Resumo: A visão mainstream do século XX sugere que o filósofo e economista escocês Adam Smith fez uma defesa de teoria liberal pautada exclusivamente no individualismo tout court e no puro cálculo racional da economia. Sob essa ótica, liberalismo e ética sentimentalista seriam elementos totalmente dissociados e independentes no pensamento smithiano. Entretanto, consideramos que esta é uma interpretação enviesada que desconsidera a leitura conjunta de suas obras centrais The theory of Moral Sentiments (1759) e Wealth of Nations (1776), o que inviabiliza uma compreensão global do seu pensamento. Contra essa visão dominante, propomos, como objetivo central do presente artigo, a conciliação entre liberalismo clássico smithiano e sua ética sentimentalista, a partir da noção de dignidade humana presente no reconhecimento do outro como um igual. Se esta hipótese estiver correta, defenderemos a tese de um liberalismo simpático no sistema filosófico de Adam Smith. Para isso, inicialmente, analisaremos o sentimento de simpatia smithiano e sua interferência nas relações interpessoais e, em seguida, o dispositivo de justificação moral da imparcialidade enquanto promotora de comportamentos justos. Por fim, sustentaremos que o entrelaçamento desses dois elementos da ética sentimentalista smithiana, no espaço público, engendra uma noção de dignidade humana compatível com o seu liberalismo, na medida em que respeita as liberdades individuais ao mesmo tempo em que propicia o progresso das sociedades comerciais. Para isso, utilizaremos como fios condutores dessa pesquisa, a obra de Adam Smith Theory of Moral Sentiments e a análise interpretativa do filósofo norte-americano Stephen Darwall no artigo Sympathetic Liberalism: Recent Work on Adam Smith .
Palavras-chave:Sentimentos moraisSentimentos morais,SimpatiaSimpatia,LiberalismoLiberalismo,Dignidade HumanaDignidade Humana.
Abstract: The mainstream view of the twentieth century suggests that the Scottish philosopher and economist Adam Smith made a tout court defense of individualism and the pure rational calculation of economics. However, we consider this to be a biased interpretation that ignores an integrated reading of his books, The Theory of Moral Sentiments (1759) and Wealth of Nations (1776), which hinder a global view of his thinking. In opposition to this dominant view, we propose, as the central objective of this article, the conciliation between Smith’s classical liberalism and his sentimental ethics, based on the notion of human dignity, present in the recognition of the other as an equal. If this hypothesis is confirmed, we will defend the thesis of sympathetic liberalism in Adam Smith’s philosophical system. For this, we will analyze the feeling of Smithian sympathy and its interference in interpersonal relationships, then, the device of moral justification of impartiality as a promoter of fairness behavior. Finally, we will argue that the intertwining of these two elements of Smithian sentimental ethics in public space engenders a notion of human dignity compatible with his liberalism, insofar as it respects individual freedoms while fostering the progress of commercial societies. For such, we will make use of the work Theory of Moral Sentimentalism by Adam Smith and the article Sympathetic Liberalism: Recent Work on Adam Smith by Stephen Darwall.
Keywords: Moral feelings, Sympathy, Liberalism, Human Dignity.
Artigos
Dignidade humana em Adam Smith: a conciliação entre liberalismo e moral
Human dignity in Adam Smith: the reconciliation between liberalism and moral
Recepção: 09 Setembro 2020
Aprovação: 20 Dezembro 2020
Responsável por uma das mais elaboradas teorias morais da Escola dos Sentimentos Morais, o filósofo Adam Smith defende que a moralidade por trás das ações humanas é essencialmente prática e pautada no sentimento de simpatia. Em outras palavras, a moral não pode ser entendida como algo que parte de uma metafísica, mas da vida prática humana. Partindo dessa defesa, não falaríamos de bem e de mal nos termos de uma metafísica da ação, mas de correto e incorreto ou adequado e inadequado pautados por este sentimento moral que ultrapassa a dimensão racionalista, revelando uma natureza humana na qual a nossa sensibilidade moral se adquiriria e evoluiria conforme o tempo.
