estão além dos conhecimentos prévios dos Oficiais de elegibilidade – conhecimentos sobre circunstâncias muito específicas, exclusivas de determinados locais, em determinados países, ou seja, dizem de dinâmicas locais. Entendemos que, em situações assim, o Oficial deveria aumentar sua disposição para a escuta e para as barganhas semânticas, tendo consciência da posição hierárquica que exerce, bem como da sua responsabilidade na decisão do processo do refugiado.

Conclusão

Tendo como pano de fundo o aumento dos fluxos migratórios forçados no cenário geopolítico atual e das limitações do processo pelo qual certos grupos humanos vêm passando para a aquisição do status de refugiado no Brasil, buscamos fazer algumas considerações filosóficas acerca das barganhas e conflitos semânticos em jogo na situação da entrevista de solicitação de refúgio. Nosso intuito foi evidenciar e lançar alguma luz sobre as dificuldades comunicacionais que frequentemente ocorrem nesse processo tão penoso e urgente.

Valemo-nos do arcabouço conceitual desenvolvido pelo chamado “segundo Wittgenstein” para propor um tratamento das entrevistas de solicitação como um tipo muito peculiar de jogo de linguagem. O jogo da entrevista foi abordado como um jogo de encontro entre diferentes códigos de linguagem, contextos culturais e mesmo imagens de mundo. O solicitante, o Oficial de Elegibilidade e, em certos casos, o intérprete, deixam-se orientar por diferentes regras de uso dos signos e mesmo por diferentes códigos morais e políticos. Chamamos a atenção do leitor para conflitos e barganhas semânticas que acontecem (ou deveriam acontecer) no processo da entrevista e procuramos mostrar que as diferenças de bases normativas podem inviabilizar o compartilhamento de significado. Usando o framework proposto por Wittgenstein, pudemos ainda tratar não somente das regras que cada envolvido em uma prática conversacional já traz em seus pressupostos, mas também das regras que são formadas “as we go along” (WITTGENSTEIN, 2001, §83).

Contudo, foi preciso admitir, os mal-entendidos ocorrentes em entrevistas de solicitação de refúgio se espraiam para além do âmbito do significado stricto sensu. Diversos e numerosos são os casos de ruídos comunicacionais provenientes de divergências quanto ao acento de valor das expressões usadas. Procurado uma abordagem satisfatória da questão do valor, acionamos alguns autores do Círculo de Bakhtin, sobretudo Volochínov e sua pesquisa na área das barganhas e disputas ideológicas ocorrentes em práticas conversacionais. Volochínov, como vimos, oferta um instrumental conceitual bem satisfatório para a abordagem de contextos dialógicos como a entrevista de solicitação de refúgio em seus descompassos de acentos de valor e de entonações expressivas.

A denúncia feita por Volochínov (2018) do caráter fictício do sistema sincrônico da linguagem e suas teses contextualistas sobre a indissociabilidade entre significado e acento de valor nos levam a repensar as exigências impostas pela expressão “fundado temor”. A tarefa de buscar o fundamento a partir da assunção de uma posição neutra privilegiada de avaliação se mostra então simplesmente inviável. Em todo encontro na linguagem, já se parte de um lugar, contexto e, portanto, nunca estamos objetivamente neutros. Parece ser mais razoável eliminarmos tal pretensão e voltarmos nossos esforços para as formas de negociação exigidas pela entrevista – o que inclui, decerto, a tentativa de uma construção de uma axiologia comum, uma nova dialogização das vozes sociais (FARACO, 2009) sempre prudente e fundada na escuta. A exigência da neutralidade só pode nos conduzir a mais desencontros, barreiras de comunicação e consequentes injustiças.

O próprio manual do ACNUR reconhece que “não existem regras que podem ser aplicadas cegamente” (ACNUR, 2013, p.42) – sugerindo que, uma vez que os distintos ordenamentos jurídicos e procedimentos nacionais de refúgio estão relacionados a práticas sociais que envolvem diferentes códigos linguísticos e pressupostos culturais, torna-se muito difícil o estabelecimento de critérios universalmente aplicáveis. Entretanto, a ausência de esclarecimentos hermenêuticos nos manuais e documentos oficiais, bem como a ausência de investimento na formação suplementar dos profissionais envolvidos no processo de solicitação de refúgio deixa patente que os ruídos de comunicação ocorridos e suas consequências são, aos olhos do Estado, um problema menor.

Vimos que, segundo o módulo de capacitação Metodologia e Técnicas do Acnur (2013), o “ônus da prova pode ser satisfeito mesmo que o solicitante seja incapaz de fornecer provas concretas, desde que possa fornecer uma história coerente e plausível sobre o tipo de perseguição que teme e as causas deste temor” (ACNUR, 2013, p.54). Porém, como veremos a seguir, não são raros os casos em que os solicitantes apresentam, em sua argumentação (diante de sua saída forçada, das violências no percurso e das consequências psicológicas que tal deslocamento ocasiona), relatos que não possuem uma cronologia tão clara. Tendo em vista os argumentos aqui expostos, entendemos que manuais, entrevistas presenciais e, principalmente, as realizadas online precisam (sistema do Sisconare) ser repensadas para não reproduzirem lógicas de exclusão que só trazem mais violência para a vida dos solicitantes de refúgio.

