Resumo: O texto a seguir é fragmento de um trabalho de doutorado e abordará um período específico da vida do jovem Nietzsche, quando ele atuou como soldado-enfermeiro na guerra franco-prussiana. Foi o momento da escrita do seu primeiro livro O nascimento da tragédia. A luta pela cultura figurou como a arma utilizada para vigorar a favor de sua elevação. Visava-se que ela retomasse os clássicos da Antiguidade e da Alemanha como horizontes para orientar um pensamento como “instrumento de combate”. Para além dessa vivência direta na guerra, essas missivas fazem referência à arte, sobretudo a musical que, no nosso entendimento, figurava como meio educativo. É válido salientar que vários momentos da vivência cotidiana de Nietzsche, suas ocupações, criações, brigas, dúvidas, sofrimentos, trabalhos; todas foram molas impulsionadoras do seu pensamento e da constituição de uma personalidade que aprendeu e criou formas de educar a si mesmo e também gerou um instrumental para pensar e confrontar o modo de vida dominante em seu tempo.
Palavras-chave:ArteArte,EducaçãoEducação,CulturaCultura,GuerraGuerra.
Abstract: The following text is a fragment of a doctoral work and will cover a specific period of the young Nietzsche's life, when he served as a nurse-soldier in the Franco-Prussian war. It was the moment of writing his first book The birth of tragedy. The struggle for culture figured as the weapon used to prevail in favor of its elevation. It was intended that she return to the classics of Antiquity and Germany as horizons to guide a thought as an “instrument of combat”. In addition to this direct experience in the war, these missives refer to art, especially the musical, which, in our understanding, figured as an educational medium. It is worth noting that several moments in Nietzsche's daily experience, his occupations, creations, fights, doubts, suffering, work; all were springs that propelled his thinking and the constitution of a personality that learned and created ways to educate himself and also generated an instrument for thinking and confronting the dominant way of life in his time.
Keywords: Art, Education, Culture, War.
Artigos
As cartas de Nietzsche: educação e arte como instrumento de combate a favor da cultura
Nietzsche's letters: education and art as an instrument in favor of culture
Recepção: 22 Outubro 2020
Aprovação: 15 Janeiro 2021
Erwin Rohde, em 16 de julho de 1870, recebe uma carta com conteúdo que marca a descrição de um acontecimento notável na vida de Nietzsche: a sua participação como enfermeiro na guerra franco-prussiana2.. A Alemanha era um conjunto de estados frágeis e politicamente visava à unificação; entre 1870-71 ocorreu o conflito armado do conjunto dos estados germânicos liderados pela Prússia e pelo chanceler Otto von Bismark3.. O oponente fora a França que, sob o comando do imperador Napoleão III, pretendia continuar o controle sobre a região. A união alemã e o poder do exército daquela aglomeração de estados figuravam como uma ameaça ao domínio francês.
Nesta conjuntura social, o filósofo recebe a notícia de forma preocupante: “[...] Uma bomba tremenda: a guerra franco-alemã foi declarada, e toda a nossa cultura desgastada desmorona sobre o peito do horrível demônio.” Nietzsche associa imediatamente guerra à queda da cultura. Ela, em qualquer nação, pode desestabilizar, enfraquecer e até eliminar as produções culturais elaboradas durante longos períodos. Além disso, é importante aproximar a convicção de que o embate do filósofo era uma defesa também da cultura, a sua luta política perpassava necessariamente pela questão cultural. Conforme João Eduardo Navachi da Silveira, “O jovem Nietzsche teria inicialmente imaginado que a unificação dos trinta e nove estados germânicos independentes, [...] produziria um efeito benéfico para a cultura de seu tempo, pois, junto à unificação política viria, sobretudo, a unificação e fortalecimento da cultura” (SILVEIRA, 2018, p. 77). Diante disso, Nietzsche demonstra interesse em participar ativamente da guerra. Conforme a carta 89, ao conselheiro Wilhelm Vischer, atesta:
Prezado Senhor Conselheiro: Na situação atual da Alemanha, não lhe será inesperada a decisão de querer cumprir minhas obrigações para com o país. Com este propósito me dirijo a você para solicitar permissão - através de sua intercessão perante o louvável Colégio de Instrução - para a última parte do semestre de verão. Meu estado de saúde foi fortalecido de tal maneira que, sem dúvida, posso ser útil como soldado ou enfermeiro. Que tenha que sacrificar à pátria também a mais insignificante objeção de minha capacidade pessoal, que ninguém a achará mais natural e digna de aprovação do que uma autoridade escolar suíça [...].
