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A insurgência do transumanismo: velhos e novos dilemas religiosos1
The insurgence of transumanism: old and new religious dilemms
A insurgência do transumanismo: velhos e novos dilemas religiosos1
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 1, pp. 154-167, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 21 Outubro 2020
Aprovação: 11 Janeiro 2021
Resumo: O objetivo desse artigo é mostrar, numa perspectiva contemporânea, como o transumanismo se insere dentro do discurso religioso à medida que, ao procurar ressignificar a existência humana e conduzir a humanidade para uma dimensão pós-humana, encontra raízes nos movimentos gnósticos antigos, transformando-se numa nova religião contemporânea. Diante disso, primeiramente procuraremos identificar as bases comuns entre o gnosticismo e o transumanismo, principalmente a ideia ligada a negação da corporeidade. Num segundo momento, mostraremos os perigos que o transumanismo enfrenta quando pretende dar ao homem poderes para modificar sua existência, dispensando a figura do Deus criador.
Palavras-chave: Transumanismo, Religião, Pós-humano, Deus.
Abstract: The aim of this paper is to indicate in a contemporary perspective how transhumanism fits into religious discourse as, in seeking to resignify human existence and lead humanity to a posthuman dimension, it finds roots in the ancient gnostic movements, transforming itself into a new Contemporary religion. Given this, we will first try to identify common ground between Gnosticism and Transhumanism, especially the idea linked to the denial of corporeality. In a second moment, we will show the dangers that transhumanism faces when it intends to give man powers to modify its existence, dispensing with the figure of the creator God.
Keywords: Transhumanism, Religion, Posthuman, God.
Considerações iniciais
“Vou dar a conhecer a vocês um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados, num instante, num abrir e fechar os olhos, ao som da trombeta final. Sim, a trombeta tocará e os mortos ressurgirão incorruptíveis; e nós seremos transformados. De fato, é necessário que este ser corruptível seja revestido da incorruptibilidade, e que este ser moral seja revestido da imortalidade. Portanto, quanto este ser corruptível for revestido da incorruptibilidade e este ser mortal for revestido da imortalidade, então se cumprirá a palavra da Escritura: “A morte foi engolida pela vitória. Morte, onde está a sua vitória? Morte, onde está o seu ferrão?”” (1 Coríntios, 15, 51-55).
Apesar dos inúmeros avanços tecnológicos e científicos alcançados nas últimas décadas, ainda não podemos determinar qual o futuro da humanidade, quais os rumos e desafios da espécie humana nas próximas décadas. No entanto, nos parece que a religião pode nos guiar nessa empreitada filosófica a respeito do futuro do homem e da espécie. Sem dúvida, a religião ainda é uma das instituições que mais influenciam a vida dos seres humanos.
Durante muito tempo os textos sagrados responderam as exigências da sociedade e a guiaram, mas no contexto contemporâneo, será que as religiões são eficazes para nos dar respostas fortes frentes aos desafios da biotecnologia, nanotecnologia, ciências da informação e a inteligência artificial? Boaventura de Souza Santos (2007) nos diz que vivemos tempos de perguntas fortes e respostas fracas, será que frente aos desafios tecnológicos, nossa resposta forte é tão antiga quanto à própria história humana?
Uma das maiores utopias da humanidade é a crença de que um dia o ser humano possa ser imortal, por enquanto essa “benção” é reservada apenas aos deuses. Muitos mitos e lendas, como por exemplo, A Epopeia de Gilgamesh, tentaram retratar o drama existencial de certos personagens que buscavam o poder da imortalidade. Quando falamos de limitações humanas, sem dúvida a morte é aquela que ainda causa mais estranheza, porém com os recentes avanços na ciência e na tecnologia e o desenvolvimento de técnicas e procedimentos em áreas como: biotecnologia, nanotecnologia, ciências cognitivas e ciências da informação, temos a possibilidade de acreditar que nosso antigo desejo pode ser alcançado. Nesse sentido, o transumanismo ganha forma e força, à medida que, pretende emancipar o ser humano, libertando-o de sua existência precária e curta.
No século XXI se tornou quase impossível acompanhar os avanços e desenvolvimentos de áreas da chamada convergência tecnológica (NBIC), de modo que enquanto estas áreas caminham a passos largos, a ética ainda não consegue refletir sobre suas ações. Por isso, precisamos levar o discurso desses grupos, que pretendem reconfigurar a condição humana, a sério, pois não se trata de uma promessa utópica que ameaça apenas o tempo presente, mas principalmente as gerações futuras e a continuidade da vida humana e não humana. Desse modo, precisamos de um debate sério, isto é, uma convergência filosófica, ou uma integração entre os saberes, uma vez que as promessas de aprimoramento do corpo e da mente afetam toda a sociedade.
Em muitas correntes dos movimentos transumanistas, ele são associados a movimentos antirreligiosos, fruto de um materialismo e naturalismo exacerbado, à medida que nega completamente qualquer valor e atitude transcendente, e ainda propõe uma independência do indivíduo para agir conforme suas vontades. Não é à toa que pensadores, como Nick Bostrom, pregam de forma veemente uma liberdade morfológica e reprodutiva como direitos inalienáveis e incontestáveis do ser humano no futuro. Mas podemos pensar o transumanismo enquanto um movimento que se aproxima de um credo religioso, uma vez que seus defensores oferecem a imortalidade e uma vida repleta de felicidade?
