Resumo: O seguinte artigo tem por objeto apresentar e desenvolver a crítica de Martin Heidegger à estética a partir do ensaio A Origem da Obra de Arte .Der Ursprung des Kunstwerkes, 1936). Para o pensamento heideggeriano a estética, enquanto herdeira dos paradigmas metafísicos, mata o que há de essencial na arte (a sua verdade ontológica) ao tomá-la fundamentalmente como um objeto capaz de provocar e impactar a sensibilidade do sujeito contemplador. Conforme acompanharemos em nosso percurso, Heidegger traça a origem (Ur-sprung) de tal concepção nos primeiros sistemas filosóficos ocidentais com Platão e Aristóteles e o seu desenvolvimento nos momentos iniciais da modernidade com Descartes e os demais herdeiros de seu pensamento. Uma vez que ao concebermos as obras de artes já nos encontramos no cerne de sedimentações históricas, faz-se necessário mergulhar em tais sedimentações em vista de desenvolver as potencialidades ali adormecidas. É esse o convite que Heidegger nos faz e que aqui também fazemos ao leitor.
Palavras-chave:HeideggerHeidegger,A Origem da Obra de ArteA Origem da Obra de Arte,Ontologia da obra de arteOntologia da obra de arte,MetafísicaMetafísica,EstéticaEstética.
Abstract: The following article aims to present and develop Martin Heidegger's criticism of Aesthetics from the essay The Origin of the Work of Art .Der Ursprung des Kunstwerkes, 1936). For Heideggerian thinking, Aesthetics, as an heir to the metaphysical paradigms, kills what is essential in the art (its ontological truth) by taking it fundamentally as an object capable of provoking and impacting the sensitivity of the contemplating subject. As will be shown Heidegger traces the origin (Ur-sprung) of such a conception in the first Western philosophical systems with Plato and Aristotle, and its development in the initial moments of modernity with Descartes and the other heirs of his thinking. Since we are already at the heart of historical sedimentation when conceiving works of art, it is necessary to dive into such sedimentation to develop the sleeping potentialities. This is the invitation that Heidegger offers us and that we also offer the reader here.
Keywords: Heidegger, The Origin of the Work of Art, Ontology of the work of art, Metaphysics, Aesthetics.
Artigos
A crítica de Heidegger à estética em A origem da obra de arte (Der Ursprung des kunstwerkes, 1936)
Heidegger’s critique of aesthetics in The origin of the work of art (Der ursprung des kuntwerkes, 1936)
Recepção: 14 Dezembro 2020
Aprovação: 26 Janeiro 2021
Para Martin Heidegger as obras de arte foram e são historicamente concebidas como coisas. Tal concepção, por sua vez, refere-se à compreensão mais abrangente do que é o ente em geral. Visto sob essa ótica, o entendimento usual da teoria da arte e da estética estão inseridos nas fundamentações metafísicas determinantes do horizonte significativo de um tempo. Tempo que enquanto temporalidade do ser (Temporalität) ainda funda o nosso modo de ver acostumado com o dito natural ou habitual, pois o passado antes de estar num longínquo momento do ter sido está na nossa frente nos determinando.
Heidegger nos mostra que ao procurar pelo que é uma coisa não a encontramos, mas antes somos direcionados a ela a partir de conceitos metafísicos que enquanto decisões históricas determinam a própria iluminação do mundo. O que o pensador da floresta negra visa ao levantar o indicado questionamento acerca do entendimento que a tradição tem do artístico concerne em pôr em xeque tais compreensões, mostrando como elas agridem a obra de arte ocultando o seu sentido originário. Ao efetuar transposições de um núcleo metafísico geral (a definição do que é o ente enquanto ente) para a obra de arte ocorre que deixamos de considerá-la em si mesma, isto é, deixamos de olhá-la atentamente através de suas especificidades e de nos colocar à disposição da verdade ontológica ali em jogo. O sentido de seu questionamento é, nesses termos, despertar-nos para o desvelamento do ser em curso no artístico. Acontecimento que uma relação sujeito-objeto como a postulada pela estética lança nas raízes profundas do esquecimento do ser ocidental.
Para esclarecer a compreensão que Heidegger tem da estética, o objetivo de nosso artigo, inicialmente abordaremos o sentido próprio da pergunta pela origem da obra de arte e apresentaremos as três noções de coisa que Heidegger distingue como sendo a base do pensamento estético. Posteriormente, buscaremos evidenciar a relação entre tais pontos de vista e a historicidade, caracterizando o âmbito metafísico como fundador das concepções consolidadas da coisa, da verdade e do próprio sentido da história. Com isso almejamos evidenciar a forma como, na perspectiva da questão do ser (Seinsfrage), as sedimentações históricas sobre o que é uma coisa ocultam a verdade em curso no artístico.
Em A Origem da Obra de Arte .Der Ursprung des Kunstwerkes, 1936) Heidegger pergunta pela origem (Ursprung)2. no sentido de questionar a proveniência da essência (Wesen) da obra de arte. Em outros termos, a interrogação aqui colocada é: de onde nos advém o que constitui propriamente, isto é, em sua característica peculiaridade as obras de arte? Qual é a procedência da sua Wesen mediante a qual podemos colhê-la em seu fundamental sentido, não perdendo de vista o seu essencial devido às turvações advindas dos conceitos legados pela tradição – conceitos através dos quais o nosso modo de olhar se fundamentou? Segundo Carneiro Leão: “Há uma diferença no modo de ser entre remontar à origem de alguma coisa na e da realidade e refletir a origem de alguma coisa em outra coisa. No primeiro caso, temos o pensamento originário; no segundo caso, temos um conhecimento etiológico” (2017, p. 7). O pensamento de Heidegger se refere ao primeiro caso.
O questionamento sobre a origem ou sobre o originário da obra de arte é, nesses termos, um pensamento que não busca determinar o tempo-espaço de origem, como um pensamento etiológico que quer caracterizar as especificidades de seu começo datado. Por outro lado, é sim um pensamento que busca perguntar à própria obra de arte o que nela se abre, o que nela se descerra, perguntando pelo seu vínculo intrínseco com a primeira compreensão do ser, a saber, com a physis, com o que surge e demora na presença.
Esse pensamento, assim sendo, não tem como meta a conquista de um conceito totalizante do que ela é, mas antes o desvencilhamento dos paradigmas que determinaram e continuamente determinam o nosso olhar, a fim de podermos habitar, numa experiência de pensamento profunda, a essência fundadora da arte – local (Ort) onde, na perspectiva aqui descerrada, está em jogo o desvelamento do ser. Para alcançarmos tal liberdade de pensamento, nos diz Heidegger, é necessário deixar a obra repousar em si, estar a ser o que propriamente é, para que, de modo atento, possamos fazer a sua experiência, pensando a sua realidade sob a ótica de sua efetiva e dinâmica realização. Queremos dizer, pensando a realidade em seu surgir fundador e concomitante se esconder (pensamento do ser). É nesse sentido que Heidegger pergunta pela arte a partir da consideração de sua essência como um movimento e não como algo estático e findado – um movimento que se dá na relação entre a obra e o Da-sein que, enquanto abertura para o ser, se abre para o acontecimento em curso na obra de arte.
Dessa forma, ao buscar a origem, isto é, a proveniência da essência da obra de arte, o pensador não a procura no sentido da essentia, mas sim no sentido da Wesen – distinção sobre a qual se alicerça o próprio significado do questionamento. Enquanto a essência no sentido de essentia designa a quididade ou o quê do ente, queremos dizer, aquilo que na acepção de uma essência metafísica algo é em sua especificidade e totalidade, a essência enquanto Wesen se refere ao acontecimento mediante o qual algo surge e demora na presença, saindo do nada para o ser. Ela é, nesses termos, evento e desvelamento, referindo- se, por conseguinte, ao modo como o ser ocorre, ao seu tornar-se essência – essencializar-se – através do ente.