Além da luta pela cultura, o filósofo quisera colocar à prova o seu sentimento nacionalista e guerreiro; na carta 91, escrevendo a Rohde, narra ter assumido a função de enfermeiro: “Chegarei a Leipzig no domingo, 15 de agosto e a autoridade de saúde me enviará de lá para onde posso ajudar os feridos, sobretudo no próprio campo de batalha.” As cartas deste período, em que Nietzsche passou naquela conflagração armada, foram mais curtas, certamente por conta da falta de tempo. Na missiva 94 à mãe Francisca, ele aborda as atividades e as dificuldades da função:
Em primeiro lugar a mais calorosa saudação! Algumas palavras para que você não se inquiete. Ainda estamos em Erlangen e vamos nos tornar médicos e cirurgiões por causa de nossa atividade contínua no hospital. Estou curando um turco e um prussiano. Na segunda-feira, meu colega Ziemsen, o diretor da clínica local e alguns médicos irão para Metz e Verdun, para o campo de batalha dos últimos dias. Nós provavelmente seguiremos o exército alemão até Paris, mais tarde, pelo menos esse seria o nosso desejo. Esperamos um trabalho enorme e muitas dificuldades [...].
O pensador relata também a doença adquirida naquelas circunstâncias, herança maldita que lhe causaria danos por muito tempo e possivelmente, os seus efeitos tenham refletido durante todo o restante da vida. A carta 98 a Francisca Nietzsche está entre as várias que o atestam, o de ter sido acometido pela disenteria e, ainda, sobre o seu empenho na ajuda aos feridos:
[...] querida mãe, que até hoje não tenho nenhuma notícia sua, mas felizmente, terminei minha expedição militar. Não muito feliz: pois estou aqui, na cama, enfermo da maligna disenteria: mas o pior já aconteceu e na terça ou quarta eu vou poder viajar para continuar minha cura em Naumburg [...]. Fui para perto de Metz e de lá acompanhei um trem de feridos até Karlsruhe. Durante a viagem, dado o terrível estado de todos os meus pacientes [...] o continuo curar das feridas [...], dormindo em vagões de gado, onde seis graves feridos estavam deitados na palha, fui tomado pelo gérmen da disenteria; Ao mesmo tempo, o médico me diagnosticou também a difteria, decorrente da mesma atividade. Combatemos também da maneira mais enérgica esse mal. Apesar de tudo, estou feliz por ter ajudado em algo, pelo menos nesta incrível emergência. E eu teria partido imediatamente uma segunda vez se não tivesse sido impedido pela doença [...].
Dentre outras, nas cartas 99 e 100 estão relatos nos quais o filósofo detalha de forma bastante precisa as atividades diversas dos dias em que participara da guerra; na missiva 99, por exemplo, afirma:
Tivemos que participar de inúmeras comissões privadas e operações de confiança, com todo tipo de trabalhos penosos. No campo de batalha de Wörth, tivemos que procurar a tumba de um alto oficial bávaro e a encontramos. Na memória deste terrível campo de batalha, eu trouxe algumas balas chassepot. Avançamos até Ars-sur-Moselle (muito perto de Metz) e lá nós tivemos que cuidar dos feridos. Foi uma alegria especial para mim ver de repente meu colega Hoffmann, que acompanhava um transporte de feridos para Karlsruhe. Eu me juntei a ele e imediatamente a Mosengel, e cada um de nós cuidou de uma das carroças cheias de feridos. Precisamos de dois dias e duas noites para a nossa viagem, durante a qual não abandonamos nossos pacientes, eu tinha um pequeno e estreito vagão de gado coberto de palha, no qual seis gravemente feridos estavam caídos e eu no meio. Aqui havia muito a fazer: bandagem, alimentação etc. A atmosfera nesse inferno era terrível. Em Karlsruhe entreguei nossos feridos: no dia seguinte retornamos a Erlangen, para lá apresentar nosso relatório. Naquela viagem, fui acometido por um forte mal-estar: o médico que viera de Erlangen por causa de mim descobriu a disenteria e a segunda difteria. Portanto, tive que conhecer essas duas doenças infecciosas ao mesmo tempo. [...] Nós devemos fazer algo para não sermos consumidos como espectadores pela intranquilidade interior e atormentar a si mesmo. Vários dos meus amigos estão entre os mortos [...].