Considerando essas questões iniciais, o presente artigo terá como intuito apresentar o sentimento de simpatia como o grande motor das ações humanas a partir do pensamento de Adam Smith, elucidando como essa proposta sentimentalista engendrará uma noção de justiça capaz de sustentar os conceitos de reconhecimento e dignidade humana. Smith, ao longo de sua obra Theory of Moral Sentimentalism, não reduz a dimensão da dignidade a um valor intrínseco humano e, consequentemente, não se assemelhará às correntes teóricas deontológicas contemporaneamente. Por isso, pretendemos demonstrar como essa ideia seria uma espécie de “liberalismo simpático”, como será definido por Stephen Darwall. O presente texto será dividido em três seções. Na primeira, analisaremos a simpatia como o sentimento que move as ações humanas. Em seguida, examinaremos como o julgamento moral das ações humanas é formado tendo como base esse sentimento simpático e como esse mesmo julgamento sustenta a noção de justiça smithiana. Por fim, apresentaremos como esse sentimento nos permite reconhecer o outro como um indivíduo igual e que deve ter a sua individualidade preservada.
Toda e qualquer experiência sobre as quais são fundamentadas as regras gerais do comportamento humano são, segundo Smith, antes a qualquer coisa, objetos originados de sentidos e sentimentos imediatos e não da razão. Partindo disso, a “simpatia” é entendida como um conceito que surge a partir da análise de sentimentos reais, isto é, do modo como as pessoas, com suas experiências na vida em sociedade, incorporam sentidos de moralidade. Esta visão é tão importante para Smith que ele inicia a obra de 1759, Theory of Moral Sentimentalism, com a seguinte afirmação:
Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios de sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte dos outros, e considerar a felicidade deles necessárias para si mesmo, embora nada extraia disso senão o prazer de assistir a ela [...] É fato óbvio demais para precisar ser comprovado, que frequentemente ficamos tristes com a tristeza alheia, pois esse sentimento, como todas as outras paixões originais da natureza humana, de modo algum se limita aos virtuosos e humanitários, embora esses talvez a sintam com uma sensibilidade mais delicada. O maior rufião, o mais empedernido infrator das leis da sociedade não é totalmente desprovido desse sentimento. (SMITH, 1759, p. 05).
Nesse sentido, a simpatia poderá ser entendida de duas formas, a saber: .. como algo passível e mecânico ou ii. como algo direto e sensível. A primeira modalidade de simpatia (i.) consiste na reação imediata a um determinado estímulo. Podemos imaginar, por exemplo, quando alguém é recebido com um largo sorriso pelo atendente da lanchonete da universidade e, automaticamente, sente-se impulsionado a corresponder também com um sorriso. Tal fenômeno ocorre, segundo Smith, porque “dor e alegria intensamente expressas no olhar ou gestos de qualquer pessoa, imediatamente afetam o espectador com uma semelhante emoção dolorosa ou agradável. Um rosto sorridente, para os que veem, é um objeto que alegra; um semblante sofredor, de outro lado, é melancólico”. (SMITH, 1759, p. 8). Diante disso, é possível perceber esse movimento mecânico, uma vez que um rosto alegre nos faz feliz e um triste nos angustia sem que racionalizemos nossa ação. Ademais, é possível sentir-se automaticamente confiante em relação ao outro através de gestos simples como o olhar franco ou um aperto de mão forte.
Quando vemos que um golpe está prestes a ser desferido sobre a perna ou braço de outra pessoa, naturalmente encolhemos e retiramos nossa própria perna ou braço; e, quando o golpe finalmente é desferido, de algum modo o sentimos e somos por ele tão atingidos quanto com quem de fato o sofreu. Ao admirar um bailarino na corda bamba, as pessoas da multidão naturalmente contorcem, meneiam e balançam seus corpos como o vêem fazer, e como sentem que teriam de fazer se estivessem na mesma situação. (SMITH, 1759, p. 6).