O sonho pós-humano é de corpos imortais não corrompidos, que abrigam as mentes dos deuses, tão além de nós quanto além de cães e gatos, onde todos os aspectos da emoção, sofrimento e intelecto estão sob controle consciente. Nossa herança animal finalmente será abandonada. Um mundo sem sofrimento, estupidez ou violência. David Pierce, filósofo e defensor do transumanismo, propõe que os genomas de toda a vida na Terra sejam reprojetados a fim de eliminar o sofrimento, ou pelo menos para colocar um limite na quantidade de dor ou estresse que qualquer criatura viva possa experimentar.
De acordo com a tradição judaica cristã, somos seres criados a imagem e semelhança de Deus, desde então mantemos uma relação de proximidade com a criação divina, a ponto de sermos os seres escolhidos por esse ser transcendente. Esse mesmo Deus que nos cria, nos dá o livre arbítrio, portanto, poderíamos sugerir, a partir de uma leitura inicial da tradição, que é possível escolhermos um futuro transumano ou pós-humano, uma vez que essa capacidade de escolha é concedida pelo próprio criador. Mas uma posição mais cautelosa, questionaria: aprimorar geneticamente nosso corpo e nossa mente, não seria romper com o relacionamento e as alianças estabelecidas entre nós e Deus?
Nos parece que, a princípio, sustentar o Homo Cyberneticus ou o transumanismo, como o ser criativo e autotransformador constitui o pecado do orgulho e proclamar a progressão exponencial das tecnologias é equivalente à idolatria. Desse modo, de um ponto de vista religioso, por que não colocar o transumanismo e o desejo de aprimoramento da humanidade como uma das grandes violações naturais como o aborto, a contracepção e a eutanásia?
Ainda podemos nos questionar: de acordo com a doutrina cristã, seus seguidores poderiam se submeter a procedimentos tecnológicos e científicos que extrapolam o método terapêutico? Em um mundo de extrema desigualdade social e econômica, como as grandes religiões se comportariam frente ao surgimento de um novo tipo de desigualdade, a somática e a psíquica? Pensando nos padrões transumanistas, o próprio Cristo quando cura doenças (até então incuráveis) e até ressuscita um amigo, não estabelece as primeiras bases do movimento transumanista, afirmando que a morte não seria uma regra natural? Já que o ser humano adquiriu poderes tecnológicos, não podemos usar esse poder para reconfigurar moralmente a espécie humana, tornando-a melhor, como por exemplo, incluir no DNA humano valores como bondade, amor, paciência, respeito, etc.?
Procurando estabelecer as bases de compreensão para uma possível relação do transumanismo com a religião, precisamos, primeiramente, pensar o transumanismo como uma espécie de gnosticismo, que pensa a corporeidade apenas como um objeto que podemos manipular tecnologicamente. Enquanto que, para os transumanistas, a função do corpo é restrita a operações fisiológicas que envelhecem e sucumbem com a vida, a alma seria substituída por padrões de informação. Nesse sentido, a partir do momento em que o projeto transumanista se concretizar, podemos pensar uma nova antropologia religiosa.
A preferência pela mente sobre o corpo tem seu paralelo religioso na elevação da espiritualidade sobre a existência material. Platonismo, maniqueísmo e gnosticismo, por exemplo, sustentam que o mundo material é uma corrupção de um estado ideal. Humanidade, presa e confusa no domínio físico, anseia pela bondade e para se juntar ao ser divino. O resgate é possível mediante a renúncia de anexos físicos e através de conhecimentos especiais ou práticas estéticas que promovam a espiritualidade (LILLEY, 2013, p.40).
Para os bioconservadores cristãos, os ideais transumanistas além de poderem se tornar num projeto perigoso, deixa questões de cunho vista religioso abertas, como: o aprimoramento genético será realizado contra a vontade de Deus? A imbricação humano-máquina, ou seja, os procedimentos que aperfeiçoarão o humano serão realizados pelos próprios humanos, sem a sabedoria de Deus? Emoções e sentimentos, como tristeza e solidão, poderão ser reduzidos e banidos da existência humana uma vez que são considerados ruins?
Para esse grupo de pensadores contrários as teses transumanistas, somente uma fé que reconhece uma dependência de Deus pode salvar a si mesmo do pecado. O pecado, nesse sentido, seria ocasionado quando o indivíduo falha em reconhecer sua finitude e a sua dependência e posição em relação a Deus e busca, assim, poderes que transcendem as possibilidades da existência humana.
Contudo, neste admirável mundo novo que o transumanismo apresenta, onde Deus se encaixa? Se um dos grandes medos da humanidade é a morte, e os transumanistas pretendem bani-la da espécie humana, qual será o papel da religião? Somos seres em constante evolução, resta saber se temos o direito de direcionar nossa evolução daqui para a frente, esta questão, sem dúvida, é uma tarefa filosófica e teológica.