Conforme esclarece Duarte, Heidegger “retoma um sentido verbal primitivo, já caído em desuso, de wesen – sinónimo de sein, ser [...] para indicar a acção ou exercício de ser, em que o que está a ser é [...] Ser, sein, é o que se dá sempre como um sendo: essência em exercício” (DUARTE, 2014, p. 16). A essência enquanto Wesen é, assim, diferentemente da essência enquanto essentia, uma essência que sempre advém e nunca algo fechado e acabado que não mais acontece. Desse modo, perguntar pela origem (Ursprung) da obra de arte “diz respeito à verdade originária” (NUNES, 2011, p. 91), referindo-se à relação primordial entre a arte e o acontecimento da verdade.
Uma vez delineado o sentido da pergunta pela origem da obra de arte, devemos colocar novamente a questão: Qual é a proveniência da sua Wesen? O local de origem do acontecimento de sua essência? De tal interrogação derivam outras inescapáveis perguntas diretoras: é o artista a origem, isto é, o lugar de procedência do que é em sua essência a obra de arte? Ou, por outro lado, é a obra de arte a origem do artista, a saber, o âmbito de proveniência do que é o artista enquanto artista? A obra de arte pare como a seu filho o artista ou, pelo contrário, é o artista que arranca de si trazendo à luz a obra de arte?
Para perguntas aparentemente vertiginosas temos uma resposta à primeira vista vertiginosa: a obra de arte funda o artista ao mesmo tempo em que o artista funda a obra de arte. Embasbacamo-nos com a constituição de um círculo do pensamento. Será que acabamos por adentrar de antemão num problema insolúvel? Se pensarmos tradicionalmente, isto é, sob a égide de um olhar metafísico onde se deriva todos os demais entes de um único princípio, diremos sim, porém, não é o que Heidegger visa, mas muito pelo contrário.
Obra de arte e artista fundam-se mutuamente, mas se pensarmos bem, aquilo mediante o qual ambos existem é a própria arte. O artista assim o é através da arte. A obra de arte é o que é através da arte. O terceiro termo se torna o primeiro, queremos dizer, aquilo através do qual artista e obra de arte são o que são. Mas o que é a arte? Afundamos ainda mais no círculo do pensamento. Círculo que, segundo o pensador, devemos trilhar se desejarmos compreender a arte para fora das categorias habituais da estética – o objetivo do questionamento posto em movimento. As descrições fenomenológico-hermenêuticas que compõem o trilhar do círculo nos conduzirão pelo caminho de pensamento aberto por Heidegger
Imergindo no círculo, diz-nos o pensador do ser, constata-se que o caminho para a resposta sobre o que é a arte não pode se furtar de começar pela pergunta sobre o que ela é em sua efetividade. Efetividade encontrada nas obras de arte concretas: o quadro, a canção, o poema, a escultura, o templo. Começamos a percorrer, enfim, um percurso viável para a colocação da questão. Percurso possível dado o caminho que se abre: caminho da obra de arte real. Precisamos, assim, nos demorar diante de obras efetivas. Todavia, o que é uma obra de arte concreta? Deixemos Heidegger falar:
Se olharmos as obras considerando a sua realidade efectiva intocada e não nos iludirmos a nós próprios a seu respeito, então torna-se manifesto que as obras estão perante de modo tão natural como qualquer outra coisa. O quadro está pendurado na parede do mesmo modo que uma caçadeira ou um chapéu. Uma pintura, por exemplo, a de van Gogh que apresenta um par de sapatos de camponês, anda de exposição em exposição. As obras são expedidas como o carvão da bacia de Ruhr ou como troncos de árvore da Floresta Negra. Durante a campanha, os hinos de Hölderlin estavam empacotados na mochila do mesmo modo que um utensílio de limpeza. Os quartetos de Beethoven jazem no armazém da editora como batatas numa cave (2014a, p.10).
Assim, da obra de arte concreta desponta, num primeiro momento, o seu caráter de coisa (Dinghafte). Podemos dizer que há algo de sonoro numa canção, que há algo de pedra num templo, que há algo de colorido numa pintura e ainda que há algo de vocal num poema. Podemos ir ainda mais longe e afirmar que a canção é mediante o som, o templo é através da pedra, a pintura é por meio da cor e o poema é na voz.
Há certamente ainda algo de outro nas obras de arte – algo nesse momento ainda não discriminado –, pois não podemos reduzir, de forma definitiva, o artístico a uma mera coisa. Não obstante, é por essa via aberta no círculo de pensamento que devemos rumar. Surge novamente, dessa maneira, diante de nós outra pergunta: se na obra o primeiro aspecto a despontar é o seu caráter de coisa, o que é uma coisa enquanto coisa? Perguntamos porque ainda não sabemos, encontrando-nos, por conseguinte, numa situação semelhante à Agostinho de Hipona quando questionado sobre o tempo. Poderíamos, assim, da mesma forma que o filósofo da iluminação divina dizer: “Se ninguém me pergunta, eu o sei; mas se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada” (AGOSTINHO, 2017, p. 338). De agora em diante, somente ao sabermos o que é propriamente uma coisa diagnosticaremos a exatidão ou a inexatidão de atribuir às obras artísticas esse caráter. Sabemos, de antemão, ser essa a forma através da qual a estética e a teoria da arte as compreendem3..
Ao perguntarmos pelo que é uma coisa, colocamos em curso “uma questão de entre as que pertencem ao domínio das questões fundamentais da metafísica” (HEIDEGGER, 1992, p. 13), pois as respostas dadas referiram-se sempre à consideração da natureza do ente como um todo e à compreensão historicamente dada ao sentido do próprio ser na indiferenciação metafísica entre ser e ente. Entramos numa questão “tão antiga como o começo da filosofia ocidental com os Gregos, no século VII a. C” (HEIDEGGER, 1992, p.14) que perguntou pelo que é o ente enquanto ente.
O que é uma coisa enquanto coisa? O que é o ser-coisa da coisa, a qual o pensador chama de coisidade (die Dingheit) da coisa? Queremos aqui conceber o âmbito de pertencimento de tudo aquilo que designamos como sendo coisas, para assim podermos distinguir o que é do que não é uma coisa. Lemos:
Com a nossa questão “que é uma coisa?” não queremos saber, o que é um granito, um sílex, um calcário ou um grão de areia, mas o que é uma pedra enquanto pedra. Não queremos saber como se diferenciam e como são os musgos, os fetos, as ervas, os arbustos e as árvores, mas o que é a planta enquanto coisa – e o mesmo acontece com os animais. Também não queremos saber o que é um alicate, na sua diferença em relação ao martelo, nem o que é um relógio, na sua diferença em relação à chave, mas o que são estes instrumentos de uso e de trabalho, enquanto coisas. Sem dúvida, não é imediatamente claro o que isto quer dizer. Mas admitamos, por uma vez, que se pode perguntar deste modo; então exige- se, claramente, que nos detenhamos diante dos factos e da sua exacta observação, para podermos conceber o que são as coisas (HEIDEGGER, 1992, p. 19).