Por outro lado, a simpatia pode ser sentida como algo sensível e direcionada que ocorre quando nos colocamos no lugar do outro. A partir dessa disposição, conseguimos entender a situação pela qual a pessoa está passando. Ao ver que uma pessoa está triste, não me sinto automaticamente no lugar dela, a não ser que eu entenda a situação pela qual ela está passando. Se esta pessoa está triste por ter perdido um ente querido, essa situação é muito mais forte e abrangente que permite nos colocar no lugar do outro. Por exemplo, imagine a situação de Carla, uma balzaquiana que odeia crianças e nunca se imaginou sendo mãe. Durante uma viagem de ônibus, senta ao seu lado uma mulher lamentosa, pois acabara de perder o seu único filho. Apesar de Carla nunca ter sequer se imaginado tendo filhos, ela ainda assim se sente conectada pela dor daquela mãe. Carla nunca poderá sentir exatamente aquela dor materna, uma vez que esse é exclusividade de quem sente. Entretanto, mesmo diante de todas as circunstâncias, Carla simpatiza-se com aquela dor.
Smith admite que os seres humanos são distintos e, diante disso, jamais saberão ou sentirão exatamente a dor do outro. Posso lamentar a dor do outro, mas essa dor pertence à pessoa, haja vista que há uma barreira epistemológica entre nós. Diante dessa realidade, o simpatizar-se ocorre a partir do sentimento formado pela ideia sobre o que acontece numa dada situação e o único modo pelo qual podemos formar essa ideia é nos supondo em circunstâncias idênticas, imaginando como reagiríamos nesses casos. Entretanto, é impossível conceber nos colocando em qualquer situação, agradável ou não, sem sentirmos um efeito semelhante ao que a própria situação em nós mesmos produziria. Consequentemente, a atenção que damos, num certo momento, às circunstâncias de outrem deve nos afetar de modo semelhante, embora jamais com a mesma intensidade com que seríamos afetados se nós mesmos estivéssemos em tais circunstâncias. Isso ocorre porque “nossa imaginação imita a impressão de nossos próprios sentidos”. (SMITH, 1759, p. 8). Segundo Smith, será através do dispositivo da imaginação que conseguimos nos colocar no lugar do outro e, nessa projeção, nos conectamos ao outro. Nesse sentido, para Smith, em todas as paixões de que é suscetível o espírito humano, as emoções do observador ao colocar-se nas mesmas circunstâncias sempre corresponderão aos sentimentos que imagina que seriam os de quem sofre.
Por outro lado, a simpatia para Smith será o mecanismo do qual todos os homens são dotados e mediará a construção do sentimento apropriado ao permitir, pela força da imaginação, que alguém, em alguma medida, possa sentir o que o outro sente se em seu lugar estivesse. Nesse sentido, a dimensão moral se constrói por um tipo de fricção intersubjetiva entre o “eu” e os “outros” pelos sentimentos que são em mim despertos uma determinada ação ou circunstância. Para Smith, o “simpatizar” se relaciona, literalmente, com o “compartilhar de sentimentos” (fellow-feelings) entre indivíduos socializados. A simpatia, no sentido dado por Smith, envolve uma espécie de “conexão orgânica” entre as pessoas que não é transitória. A exemplo disso, temos a tragédia ocorrida no Brasil com o avião do clube de futebol Chapecoense, na qual percebeu-se uma simpatia imediata dos outros clubes de futebol, mas que, passado certo tempo, acabou completamente.