Podemos pensar num transumanismo cristão? Aproximações com o gnosticismo
É notório que vivenciamos uma virada antropológica provocada pela tecnologia, somos constantemente afetados e alterados pelas inovações tecnocientíficas, produtos à disposição e submissos aos aparelhos tecnológicos. Tal disposição é tão evidente que nem mesmo Heidegger, em seu texto A questão da técnica de 1953, foi capaz de prever com o seu conceito de gestell. Mesmo assim, numa perspectiva biológica evolucionista somos produtos de um processo evolutivo de milhões de anos. Desde o uso das primeiras ferramentas que permitiram ao ser humano modificar o meio ambiente e assim dominá-lo e controlá-lo, até chegar nos dias de hoje, fomos nos desenvolvendo e aperfeiçoando nossas técnicas e habilidades.
Hans Jonas, pensador alemão do século XX, é muito claro quando caracteriza a técnica pré-moderna como uma posse e um estado, que atendia a fins reconhecidos e meios apropriados. Ou seja, os artefatos (a exceção da arte bélica) produzidos pelo ser humano nesta fase demoravam anos para acontecer, era um processo lento, consequência muito mais do acaso do que pelo desejo. No entanto, hoje com as técnicas de aprimoramento humano e desenvolvimento de aparelhos tecnológicos (momento que de acordo com a filosofia de Jonas podemos chamar de técnica moderna), vemos uma rapidez nas transformações sociais provocados por estes, que quase não podemos acompanhar seu ritmo. A velocidade de informações que somos submetidos cotidianamente não permite prever o que o futuro nos reserva. Esse fenômeno tipicamente contemporâneo nos leva a crer que estamos chegando e vivenciado uma nova etapa dentro do processo evolutivo da espécie humana.
Mas o que isso tem a ver com a religião cristã e o transumanismo? Apesar de muitos pensadores cristãos fazerem parte dos chamados bioconservadores, precisamos estabelecer certos pontos comuns entre ambas as formas de pensar. Primeiro é preciso lembrar que, tanto transumanistas como cristãos, estão empenhados em entender a crise que vivemos na contemporaneidade numa perspectiva holística. Portanto, para ambos os grupos de pensadores, nossos problemas políticos, éticos, econômicos, ambientais, sociais, as novas possibilidades do uso de armas biológicas e químicas, são questões urgentes que precisam ser discutidas e enfrentadas. O documento do Papa Francisco de 2015 Laudato Si, revela justamente a preocupação da igreja católica com os problemas que enfrentamos. Desse modo, é evidente que, tanto para transumanistas como para cristãos católicos, o futuro da humanidade é o problema a ser discutido.
Para os transumanistas, nossa condição de seres humanos é indesejada e limitada pela natureza, ou seja, somos seres suscetíveis a doenças. Do ponto de vista físico somos fracos, nossa memória é lenta, precisamos de longos períodos de sono para recompor as energias, somos instáveis emocionalmente, não controlamos nossos impulsos e desejos, entre tantos outros. Por isso, precisamos nos libertar de nossa existência vulnerável e incompleta. Nesse sentido, podemos afirmar que existe nesses movimentos uma espécie de soteriologia, isto é, uma doutrina que prega a necessidade de salvação.
Ainda de acordo os movimentos transumanistas, a dor e o sofrimento, típicos elementos de crenças religiosas, impedem que o ser humano alcance o conhecimento necessário para libertarmos de nossa natureza. Desse modo, para eles, salvar nossa condição humana significa libertar-nos de nossa natureza biológica, romper com os determinismos da mesma, a ponto de alcançar um novo estágio evolutivo, isto é, chegar a uma era pós-humana. Nesse tipo de transumanismo é notório a negação do corpo orgânico na sua forma atual.
Existem outros movimentos que pregam, - ao contrário desse transumanismo radical, que deseja a superação do corpo físico -, o fortalecimento do corpo, ou seja, no lugar da morte, procuram a imortalidade, no lugar da doença, o aprimoramento, no lugar da fraqueza a força, no lugar da dor o prazer, entre tantas outras. Essa questão sobre a negação do corpo ou a busca pelo seu fortalecimento, nos permite traçar alguns pontos em comum do gnosticismo antigo com o transumanismo. Por isso, apresentaremos na perspectiva de Hans Jonas como o gnosticismo também se apresenta como uma negação do corpo e um favorecimento da alma, esta última enquanto entidade metafisica privilegiada.
De acordo com Jelson Oliveira, “o gnosticismo seria, assim, um movimento religioso de muitas expressões, cujo vínculo está na ideia de salvação dualista e transcendente que se revela em elementos culturais” (2014, p.22). Hans Jonas busca compreender o espírito gnóstico e a partir disso restaurar sua unidade inteligível manifestada nas mais diversas manifestações culturais, sejam elas de cunho teológico, escatológico, ético, etc.
Ligadas às teses gnósticas, Jonas elenca cinco áreas do conhecimento que ajudaram a entender o princípio gnóstico que o autor pretende descrever e como o corpo é visto por cada uma dessas áreas, são eles: o campo teológico, cosmológico, antropológico, escatológico e o moral. Analisaremos de maneira breve cada um deles.