Selecionamos fragmentos longos destas cartas para evidenciar as atividades densas ocorridas naquele momento, as quais o filósofo declara tê-las assumido com toda intensidade; notemos que, além da disenteria, a difteria também aparece como a outra enfermidade que o assolou. O filósofo, diante de um cenário desolador e desfavorável, termina a carta apontando para a necessidade de não nos desesperarmos como “espectadores da intranquilidade interior.” Era necessário, naquela situação, buscar a autossuperação, para não atormentar a si mesmo. Ocorria um embate com a doença dos outros, com a própria e com outras circunstâncias desoladoras de uma guerra; mas como Apolo, a divindade da harmonia e da ordem, do domínio sobre si mesmo, era necessário encontrar força para conciliar o confronto com o caos, manifesto da forma mais brutal e terrível. A interpretação de Romero Cuevas contribui na compreensão deste esforço de Nietzsche:
Em O nascimento da tragédia, é formulada uma concepção da verdade, vinculada ao dionisíaco, como uma terrível verdade para o indivíduo, que se refere ao real como desmesura (Übermass), hybris. A verdade do real é hybris, o que significa que o real aparece como um caos sem forma, diante do qual o indivíduo é forçado a se reconhecer como mera aparência. [...]. Há um lado terrível dessa verdade ontológica, que exige ser velada para que o indivíduo possa subsistir. Essa é a função do apolíneo, que gera belas aparências que velam tal verdade (embora mantendo a consciência de que essas aparências são apenas aparências) e, em relação ao indivíduo, como princípio ético, prescreve o restabelecimento da aparência da individualidade através das prescrições éticas apolíneas de cuidado de si e de conhecimento de si (ROMERO Cuevas, 2019, p. 173).
Tais cartas parecem ser frutos de uma decisão, do desejo de não ficar apenas como espectador diante de uma situação tão tensa, na qual estava em jogo o destino do seu país. Este episódio parece não servir adequadamente ao nosso propósito de detectar também neste momento da vida de Nietzsche, perspectivas educativas e estéticas, mas dois aspectos são, a nosso ver, evidentes e apontam para uma dimensão artística e formativa do filósofo e, consecutivamente, de sua filosofia: primeiro Nietzsche sentiu a disposição de se unir aos conterrâneos por causa não apenas de uma necessidade externa, mas porque tinha um sentimento bélico: Na carta 293 ele fala de seus ardores militares: “Todas as minhas paixões militares despertaram de novo e não consegui satisfazê-las! [...].” Percebemos um desejo de combate, de luta, tal qual o modo como ele compreendia a própria natureza, efeito que se esforçava para reluzir em sua vida e tornou-se, essa afluência de sua própria fisiologia, uma forma de pensamento, de filosofia.