Ademais, tais sentimentos serão moldados, em larga medida, pelos sentimentos de terceiros que sobre mim recaem. Esta “transposição de corpos” influencia os sentimentos, na medida em que possui uma clara derivação reflexiva, haja vista que, se sou capaz de sentir em algum nível a dor alheia, também sou capaz de, colocando-me uma vez mais no lugar do outro, investigar o que ele sente a respeito da minha própria dor. Há aqui dois movimentos distintos: o sentimento do outro que em mim aporta (reconhecimento) e o meu sentimento que a mim retorna (conhecimento) transmutado pela visão do outro. A simpatia, neste sentido, não é apenas sentir o que o outro sente, mas também sentir o que sentiríamos se fôssemos o outro. Para tanto, reconhecer o outro como um igual é um requisito para que me reconheço na dor ou felicidade que o outro expressa.
O senso de adequação do sentimento é definido pelo cotejo entre o meu sentimento originário e aquele que a mim retorna, agora pelos olhos do outro. Isso é o que Smith chama de “propriedade do sentimento”. Quando sentimos a dor do outro, estamos nos apropriando de seu sentimento, por isso a designação que se tem é de propriedade, i. e., um apropriar-se do sentimento alheio. A moderação da minha dor se fará pela forma menos intensa que tal dor é percebida quando vista por outros; a moderação de minha alegria se fará, de forma semelhante, pela sensação que esta despertará nos outros. Há aqui um “sair de si” quando nos fazemos passar pelo outro para sentir o que ele sente, e um retornar a si quando analisamos os nossos próprios sentimentos pelos olhos do outro. É impossível formar um juízo moral adequado, na visão smithiana, sem a necessária presença, mediada pela simpatia, de uma relação de dois polos entre o eu e o outro.
Em alguns casos, a simpatia se manifesta como uma espécie de solidariedade entre as diferentes pessoas, o que, por sua vez, torna-se sempre agradável a ambas. Essa é a chamada simpatia mútua. Quando estou numa situação que excita uma paixão qualquer, é agradável saber que os que acompanham a minha situação experimentam comigo todas as suas várias circunstâncias e são por elas afetados da mesma maneira que eu. Do outro lado, é agradável ao espectador observar essa correspondência entre as suas emoções e as minhas. O fato é que, ao lidar com situações mais delicadas, Darwall afirma que qualquer julgamento no pensamento smithiano só pode ser feito projetando-se no ponto de vista da pessoa que estamos julgando. Não obstante, classe, raça, sexo ou origem étnica restringe o escopo de “nós”, ou seja, são limitantes. Nesse caso, o julgamento proferido por alguém (seja de outro grupo ou não) será da forma que “qualquer um de nós deveria ser movido ou sentir, de tal forma que estivéssemos no lugar dessa pessoa. Para Smith, nojo ou alguma outra resposta ‘estética’ difere de uma avaliação moral pelo fato deste último só poder ser prestado a partir do ponto de vista do outro”. (SMITH, 1759, p. 188). Portanto, o julgamento moral é um mecanismo que impulsiona a identificação e, na medida em que avaliamos os outros moralmente, nos identificamos com eles forçosamente.
De um ponto de vista prático e sentimentalista, consideramos nossos atos moralmente bons ou ruins (apropriados ou inapropriados) dependendo dos sentimentos que os motivam. Esse tipo de métrica moral utilizada pelo sentimentalista parte da pressuposição de que a avaliação decorre do fato que a natureza humana possui duas características básicas. Primeiro, todos os indivíduos são dotados de um sentimento de amor próprio (self-love)3. e de benevolência (benevolence). Segundo, nós temos certo controle cognitivo sobre nossas emoções, pensamento e comportamento.
