Artigos
Recepção: 26 Outubro 2020
Aprovação: 15 Janeiro 2021
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v21i1.2153
Resumo: A Dialética negativa é uma das mais importantes obras do pensamento de Theodor W. Adorno, não apenas devido ao fato de que ali ele expõe os pressupostos epistemológicos fundamentais para a compreensão de sua constelação – método de análise e procedimentos –, mas também porque nela a ideia de experiência filosófica é, efetivamente, exercício do pensamento. A proposta do presente texto é tratar a figura-chave pensar em modelos, a partir de outro modelo de pensamento, leia-se, a intricada relação teoria e prática.
Palavras-chave: S: Dialética negativa, Liberdade, Crítica imanente, Experiência.
Abstract: The Negative dialectics is one of Theodor W. Adorno's most important works of thought, not only due to the fact that there he exposes the fundamental epistemological assumptions for understanding his constellation – method of analysis and procedures –, but also because in it the idea of philosophical experience is effectively an exercise of thought. The purpose of this text is to deal with the key figure thinking about models, from another model of thought, read, the intricate relationship between theory and practice.
Keywords: Negative dialectic, Freedom, Immanent criticism, Experience.
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“Prefiro não fazer...”
Bartleby.
Mein Lieber, die Situation ist zu kritisch,
ls daß die Kritiklosigkeit ihr gewachsen wäre!
Doktor Faustus
A dor diz: pereça!
Theodor W. Adorno
Considerações iniciais
No ato de escrever sobre alguém, que é ao mesmo tempo uma apropriação de determinado modelo de pensamento (Denkmodellen), de poder desde o nosso idioma traduzir o que é Outro sem torná-lo uma mera projeção subjetiva de representações, o recurso de encontrar algo, algum ponto em comum que possa aproximar quem escreve e aquele sobre o qual se escreve é condição precípua de toda escrita. Essa tarefa se torna um tanto mais complexa quando o autor em questão, no caso aqui esse autor é Theodor W. Adorno, não está fisicamente próximo ou, pior ainda, quando a geografia de seu idioma, e aqui nos referimos especialmente à Negative Dialektik (1966), está para além de qualquer fronteira geográfica – mais ainda de quem sobre ele escreve (referimo-nos aqui do autor deste presente texto). Que fazer, portanto, diante disso? A resposta não é de todo simples. Sendo assim, não há outro modo senão o de para além de toda variação mimética da escrita, recriar, desde dentro, o movimento de seu pensamento evitando ao máximo a recaída em uma rasa transcrição mimética desse movimento. Um perigo, deveras, evidente, pois a exigência que nos é posta é de mergulhar tão profundamente na obra do autor em questão que, tal qual areia movediça, qualquer movimento falso, sua falsidade é desde ela mesma revelada. Nossa resposta foi, então, a de experimentá-la, experimentando a nós mesmos, deixando “surgir interpretações possíveis, propô-las, compará-las com o texto e com aquilo que já foi confiavelmente interpretado” (ADORNO, 2013, p. 242). Este método chame-no como quiserem: hermenêutica crítica, leitura comparada, genealogia, arqueologia, etc. Mas, para todos os efeitos, na constelação da imaginação dialética ele tem nome: chama-se crítica imanente. É ela a quem neste texto iremos recorrer.
Em 1966, Adorno começava a escrever a Dialética negativa com um motivo bastante pretensioso, qual seja: pôr em marcha o processo de autoesclarecimento da noção de experiência filosófica. Desde os primeiros parágrafos da referida obra, ele estabelece um preciso diagnóstico acerca da vida da experiência filosófica, particularmente a que passou da dialética hegeliana à sua revisão materialista. A Dialética negativa, desse modo, é uma das mais importantes obras de seu pensamento, não apenas devido ao fato de que ali ele expõe os pressupostos epistemológicos fundamentais para a compreensão de sua constelação (Konstellation) – método de análise e procedimentos –, mas também porque nela a ideia de experiência filosófica é, efetivamente, exercício do pensamento. Não é por acaso a seguinte afirmação: “pensar filosoficamente significa o mesmo que pensar em modelos; a dialética negativa é um ensemble de análises de modelos” (negative Dialektik ein Ensemble von Modellanalysen) (ADORNO, 1966, p. 37). A proposta que, doravante faço, é tratar a figura-chave pensar em modelos, a partir de outro modelo de pensamento, leia-se, a intricada relação teoria e prática.