No aspecto teológico, a preocupação diz respeito aos dualismos - Deus e homem e homem e mundo. Para o gnosticismo, Deus é um ser não pertencente ao mundo físico, de modo que sua natureza difere totalmente das aplicações e leis do mundo material. O mundo é composto apenas pelas trevas e a escuridão, enquanto que no mundo divino manifesta-se a luz. As forças mundanas nunca conseguirão conhecer Deus, a não ser se esse mesmo Deus, com a sua vontade divina, revelasse ao mundo o conhecimento da verdade.
No aspecto cosmológico a ideia dualista se conserva. O universo, criado e governado pelos detentores de poderes, seria como uma prisão e a Terra seria o fosso mais profundo dessa prisão. É nela que a vida humana se desenvolve.
Na antropologia, o gnosticismo vê o homem como um ser que possui corpo, alma e espírito. No corpo e na alma são manifestados as paixões e os desejos do ser humano, além de serem produtos cósmicos que o tornam parte do mundo. Na alma está aprisionado o espírito que Jonas define como “uma porção da substância divina a partir da qual ele caiu no mundo” (JONAS apud OLIVEIRA, 2014, p.33). Este espírito, por estar preso num corpo, sofre uma espécie de adormecimento, graças à ignorância que está impregnada no mundo físico. Apenas o conhecimento é capaz de libertar e acordar o espírito deste aprisionamento.
Sobre o aspecto escatológico, o conhecimento de Deus é a única forma de reencontro do homem com a luz divina, para isso, é necessário que este homem conheça Deus e sua condição enquanto prisioneiro neste mundo e possuidor da ignorância. Porém, uma vez que Deus é uma figura estranha e oculta do mundo, o homem só poderá se libertar e alcançar a salvação por meio da revelação.
O conhecimento de Deus, assim, não seria outra coisa que um “conhecimento do caminho” que a alma deveria seguir para livrar-se do mundo e ascender, depois da morte, rumo à substância divina. Deixando para trás o “vestido” psíquico e devolvendo a Deus os fragmentos iniciais que se perderam em tempos pré-cósmicos, o espírito recuperaria a unidade do homem com Deus pela via da revelação redentora (OLIVEIRA, 2014, p.34).
Por fim, o aspecto da moralidade. Os detentores do conhecimento por estarem separados dos demais homens e por terem alcançado o auge do esclarecimento em relação às coisas do mundo, julgam-se como imunes ao dever moral, sem compromisso algum com a natureza e com as relações humanas. Sem dúvida um problema, pois esses não criam nenhuma responsabilidade e dever para com o mundo.
Sobre essas áreas Jonas elenca alguns termos e expressões que caracterizam o modo como o pensamento gnóstico vê e sente a realidade. Abordaremos alguns desses termos a fim de tentar exprimir o drama da existência humana e como o dualismo se manifesta nesses movimentos, além de mostrar sua influência em algumas correntes como o niilismo e o existencialismo.
O primeiro termo a ser analisado é o conceito de estranho, ou seja, é a sensação de ser alguém que não pertence a esse mundo, um estrangeiro, que vive, mas não se sente familiar. Esse é um dos termos gnósticos que mais perturbam a existência. O próprio Deus é alguém que não pertence esse mundo, é um ser estranho3. e solitário que não pode ser compreendido. Essa estranheza de Deus faz do homem um ser que vaga pelo mundo e quando este conhece os caminhos da verdade, isto é, quando o conhecimento lhe é revelado, ele quer abandonar sua condição de ignorância e sair deste mundo estranho e indiferente. Portanto, ele quer abandonar o corpo que o aprisiona e o faz refém da ignorância.
Outro termo que podemos destacar é a noção de mundos. A alma tem como condição de sua existência vagar de mundo em mundo, mas ao mesmo tempo, ela tenta fugir desta condição que lhe é imposta. Por isso, a ideia de mundos é como uma espécie de prisão da vida, fugindo da concepção de um poder. A fim de vencer os demônios que a espreitam, a vida precisa vagar através das gerações para alcançar sua libertação. Esse vagar pelos mundos e por gerações é a fórmula do gnosticismo capaz de conduzir a vida rumo à redenção, entretanto aqui se manifesta o horror que o homem tem frente à imensidão do universo e perturbação do tempo.
Outra expressão típica do gnosticismo é a ideia do mundo como uma “habitação cósmica” onde a vida pode entrar e sair, porém trata-se também de uma prisão, uma moradia obscura. A vida habita esse mundo, mas não pertence a ele, ela é provisória, uma estrangeira num mundo que não é seu, ela “está no mundo” e “habita um corpo”. O corpo é a morada da vida, essa nada mais é que uma hospedeira que pode abandoná-lo ou substituí-lo a qualquer momento. Nesse sentido, o corpo é sempre um elemento transitório, usado para hospedar um ser.