Primeiramente, o julgamento moral é o que chamamos de propriedade do comportamento, a qual gira em torno da questão sobre o mecanismo de um agente (agent)4. e a reação do paciente (patient) ser ou não adequado. Para isso, Smith correlaciona a aprovação ou desaprovação com que julgamos tanto a nossa conduta quanto as das outras pessoas com a necessidade de se “distanciar” dessas condutas e ações em análise, uma vez que o juízo de conveniência (adequação) ou inconveniência está relacionado com o fato de uma ação ser adequada ou inadequada de acordo com a causa que inspirou o agente a realizá-la. A forma primária de tal juízo é aquele realizado pelo espectador de uma ação que, ao imaginar-se a si próprio no lugar do agente, compara o sentimento motivacional oriundo daquela ação com o sentimento que ele mesmo teria caso fosse seu agente. Se, na situação imaginada, tomasse a mesma atitude que o sujeito em julgamento, então ele compartilha de seu sentimento e aprova a ação. O contrário se manifesta se o agente que observa a situação tem um sentimento avesso ela, condenando-a.
Nesse sentido, o distanciamento torna mais fácil a análise da ação e conduta, o que, consequentemente, explica porque sempre é tão mais difícil e distinto considerarmos as ações e condutas em julgamentos que são próprias do sujeito. Da mesma forma que ao colocarmos um objeto muito perto dos olhos ele parece distorcido, ao se analisar a própria conduta, naturalmente, se obtém também uma perspectiva distorcida, uma vez que, estando muito perto, a tendência é o sujeito olhar para si mesmo com certa condescendência. Por isso, de acordo com Smith, “jamais podemos inspecionar nossos próprios sentimentos e motivos, jamais podemos formar juízo algum sobre eles, a não ser abandonando, por assim dizer, nossa posição natural e procurando vê-los como se estivessem a certa distância de nós”. (SMITH, 1759, p. 139). A maneira de evitar incorrer nesta tendenciosidade pode ser via inspeção das próprias ações e condutas tomando como base não só o modo como provavelmente as outras pessoas as veriam, mas as examinando conforme se imagina que um espectador imparcial e incorruptível as julgaria. Esta condição de imparcialidade ofereceria o padrão ideal de moralidade a partir do qual poderíamos definir uma métrica moral para nossas ações.
Smith adota o critério de julgamento do espectador imparcial5. para justificar moralmente o conceito de justiça. Quando fazemos esse movimento de nos colocar no lugar do outro, assumimos, de forma imparcial, o repertório completo do outro e de seus pensamentos, emoções e atos. Tal procedimento serve não apenas para avaliarmos o comportamento dos outros, mas também o nosso próprio. O dispositivo do espectador imparcial é empregado para balizarmos a nossa própria conduta ao nos projetarmos na base daqueles que estarão no final de nosso comportamento, ou seja, como pacientes ou observadores de nossas próprias reações. Um comportamento ou reação é, então, julgado como moral ou imoral, justo ou injusto de acordo com a aprovação ou desaprovação do espectador imparcial, o qual é utilizado por Smith como um recurso de justificação moral.
O espectador imparcial não será apenas o juiz superior das minhas próprias ações, mas também das ações e juízos morais de terceiros, pressupondo-se o caráter reflexivo com o qual o juízo moral está revestido para Smith. Se a mim e ao outro é conferido o poder de julgar nossos semelhantes, não será a estes e nem a mim conferida à última palavra sobre o acerto ou desacerto, a adequação ou inadequação de meus sentimentos (juízos morais) e ações. Cumprirá ao espectador imparcial – um juiz ideal que a todos inspira, mas que empiricamente não se identifica com ninguém – ser o árbitro último. Em suma, Smith realiza uma análise da psicologia moral do agente e paciente através de uma dimensão sentimentalista, definindo que uma motivação natural baseada na simpatia será suficientemente capaz de nos direcionar para comportamentos justos, o que, consequentemente, engendrará uma sociedade virtuosa6..