A princípio, talvez seja necessário dizer, ainda que abruptamente, que, em Adorno, a filosofia é dialética negativa e o seu modo de comunicação é a expressão. Não se trata de uma dialética morta – constituída desde a suprassunção de elementos não-idênticos à uma falsa-identidade (procedimento que encontraria justificativa na síntese) –, mas uma dialética da experiência. Quem, dirá nosso autor, “se submete à disciplina dialética, tem de pagar sem qualquer questionamento um amargo sacrifício em termos da multiplicidade qualitativa da experiência” (ADORNO, 1966, p. 16). Desse modo, insisto, a forma de proceder do pensamento é uma parte do próprio conteúdo, i.e., para dizer com Silva (2019, p. 3) que o “modo de ser do pensamento é correlato ao modo de ser da coisa”. Pensamento que se expressa não mais naquela tentativa de encontrar o princípio sobre o qual todas as diferenças possam encontrar repouso na clausura, o Dasein heideggeriano, mas na física, nua e crua realidade. Pensar por modelos resulta, portanto, em instituir uma relação de não-dominação, sem violências, de modo que a “a disposição reconciliada (versöhnte Zustand) não anexaria o estranho a um imperialismo filosófico, mas encontraria sua felicidade no fato de o estranho e o diverso permanecerem na proximidade por nós conferida, para além do heterogêneo tanto quanto do próprio” (ADORNO, 1966, p. 190). A dialética negativa é, definitivamente, um antissistema.
1. Dialética como modelos
1.1 Liberdade:
Concretamente Adorno desenvolve três modelos de pensamento. O primeiro deles é dedicado especialmente a uma reflexão sobre a temática da liberdade a partir de sua defesa desde a filosofia prática kantiana. Não podemos esquecer que o objetivo da filosofia de Adorno era poder possibilitar a construção de uma sociedade formada por homens livres e emancipados. “A verdadeira prática, a quinta-essência das ações que satisfariam a ideia de liberdade, necessita, em verdade, da plena consciência teórica” (ADORNO, 1966, p. 226). É consenso que, quem melhor traduziu esta relação entre razão-liberdade (entre razão teórica e razão prática) dentro dos limites do esclarecimento (Aufklärung), foi sem dúvidas Kant. A atração que exerce Kant sobre Adorno pode ser explicada, primeiro, por sua temprana aproximação desde a juventude através das aulas do amigo Kracauer; depois, porque Kant seria o primeiro a estabelecer a importância de uma filosofia crítica, de uma crítica da e desde a razão (Cf. KANT, 1781, A XI-XII). Não obstante a isso, Adorno mostra que há, no bojo do projeto filosófico kantiano, uma velada contradição: embora a liberdade seja o télos da razão, uma razão a serviço de uma humanidade livre das amarras de qualquer que for a tutela, ao mesmo tempo, ela limitava excessivamente essa liberdade em favor de uma racionalidade puramente formal, i.e., apartada da experiência. Isso resulta, ao que tudo indica, em uma impossibilidade prática da liberdade. Não é à toa o fato de Adorno se concentrar no exame, desde a Dialética negativa, da terceira antinomia da Crítica da razão pura (1781): a antinomia da causalidade pela liberdade (Kausalität aus Freiheit).