Outro elemento interessante da concepção dualista dos movimentos gnósticos é a ideia de mistura. De acordo com a análise de Jonas, houve num momento da história uma mistura entre a luz divina e elementos estranhos que compunham o universo. Dessa mistura ocorreu uma dispersão, ou seja, fragmentos de luz ao serem misturados com escuridão do universo foram dispersos por toda a criação. A partir disso, surge o conceito de salvação, que na concepção do autor alemão, trata-se de um “recolhimento daquilo que foi dispersado”, isto é, uma busca para recuperar e reconstruir a unidade original da luz que foi perdida. O conhecimento é a possibilidade e a condição que os seres habitantes do mundo têm para se libertar desse aprisionamento e transcender de maneira completa rumo à luz.
Diante disso, podemos nos perguntar como a vida chegou ao mundo? Segundo os movimentos gnósticos, ela teria “caído”. Por isso, a ideia de queda é fundamental para se entender os fundamentos gnósticos, dado que a alma teria caído no mundo e em um corpo. O desprendimento da luz divina possibilitou que a vida caísse e assim deu-se origem ao mundo e à própria vida nele. Outros termos que também retratam essa análise é de que a vida também pode ter sido “jogada” ou “lançada” e assim habitado o corpo do homem. Portanto, o ser humano não surgiu nem por sua vontade e nem pela vontade da própria vida, mas devido a este acontecimento. A vida tem como condição de sua existência a promessa de se libertar e retornar a sua condição inicial. Todas essas expressões, entre outras que não abordamos, retratam o drama da existência humana e o quão perturbadora pode ser a vida.
Ainda sobre os movimentos gnósticos, Jonas analisa o niilismo moderno como uma possível ligação com o gnosticismo, entretanto, se no gnosticismo antigo o homem poderia alcançar a redenção graças ao conhecimento, no niilismo moderno e contemporâneo esse mesmo homem cai em “um abismo verdadeiramente sem fundo” (JONAS, 2004, p.251), uma vez que sua própria condição não oferece nenhum sentido. De acordo com Oliveira, “o niilismo radical é a falta de sentido completo imposto pela ideia de uma neutralidade apática radical na qual o homem vivencia a si mesmo como um ser marcado pela finitude frente à morte” (OLIVEIRA, 2014, p.45).
Diante dessa falta de sentido, uma das principais consequências do niilismo moderno foi a perda de valor e a falta de finalidade do homem4. em relação a natureza5.·. Esse se tornou o “drama da modernidade”, pois ao eliminarmos a teleologia da natureza retiramos qualquer possibilidade de leitura antropomórfica do próprio homem. Neste universo sombrio e estranho que a vida se encontra, que o dualismo se encarregou de separar (homem e mundo, mundo e Deus, Deus e homem), aprofundou-se a crise da existência humana, tornando-a cada vez mais vazia e estranha no mundo em que ela se encontra. De acordo com Fonseca, trata-se de “um sentimento de isolamento do homem em sua condição de ser solitário, num mundo natural hostil e mau” (FONSECA, 2009, p.168).
A partir das principais ideias ligadas ao gnosticismo, quais as características que devemos encontrar para sustentar uma religião transumanista? Feuerbach sustenta em sua obra A essência do cristianismo que Deus é uma criação humana, uma espécie de ilusão, fruto da necessidade do homem em criar conceitos absolutos e estados ideais. Desse modo, podemos dizer que para o autor, não quer dizer que Deus não seja nada, simplesmente ele é fruto de uma superstição primitiva humana que anseia pela transcendência. Mas essa ausência de um Deus, não quer dizer que não existem atributos ligados a figura de Criador, como por exemplo, o amor, a bondade, a compaixão, etc. Para Feuerbach, esses atributos são tipicamente humanos que atribuímos a um ser sobrenatural, muitas vezes porque não conseguimos praticá-los ou alcançá-los.
Feuerbach defende claramente que a essência divina é humana, portanto, de um ponto de vista antropológico o mistério da religião é o ser humano. O autor diz: “o homem pode e deve se elevar acima das limitações da sua individualidade ou personalidade” (FEUERBACH, 2007, p.267). Essa citação de Feuerbach afirma a concepção transumanista de aprimoramento da espécie, ou seja, se precisamos criar uma figura chamada Deus para afirmar atributos que o homem não era capaz de adquirir devido a sua condição de vulnerabilidade e limitação, com a tecnologia não precisamos mais projetar um Deus perfeito, pois agora o próprio homem é capaz de se tornar Deus e moldar sua existência. A idealização do eu, que encontra sua projeção acabada na imagem de um Deus para Feuerbach, agora encontra sua imagem ideal no próprio homem, conforme afirmam os transumanistas. “A Bíblia diz que Deus fez o homem à sua própria imagem. O filósofo alemão Ludwig Feuerbach disse que o homem fez Deus à sua própria imagem. Os transumanistas dizem que a humanidade vai fazer de si mesma Deus” (SEUNG, 2012, p. 273). Para Hopkins:
O alto transumanismo, dado como é à modificação tecnológica e social do mundo, buscando avançar para formas mais altas e mais complexas de experiência e consciência, pode ser vista como parte de um processo pelo qual a perfeição do mundo pode ser realizado ... e em um sentido ainda mais radical, pode ser uma maneira pela qual Deus é o resultado desse processo e não seu instigador (HOPKINS, 2011, p. 5-6).