Considerando que nossas capacidades cognitivas permitem escapar imaginativamente para a vida do outro é que “coramos pelo despudor e rudeza de outra pessoa”, (SMITH, 1759, p. 121). fornecendo um meio de obter uma perspectiva sobre o mundo daquele. Todo esse processo regulado pelo princípio moral da imparcialidade nos permitirá renunciar nossos sentimentos egocêntricos e assumir sem prejuízo os interesses e sentimentos de cada parte relevante da situação em que estamos julgando7.. Mas e as situações em que os interesses individuais conflitam com os interesses dos outros? Nesses casos, deve ser lançada mão do autocontrole como a virtude capaz de lidar com a emoção natural do autointeresse, conciliando-a com o interesse dos outros via simpatia. Nesse sentido, a noção de humanidade e autocontrole constituem para Smith a perfeita virtude da natureza humana8., pois permitem ultrapassar os sentimentos de altruísmo ou auto sacrifício a partir do reconhecimento e valoração do outro. Nesse sentido, nos descobrimos como iguais e que
ao nos preferirmos em detrimento dos outros tão vergonhosa e cegamente nos tornamos objetos apropriados de ressentimento, horror e execração. É apenas com ele que aprendemos nossa verdadeira pequenez, a de tudo o que nos diz respeito, pois unicamente, o olho desse espectador imparcial pode corrigir as falsas representações do amor de si. É ele quem nos mostra a conveniência da generosidade e a deformação da injustiça; a conveniência de se renunciar aos nossos maiores interesses particulares em favor dos ainda maiores interesses dos outros. (SMITH, 1759, p. 137).
Em suma, possuir autocontrole é essencialmente sentir por nós mesmos apenas o que os outros podem sentir. Por isso, o espectador imparcial possui “razão, princípio, consciência” (SMITH, 1759, p. 137) e a capacidade de nos revelar como “apenas mais um na multidão, em nada melhores do que qualquer outro indivíduo”. (SMITH, 1759, p. 137).
O mérito ou demérito de uma ação é considerado em consequência da aprovação (conveniência) ou desaprovação (inconveniência) da mesma, o que também nos permite distinguir as qualidades morais da ação por sua respectiva relação com os pacientes. Nesse sentido, mérito e demérito é o efeito que o afeto tende a produzir, tendo como base a noção de justiça9.. Quando a tendência de uma emoção é benéfica, o agente nos parece objeto adequado de recompensa; por sua vez, quando sua tendência é dolorosa, o agente nos parece objeto adequado de punição. Tais julgamentos de adequação ou inadequação promoverão o sentimento de justiça ou injustiça. Segundo Smith,
o ódio e a aversão produzidos pela habitual reprovação frequentemente pode nos reconduzir a um maligno regozijo pela desgraça desse homem, cujo comportamento e caráter produz em nós uma paixão tão dolorosa. O ressentimento nos incitaria a desejar não apenas o castigo, mas que o castigo resultasse de nós mesmos, e por causa precisamente da ofensa de que fomos vítimas. O ressentimento não se satisfaz plenamente, a não ser que o ofensor não apenas padeça, mas que padeça por causa desse mal específico que nos faz sofrer. É necessário que se lamente precisamente daquela ação, de modo que outros, por medo de merecerem castigo semelhante, se aterrorizem de incorrer em igual culpa. (SMITH, 1759, p. 77).
Os sentimentos de nossa natureza que nos tornam capazes de recompensar e punir são respectivamente, a gratidão e o ressentimento. Por isso, afirmar que uma pessoa merece recompensa ou punição é, em outras palavras, afirmar que tal pessoa é objeto adequado de gratidão ou ressentimento, respectivamente. Em particular, algo é injusto quando o sentimento reativo e retaliativo é motivo para desafiar, resistir ou punir a conduta com força, o que ocorre somente no ressentimento10. Aquilo que sentimos posteriormente ao julgamento apropriado do outro, fundamentará regras de justiça que impõem obrigações estritas e definem os direitos dos indivíduos11. Em outras palavras, será através desse sentimento de justiça ou injustiça oriundo do julgamento moral, via espectador imparcial, que teve como fonte originária a noção de simpatia, que o direito e as regras de convivência se estabelecerão12.