Pois bem, de acordo Kant, na (e no conceito de) antinomia, de natureza dialética em si mesma, a causalidade da natureza não é o único modo de causalidade, pois existe também outro tipo de causalidade que é a liberdade, i.e., uma liberdade na causalidade (tese). Como todo evento requer uma causa e não pode haver uma sequência causal inacabada, é necessária a existência de uma causa não causada por outra causa precedente: liberdade transcendental, caracterizada por sua espontaneidade absoluta. Por outro lado, não há liberdade, de modo que tudo o que acontece no mundo acontece de acordo com as leis da natureza e seu determinismo causal (antítese). A solução de Kant para essa antinomia foi dizer que a ideia de liberdade não contradiz as leis da natureza porque, por um lado, a existência de leis naturais ocorre no mundo dos fenômenos e, por outro, a existência de liberdade no mundo noumenal, i.e., o último tem um caráter inteligível ou, o que é o mesmo, é um factum da razão. Para Adorno, no entanto, afirmar isso não significa resolver o problema real da antinomia. “A única coisa que é demonstrada é que a causalidade não pode ser considerada como positivamente dada até o infinito” (ADORNO, 1966, p. 247). O que nos importa não é tomar essa liberdade como justificada per se, mas explicitar a relação dessa liberdade enquanto dado da razão como a experiência concreta. N’outros termos, cabe precisar em que consiste essa liberdade.
De acordo com Kant, a liberdade faria parte do sujeito transcendental que determinada pela vontade, ou melhor, pela lei da razão e não por suas inclinações sensíveis, se tornaria o procedimento avaliador das ações morais, de acordo unicamente com a lei (pelo puro dever). A liberdade seria, neste sentido, a ratio essendi da lei moral, i.e., autonomia para pensar normas e, consequentemente, a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade – capacidade de julgar a si-mesmo. O que a reflexão moral busca, em última análise, não é só fundamentar a liberdade do indivíduo (que se percebe autônomo em relação à ordem social que ele está inserido), mas, e talvez principalmente, ver em que medida esse mesmo sujeito pode, através de uma subjetividade atemporal, fundar, desde si mesmo, uma normatividade social.
Desse modo, Adorno considera isso uma falácia e que na realidade, o que a doutrina kantiana busca é sujeitar o indivíduo, através dessa liberdade – porque desde o princípio o conceito de liberdade é remetido ao conceito de lei (lei da razão) – para poder assim impor estas leis no mundo real, suprimindo, portanto, a possibilidade efetiva da liberdade. Em Kant, coação e liberdade encontram-se entrelaçadas, i.e., nascem ao mesmo tempo: a liberdade positiva é uma ficção, ou melhor, um fantasma.
Todos os conceitos que, na Crítica da razão prática, em honra da liberdade, devem preencher o abismo entre o imperativo e os homens são repressivos: lei, obrigação, respeito, dever. Uma causalidade derivada da liberdade corrompe a liberdade e a transforma em obediência. Kant, tal como os idealistas depois dele, não pode suportar a liberdade sem coerção; sua concepção não-velada já prepara para ele esse temor ante a anarquia que inspira mais tarde a consciência burguesa à liquidação de sua própria liberdade (ADORNO, 1966, p. 229).
A liberdade kantiana é, desde o inicio, repressiva, pois equivale ao domínio absoluto da natureza interna do indivíduo, de um indivíduo que é concreto, não meramente transcendental. Este foi o preço a pagar pelo progresso, pelo domínio exterior da natureza que levou consigo a opressão sobre a natureza interna, sobre a liberdade interna, com seus impulsos até à felicidade, esquecendo que a liberdade real só pode ser possível no sujeito que sente e sofre, unicamente nele ela pode efetivar-se. Eis o resultado: o desenrolar de uma razão instrumental que oprime os indivíduos em seu modo de ser (Cf. ADORNO & HORKHEIMER, 1985). Neste ponto, Adorno relaciona o sujeito kantiano com o sujeito da psicanálise já que, de acordo com Freud, o sujeito não era mais que um mediador entre as pulsões e o mundo exterior, que antes de tudo buscava sua autoconservação, já que sua consciência de indivíduo foi suprimida pela identificação mecânica com o meio. Assim sendo, a psicanálise era importante por seu potencial em reconhecer esta mediação e ver o sujeito como um produto formado, em larga escala, pela sociedade, uma sociedade violenta e repressiva aonde os homens haviam sido reduzidos a mercadorias.