Heidegger toma como ponto de partida aquilo que comumente consideramos como sendo coisas, servindo-se de um conceito lato. Por exemplo, uma pedra no caminho é uma coisa. Um livro descansando numa estante, tal como a estante, é uma coisa. Uma indumentária ou um ornamento também são coisas. Um caderno aberto sobre a mesa e do mesmo modo a mesa são coisas. O tapete e as cortinas da sala de estar, o lustre pendendo do alto da abóbada, as janelas e a porta, o quadro e os demais elementos que constituem esse ambiente são coisas. Do mesmo modo, comumente chamamos de coisa as árvores avistadas no alto dos montes, assim como o próprio monte. Chamamos coisa tanto a taça que contém a água que hidrata o corpo quanto a água da fonte, do rio e da imensidão do mar. Ao corpo também chamamos coisa. Do vento e do fogo igualmente legamos a alcunha de coisa, tal como a toda fauna e a toda flora.
Indo além, chamamos de modo kantiano “coisa em si” tudo aquilo que sustenta um fenômeno estando fora da nossa possibilidade de apreensão. Às vias do nascimento e da morte, à saúde e à doença, à aurora e ao crepúsculo, ao amor e ao ressentimento também chamamos coisas. Aos santos, aos anjos e até mesmo a Deus chamamos coisas. A uma obra de arte do mesmo modo chamamos de coisa. Percebemos agora que por coisa podemos considerar, num primeiro momento, “aquilo que é o contrário do nada” (HEIDEGGER, 1992, p. 17), isto é, todo o ente em geral, tudo aquilo que é. Todavia, com o auxílio de um conceito tão abrangente onde tudo se torna coisa, jamais poderíamos galgar a coisidade da coisa, queremos dizer, o que distingue uma coisa de uma não coisa. Por essa razão, tal conceito não nos serve. Devemos caminhar para uma delimitação menos abrangente já que o que significa tudo não significa nada.
Se nos recusarmos a chamar os animais, os homens, o nascimento e a morte, assim como os anjos e os deuses de coisas, podemos rumar para um conceito menos abrangente e mais eficiente para o nosso propósito. Restariam como coisas, assim, não mais o cervo no campo ou o besouro na relva, não mais um camponês arando o solo ou um homem de letras hipnotizado pelo poder de um livro, não mais o que há de divino e de mefistofélico no horizonte significante dos mortais, não mais as forças dinâmicas da natureza como as tempestades e os vendavais, mas antes aquilo que pertence ao âmbito do inanimado como o relógio, os sapatos, o chapéu da moça que caminha numa tarde ensolarada e, do mesmo modo, a pedra inerte num caminho de floresta e um pedaço de madeira apodrecido no regaço de um rio. Compreendemos então, num sentido mais estreito, a mera coisa como tudo o que pertence ao domínio inanimado da natureza e do uso. Com tal movimento, diz- nos Heidegger:
Vemo-nos reconduzidos do âmbito mais vasto, no qual tudo é uma coisa (coisa = res = ens = um ente) – também as coisas supremas e finais –, ao domínio circunscrito mais estreito das meras coisas. O “mero” quer aqui dizer, por um lado, a pura coisa, que é simplesmente uma coisa e nada mais; mas o “mero” quer dizer simultaneamente: apenas e só uma coisa, num sentido já quase depreciativo. [...] A coisidade das coisas tem de se deixar determinar a partir delas. Essa determinação deixa-nos em posição de caracterizar o carácter de coisa enquanto tal. Assim, apetrechados, podemos caracterizar a realidade efectiva quase palpável das obras, na qual, então, ainda está algo de outro (HEIDEGGER, 2014a, p. 14).
Assim, entendendo por mera coisa toda a região do inanimado que tange ao uso ou à natureza, Heidegger pôde deixar de lado, por exemplo, o homem e o sagrado, a história e suas decisões fundamentais, a verdade e a não-verdade aos quais uma maior atenção nos leva a querer não abordar por essa via, sob o risco de nos perdermos irremediavelmente numa grande generalidade. Conforme distinguido pelo pensador: “sentimos escrúpulos ao chamar a Deus uma coisa. Do mesmo modo, hesitamos em tomar por uma coisa o camponês no campo, o fogueiro em frente à caldeira, o professor na escola... O homem não é uma coisa” (HEIDEGGER, 2014a, p. 13). Tratar o humano e o divino, o essencial e o incalculável como coisas significaria descaracterizá-las em seu próprio modo de ser4..
Com a conquista de uma mais efetiva delimitação, a viabilidade do caminho de questionamento sobre a coisidade da coisa foi reconquistada. No círculo hermenêutico, desse modo, clareou-se um acesso possível mediante a consideração da mera coisa em oposição à coisa compreendida enquanto tudo o que não se reduz ao nada.
Para Heidegger desde que a pergunta pelo que é o ente em geral foi feita, a via procurada para a resposta do que é o ente-padrão pertence à região das coisas. Por conseguinte, para não emaranhar-se em problemáticas indissolúveis e caminhos impossíveis, o pensador reconhece a necessidade de se voltar, após a delimitação acima discriminada, para a tradição filosófica e, dessa maneira, para as decisões histórias que se impuseram como modelos para se pensar o que as coisas são em sua essência. O objetivo é mostrar o não-fundamento (Ab-grund) do fundamento (Grund) de tais concepções, evidenciando o desterro do pensamento tradicional – metafísico – acerca do que é o ente em geral concebido enquanto coisa. Heidegger agrupa tais modelos em três grupos que, segundo a perspectiva descerrada, confundiram-se dominando os desdobramentos de todo questionamento ocidental sobre o ente.
Por conseguinte, para que a obra de arte possa ser alcançada essencialmente, será preciso libertar-se dos conceitos paradigmáticos através dos quais nos habituamos a concebê-la, sob o risco de enxergarmos não a sua Wesen, mas sim concepções cristalizadas provenientes de decisões históricas fundamentais. Assim, “para alcança-la [à sua essência] será necessário livrá-la de suas relações exteriores, deixando-a repousar em si mesma e por si mesma” (NUNES, 2011, p. 92). A obra de arte deve, nessa acepção, mostrar-se em seu repousar em si mesma tal como é, exigindo para isso olhos despertos para a não essencialidade e parcialidade das concepções metafísicas que se constituem como uma agressão profunda à sua essência.
É assim que pensar a obra de arte, na ontologia da arte heideggeriana, torna-se um exercício de rememoração (Andenken) tornado possível “pela reflexão e pelo diálogo sobre as aberturas históricas e com as aberturas históricas nas quais o ser se deu, aberturas nas quais se determinou o modo de o homem se relacionar com o ente” (VATTIMO, 1996, p. 121). Dessa forma se constitui o caminho de questionamento sobre a obra de arte irrompido da virada para o pensamento da história do ser.
Uma coisa é, por exemplo, uma cadeira. Ela pode ser áspera ou lisa, branca ou vermelha, grande ou pequena, alta ou baixa, de metal ou de madeira, bela ou feia, confortável ou tesa. Uma coisa é também um livro. Ele pode ser de contos ou de poemas, de filosofia ou de teoria literária, de história natural ou de antropologia. A edição designada pode ser de luxo ou de bolso, estar disponível na cor preta ou azul e, da mesma forma, ter sido traduzido por este ou por aquele tradutor.
Uma coisa é uma casa. Ela pode ser de madeira ou de tijolo, afortunada ou paupérrima, estar localizada na cidade ou no campo, neste ou naquele estado deste ou daquele país. Os exemplos se estendem ao infinito. A primeira concepção de coisa aqui delineada remonta ao núcleo em torno do qual as particularidades, queremos dizer, as propriedades se reúnem. Os gregos chamavam essa definição de coisa deto hypokeimenon, no sentido de distinguir o cerne em torno do qual se reúnem as características chamadas de ta symbebekota. Termos traduzidos para o latim como subjectum e accidens5..