Conforme a interpretação de Darwall, esse sentimento de justiça smithiano diz respeito à “apropriação” que fazemos do sentimento que o agente ou o paciente possuem em determinada situação13 e ao julgarmos se esse é ou não apropriado, assumimos não uma perspectiva externa, mas a perspectiva da pessoa que possui tal motivo ou sentimento14. Tal movimento é disciplinado pela maneira como entramos no agente ou o ponto de vista do paciente, não fornecendo sua própria perspectiva, mas se valendo de uma projeção imparcial do ponto de vista do agente ou paciente: “Nós imaginativamente projetamos, não como nós mesmos, mas imparcialmente, como qualquer um de nós”. (SMITH, 1759, p. 137). Isso nos permite conectar com o outro, compreendendo - o e, consequentemente o reconhecendo.
Essa visão, portanto, tornaria todo julgamento moral profundamente relativo ao agente ou paciente. Quando julgamos o motivo de um agente, fazemos a partir da perspectiva do próprio agente (apropriadamente regulada), visualizando a situação prática como imaginamos confrontá-la em um estado de deliberação. E quando julgamos o sentimento ou reação de alguém, fazemos isso de um ponto de vista relativo ao paciente, vendo a situação como imaginamos para confrontar o paciente que responde a ele15. Essa noção de justiça que permitiria a conexão entre o espectador e o agente/paciente engendrará um tipo de igualdade humana moral. Diante disso, a noção de justiça promoveria o sentimento de reconhecimento e dignidade do outro, haja vista ser capaz de exercer pressão sobre a forma como percebemos e agimos. Consequentemente, essa dignidade não pode ser entendida como uma máxima ética abstrata, mas como um sentimento real como quando “ficamos encantados ao encontrar uma pessoa que nos atribui o mesmo valor que nós mesmos nos atribuímos e nos distingue do resto dos homens com uma atenção semelhante àquela que nós nos distinguimos”. (SMITH, 1759, p. 119).
A análise individual do julgamento moral smithiano é, pela perspectiva de Darwall, uma doutrina que revela uma espécie de dignidade dos indivíduos, que ele chamará de liberalismo simpático. Considerando que, dentro da classe geral de juízos morais, os julgamentos de justiça distinguem-se, para Smith, pelo fato de envolverem não apenas o ponto de vista do agente, mas também o ponto de vista do paciente, segue-se que, mesmo que possamos evitar a identificação com as ações de outros indivíduos, não podemos evitar de avaliar a nossa própria conduta em relação a eles. Ao fazermos isso, outros pontos de vista disciplinarão os nossos julgamentos, uma vez que a dimensão da justiça de nossas ações determina a imparcialidade de julgamento em relação a nós e a eles.
Por sua vez, julgar se nossa conduta com relação aos outros é justa ou não nos faz agir de maneira que qualquer um (nós ou eles) não sentisse nenhum ressentimento do ponto de vista de quem recebe a ação. Esse é o caráter essencialmente individual dos juízos de justiça do agente ou paciente. A resistência à injustiça é garantida não por considerações de utilidade geral, mas pela preocupação com o “muito individual” que seria ferido. De acordo com Darwall,
O que há de interessante sobre a posição de Smith é que ele pode aceitar a crítica a uma ética da virtude "estetizada", como a de Hume, sem abandonar a estrutura geral da ética da virtude. Tal como ele entende os juízos de justiça, eles expressam, por sua própria natureza, sentimentos que operam dentro de um sistema de responsabilidade e respeito mútuos. Disse se segue que a igualdade liberal não é, segundo Smith, simplesmente uma questão de direito e política, mas também se refere ao respeito que os próprios cidadãos têm e expressam um pelo outro em sua vida moral comum. Para Smith, a justiça não é apenas uma virtude das sociedades, mas também é, fundamentalmente, uma virtude dos indivíduos. Isso dá a Smith uma maneira muito diferente de pensar em uma teoria moral e política amplamente igualitária e liberal em relação às linhas de pensamento com as quais estamos mais familiarizados. As regras que definem a justiça e a igual dignidade não são tomadas como autoevidentes nem dadas via fundamentação contratualista. Para Smith, um julgamento de justiça, como qualquer outro julgamento moral, deve estar ancorado no sentimento moral. (DARWALL, 1999, p. 27).