[...] com certeza, é somente em uma sociedade livre que os indivíduos seriam livres. Com a repressão exterior, provavelmente depois de longos períodos e sob a ameaça permanente do retrocesso, desapareceria a repressão interior [...] A liberdade torna-se concreta nas figuras alternantes da repressão: na resistência a ela (ADORNO, 1966, p. 260).
A tensão dialética entre o indivíduo e a sociedade são os dois componentes básicos do tema da liberdade. Sem liberdade individual, não há liberdade social, nem vice-versa. Enquanto a sociedade for falsa, ideológica, enquanto a consciência permanecer reificada, não se pode falar em uma verdadeira liberdade. Isso permaneceria apenas como um potencial crítico. A liberdade significaria, então, um postulado crítico contrário à sua confirmação. O exercício da liberdade consistiria na negação de tudo o que se opõe a ela: hoje em dia só podemos falar de liberdade como liberdade negativa.
1.2 Sobre Natureza e história
O segundo modelo consiste em uma reflexão sobre os conceitos de natureza e história e sua não-reconciliação na existência dada, uma existência em que a liberdade ainda não foi instalada. Este modelo pode ser considerado como uma continuação do primeiro, especificamente no que diz respeito à figura escolhida para realizar tal excurso, a saber: Hegel, para Adorno nesse momento, fiel seguidor do pensamento esclarecido kantiano. A crítica de Adorno ao pensador de Jena está envolvida na crítica ao princípio de identidade e na redução da dialética sujeito-objeto ao polo subjetivo. É sabido por todos que Hegel opera, desde a Phänomenologie des Geistes (1807), uma redução de toda realidade à figura de um sujeito enquanto espírito absoluto. Nessa figura, encontrar-se-ia a síntese, i.e., uma completa reconciliação entre o espírito e o oposto a ele mesmo: espírito e natureza reconciliados. Desde o início, o projeto filosófico hegeliano consiste, então, em pensar a unidade interna entre espírito e natureza de modo a tornar possível uma teoria – encerrada em si mesma – capaz de abarcar a realidade em sua totalidade. Uma realidade em que o espírito seria o que melhor expressa a natureza do real, uma realidade que seria identificada com a razão: “o que é racional (was vernünftig ist), isto é efetivo (ist wirklich) e o que é efetivo, isto é racional” (HEGEL, 2010, p. 41). Isso implica dizer que a realidade é razão e que esse espírito como sujeito governa e constitui o real (os diferentes objetos ou as formas mesmas da objetividade), ou seja, a natureza e, além disso, esse espírito como sujeito também cria a história, é o sujeito da história, de uma história concebida como o desenvolvimento progressivo da liberdade. A realização efetiva dessa liberdade é, para Hegel, o Estado (ou a personificação objetiva do espírito). Daí a importância que esse autor atribuiria à filosofia do direito, uma vez que nela se consumava a estrutura social e política, a vida dos homens como algo totalmente racional. Razão e verdade coincidiram na história: o sistema se fecha.
A filosofia materialista da qual Adorno é, sem dúvidas, herdeiro, recusa a verdade desses postulados. As existências da alienação, do sofrimento e da dor contradizem a suposta racionalidade efetiva de uma liberdade real, contradizem a reconciliação real entre espírito e natureza, entre razão e história. A recusa por parte do autor da Dialética negativa da figura do espírito universal é precisamente pelo fato da incoerência de este estar acima dos elementos concretos, elementos estes que constituem de fato o que é real. A história não é historia de um sujeito universal, mas de sujeitos concretos. A história é o produto da atividade dos homens cujo télos é a liberdade. Para Hegel, o mundo em que a liberdade do espírito absoluto tornar-se-ia objetiva é o direito; para Adorno, a filosofia do direito era o culto à marcha do mundo, uma maneira de proteger a reprodução da vida, de uma vida irracional.