Trata-se da “determinação da coisidade da coisa como sendo a substância com os seus acidentes” (HEIDEGGER, 2014a, p. 16). Determinação da qual, como alerta Heidegger, o “pensamento romano toma posse [...] sem uma experiência igualmente originária que corresponde àquilo que elas dizem, sem a palavra grega.” De modo que o “desterro [Bodenlosigkeit – falta de solo] do pensamento ocidental começa com esta tradução” (2014a, p. 16). Traduzir tais palavras é, nesse sentido, o transpor (Übersetzen) de uma experiência fundamental dos gregos para um outro modo de desvelamento do ser, para uma outra linguagem e, consequentemente, para um outro modo de pensar e habitar a clareira do ser6..
Dessa maneira, tal concepção traduzida e transportada para o mundo romano e, assim, sem o solo de sua experiência fundamental de origem se refere ao primeiro paradigma de compreensão ocidental do ente em sua totalidade. Paradigma que, no horizonte do pensamento de Heidegger, perdura até hoje através dos nossos olhos acostumados a ver as coisas como o núcleo sobre o qual se assentam suas características. A própria estrutura de uma simples enunciação – composta pelo sujeito que é a tradução latina de hypokeimenon e pelo predicado que remonta aos acidentes, a tradução latina de symbebekota, isto é, às características da coisa – evidencia o quanto estamos habituados a ver as coisas dessa maneira. A coisa é aqui, assim, concebida enquanto “sujeito, isto é, como o suporte de propriedades, ou dos acidentes da substância, que encontraremos na Lógica aristotélica, compondo o sujeito da frase” (NUNES, 2011, p. 94). Sua raiz, por conseguinte, data das construções dos primeiros sistemas metafísicos do ocidente.
Essa primeira concepção de coisa, conforme facilmente percebido, serve para tudo, não conseguindo apreender de forma essencial o que uma coisa efetivamente é. Ela a agride numa indistinção ontológica onde tudo novamente aparece no horizonte das coisas. Com tal conceito voltamos ao lugar de onde partimos: um não-saber questionador acerca do que uma coisa é. Nesses termos, a compreensão da coisa como substância é demasiado lato, estando para além da região já discriminada e alcançada das meras coisas.
Tal conceito proveniente do sistema aristotélico, enquanto fruto de uma abstração mediante a qual se busca destacar o núcleo das ditas propriedades, afasta as coisas de nós. Ele nos impede de alcançar, na perspectiva de Heidegger, “o que [...] há de crescimento espontâneo [Eigen-wüchsige] e de repouso-em-si” (2014a, p. 17) na coisa, queremos dizer, o que uma coisa é em seu simples estar diante de nós, em sua fenomenalidade, num limite anterior ao esforço de abstração exercido pela tradição filosófica e, consequentemente, anterior à relação sujeito e objeto. Por isso, com a sua ajuda não é possível responder o questionamento acerca do que é uma coisa em seu específico modo de ser.
A segunda definição metafísica de coisa analisada por Heidegger, diferentemente da primeira que a afasta de nós, busca trazê-la para a nossa proximidade. Nesses termos, ela visa conceder “um campo livre para que ela [a coisa] revele imediatamente o seu caráter de coisa” (HEIDEGGER, 2014a, p. 18). Assim, tal concepção propõe o afastamento de todo e qualquer conceito que possa se interpor entre nós e a coisa para deixá-la abandonada em seu estar-presente (Anwesen) diante de nós, no puro dar-se de sua fenomenalidade.
Uma coisa é, por exemplo, o que é ofertado pela visão. Uma coisa também é o que advém mediante a audição. Do mesmo modo, uma coisa é o que irrompe através do tato. Mediante as sensações como o colorido, o sonoro, o macio e o áspero as coisas nos são dadas. A coisa é, assim, concebida aqui como aistheton, isto é, como o sensível proporcionado pelas sensações. O que, segundo Heidegger, posteriormente se desdobrou na concepção de coisa enquanto a unidade da multiplicidade dada pelos sentidos. Unidade entendida, por sua vez, como somatório, totalidade ou representação7.. Sua origem aponta para os primórdios da modernidade; época da fundamentação da estética enquanto área da filosofia que se ocupa do estado sentimental causado pela obra de arte (HEIDEGGER, 2014a).
Dada a caracterização, devemos nos perguntar: tal conceito é suficiente para o que procurarmos, a saber, o modo de ser essencial da coisa? Tal conceito deixa efetivamente a coisa estar em sua pura fenomenalidade ou a agride, deslocando-nos para longe do que uma coisa realmente é?
Em Ser e Tempo .Sein und Zeit, 1927) já temos a resposta para nossa indagação. Heidegger fala: “O Dasein ouve porque entende” (2014c, p.461) e ainda “‘De imediato’ nunca ouvimos barulhos e o conjunto de ruídos, mas o carro que range, a motocicleta. O que se ouve é a coluna em marcha, o vento norte, o pica-pau bicando, o fogo crepitando” (2014c, p.461). Lembremos que, conforme caracterizado na analítica do Dasein, o entender (Verstehen) é um modo fundamental de ser do homem, isto é, um existenciário (Existenzial).
Nessa acepção, por estar desde sempre inserido num horizonte significante – em um mundo –, o homem sempre já tem uma pré-compreensão do ser dos entes. Por isso, o que é escutado não é o simples ruído, mas sim o zumbir do voar das abelhas, o avião que corta o céu escondendo-se por entre as nuvens ou o falatório dos transeuntes que percorrem a avenida. Do mesmo modo, o que é visto não é a mera cor, mas sim a coloração do céu no imergir da aurora, o tom impermanente das frutas apodrecendo numa prateleira ou as nuanças de uma pintura de Klimt ou de Munch. Também não sentimos o puro áspero ou o mero macio, mas desde sempre o rugoso da mesa de estudos, a textura agradável das folhas de um livro lido ou o macio do repouso que temos no colo de uma pessoa amada. Nas palavras do pensador:
No aparecer das coisas, nunca sentimos propriamente, à partida, como aqui se pretende, uma afluência de sensações, por exemplo, sons e ruídos; o que ouvimos é o vendaval assobiar na chaminé, o avião trimotor, ouvimos o Mercedes e distinguimo-lo claramente do Adler. As coisas são-nos muito mais próximas que quaisquer sensações. Em casa ouvimos a porta bater e nunca ouvimos sensações acústicas, nem sequer meros ruídos. Para ouvir um puro ruído, temos de ‘desviar os ouvidos’ das coisas, subtrair a elas a nossa audição, quer dizer, ouvir de forma abstracta (HEIDEGGER, 2014a, p. 19).
Deste modo, enquanto a primeira definição nos afasta demasiadamente das coisas, a segunda tenta nos aproximar de tal forma que a coisa novamente nos foge. Como a nossa percepção surge desde sempre no âmbito do já entendido, tal concepção nos afasta abusivamente do que as coisas efetivamente são. Com a sua ajuda, por conseguinte, não podemos prosseguir o questionamento se visamos galgar uma resposta. A coisa como aistheton nos é insuficiente.
Todavia, podemos ainda recorrer a outra concepção paradigmática de coisa legada pela tradição, particularmente por Aristóteles. Segundo essa terceira perspectiva, o caráter nuclear de onde advêm os aspectos sensíveis de uma coisa como, por exemplo, o claro ou o escuro, o áspero ou o macio é a matéria (hylé). A matéria, por sua vez, exige em sua apresentação fenomênica a presença de uma forma (morphé), de modo que não podemos encontrar um elemento separado do outro. Tal concepção, assim, se alicerça no aspecto (eidos) com o qual o ente nos aparece. Conforme esse modo de ver a coisa é matéria enformada.