Embora a guerra seja algo doloroso, promotora de mortes, sofrimentos, desestabilidade física e psicológica, algo que o filósofo sentiu no próprio corpo, é também um espaço de conflitos no qual, simbolicamente, o jogo tensional da vida pode se manifestar efetivamente, embora de forma atroz; inclusive, minimizando vários sentidos morais que a sociedade civilizada impõe, aproximando, para além de qualquer avaliação convencional do bem e do mal, o ser humano de seus sentimentos mais instintivos. Concordamos com Guervós quando o comentador aponta que Nietzsche, desde a sua juventude, elabora um pensamento agonístico, influenciado pela cultura grega. Ele interpreta a guerra que existe na natureza como um jogo que pode ser pensado, pode se tornar objeto de reflexão filosófica, aliás, é o mais importante, pois reflete o que o mundo apresenta, e neste:
Uma das raízes fundamentais da ideia do “jogo” no jovem Nietzsche se encontra na referência que o filósofo faz à estrutura grega do agón e sua importância para o âmbito não apenas político, mas também artístico do povo grego. Em A filosofia da época trágica dos gregos, Nietzsche interpreta filosoficamente a tese do caráter agonístico da arte e da cultura. Para ele, uma das intuições radicais de Heráclito é a “luta dos contrários” que cria o mundo do vir-a-ser e que marca o vínculo inseparável entre a filosofia helenista e o modo de vida helenista baseado no jogo como agón. Esse é um tema recorrente no primeiro pensamento de Nietzsche, e o que se manifesta como traço essencial e fundamento vital do povo grego é a centralidade do impulso agonal, da justa (Wettkampf), do impulso agonístico competitivo. Mas o motivo do agón adquire sua maior relevância quando Nietzsche o relaciona ao tema do jogo, deixando de ser um princípio puramente ético para se tornar um princípio estético da criação do mundo e fundamento de uma cosmodicéia que rechaça a interpretação teleológica da metafísica tradicional (GUERVÓS, 2011, p. 53).
O jogo é estético, é criativo, por não ter lugar fixo, não é intencional, apenas joga e cria e nesta força criativa gera o novo. O outro prisma que podemos vincular aos aspectos educativos que resultam da guerra é a doença e as reflexões emergidas da fragilidade humana; a dor foi sem dúvida uma questão fundamental que impulsionou a filosofia de Nietzsche, mas diferente de tornar esta chave de leitura sobre o mundo como algo para se aniquilar, ele buscou intensificar a vida, incorporando os aspectos mais dolorosos e terríveis da existência. Em todos os momentos o sofrimento foi determinante para a formulação das ideias do filósofo.
Na guerra ele teve a oportunidade de sentir o efeito avassalador no próprio corpo e também naqueles que tentara ajudar; de que maneira esta situação pode se tornar estética e educativa? Ela promoveu experiências vitais que impulsionaram a criação. Criar, inventar, para Nietzsche não prescinde, de modo algum, daquilo que se vive, que se experimenta. Na carta 102 o filósofo fala da excitação nervosa que sentia como efeito da guerra, mostra a decorrência físico-psicológica que antes citamos: “[...] Meu desejo de voltar ao cenário bélico não foi cumprido; estava muito cansado e sofro frequentemente de excitação nervosa e fraqueza repentina, estados que me proíbem de qualquer ocupação extraordinária e me obrigam a certo equilíbrio e grande tranquilidade [...].” No final da carta o filósofo expressa o valor de “viver pelos outros”.
A carta toda é uma minuciosa narrativa sobre os dias de atuação na guerra e o que move Nietzsche não parece ser uma sensação de piedade ou compaixão no sentido religioso. Embora seja difícil mensurar até em que medida estes sentimentos não guiavam as suas ações; mas possivelmente foi o heroísmo, a sua atitude bélica que visava imitar a potência avassaladora da natureza. Trata-se do sacrifício próprio como uma capacidade interna de se autodeterminar e a preocupação com a coletividade, no caso específico, com a sua nação dividida, as forças que o moveram. Entendemos que tais movimentos são formativos, quando geram perspectivas de vida no próprio filósofo e no seu modo de pensar a conjuntura social, e são estéticos, na medida em que impulsionavam na elaboração de novas formas de vida.
A carta 107 a Carl Von Gersdorff em 7 novembro de 1870, alude a outro aspecto que interessou Nietzsche neste momento, que fora o destino da Alemanha após a vitória na guerra. Ele reflete sobre os efeitos que esse acontecimento teria sobre a cultura. Deseja que a correspondência encontre o amigo com saúde, coragem e humor, mas no caso do humor, considera difícil encontrar a sua origem; provavelmente por causa da situação de sofrimento e instabilidade vigente e pela incerteza em relação aos destinos do país. Acrescenta em relação ao humor; “a menos que você saiba o que é a existência e o que significa.” Desse modo, o humor é possível somente ao se ultrapassar o real significado da existência; e o contexto da carta indica a percepção de algo atroz: “Quando, como agora, o terrível fundo do ser é aberto, a infinita opulência da dor é derramada, então temos o direito de marchar com solenidade no meio como os iniciados. Isto dá um humor valente e resignado, com ele se resiste e não se converte uma estátua de sal.”