Concluímos dizendo que o presente artigo foi uma tentativa de contribuir para diferentes olhares acerca do processo de elegibilidade e da nova plataforma do Sisconare. Entendemos que a promoção de maiores discussões sobre o assunto ao nível acadêmico é uma contribuição política e social importante (já que, infelizmente, pouco se discute sobre o assunto) e esperamos incitar, de algum modo, debates mais aprofundados sobre o tema de nossa pesquisa18.

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Notas

3 Wittgenstein, em sua obra Investigações Filosóficas, usa o termo “jogos de linguagem” de 4 maneiras distintas. Glock (1998) elucida e apresenta os quatro tipos denominados “teaching practices”, “fictional language-grames”, “linguistic activities” e “language as a game”. No presente artigo, focaremos mais na terceira acepção.
4 Foi elaborado um Termo de Consentimento Livre Esclarecido, o qual apresentava o intuito da pesquisa, perguntava pela autorização ou não da gravação das entrevistas pelos pesquisadores, e garantia o compromisso com a preservação do anonimato dos participantes. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas e permanecem aos cuidados dos pesquisadores. Utilizamos também, para a fundamentação das discussões sobre o processo de elegibilidade das entrevistas, os manuais: Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado (1991) e o Módulo de Capacitação Metodologia e Técnicas para Entrevistar Solicitantes de Refúgio do ACNUR (2013).
5 O Alto Comissariado das Nações Unidas para refugiados (ACNUR) possui materiais de treinamento e diretrizes para orientar a prática de entrevistas, como: Introdução à Proteção Internacional dos Refugiados (RLD 1- 1992); Determinação do estatuto de refugiado (RLD 2 -1989); O papel do intérprete no trabalho com os refugiados (RLD 3- 1993); Diretrizes de ação e combate à violência sexual contra refugiados (1995); Diretrizes de ação para a avaliação e tratamento de vítimas de trauma e violência (1995). Porém, para o presente artigo usaremos o Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado (1991) e do Módulo de Capacitação Metodologia e Técnicas para Entrevistar Solicitantes de Refúgio do ACNUR (2013).
6 Ainda existem complexidades quando se trata dos estudos e a execução das políticas migratórias implementadas em cada Estado-Nação. Os parâmetros são muito distintos dependendo das políticas voltadas a essas populações e sua aplicação pode implicar em criação de espaços sem direito e acolhimento a esses indivíduos. Mais informações acerca de estudos relacionados a migrações e as ações a partir de políticas migratórias a obra “Migrações Fronteiriças” (BAENINGER & CANALES 2018) trazem um compilado de estudos e práticas acerca de experiências dos Estados Unidos, Europa, América Latina e Caribe e norte do Brasil.
7 É importante ressaltar que durante o presente artigo usamos o termo “refugiado” e “solicitante de refúgio”. O termo “refugiado” só é usado, oficialmente, quando o migrante já conseguiu o status de refugiado. O migrante que ainda está no processo de elegibilidade é chamado como “solicitante de refúgio”. Porém, no artigo há momentos que nos abstemos desta distinção jurídica - já que independente do reconhecimento ou não por um Oficial de Elegibilidade do país receptor - este migrante já está em condição de refúgio. Pois, reconhecemos que seu ato de saída do país de origem caracteriza-se como já sendo um deslocamento forçado, ou seja, devido a seu ato de fuga. Infelizmente, em muitos casos, o Oficial não reconhecerá - devido aos desencontros na linguagem - o status de refugiado de um solicitante. Independente ou não da validação do status pelo Oficial este migrante não deixará de estar em uma condição de vulnerabilidade e necessidade de refúgio.
8 Em alguns casos, se o solicitante faz parte de um grupo étnico/social considerado pelas autoridades do país como vulnerável naquele momento histórico, esse solicitante encontrará muito mais facilidade para conseguir o status de refugiado. Esse é o caso de muitos imigrantes venezuelanos nesse momento. O Brasil decidiu ampliar o conceito de “refugiado”, após o CONARE reconhecer a grande violação de Direitos Humanos no contexto da Venezuela. O reconhecimento passou a valer a partir de junho de 2019. O reconhecimento do status foi fundamentado no inciso III do artigo 1º, da Lei nº 9.474, de 1997. Esta lei “define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Art.1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”. (Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/127109/lei-9474-97#art-1--inc-III. Acessado em: 08/05/2020.
9 Wittgenstein desfere, logo ao início das Investigações, duras crítica à teoria referencialista de significado segundo a qual “as palavras da linguagem denominam objetos – as sentenças são os liames de tais denominações” (WITTGENSTEIN, 2017, p.15). Como ressalta Fogelin (1997, p.34), o que Wittgenstein sugere em sua crítica é que certos filósofos estariam acostumados a ver a linguagem a partir de perspectivas equivocadas, devido a certo ideal da tradição filosófica sobre a linguagem e suas características as quais ele divide em duas categorias: o referencialismo e o perfeccionismo lógico (FOGELIN, 2009, p. 7-8).