Para Heidegger a síntese de matéria e forma concerne historicamente ao modo comum de conceber as coisas da natureza e as coisas de uso sendo “o esquema conceptual por excelência de toda a teoria da arte e de toda a estética” (HEIDEGGER, 2014a, p. 20) que avalia a obra de arte pelo seu aspecto e eventual impacto que causa na sensibilidade de quem a contempla.
Segundo o pensador da Floresta Negra, com o auxílio dessa forma de ver tão habitual e cristalizada, não podemos, assim como a partir dos dois primeiros conceitos, discriminar o modo de ser da coisa com relação ao que uma coisa não é. Ela não alcança o acontecimento da verdade que está em jogo nas obras de arte, mas antes o obscurece e o esquece. Saímos, assim, de uma compreensão abrangente onde tudo é uma coisa para nos determos nas coisas de uso e da natureza, sem podermos ir, por hora, mais além.
Essa compreensão da coisa enquanto matéria distribuída e organizada em uma forma, isto é, enquanto matéria disposta em um lugar do espaço que constitui a circunscrição do que é a própria coisa, como esclarece Nunes, é igualmente “derivado do eidos platônico” sendo “desde então aplicado aos entes naturais, estendendo-se também, por intermédio da ideia do belo, àqueles que o esforço da arte produz” (1986, p. 251-2). Sua raiz reside, dessa maneira, nos primórdios da metafísica com Platão e Aristóteles, de modo que as compreensões posteriores da coisa, como afirma o pensador, surgiram como desdobramentos desse primeiro passo.
Conforme nos mostra Heidegger, as três interpretações correntes de coisa legadas pela tradição metafísica se confundiram historicamente dando a margem para as concepções canônicas do que é o ente. Trata-se, nesse sentido, de decisões históricas fundamentais que determinaram o modo ocidental de compreender o ser e os demais entes encontrados no interior do mundo. A arte, por sua vez, encontra-se inserida nessa concepção maior do que é uma coisa; concepção que fere o que há de essencial em seu modo de ser, ofuscando e escondendo o que ela verdadeiramente é.
As paradigmáticas respostas dadas à pergunta sobre o que é uma coisa não são meros conceitos restritos aos acadêmicos da filosofia, mas sim decisões históricas que impuseram a todo um mundo o solo em que a compreensão usual do ente se alicerçou. Questionar tais compreensões se torna, assim, indagar sobre o próprio horizonte significante em que habitamos enquanto aquilo que efetivamente somos.
É nesse sentido que a metafísica, sendo reflexão sobre o que é o ente, constitui-se historicamente como a estabelecedora do chão através do qual pensamos, de forma que de seu modo de ver e de questionar se derivaram as compreensões tornadas canônicas do que é uma coisa, do que é a verdade, do que é a linguagem e do que é o próprio significado da história. Como nos diz Heidegger em O Tempo da Imagem do Mundo .Die Zeit des Weltbildes, 1938):
Na metafísica cumpre-se a meditação sobre a essência do ente e uma decisão sobre a essência da verdade. A metafísica funda uma era, na medida em que, através de uma determinada interpretação do ente e através de uma determinada concepção da verdade, lhe dá o fundamento da sua figura essencial. Este fundamento domina por completo todos os fenômenos que distinguem uma era (2014b, p. 97).
Em consonância, é no âmbito maior da reflexão metafísica que as formas usuais de se perguntar pela obra de arte retiram a sua validade sendo as suas posições carentes de solo, uma vez que, segundo a hermenêutica heideggeriana, a própria metafísica carece de fundamento. No texto Vontade de poder como arte .Der Wille zur Macht als Kunst, 1936/37) Heidegger discorre sobre os seis fatos fundamentais a partir da história da estética; fatos segundo os quais a arte foi compreendida pelo pensamento ocidental dando margem para o esquecimento de sua verdade ontológica. Dentre os momentos da estética distinguidos por Heidegger, ater-nos-emos aos três primeiros, uma vez que todos os demais se fundam, conforme a perspectiva assumida, nas transformações ocorridas na passagem do primeiro para o segundo fato – concernente aos sistemas metafísicos de Platão e Aristóteles –, assim como nos desdobramentos do terceiro fato fundamental – referente à fundação da estética como disciplina filosófica na modernidade.
A cada momento decisivo na compreensão da arte relaciona-se um momento decisivo na história do ser e de sua concomitante fundamentação e expressão metafísica. Com essa reflexão, Heidegger busca nos mostrar que o natural, isto é, “aquilo que se deixa compreender ‘por si mesmo’, sem mais complicações, no âmbito do modo quotidiano de compreender” (HEIDEGGER, 1992, p. 45) tem sempre uma origem histórica. Origem histórica no sentido da história (Geschichte) do ser e, assim, enraizada na temporalidade (Temporalität) específica do ser em seus modos de desvelamento fundamentais. História que é a história da verdade do ser em seus acontecimentos de apropriação8..
Utilizando a experiência de nossa língua portuguesa e entendendo-a como local (Ort) de desvelamento do ser, decisão pode ser expresso como de-cisão, de modo a marcar com o hífen a cisão ou a transformação originada dos momentos da história da metafísica que é a expressão da história do ser (embora não diferencie ser e ente e tome o primeiro pelo segundo). Nesse sentido, as de-cisões históricas que “são diferentes, em épocas diferentes” (HEIDEGGER, 1992, p. 48) constituem-se como os fundamentos da forma de entender basilar de todo uma época determinando sua compreensão do que é ou não fundamental, do que é ou não verdadeiro, do que é ou não sagrado, do que é ou não belo, por exemplo. Tais de-cisões dão, assim, margem às afirmações e negações possíveis dos que ali vivem.
Para Heidegger aprendemos a ver com os olhos de nossa história e, assim, compreendemos desde sempre a partir dos conceitos cristalizados através dos quais ela mesma se fundamentou, isto é, das de-cisões do pensamento, embora comumente não saibamos de modo teórico que isso acontece. É nesse sentido que, buscando ir além de tais determinações, o pensador busca deslocar-se para “o íntimo acontecer inicial desta questão [...] que está aí, em cada proposição, em cada opinião quotidiana, em cada aproximação em direção às coisas” (HEIDEGGER, 1992, p. 54).
De tal modo, à Geschichtese refere uma história que está em perpétuo movimento fundante, pois, sendo a história (da compreensão humana) do ser ela, não podendo estar acabada num determinado momento do passado, continuamente dá o solo do nosso modo de entender e de iluminar o mundo. Nesses termos, perguntamos “historicamente quando perguntamos pelo que ainda acontece, mesmo quando tal dá a aparência de já ter passado” (HEIDEGGER, 1992, p. 49). Esse perguntar questiona, por conseguinte, o modo essencial da presença histórica ao qual Heidegger chama de repouso do acontecer. Repouso em que os conceitos aparentemente esquecidos no passado ainda falam de maneira a condicionar as posteriores enunciações do ser que se originam como seus desdobramentos. Podemos ler:
Este repouso do acontecer não é ausência de história, mas uma forma fundamental da sua presença. O que conhecemos mediatamente e representamos, em primeiro lugar, como passado é, acima de tudo, o que já uma vez foi “actual”, o que, nessa altura, causou sensação e provocou ruído, o que pertence sempre à história, mas não é autêntica história. O meramente passado não esgota o acontecido. Este acontecido exerce ainda o seu domínio (west) e o seu modo-de-ser que, por sua vez, se determina a partir do que acontece, é um peculiar repouso do acontecer. O repouso é apenas um movimento que se detém em si mesmo e que é, muitas vezes, mais inquietante do que este (HEIDEGGER, 1992, p. 50).