O fundo do ser é lúgubre, onde a dor e o sofrimento se revelam com total intensidade. É a tragicidade da vida, na sua manifestação mais genuína revelada ao homem. Saber dessa periculosidade constante e íntima de todas as coisas é o que traz um “humor valente e resignado”; não se trata de um humor ingênuo, criador de ilusões sobre a vida, mas, ter consciência de como ela funciona no seu ser e por isto, a necessidade de valentia no humor para resistir aos limites estruturantes do devir e não se tornar “estátua de sal”; maldição que faz olhar para trás e paralisar.
Nietzsche cita, na mesma carta, o escrito de Wagner intitulado Beethoven, o define como uma filosofia da música claramente vinculada a Schopenhauer; conforme comentário de Marco Parmeggiani: “O artigo apareceu no editorial de E. W. Fritzsch em Leipzig como uma comemoração do 100º aniversário do nascimento de Beethoven. Uma cópia é mantida na biblioteca de Nietzsche.” (PARMEGGIANI, 2007, Correspondências II, Nota 306). Na carta seguinte (108), o então jovem filólogo definirá o texto como “a filosofia da música enquanto tal”, e ainda refletirá sobre o seu escrito A visão dionisíaca do mundo, como algo que escrevera para si mesmo, um ensaio a partir do qual começava a expressar a sua singularidade. Destaquemos dois aspectos desta carta: a aproximação de um texto como filosofia da música e da escrita de A visão dionisíaca do mundo, exatamente no período em que estava envolto com os dissabores da guerra. No prefácio à primeira edição de O nascimento da tragédia, obra gestada neste período, ressoou muito das vivências daquele exato momento: “Haverás de lembrar com isso que eu colecionava esses pensamentos ao mesmo tempo em que surgira teu esplêndido escrito em homenagem à Beethoven, quer dizer, em meio ao susto e grandiosidade da guerra que acabara de irromper.” (NIETZSCHE, 1999, p. 23). Na obra, Wagner (1983), afirma que Beethoven tencionou música e linguagem, pois esta última está presa aos limites da lógica,às artes plásticas e à poesia que figuravam com base neste elemento limitador.
A música, entretanto, continha a capacidade de ultrapassar as fronteiras da lógica e atingir a essência do mundo, um claro influxo de Schopenhauer sobre a interpretação wagneriana: “Admite-se que a linguagem dos sons pertence, de modo uniforme, a toda a humanidade e que a melodia é a língua absoluta por meio da qual o músico fala aos corações.” (WAGNER, 1983, p. 39). O músico surdo Beethoven foi capaz de dar audição ao que havia de mais próprio, onde ressoa nos humanos uma linguagem musical e tinha a força de comunicar esta potência totalizadora. O músico, na concepção de Wagner: “através de uma pura contemplação [...]. Sua música já é por si mesma uma concepção do mundo, representação imediata da sua essência, ao passo que, nas outras artes, ela só se tornará representada e transmitida através do conhecimento” (Ibidem, p. 50). Concepções como esta foram motivadoras para a criação de Nietzsche que também era influenciado pela arte musical como “linguagem do mundo”. Muito próximas às concepções de Wagner, destaquemos as ponderações do texto de Nietzsche. No conteúdo emerge a exaltação da vida como tensão, como uma dimensão caótica e que podia ser manifesta e humanizada pela arte apolíneo-dionisíaca:
Quanto mais forte medrava o espírito da arte apolínea, mais livre se desenvolvia o deus irmão Dionísio: ao mesmo tempo que o primeiro chegava ao completo aspecto imóvel da beleza, no tempo de Fídias, o outro interpretava na tragédia o enigma e o horror do mundo, e exprimia na música trágica o mais íntimo pensamento da natureza, o tecer da Vontade em e para além de todos os fenômenos (NIETZSCHE, 2005, p. 56).