A citação de Hopkins coloca Deus como um ser divino em constante desenvolvimento, isto é, Deus não precisa ser colocado como um ser perfeito e existente antes de tudo e todos, mas alguém que se desenvolve e aperfeiçoa juntamente com o humano. O que Hopkins não percebe é que esse Deus que ele menciona, é sem dúvida, a ciência e a tecnologia contemporânea que se aperfeiçoam justamente para atender os interesses humanos. Portanto, afirmar o transumanismo como uma nova religião contemporânea pode ser, até certo ponto, perigoso e incerto, mas sem dúvida, se tornou um movimento que assume os antigos credos religiosos na contemporaneidade.
Por que o enhancement se tornou um perigo a imago Dei?
De um ponto de vista ontológico, para os transumanistas somos seres doentes, que a partir de agora pode ser curada pela biotecnologia. Os pensadores transumanistas sustentam que a natureza humana não é algo fixo e imutável, ou seja, por não existir uma essência, podemos utilizar livremente a tecnologia para aprimorar nossa constituição somática e psicológica. Segundo Nick Bostrom (2011), a partir do momento que somos capazes de melhorar a existência humana por meio do aprimoramento genético temos o dever moral de fazer, portanto, o problema sai do campo meramente epistemológico e ontológico e atinge uma dimensão ética e teleológica. Nesse sentido, se antes tínhamos um Deus criador que cuidava e se preocupava com a existência, hoje com o surgimento e os avanços da biotecnologia, esse papel criador é confiado ao próprio homem.
Mas como podemos entender o aprimoramento, enquanto poder do homem em reconfigurar a sua própria existência?
O aprimoramento humano claramente se diferencia do melhoramento (ou terapia genética) à medida que não tem por objetivo usar procedimentos biotecnológicos para tratar doenças e deficiências e assim, simplesmente reestabelecer a saúde e a boa forma. O enhancement tem como objetivo usar a biotecnologia para intervir diretamente no corpo saudável, aperfeiçoando as capacidades do corpo humano, sejam esses de matriz somática ou psíquica. Para os transumanistas, o aprimoramento tem a ver com “deixar melhor que antes”. Para esses pensadores, a humanidade anseia por superar sua vulnerabilidade, e a tecnologia e ciência podem fazer isto por nós hoje.
Os transumanistas veem a natureza humana como um trabalho em andamento [...]. A humanidade atual não precisa ser o ponto final da evolução. Os transumanistas esperam que, pelo uso responsável da ciência, da tecnologia e de outros meios racionais, consigamos eventualmente tornar-se seres pós-humanos, com capacidades muito maiores do que os seres humanos atuais (BOSTROM, 2003, p.493).
Essa concepção de Bostrom sobre a natureza humana da qual a mesma é um processo que ainda está em seu estágio inicial, contrasta com a visão antropológica cristã de que os seres humanos são criados a imagem e semelhança de Deus, portanto seres coparticipantes da criação. “O fato de todos os seres humanos serem feitos à imagem de Deus é o fundamento da dignidade humana. Os seres humanos têm a intenção de viver nessa relação com Deus. Isso dá à sua existência sua dimensão inalienável e transcendente da profundidade. Em seu relacionamento com o Deus transcendente, os seres humanos se tornam pessoas cuja dignidade não deve ser violada” (MOLTMANN apud KOTZE, 2018, p. 4).
Porém, de acordo com os transumanistas, a dignidade humana não será suprimida pelo aprimoramento humano. Uma vez que somos seres em constante processo de desenvolvimento com potencial para nos tornarmos algo melhor, a tecnologia apenas abriria caminhos e possibilidades, para que o ser humano possa escolher livremente as opções tecnológicas que melhorariam sua existência.
Essa concepção transumanista de que temos uma natureza humana mutável, não revela o desejo da humanidade em se tornar Deus? Portanto, não estaríamos brincando de Deus? Pensadores seculares e bioconservadores sustentam que a natureza humana por ser fixa, deve permanecer da forma em que se encontra, mesmo que isso implique que nela existam males como doenças e mortes. Não cabe ao ser humano modificá-la.
Uma questão que precisamos mencionar, diz respeito aos privilégios e vantagens que o aprimoramento genético pode proporcionar as pessoas mais ricas em detrimentos das mais pobres. Se somente certas classes sociais tiverem amplo acesso a técnicas e procedimentos tecnológicos que aperfeiçoam o indivíduo, certamente se acentuará a discrepância socioeconômica do mundo. Fukuyama, em sua obra Our posthuman future: consequences of the biotechonology revolution de 2002, nos mostra que, hoje pessoas mais ricas já tem acesso a saúde de mais qualidade, hospitais mais bem equipados e particulares, planos de saúde completos, entre tantos outros benefícios em relação a parcela pobre da sociedade. Em um mundo futuro, onde o aprimoramento seja possível, essas pessoas ricas certamente farão de tudo para que seus filhos tenham acesso as melhores técnicas de aprimoramento, assim além de um problema moral, podemos ampliar a guerra de classes e as desigualdades sociais.