Aquilo que há de irracional no conceito de espírito do mundo é imputado à irracionalidade do curso do mundo. Apesar disso, o espírito do mundo permanece fetichista [...] o direito é o fenômeno primordial de uma racionalidade irracional. Nele, o princípio formal da equivalência transforma-se em norma e insere todos os homens sob o mesmo molde (ADORNO, 1966, p. 297; 302).
O direito é a expressão da dominação imposta no mundo, de uma dominação irracional. A história, geralmente, é irracional e se “[...] o irracional e incompreensível da história [tornou-se] o óbvio [é] porque as coisas nunca foram diferentes; esse modo de procedimento retira o seu conteúdo do discurso sobre o progresso” (ADORNO, 1966, p. 333, grifos meus). Adorno, à esteira de Benjamin, nunca admitiu a ligação entre o progresso histórico e a dominação da natureza. Para ele, era possível acabar com essa falsa relação, era possível quebrar o continuum da história. A história não é uma totalidade estruturada, mas algo descontínuo, formado a partir de um processo dialético ininterrupto. A história era vista como uma expressão da multiplicidade da práxis humana, como o desdobramento produzido pela inter-relação entre sujeitos e objetos, entre homens e natureza: não-identidade como o motor da história. A objetivação da história como verdade suprema significava a justificação dos sofrimentos que seu curso impusera aos indivíduos. A história só tinha significado como referência ao presente, um presente que precisava ser desmitologizado, algo possível apenas se a história estivesse conectada com o seu oposto dialético, leia-se, a natureza.
Ao invés disso, cabe ao pensamento ver toda natureza e tudo aquilo que viesse a se instalar como tal enquanto história e toda história enquanto natureza: seria preciso compreender o próprio ser histórico em sua determinidade histórica extrema, no âmbito em que ele é o mais histórico possível, como um ser natural, ou compreender a natureza, no âmbito em que ela persiste em si aparentemente da maneira mais profunda, como um ser histórico (ADORNO, 1966, p. 350).
Natureza e história se determinam mutuamente, cada uma delas se converte em chave para desmitologizar a outra. Ambas se desenvolvem dialeticamente, em referência mútua, sem a primazia de nenhuma delas, uma vez que o primado de um dos momentos levaria à justificação ideológica da ordem social. Para Adorno, somente assim os fenômenos sócio-históricos poderiam ser dessensibilizados e seu domínio sobre consciência e ação subtraído. Os mitos do passado e do presente não podem ser perpetuados, aceitando-os como a verdade. O mundo dado não é absoluto, não está reconciliado. Em suma, a negação crítica e dialética é necessária para mostrar essa verdade como falsidade.
Somente se tudo pudesse ter sido diverso; somente se a totalidade (aparência socialmente necessária enquanto hipóstase do universal extraído dos homens individuais) fosse quebrada em sua exigência de absolutidade, a consciência social crítica conservaria a liberdade de pensar que um dia as coisas poderiam ser diferentes. A teoria só consegue movimentar o enorme peso da necessidade histórica se esta é reconhecida como aparência que se tornou realidade e a determinação histórica, como metafisicamente contingente (ADORNO, 1966, p. 315).