O pensador alemão afirmara que a tensão entre os deuses Apolo e Dionísio entrou em harmonia em um campo de guerra. Ele defendia, assim como a tese presente em sua primeira obra publicada, que os gregos foram capazes de harmonizar, pela arte, essas duas divindades antagônicas. A sua observação que aparece no prefácio, como antes citado, de que tais interpretações surgiram no emergir da guerra, contém a precisa proximidade entre vida e pensamento. A visão dionisíaca, ou seja, trágica da vida, e a arte musical de Beethoven, como reflexo da imagem universal do mundo, esplendem em seu pensamento.
Destacamos acima a presença da combatividade e do sofrimento como os dois efeitos mais decisivos em Nietzsche no seu processo criativo com a participação na guerra, mas é importante atentar também, que naquela conturbada situação ele continuou dando vazão ao seu processo inventivo. Na carta 110 a Erwin Rohde de27 de novembro de 1870 o filósofo fala da criação de uma métrica nova e de que escrevera a obra A visão dionisíaca do mundo em meio às tormentas que vivia nesse momento, se referindo aos efeitos da doença adquirida. Este é um livro que exalta o aspecto trágico da existência e mostra a importância dada à proximidade entre pensamento e vida. Sendo esta última, interpretada de forma beligerante. A visão dionisíaca do mundo foi certamente influenciada por este sentimento de luta, dor, perda que a guerra oferece e que contribuiu para associar esta experiência com o pulsar do existir e, não necessariamente, de forma negativa. No passo seguinte, ainda na mesma carta em análise, destaca-se outra vez a sua preocupação com os destinos da Alemanha, dentre eles, o perigo de uma interpretação cultural e social fundada no conservadorismo religioso:
Só espero que não tenhamos de pagar demasiado caro pelos enormes êxitos nacionais num âmbito onde ao menos não aceito ter qualquer perda. Confiante: Eu tenho a Prússia atual por um poder que é altamente perigoso para a cultura. Em alguma ocasião mais adiante eu gostaria de expor publicamente a instituição escolar; que outro tente com as maquinações religiosas, como estão agora a caminho de Berlim em favor do poder da Igreja Católica. De vez em quando é realmente difícil, mas devemos ser filosóficos o suficiente para permanecer sensatos em meio à embriaguez geral, para que o ladrão não venha e roube o que para mim não pode ser comparado aos grandes feitos militares ou levantes nacionais. Para o próximo período cultural, os lutadores são necessários: para eles devemos nos conservar [...].
O tradutor das CartasMarco Parmeggiani também destaca essa preocupação com as forças religiosas sobre os destinos da cultura e o efeito nocivo que isto poderia causar:
Depois do Concílio Vaticano e do colapso do Estado eclesial, o Partido do Centro foi constituído no Parlamento Prussiano a partir de novembro de 1871 em nome dos interesses do Papa e da Igreja Católica e pressionou o governo a favor da restauração do Estado eclesial. Foi o início da “luta cultural” (Kulturkampf) desenvolvida entre o Estado e a Igreja na Prússia desde 1872 (PARMEGGIANI, 2007, Correspondências II, Nota 309.
O descontentamento do Nietzsche era com o futuro eclesiástico da Alemanha; o perigo do país se limitar a uma teocracia enfraquecendo os aspectos diversificados da cultura. No início da presente seção perguntamos a razão de uma relação tão direta entre e a guerra e a destruição da cultura; aqui temos uma resposta possível. Algum grupo poderia reivindicar o controle sobre os destinos do país tentando imprimir a sua perspectiva de mundo, que ocorreu historicamente na Alemanha, com a denominada “luta cultural”.
Na carta 117 a Friedrich Ritschl, Nietzsche indica a preocupação, novamente, com os destinos da sociedade e a necessidade de ser diversificada: “[...] esperamos que o desdobramento do poder estatal na Alemanha não seja pago com a gravidade do sacrifício da cultura! Em qualquer caso, vamos ter perdas e espero que isto só aconteça na esperança de uma restituição mais rica e mais múltipla.” Neste contexto de preocupação com os destinos da Alemanha, a missiva 118, ao conselheiro Wilhelm Vischer, questões mais pessoais também inquietam o filósofo. A carta detalha as razões pelas quais queria deixar a profissão de professor de Filologia. O excesso de trabalho e a sua fragilidade são algumas das indicações, mas figura de forma mais efusiva a sua inclinação filosófica. Uma clara demonstração de que a filosofia era uma vocação.