Dessa forma, os julgamentos morais expressariam sentimentos que operam dentro de um sistema de responsabilidade mútua e de respeito, no qual a justiça é tratada como um pressuposto entre os indivíduos que reconhecem a condição de dignidade das pessoas. Ressentimento e gratidão, termos cruciais para compreendermos o desdobramento dos sentimentos morais na forma de julgamento, tornam possível concluir que a noção de julgamento de justiça estaria ancorada também na dimensão sentimentalista de sua teoria, o que tornaria justificado defender uma forma de liberalismo simpático no seu pensamento16.
Como visto, o sujeito smithiano parece estar constantemente frente a um jogo de espelhos. E este jogo nada mais é do que o reflexo do exercício da simpatia enquanto mediadora dos relacionamentos sociais. Segundo Smith, as pessoas, desde a mais tenra idade, cumulativamente observam o comportamento e as reações a certos tipos de ação e sentimentos considerados como meritórios ou não pelos diferentes grupos sociais nos quais estão inseridas. Com isso, elas assimilam determinado padrão de julgamento com base nesse exercício de captar os sentimentos de outras pessoas, o que permite o transforma em agentes sociais capazes de aplicar tais padrões morais adquiridos. Para o autor, há dentro de cada pessoa uma instância deste espectador imparcial em contínua construção, o que torna a todos, em um só tempo, indivíduos portadores desta dimensão da imparcialidade que também não conseguem se afastar das limitações e circunstâncias de habitar relações sociais contingentes. Diante disso, será através da educação e do hábito que o indivíduo promoverá o aprimoramento e aperfeiçoamento desta dimensão do espectador imparcial, na medida em que todos somos capazes de “discernir as consequências remotas de todos os nossos atos e prever o benefício ou prejuízo que provavelmente resultarão deles” 17.
A simpatia em Adam Smith poderá ser entendida, assim, como o sentimento moral que move as ações humanas e determina o tipo de julgamento moral que iremos oferecer às ações humanas. Consequentemente, um dos desdobramentos de sua teoria revela que a noção de justiça smithiana, alicerçada no sentimento de gratidão ou sentimento resultante, conseguirá gerar uma punição legal apropriada que se manifestará na dimensão de mérito ou demérito das ações avaliadas. E, por meio dessa ideia de justiça combinada que o outro será reconhecido e será promovida a noção de dignidade que, de acordo com Darwall, se pautará no respeito à individualidade. Dessa forma, do ponto de vista moral, Adam Smith comunga da preocupação com uma teoria adequadamente suficiente para explicar as relações sociais de confiança, autodeterminação e reconhecimento do outro a partir de uma visão sentimentalista e imparcial, que via espectador imparcial proporcionará o julgamento adequado.
Ademais, a tradicional visão de Smith como um filósofo (e economista) liberal parece ser insuficiente quando consideramos a dimensão moral de sua teoria. É nestes termos que, quanto mais adentramos no pensamento de Smith, mais percebemos que seu liberalismo ultrapassa a dimensão política de sua teoria, na medida em que suas considerações recaem sobre uma noção de dignidade humana para agentes morais simpáticos. O autor expressa, assim, o lastro liberal de seu pensamento como estando diretamente associado à dimensão moral de sua teoria sentimentalista que se esforça em preservar o caráter prático das relações sociais humanas.