1.3 Metafísica
O terceiro e último modelo é uma reflexão sobre a tarefa da metafísica no mundo de hoje, supondo que esta ainda seja possível depois de Auschwitz. Pois em Auschwitz a barbárie se mostrou como um resultado histórico, representação efetiva de uma tradição cultural cuja normalidade e normatividade escondiam o germe e a frieza do horror no jargão chamado autenticidade. Aniquilação física, exposição dos corpos mutilados, teatralização cômica do horror, vida tornada descartável! “Desde Auschwitz, temer a morte significa temer algo pior do que a morte” (seit Auschwitz heißt den Tod fürchten, Schlimmeres fürchten als den Tod) (ADORNO, 1966, p. 362), pois se constitui definitivamente como o referente último de todo mundo social e administrativamente organizado. Consequência final da filosofia da identidade, Auschwitz mostrou cruelmente a aniquilação do diferente e a tão sonhada reconciliação apregoada pela ontologia e pelo idealismo. Além disso, um fato como o de Auschwitz, a barbárie produzida nele, é o que obriga a filosofia ao fazer teoria, uma vez que é o reflexo mais claro da falsidade da sociedade e da cultura estabelecida, da alienação geral em que se tornou a existência humana. Para Adorno, toda a cultura depois de Auschwitz se transformou completamente na ideologia que potencialmente era, pois “quem se coloca a favor da cultura radicalmente culpada e mesquinha transforma-se em colaborador, enquanto quem se recusa à cultura fomenta imediatamente a barbárie como a qual a cultura se revela” (ADORNO, 1966, p. 358). Bem, a possibilidade de fazer metafísica estará ligada a uma crítica cultural, à crítica de uma cultura que tornou possível o que ele chama de mundo administrado, pois “a teologia da crise registrou aquilo contra o que ela protesta abstratamente e, por isso, em vão: o fato de a metafísica se fundir com a cultura” (daß Metaphysik fusioniert ist mit Kultur) (ADORNO, 1966, p. 358).
As questões metafísicas não podem ser consideradas à parte das formas culturais, uma vez que a cultura tem sua origem na sociedade; mais ainda, a cultura é um instrumento a serviço do poder no mundo administrado. Quando Adorno fala de mundo administrado, ele se refere ao seu momento histórico em que prevalece a lógica do capitalismo avançado, ou seja, a lógica do fetichismo das mercadorias. Uma lógica em que trabalho, lazer, economia, cultura, tudo é sujeito a critérios utilitários, comerciais e administrativos: uma época reinada pelo princípio da troca (Tauschprinzip). Trata-se de uma organização social supostamente racional, em que todo processo é concedido em benefício do mercado. A cultura não é estranha a esse processo, pelo contrário, ela tem sido o principal veículo para sustentar a dominação, apoiando todos os tipos de preconceitos e mitos. A indústria cultural tornou-se o instrumento mais importante para manipular as consciências. É necessário negar esse tipo de cultura, sujeitar a cultura à crítica, i.e., realizar a crítica cultural como o único resíduo de uma metafísica possível.
Adorno, portanto, propõe como metafísica o resgate do potencial emancipatório da cultura fragmentada. Esse potencial emancipatório reside precisamente na crítica e na negação de toda positividade estabelecida como verdade. Podemos aqui distinguir dois modelos de crítica presentes em Adorno: por um lado, a crítica imanente, uma crítica realizada desde dentro dos valores do mundo administrado e de seus produtos como meras mercadorias. Desde dentro porque o próprio crítico cultural encontra-se imerso na cultura mesmo que pretende criticar. E uma crítica transcendente capaz de pôr em manifesto a total ideologia em que tudo havia se convertido, situando-se para isso como se estivesse fora do sistema. O ideal seria o de combinar essas duas críticas: desde fora, mas com o conhecimento adquirido por estar dentro, de sujeitar a indústria cultural às críticas e ao fetichismo da mercadoria que ela havia produzido. De fato, na indústria cultural tudo foi consumido como um objeto a ser vendido no mercado, tudo foi criado de acordo com o princípio da troca e não para satisfazer uma necessidade genuína. E isso aconteceu até mesmo no campo da arte. É na arte que Adorno encontra o reduto final da metafísica. Porque nela sobrevive um elemento não-racional, que funcionará como um exemplo de resistência contra a reivindicação de uma racionalização total do mundo. A arte é o resíduo definitivo da negação no mundo administrado.