Sem dúvida, como aponta Kotzé (2016) quando falamos de aprimoramento genético que as pessoas do futuro poderão utilizar antes mesmo de terem nascido, não envolve apenas problemas éticos e religiosos, eles se agravam quando se aumenta a segregação, as divisões e as desigualdades sociais. A história mostra que o ser humano sempre quando teve algum poder usou para dominar e explorar, por que seria diferente com a biotecnologia? A liberdade humana não seria minada, se apenas alguns indivíduos tivessem a sua disposição certos tipos de aprimoramentos?
De acordo com a antropologia cristã somos seres vivos com dignidade porque somos criados a imagem e semelhança de Deus, desse modo como seres sociais por excelência temos direito à liberdade e a igualdade, como pressupõe o artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU promulgada em 1948. Portanto, principalmente a igualdade deve ser protegida e defendida, uma vez que pode ser ameaçada pelo aprimoramento genético proposto pelos transumanistas. Como seres iguais criados por Deus, possuímos o mesmo valor. Caso o enhancement seja levado a cabo pelos seus defensores, além de divisões socioeconômicas, acirraremos a maquinação humana.
Vale lembrar que mesmo hoje, a dignidade humana, ou seja, nossa semelhança com Deus é prejudicada a partir do momento que não conseguimos combater problemas como pobreza, escassez de recursos naturais, negação de direitos básicos de subsistência como saneamento, fome, guerra, ausência de assistência médica, etc. Mas nos parece que, ao contrário do que transumanistas defendem, o aprimoramento somente acentuará essas desigualdades.
Ainda resta analisar por que, para críticos do transumanismo, brincar de Deus é um ato moralmente errado? Sem dúvida, um dos problemas diz respeito aos danos que podemos causar a imagem de Deus com o aprimoramento genético. De acordo com Michael Sandel (2013), os poderes que a manipulação genética confere ao ser humano, a ponto de acreditarmos que somos os únicos seres responsáveis pelo domínio técnico e científico que conquistamos, corresponde a não compreensão de nosso lugar na criação, isto é, “confundir nosso papel com o Deus” (SANDEL, 2013, p.53).
Essa preocupação sobre se temos o direito de aprimorar geneticamente o ser humano também pode ser encontrada nos estudos de Hans Jonas, mais especificamente em sua obra de 1979 O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, onde o autor aponta: “saber se temos o direito de fazê-lo, se somos qualificados para esse papel criador, tal é a pergunta mais séria que se pode fazer ao homem que se encontra subitamente de posse de um poder tão grande diante do destino” (JONAS, 2006, p.61).
Essa preocupação de Jonas alerta para a falta de controle que podemos ter diante de procedimentos tecnocientíficos que escapam da nossa capacidade criativa, assim além de saber se temos o direito de fazer, devemos antes nos perguntar se devemos. A postura do autor alemão possui nesse aspecto duas dimensões: uma ontológica, à medida que interroga sobre que imagem de homem queremos no futuro; e uma dimensão ética, pois questiona e reflete sobre o impacto de nossas ações no futuro, mesmo que de forma hipotética. John Weckert vai de encontro com a proposta de Jonas quando afirma que “brincar de Deus no sentido de mudar ou interferir com a natureza é mudar a natureza de maneiras significativas que alteram os parâmetros dentro dos quais tomamos decisões, de modo que não somos competentes para tomar essas decisões e onde novas responsabilidades entram no jogo” (WECKERT, 2016, p.98).
Desse modo, ainda precisamos saber o que constitui a natureza humana. Ou ainda, somos seres pertencentes a natureza ou estamos fora do âmbito natural? Numa perspectiva transumanista, podemos pensar sobre esses dois aspectos da seguinte forma: se somos seres pertencentes a natureza, então podemos afirmar que faz parte da nossa natureza humana manipular geneticamente o ser humano e os demais seres vivos porque é algo natural, próprio da nossa constituição, desse modo utilizar os dons que a natureza nos oferece não representa nenhum problema moral ou religioso. Se porventura somos seres vivos fora do âmbito natural, portanto, expropriados da natureza, podemos afirmar que desde os primórdios da humanidade todas as ações do homem desde a descoberta do fogo e a capacidade de manuseio, passando pela confecção de ferramentas até a o uso de procedimentos biotecnológicos, foram em vistas para proteger e garantir a sobrevivência da humanidade perante as adversidades da natureza. Se antes precisamos combater animais selvagens dotados de características que o homem não possuía como velocidade, garras, força, etc., hoje lutamos contra doenças e vírus que acometem nossa resistência física e psíquica, portanto, nossas ações para aprimorar a humanidade são legitimas, pois tem como objetivo salvaguardar a espécie.
Essas colocações são argumentos interessantes que os transumanistas poderiam usar para sustentar suas concepções filosóficas sobre o enhancement Project. Novamente o que vai determinar se as ações transumanistas não extrapolam os limites éticos, e até mesmo religiosos, é a forma como essas ações devem ser controladas. Sendo assim, apesar do debate religioso ser uma resposta a um problema extremamente complexo, porque envolve tanto o presente como o futuro, podemos estar no caminho certo simplesmente por propor o diálogo.