Como ser histórico, assim, o Da-sein traz consigo, no próprio surgimento de seu horizonte significante, as marcas da história do ser. Pensá-las é pensar o seu próprio mundo, o seu próprio modo de habitar a região de desvelamento e velamento onde tudo acontece. Pensamento que rememora e ao rememorar (andenken) caminha para a possibilidade de abertura de inexploradas veredas. Por isso, ao pensar a arte, Heidegger se depara com a necessidade de voltar-se para a sua história “não para tomar conhecimento do que aconteceu anteriormente, mas para decidir o que ainda hoje acontece” (HEIDEGGER, 1992, p. 55). O que está em jogo nesse questionamento não é, dessa maneira, uma reflexão etiológica que busca descrever os fatos ocorridos no tempo-espaço, mas sim um pensamento que busca compreender as origens ainda fundantes do nosso modo de ver; pensamento da Ursprung. Por isso, ao buscar galgar a essência (Wesen) da obra de arte, o pensador se volta para sua história que é, assim como a filosofia, a história (Geschichte) do ser.
Em Vontade de poder como arte, o primeiro fato fundamental a partir da história da estética designa o momento da grande arte helênica dos primórdios do pensamento grego. Período em que, segundo Heidegger, a arte jazia sem uma reflexão conceitual correspondente de modo que as obras de arte permaneciam “intocadas pelo conceito e pelo saber”, evidenciando que os gregos tinham “um saber claro, tão originariamente desenvolvido, [...] que eles careciam de nenhuma estética em meio a essa claridade” (HEIDEGGER, 2010, p. 73-4). A arte desse período, por carecer de um pensamento que a determinasse em sua essência, era concebida como local de mistério, de fecundidade sendo abertura originária do horizonte significante de um povo. Segundo Nunes:
Leva-se em conta o recurso adjetivo à “grandeza” também utilizado alhures para designar a fecundidade do começo da filosofia – desse começo principiativo que, tal como a vida duradoura de uma semente, guardada ao longo dos séculos, germina de novo, em cada volta da história. Grandioso, para Heidegger, é o esplendor da arte helênica, e o seu resplendor, a força germinativa que exerceu sobre o todo da vida e da cultura gregas, de que foi o acontecimento historial. Um pensamento precoce, ainda não propriamente filosófico, o “saber claro” dos gregos que prescindiam da estética, certamente alusivo à posição dos pré- socráticos, acompanhou, concordante, a grande arte em sua fase de esplendor. Somente quando cessado o esplendor da arte grega, ela se torna problemática, e já então apenas provedora de vivências, é que a reflexão estética paralela começa (1986, p. 251).
É nesse sentido que a grande arte helênica concerne, para a ontologia da obra de arte heideggeriana, ao momento anterior à estética e às grandes sistematizações metafísicas de Platão e Aristóteles. Sistemas cujos conceitos elaborados determinaram o solo de assentamento das indagações posteriores. Em tal estação primeva do mundo ocidental o pensamento e a arte repousavam no entendimento do ser e do ente, embora ainda não adequadamente diferenciados, enquanto physis, isto é, enquanto aquilo que surge e demora na presença, enquanto “o desdobramento inicial pelo qual todo ser passa a existir” (ZARADER, 1986, p. 37), enfim, enquanto o acontecimento mesmo do vir à luz dos entes.
Aos pensadores da physis, como Heráclito e Parmênides, Heidegger designa a grande filosofia dos primórdios ocidentais. De modo que com o regresso a esses primeiros pensadores, o filósofo busca voltar-se para “a primeira compreensão do ser, isto é, aquela da physis dos pré-socráticos, ainda não especificamente metafísica, que teria sido soterrada pela concepção entitativa que vigora historicamente” (NUNES, 2011, p. 87) tendo como intuito evidenciar, a partir de sua hermenêutica das fontes textuais originárias em suas nomeações gregas, “a história dos encobrimentos e dos descobrimentos do ser, em variações históricas” (NUNES, 2011, p. 87). Conforme Hadot:
[...] a physis, palavra que na época de Heráclito tem um sentido muito rico, mas que certamente não significa a Natureza como conjunto ou princípio dos fenômenos. Nessa época ela tem principalmente dois sentidos. Pode significar, por um lado, a constituição, a natureza própria a cada coisa, e, de outro lado, o processo de realização, de gênese, de aparição, de crescimento de uma coisa (2006, p. 27).
Posteriormente, a partir da constituição dos primeiros sistemas metafísicos gregos o sentido de physis dará lugar ao que denominamos por natureza. Nessa acepção, ela será também compreendida como a essentia de uma coisa, como no caso de dizermos algo da espécie: a natureza do homem é a sua alma racional ou a natureza da arte é sensibilizar quem a contempla. É assim que a physis perde historicamente o seu sentido relativo ao ser, ganhando o sentido absoluto da totalidade do que uma coisa é, a sua essentia9..
À grande arte, que transcorria paralelamente ao pensamento da physis, era dada a possibilidade de repousar em seu mistério, em seu puro permanecer em si mesma, de modo a estar salvaguardada das conceituações totalizadoras e, por conseguinte, demasiadamente limitantes no que se refere à sua verdadeira essência. Ela descansava em seu enigma numa região desconhecida pelas indagações futuras e por seus conceitos parciais, pois, nesse momento o povo grego não era compelido, por uma concepção arraigada, a tomar a obra de arte como um núcleo que comporta propriedades, como um aistheton ou como uma matéria enformada. Muito pelo contrário, toda a região que concerne ao que é, sendo compreendida a partir da physis, era entendida “como processo, isto é, no sentido de aparição, de nascimento de uma coisa e das coisas” (HADOT, 2006, p. 28): evento misterioso e inexaurível de haver o ser ao invés de nada.
O segundo fato fundamental a partir da história da estética se refere, em confronto com o primeiro, ao declínio da grande arte e da grande filosofia helênica na época de Platão e Aristóteles. Para Heidegger é nesse momento decisivo da estruturação da metafísica como um todo que foram cunhados os conceitos que se tornaram determinantes na reflexão acerca da essentia da obra de arte, tornando-se os norteadores do modo de ver vindouro. Além do mais, as decisões históricas provenientes de tais sistemas perduram, segundo tal perspectiva, fundando a compreensão ocidental do ser até os dias de hoje.
Sabe-se que Platão a partir de sua segunda navegação, isto é, da descoberta do suprassensível ou do ser inteligível, deriva toda a realidade sensível de um princípio inteligível, a idea ou o eidos que indica uma forma ou um modelo. Tais ideias são os paradigmas dos quais as coisas reais são cópias, havendo, assim, entre a ideia e o sensível uma relação de imitação de onde provêm dois níveis ontológicos e cognoscitivos: o conhecimento das coisas mesmas, a saber, das ideias, e um conhecimento das cópias das coisas mesmas, isto é, de tudo o que é sensível. A partir de tal compreensão, os entes são entendidos pela perspectiva de seu aspecto (eidos) originado pela ideia da qual ela é cópia. Nesse sentido, a matéria para receber o seu ser deve ser enformada pela ideia da qual é imitação. Daí deriva a concepção primitiva da coisa enquanto matéria-enformada10.