2. Estética: teoria qua práxis
Em uma teoria estética, Adorno vê a possibilidade de um antídoto contra a reificação da cultura e da sociedade, pois a arte expressa, através da mimese, tanto o sofrimento dos homens, como a natureza que estes sujeitaram friamente à dominação. A arte é de natureza mimética, não pretende dominar mediante o conceito. Ela simplesmente se acerca de seus objetos sem apropriá-los, mas os transforma para que sejam lidos como expressão da verdade social. O importante é trazer à luz o conteúdo da verdade que a arte possui, algo que só pode ser feito através da crítica filosófica. Em última análise, a experiência estética precisa da mediação de uma filosofia crítica que traz à tona a verdade que ela manifesta. A tarefa da filosofia é dizer essa verdade e dizê-la por meio de uma interpretação crítica, por meio de uma dialética negativa.
Em 1949, Adorno havia formulado uma célebre sentença na qual decretava como ato de barbarismo escrever poesia depois de Auschwitz. Sentença um tanto abrupta, com ares de resignação, escrita apenas quatro anos depois de terminada a Segunda Guerra Mundial. Essa sentença certamente deu origem a uma serie de críticas ao pensador frankfurtiano, pois parecia condenar a suspensão de toda a práxis e ao simples abandono da reflexão. Precisamente por isso que, na Dialética Negativa, ele retoma, de maneira mais sutil, essa afirmação.
O sofrimento perenizante tem tanto direito à expressão quanto o martirizado tem de berrar; por isso, é bem provável que tenha sido falso afirmar que depois de Auschwitz não é mais possível escrever nenhum poema. Todavia, não é falsa a questão menos cultural de saber se ainda é possível viver depois de Auschwitz, se aquele que por acaso escapou quando deveria ter sido assassinado tem plenamente o direito à vida. Sua sobrevivência necessita já daquela frieza que é o princípio fundamental da subjetividade burguesa e sem a qual Auschwitz não teria sido possível: culpa drástica daquele que foi poupado. Em revanche, ele é visitado por sonhos tal como o de não estar mais absolutamente vivo, mas de ter sido envenenado com gás em 1944, e de depois disso não conduzir coerentemente toda a sua existência senão a partir da pura imaginação, emanação do louco desejo de alguém há vinte anos assassinado (ADORNO, 1966, p. 353-354).
O sofrimento tem o direito de ser expresso e é esse o requisito que a história impõe à filosofia: a obrigação de expressar o que aconteceu em Auschwitz desde os seus próprios meios. Mas, ainda nesta citação, há algo mais, a saber, que essa obrigação não vem porque ela está em uma posição institucionalmente privilegiada ou porque mantém certa dignidade epistemológica. Pelo contrário. Essa tarefa da filosofia se fundamenta no fato de ela mesma compartilhar a culpa do sobrevivente. À filosofia é dada a tarefa de dar voz às vítimas que foram violentamente emudecidas. Por que ainda estou vivo e outros pereceram em meu lugar? Uma pergunta que explica esse privilégio imerecido e casual que torna impossível falar de uma vida justa, mas sim da sobrevivência em meio a uma vida danificada.
A filosofia é necessária porque deve explicar a destruição do significado, sem reivindicar o direito de decretar outros e, também, o de mostrar até que ponto o significado que foi destruído não é cúmplice em sua própria destruição. É por isso a exigência de uma filosofia crítica que denuncie qualquer reconstrução racional de uma história carregada de significado teleológico, na qual o sofrimento encontraria justificativa em uma espécie de plano providencial. A filosofia de acordo com esse estado de cultura deve ser crítica de sua própria cumplicidade com a ocorrência da barbárie. Adorno ecoa o ditado benjaminiano que afirmava que “nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie” (BENJAMIN, 2005, p. 70), uma vez que essa mesma cultura forma uma parte substantiva do solo do qual a destruição surgiu: “toda cultura depois de Auschwitz, inclusive a sua crítica urgente, é lixo” (ADORNO, 1966, p. 357). Embora a filosofia não fosse um carrasco direto, ela contribuiu para legitimar e expandir as condições nas quais os personagens foram forjados, que mais tarde tornaram possíveis as ações desses carrascos.