10 Cabe ressaltar que Wittgenstein, em sua obra Investigações Filosóficas, usa o termo “jogo de linguagem” de quatro maneiras distintas. Glock (1998) elucida e apresenta os quatro tipos denominados: “linguistic activities”, “ language as a game”, “teaching practices” e “fictional language-games”. Deixamos claro que neste artigo trabalhamos, sobretudo, com a acepção que vê jogos de linguagem como práticas sociais normativamente complexas.
11 Disponível em: WAISMAN, H.; SERRICELLA, G. “Um Olhar Sobre as Relações Humanas em uma Entrevista de Refúgio”. In: REMHU- Ver. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIV, n.48. 2016, 205-210.
12 Não iremos nos demorar aqui na exposição das infindas especulações a respeito da real autoria da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem. Estamos a par dos argumentos estilométricos dos estudiosos que, fazendo coro a Viatcheslav Ivanov, afirmam que Mikhail Bakhtin seria o verdadeiro autor da obra. Tais argumentos contudo, não nos parecem eliminar de vez a contenda, de modo que preferimos respeitar a autoria declarada na edição original.
13 Segundo Faraco “ideologia” é o nome dado pelo Círculo, para designar o “universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais [...] a pluralidade de esferas da produção imaterial” (FARACO, 2009, p.46)
14 “Heteroglossia” ou “plurivocidade” são “termos utilizados por Bakhtin para designar a realidade heterogênea da linguagem quando vista pelo ângulo da multiplicidade de línguas sociais” (FARACO, 2009, p.77). O termo diz respeito, sobretudo, à irredutibilidade das vozes sociais umas às outras.
15 Na história do pensamento ocidental, tais temas e outros afins só entram em cena, em geral de modo tímido, em trabalhos no campo da retórica (p.ex. na Retórica de Aristóteles ou no curso de retórica ministrado pelo jovem Nietzsche na Basiléia. Trabalhos como a Idealistiche Neuphilologie, de Vossler, são exceção e inspiração para o Círculo.
16 Ressaltamos que empregaremos neste artigo, devido ao sigilo pedido pelos profissionais entrevistados na pesquisa, terminologias específicas para identificar quem toma a palavra nos trechos transcritos. Desse modo, usamos o signo “I” para o(a) intérprete entrevistada, usamos os signos “V¹” e “V²” para os dois (duas) voluntários (as), e usamos o signo “A” para o (a) advogado (a).
17 O trabalho dos voluntários e das voluntárias é extremamente importante para a Cáritas RJ. Atualmente, cerca de 70 pessoas atuam em diversas funções e com diferentes níveis de engajamento na instituição. No setor de proteção, os voluntários auxiliam no trabalho direto e indireto com os solicitantes, fazendo o acompanhamento de seus processos de solicitação de refúgio e, quando necessário, servindo de intérpretes.
18 Há ainda outras dificuldades de que não tratamos devidamente aqui. Por exemplo: o próprio solicitante terá também que lidar com seu parco conhecimento da língua portuguesa ou levar um intérprete que faça esse papel – o que não acontece na maioria dos casos. Com a implementação do Sisconare (Sistema do Comitê Nacional para os Refugiados; sistema por meio do qual se solicita o reconhecimento da condição de refugiado no Brasil), que possui a plataforma somente em português, o cenário não melhora muito para boa parte dos solicitantes. Muitos não possuem acesso à internet, muitos não dispõem de intérprete que realize as traduções e, com muita frequência, as instituições que ajudam neste processo ficam com sobrecarga de trabalho devido ao alto número de demanda de solicitações e baixo número de funcionários e voluntários.

Outros fatores a se considerar são o tempo e a urgência das solicitações. O tempo entre a solicitação de reconhecimento da condição de refugiado e a convocação para a entrevista presencial ou online varia conforme a demanda, o país de origem e as condições de vulnerabilidade do migrante. Estas entrevistas são agendadas preferencialmente com base no critério cronológico de solicitação, salvo os casos prioritários previstos em lei. Quando se trata das vivências ou da urgência de conseguir o status, o migrante pode ter receio de exprimir livremente e de fornecer um relato completo e preciso do seu caso, como ressalta o Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado.

Autor notes

1 Mestre(a) em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), Rio de Janeiro – RJ, Brasil; ); mestranda em Filosofia na Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – RJ, Brasil e mestranda em Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
2 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil. Professor de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – RJ, Brasil.
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