Se a ideia é o princípio de ser e de cognoscibilidade, pois a ideia dá ser e somente aquilo que tem ser pode ser conhecido, e o sensível é uma cópia, qual é a natureza das obras de arte para Platão? Conforme uma ideia muito conhecida e difundida até os dias de hoje, a arte é mimeses, queremos dizer, cópia da realidade sensível. Portanto, se o sensível é cópia da ideia e a arte é cópia da realidade sensível, ela deve estar na perspectiva platônica, conforme podemos ler no livro X de A República (599 a): “três pontos afastados do real, pois é fácil executá-las mesmo sem conhecer a verdade, porquanto são fantasmas e não seres reais o que elas representam” (PLATÃO, 2001, p. 456). A arte é, assim, para Platão uma cópia da cópia, estando, por isso, três níveis afastada da verdade – verdade compreendida como adequação do sensível com a sua ideia de origem.
Segundo a sua doutrina, um artesão que, por exemplo, confecciona uma cama deve ter algum conhecimento da sua ideia, pois uma cama para ser efetivamente o que é deve funcionar, queremos dizer, servir adequadamente para que alguém repouse e descanse sobre ela sendo, assim, fiel ao seu eidos de origem. Por outro lado, uma obra de arte não necessita de um conhecimento acerca da ideia, pois o que ela produz é, para Platão, uma imagem vazia ou um fantasma, uma cópia da cópia, isto é, cópia do sensível desprovida de realidade. Por isso, ela não pode ampliar o nosso conhecimento, mas ao contrário nos obscurece a essência do que é representado, pois representa inadequadamente.
De acordo com uma famosa passagem do livro X de A República, um pintor que pinta uma cama, diferentemente de um artesão que a produz, gera uma mera visão da cama, um fantasma que não retira sua forma da ideia da qual o sensível de fato deriva. Enquanto o artesão deve conhecer a ideia, o artista não. A arte é, nesses termos, inadequada tanto ao ente quanto ao ser, restringindo-se a algo da espécie de um reflexo num espelho. É dessa maneira que Platão deprecia em seu sistema filosófico as obras de arte. Para Haar:
A teoria do espelho esvazia toda a materialidade da arte. O artista é comparado a um charlatão desprovido de qualquer espécie de ofício. O que ele produz qualquer um pode produzir, e não é sequer uma operação muito difícil. [...] O artista é definido como um pseudoprodutor, como um produtor cego de puras e simples aparências (2007, p. 17).
Aristóteles, por outro lado, aceita o caráter mimético, isto é, imitativo da arte, porém compreende a sua natureza de outra forma. Para o Estagirita, diferentemente de Platão, a imitação é algo inato ao homem e, por assim ser, é verdadeira. Segundo essa visão, as obras de arte, compreendidas aqui como entes no sentido de substâncias que comportam acidentes11, existem devido a uma espontaneidade natural do homem que imita a natureza e imitando aprende12. Todavia, em seu imitar o artista não se restringe a reproduzir as coisas tal como elas são, mas sim, segundo podemos ler na Poética (1460 b 10): “imita sempre necessariamente uma de três coisas possíveis: ou as coisas como eram ou são realmente, ou como dizem e parecem, ou como deviam ser” (ARISTÓTELES, 2008, p. 97).
Assim, à mimeses se relaciona intrinsecamente, para Aristóteles, a ideia de criação ou de invenção, uma vez que o artista não deve se limitar à representação das coisas como elas são, podendo imitá-las também e principalmente através da semelhança e do possível. Nesses termos, a obra de arte deixa de ser uma cópia degenerada de uma outra cópia, tornando-se um local de ampliação de conhecimento. Ampliação do conhecimento que ocorre, por sua vez, através do prazer estético em que ao contemplar o verossímil ou o provável aquele que contempla reconhece o objeto real ali representado. O prazer estético é, nessa acepção, não um sentimento, mas uma satisfação oriunda do reconhecimento da conformação entre a representação e o representado, fundando-se num juízo13.
Salvaguardadas as distinções entre a concepção de arte em Platão e em Aristóteles, ambas se fundam, para Heidegger, numa mesma de-cisão histórica que concerne ao estabelecimento do paradigma do ser compreendido como presença (Anwesenheit), isto é, do ser tomado como algo que é, como um ente – e não mais como vir à presença (Anwesung), como a physis. Enquanto Platão compreende a arte como mímesis, Aristóteles a compreende a partir do par matéria-forma – conceitos que se referem mutuamente à compreensão da coisa enquanto um suporte que comporta propriedades, seja ele expresso como a substância e suas variações ou como a matéria que comporta uma forma14. É nesse sentido que as duas compreensões de arte residem o âmbito da origem do esquecimento do ser (da confusão entre ser e ente) no pensamento ocidental a partir da metafísica: uma origem que, não sendo abandonada e esquecida no passado, funda continuamente o nosso modo de olhar e de iluminar o mundo.
Heidegger também nos mostra que a estrutura essencial da coisa – que em Platão e Aristóteles se refere ao suporte de propriedades – está relacionada intrinsecamente à estrutura da preposição e da verdade. Desse modo, ao pensar e consolidar sua filosofia numa compreensão originária da verdade, isto é, da aletheia, foi necessário caminhar também para um entendimento mais originário tanto da coisa quanto da linguagem, em vista de “despertar, talvez, o que está adormecido; corrigir, talvez, um pouco, o que está confundido” (HEIDEGGER, 1992, p. 57).
Nesse contexto, a linguagem se torna, ao invés da mera expressão do estado de coisa, local (Ort) de acontecimento da verdade do ser, de modo a evidenciar como o ser foi compreendido pelos momentos históricos. Sua história, isto é, a história das palavras fundamentais em que o ser foi nomeado, embora não diferenciado – ideia, enérgeia, espírito absoluto, vontade de potência, por citar –, torna-se a manifestação da história (Geschichte) do ser.
Conforme já indicado, a verdade é comumente compreendida como conformidade entre o enunciado e a coisa, de modo que a própria essência da verdade deve se conformar com a essência da coisa extraindo daí sua validade. Se dissermos, assim, que o giz está quebrado e ao olharmos para ele percebermos que de fato assim está, estaremos diante de uma verdade. Verdade cujo lugar de acontecimento é o enunciado que a expressa enquanto concordância com a coisa. O enunciado, por sua vez, é constituído de um sujeito e de um predicado, isto é, de um núcleo e de designações atribuídas ao núcleo sendo expressão lógica de algo ontológico que é a própria estrutura da coisa. É nesse sentido que a verdade, a coisa e a proposição estão fundadas, segundo a ontologia heideggeriana, na mesma estrutura e na mesma determinação platônico-aristotélica. Para Heidegger:
[...] nos tempos de Platão e Aristóteles, se formou a determinação da coisa como suporte de propriedades. Nesse tempo, chegou-se ao descobrimento da essência da proposição. Simultaneamente, apareceu a caracterização da verdade como conformidade entre o perceber e as coisas, que tem o seu lugar na proposição (1992, p. 50).
Dessa maneira, tais concepções, enquanto de-cisões históricas que ainda fundam em seu repouso do acontecer, determinam ainda hoje aquilo que compreendemos como verdade, coisa e proposição. O simples fato de analisarmos a estrutura de uma proposição nos evidencia a passagem para a língua de um entendimento da essência da coisa que reside, por sua vez, numa compreensão da essentia do ente tomado como ser. Com isso, podemos entender um pouco melhor a presença histórica das determinações platônico-aristotélicas através de nossos próprios olhos acostumados.