Retomando um problema acima levantado: se a tarefa da filosofia é dizer essa verdade e dizê-la por meio de uma interpretação crítica, qual seria essa verdade? Ao que parece, não há uma resposta encerrada em Adorno (e nem é sua pretensão respondê-la), mas ele faz questão de deixar claro que a verdade não é encontrada neste mundo dominado pela razão instrumental ou mesmo pelo pensamento conceitual. Aqui ele se refere aos rastros de algo Outro, onde a felicidade é possível e cuja necessidade é evidenciada pela multidão de fendas existentes que negam a identidade. Mas essa nostalgia pelo Outro não deve ser entendida como uma redenção messiânica. A possibilidade do Outro se refere, antes, a algo que vem da própria realidade, dos próprios objetos. É, em suma, a utopia da abertura do pensamento ao Outro através de uma estética materialista dialética (materialistisch-dialektischen Ästhetik), como saída e correção à racionalidade da dominação instrumental. O objetivo é encontrar o Outro distinto da razão identificadora, o não-idêntico, algo que, finalmente, só pode ser encontrado desde a perspectiva crítica da arte, pois a arte é o lugar onde a crítica cumpre de fato a sua função. No entanto, ela precisa da filosofia, i.e., de uma intérprete para dizer o que ela não pode, e essa possibilidade de falar sobre a arte é precisamente porque ela não fala. “Por isso, a arte necessita da filosofia, que a interprete, para dizer o que ela não consegue dizer, enquanto que, porém, só pela arte pode ser dito, ao não dizê-lo” (ADORNO, 2016, p. 116). Essa é a sua forma de ser ainda esperança: ser, de forma intransigente, teoria.
Considerações finais
Voltamos agora, à guisa de conclusão, à inquieta busca por algum ponto em comum que pudesse aproximar-nos, ainda que à distância, a Adorno, ou melhor, que nos permitisse escrever sobre ele ao mesmo tempo, desde ele mesmo para além dele mesmo. Dentre tantos pontos, o melhor talvez seja este: “a necessidade de dar voz ao sofrimento é condição de toda verdade. Pois sofrimento é objetividade que pesa sobre o sujeito; aquilo que ele experimenta como seu elemento mais subjetivo, sua expressão, é objetivamente mediado” (ADORNO, 1966, p. 27). Numa organização social tão friamente estruturada, em que as vítimas da história já estão previamente escolhidas, restando apenas, a posterior reprodução, por parte dos dominantes, da frieza que lhes é própria; ou ainda, num ethos cultural cujo aparato normativo tende sempre a aniquilar e a expor cruelmente os corpos do que é eminentemente Outro ou, para terminar, num corpus social em que a fome é a irmã gêmea de muitos, dar voz ao sofrimento é a condição sine qua non de toda possibilidade da crítica. Eis o ponto comum, motivo de ainda haver escrita e, em última análise, de ainda haver filosofia, que “mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização” (ADORNO, 1966, p. 13).
Referências
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ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. 2016. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70.
ADORNO, Theodor W _. Negative Dialektik. 1966. Frankfurt am Main: Suhrkamp.
ADORNO, Theodor W. Três estudos sobre Hegel. 2013. Trad. Ulisses Razzante Vaccari. São Paulo: Ed. UNESP.
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. 1985. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do espírito. 2003. Tradução de Paulo Meneses, com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado, SJ. Rio de Janeiro: Ed. Vozes.
HEGEL, Friedrich. Linhas fundamentais da filosofia do direito, ou, Direito natural e ciência do estado em
compêndio. 2010. Trad. Paulo Meneses, Agemir Bavaresco, Alfredo Moraes, Danilo Vaz-Curado R. Costa, Greice Ane Barbieri e Paulo Roberto Konzen. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS.
KANT, Immanuel. 1781. Kritik der reinen vernunft. Verlag von Felix Meiner In Hamburg.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. 1994. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70.
Silva, E. S. N. 2019. Fantasmas da liberdade: a relação entre teoria e prática como crítica às formas de reconciliação entre espírito e natureza. Veritas (Porto Alegre), 64(1), e31114. https://doi.org/10.15448/1984-6746.2019.1.31114
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