Sobre a capacidade de controlar as ações transumanistas poderíamos apelar para uma posição política, onde seria necessária uma espécie de regulação global por parte de governos e estados, o que nos distancia de uma solução imediata, eficaz e rápida. De acordo com Luc Ferry em seu texto A revolução transumanista é preciso, quer queiramos ou não, regular. Isto é, evitar que a humanidade caia naquilo que os antigos gregos chamavam de hybris, a arrogância e o descomedimento. Precisamos fixar limites para o homem prometeico.
Mas não nos enganemos. Para impor regras à sociedade civil, para pôr ordem e colocar limites à lógica do individualismo, é preciso não apenas dispor de um estado esclarecido, de uma classe política que entenda as evoluções da sociedade, os movimentos de fundo que a transformam, suas novas aspirações, às vezes radicalmente inéditas, mas também de um estado forte, capaz de se fazer respeitar por essa esfera privada pela qual se pretende responsável. Mas é justamente aí que o ponto, no fato de que a globalização, que tem na universalidade da tecnociência que atravessa todas as fronteiras um aspecto inseparável, levanta um problema particularmente crítico: o da impotência pública num contexto no qual, tendo o mercado se tornado mundial, enquanto as políticas permaneciam estatais e nacionais, isto é, locais, a eficiência real dos estados-nações se reduz aos poucos a quase nada (FERRY, 2018, p.127).
A segunda forma de impormos um controle ao enhancement, seria traçar e definir claramente os limites entre o terapêutico e o aprimoramento, para isso, a discussão perpassaria o campo ético, uma vez que precisaríamos delimitar qual a nossa responsabilidade perante nossas ações. Pinsart no vocabulário Hans Jonas, sustenta que “não somente a capacidade de ser responsável obriga a exercer essa capacidade sob o olhar de todos os objetos contingentes da ação, mas ela impõe igualmente a responsabilidade de colocar-se, ela mesma, como seu próprio objeto de exercício” (PINSANT, 2019, p.137). Hans Jonas nos alerta n’ O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica sobre o primeiro imperativo da ética do futuro: que exista uma humanidade, que não podemos transferir a responsabilidade da existência da humanidade das futuras gerações para elas, pois também a responsabilidade teria como dever zelar pela imagem do ser humano, ou seja, sua representação no mundo, tanto hoje como no futuro.
Seguindo o pensamento de Pinsart, uma vez que a responsabilidade teria como dever garantir sua presença, ela também garantiria a liberdade. Desse modo, evidencia-se o caráter ontológico e ético da responsabilidade, ou seja, ao passo que a responsabilidade, numa dimensão que chamamos de substancial, deve garantir que exista uma humanidade; ela também afirma, numa dimensão formal, que é preciso que haja uma vida humana autêntica. Essas duas características da responsabilidade são complementares entre si.
No princípio responsabilidade, a atividade reflexiva do sujeito cognoscente ao passo que transforma o homem no único indivíduo no reino do ser em portador da responsabilidade, também o torna objeto de “avaliação e vontade axiológica” (JONAS, 2010, p.32). Esse sujeito ao tornar-se responsável por um objeto externo a ele, “também implica por si só o cuidado bem pelo interior, e pela possibilidade e obrigatoriedade do valor da própria pessoa” (JONAS, 2010, p.32).
Considerações finais
Desse modo, vemos que o transumanismo, mais especificamente o human enhancement, torna-se um perigo ao ser humano e de um ponto de vista religioso a imago Dei porque subtrai algo de próprio e específico da natureza humana, que é sua liberdade. A possiblidade de não precisarmos de nosso corpo orgânico ou de mudá-lo segundo nossos interesses e desejos é um obstáculo a garantia da permanência e da existência da vida humana no planeta, pois a pergunta sobre que imagem devemos usar para construir novos corpos permanece aberta. E é ainda mais emblemático, quando questionamos qual o objetivo de aprimorar a espécie humana? “Certamente não é criar o homem – este já está aí. Criar homens melhores (em termos orgânicos) talvez? Mas qual é a medida do melhor? Mais adaptados, por exemplo? Mas mais adaptados para o que? Tropeçamos em perguntas muito abertas e totalmente metatécnicas se ousamos colocar as mãos sobre a constituição física dos homens. Todas essas questões convergem para uma só: conforme que imagem?” (JONAS, 2013, p.179).
Com a secularização do cristianismo, o homem se liberta da hierarquia criativa de Deus, e assim se liberta de suas amarras existenciais, sejam elas cosmológicas ou teológicas. De acordo com Umberto Galimberti (1999), após o anúncio da morte de Deus, e a erupção do transumanismo, não há limites que a tecnologia não pode superar. Desse modo, fica evidente a afirmação de Jonas que a técnica é o destino, ou melhor, as crenças utópicas transumanistas em relação ao enhancement human se tornarão o destino. A religião durante muitos séculos apenas preparou o terreno para o transumanismo se instalar. Hoje se quisermos encontrar a salvação não devemos ir aos antigos mausoléus, chamados de igrejas por Nietzsche, mas devemos procurá-la no Vale do Silício, nas empresas de criogenização e em laboratórios biotecnológicos. Se quisermos continuar a ter uma história, precisamos frear urgentemente os impulsos biotecnológicos dos transumanistas, para quem sabe ter uma existência futura digna.
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Notas
Autor notes