O terceiro fato fundamental a partir da história da estética aponta para o começo da modernidade. Seu fundamento metafísico concerne, portanto, na autoconsciência do eu singular cartesiano15. Nesse momento, diz-nos Heidegger em O Tempo da Imagem do Mundo: “o ente é, pela primeira vez, determinado como objectividade do representar, e a verdade como certeza do representar”, de forma que “toda metafísica moderna, [...], mantém-se na interpretação do ente e da verdade traçado por Descartes” (2014b, p. 110).
É a partir de Descartes que se inicia a de-cisão histórica através da qual o ente será entendido como a representação de um sujeito. O ente se torna, assim, uma imagem representada, isto é, uma imagem que tem como local de acontecimento a consciência de um sujeito, retirando daí a sua validade, de modo a derivar todas as demais conclusões desse princípio metafísico. O próprio mundo se torna, nesse contexto, representação. Quanto à verdade, ela toma a forma de concordância entre a proposição e a representação do sujeito.
O termo sujeito deriva do grego to hypokeimenon que indica o núcleo em torno do qual as características ou os acidentes denominados de ta symbebekota se reúnem. Tal conceito, em seu começo grego, não se referia ao homem, mas sim ao ente de um modo geral. É somente com o advento da modernidade que o homem é concebido como subjectum abrindo margem para uma nova compreensão de sua essência. Compreensão que o toma como o núcleo que reúne tudo em torno de si e a partir de si mesmo determina o que as representações são. É no sujeito, dessa forma, que reside o fundamento do que é o ente em seu ser para a modernidade, de modo que é o próprio ente pensante quem atribui sentido à realidade que se torna sua representação16. Lemos:
[...] se o homem se torna no primeiro e autêntico subjectum, então isto quer dizer que o homem se torna naquele ente no qual todo o ente, no modo do seu ser e da sua verdade, se funda. O homem torna-se centro de referências do ente enquanto tal. Mas isso só é possível quando se transforma a concepção do ente na totalidade (HEIDEGGER, 2014b, p. 111).
É assim que para Heidegger a de-cisão histórica que lançou o homem, compreendido enquanto subjectum, para a localidade de fundamento metafísico do ser, tornou possível a compreensão da obra de arte a partir do horizonte da vivência (Erlebnis) do sujeito que representa. É nesse sentido que a reflexão sobre a arte se deslocará para o estado sentimental do homem. Não poderia ser diferente, pois, na perspectiva de Heidegger, tudo na modernidade se converte em vivência de um sujeito que representa, já que o ser (compreendido como ente) tem como forma de desvelamento moderna o homem tomado como subjectum que funda suas certezas na intuição de sua própria existência a partir do Je pense, donc je suis cartesiano. Eis a expressão da essência da estética em seu esquecimento do ser.
Heidegger aponta o “processo de a arte se deslocar para o âmbito da estética” (2014b, p. 97) como um dos fenômenos fundamentais da modernidade17. Fenômeno que reduz a obra de arte a mero objeto da vivência, de forma que o sujeito se torna o centro do qual é derivado o seu sentido mais fundamental18. O que suscita diversas críticas, pois, visto sob um ângulo ontologicamente mais fundamental, o homem ao transformar a obra de arte em objeto a ser analisado e determinado em sua totalidade perde o que ali há essencial: a polissemia de um mundo, o constitutivo jogo de doação e recusa de sentidos que ela é em seu estar a ser. Tomá-la dessa maneira é, nessa acepção, como desmontar um relógio em busca do tempo ou dissecar um cadáver em busca do princípio da vida – encontra-se algo, mas se perde o tempo e a vida.
O termo estética deriva do grego aisthésis que indica percepção, sensação ou sensibilidade. Para Baumgarten, o elaborador de seu sentido moderno: “A Estética (como teoria das artes liberais, como gnoseologia inferior, como arte de pensar de modo belo, como arte do análogon da razão) é a ciência do conhecimento sensitivo” (1993, p. 105). Isto posto, por estética, entende-se, em termos gerais, a consideração filosófica oriunda da modernidade que busca analisar os efeitos causados pelas obras de arte na sensibilidade do sujeito que apreende e representa o belo.
A compreensão de coisa aqui em curso é a de aistheton, isto é, do apreensível mediante a sensibilidade. Nela se alicerça a fundação da estética como ramo filosófico autônomo que se ocupa do estudo da natureza da arte e de seus fundamentos pela perspectiva do sujeito. Heidegger nos fala do fenômeno moderno da estética em A Origem da Obra de Arte nos seguintes termos:
A estética toma a obra de arte como objecto, nomeadamente como o objecto da aisthēsis, do perceber sensível em sentido lato. A este perceber chamamos hoje ‘vivenciar’ [Erleben]. É o modo como o homem vivencia a arte que deve prestar-se a esclarecer-nos acerca da sua essência. A vivência [Erlebnis] é a fonte canónica, não só de fruição artística, mas mesmo da criação artística. Tudo é vivência. Porém, talvez aconteça que a vivência seja o elemento no qual a arte morre (2014a, p. 85-6).
No momento em que a estética se consolida, a grande arte da época da aurora do pensamento ocidental é, de modo ainda mais efetivo, esquecida, reduzida e determinada. A arte moderna é, para Heidegger, caracterizada por uma carência de absoluto no sentido de não conseguir mais tornar manifesto, a partir de seu modo de ser, o ente em sua totalidade superabundante e misteriosa conforme outrora expresso pela physis.
O terceiro fato a partir da história da estética aponta, nesses termos, para uma redução da essência da arte à mera esfera de uma ditadura do gosto. Dessa forma, a “posição do homem mesmo, o modo como ele se encontra e sente as coisas, em suma: seu ‘gosto’ transforma-se em tribunal para o julgamento do ente” (HEIDEGGER, 2010, p. 76) e, assim, para o julgamento acerca do estado sentimental suscitado pelo objeto artístico que é tomado como sendo a própria natureza da arte19. Eis que a arte morre, quando assim concebida, em seu desvelamento fundamental.
Trilhamos até aqui o círculo hermenêutico em busca da coisidade da coisa (die Dingheit), isto é, do modo de ser fundamental da coisa em vista de compreender o que é uma obra de arte. Constatamos com isso que, na perspectiva de Heidegger, nenhum dos conceitos tradicionais de coisa consegue abarcar o que a obra de arte é em sua essência (Wesen), mas, pelo contrário, sob sua égide perdemos o que ali fundamentalmente está em jogo: a sua verdade. A coisa mesma nos escapa de modo que o que encontramos é regido por sedimentações historicamente consolidadas. Abrimo-nos, desse modo, a partir das considerações do pensador do ser para o que a arte ontologicamente não é. Certamente, uma distinção basilar da via heideggeriana para a preparação de um novo encontro entre o Da-sein e o artístico fundado em uma ressignificação do encontro homem-ser.
Terminamos com a lucidez ontológica de que arte não pode, quando considerada a partir da Seinsfrage, ser tomada como um objeto da contemplação subjetiva, pois a noção subjacente a essa ideia remonta à vivência que lança o artístico à arbitrariedade do gosto do sujeito. A estética é enquanto metafísica da arte a plena manifestação do esquecimento do ser. Do mesmo modo, compreender a arte como mímesis, nos moldes platônicos ou aristotélicos, é igualmente matá-la. Por conseguinte, em dissonância com os paradigmas metafísicos, quando pensada como puro eclodir da verdade, a arte se torna local (Ort) onde o horizonte significativo de uma época sai do não-ser para o ser. Nessa acepção, ela é constituidora de mundo. É elaboração de quem ousou ouvir o apelo silencioso do ser que clama por sua abertura que somos nós mesmos. Falamos dos pensadores, dos poetas, em suma, dos iniciadores da história.