Eu vivo aqui em um conflito singular, e é isso que me exaure e me consome inclusive fisicamente. Eu, por natureza, sinto-me fortemente levado a examinar filosoficamente as coisas como um todo unitário e perseverar em um problema, com continuidade e sem ser incomodado, com longas cadeias de pensamentos, sempre me sinto trazido de um lado para outro e desviado do meu caminho pelas múltiplas tarefas profissionais. Em longo prazo, não suporto essa coexistência de instituto e universidade, porque sinto que minha verdadeira tarefa, à qual, se necessário, devo sacrificar toda profissão, minha tarefa filosófica sofre com o fato de que é rebaixada à ocupação marginal.
O jovem filólogo considera que a sua ocupação principal era o exercício filosófico e toda atividade fora desse propósito era perturbadora; admite que procurava viver conforme a sua filosofia, buscando harmonizar suas diversas inquietações. Era necessário seguir as próprias inclinações: “Quem me conhece desde meus anos como estudante nunca questionou a prevalência em mim de inclinações filosóficas”; e continua: “também nos estudos filológicos fui atraído com preferência pelo que me pareceu mais significativo, seja pela história da filosofia, seja pelos problemas éticos e estéticos.” Por causa desta inclinação propõe algo mais simples, que seria assumir uma cadeira de filosofia, mas isto não veio a se efetivar.
É importante notar que ele associa, inclusive, a possibilidade de estar próximo da função filosófica como algo que pudesse melhorar a sua saúde: “Certamente um dos meus mais vivos desejos seria realizado se eu pudesse também seguir a voz da minha natureza: eu creio que posso esperar que eliminando o conflito mencionado acima, minha saúde física seria muito mais estável.” O pensador, com uma pequena frase, mostra, pelo menos até aquele momento, tinha uma atenção contínua dirigida aos problemas relacionados à educação. Esta função, formal ou não, estava plenamente no seu enfoque de ação. Ao abordar a questão da cátedra de filosofia que ficara vacante afirma: “Eu sempre tive interesse em questões e pesquisas pedagógicas: ser capaz de ensinar lições sobre isso será uma alegria para mim. [...].” Esta frase revela a sua empatia pela filosofia e pelas questões pedagógicas e pesquisas inerentes à profissão. Além deste aspecto, mesmo após esta fase inicial como professor, na qual a ocupação com problemas educacionais era muito estreita. Nunca faltou, nas suas inquietações, a inclinação para a educação, com a peculiaridade de ela estar intimamente associada, em todas as fases de sua filosofia, às questões artísticas.
A carta 130 a Erwin Rohde faz referências díspares aos sentimentos de Nietzsche; nela, ele admite que passava por estados de ânimo oprimidos, mas também vivia momento de exaltação:
Às vezes vejo crescer um fragmento de uma nova metafísica, às vezes uma nova estética: logo minha mente está ocupada com um novo princípio educativo, com uma completa rejeição de nossos institutos de bacharelado e universidades. Eu não aprendo mais nada de novo que não encontre um bom lugar em algum rincão do que eu já sei.
Além de acenar para o processo de pensamentos que construía, lembremos que nesse momento ele estava em pleno período de produção de O nascimento da tragédia. O pensador percebe que pudera elaborar algo inovador, mas, sobretudo, chama a atenção o aceno à ideia de “um novo princípio educativo” e este estaria distante dos modelos educacionais vigentes. Rechaçar o que era ensinado nos institutos e universidades demonstra a sua insatisfação diante do modelo de educação que prevalecia. Este apontamento para um novo modo de conceber a educação perpassa por esta concepção estético e educativa. Embora o filósofo não afirme de forma cabal esta hipótese, ou seja, de que a educação precisa estar associada à dimensão artística, na carta em análise, a frustração de não aprender nada de novo, denota o valor atribuído a saberes intensificadores. Ele valoriza a busca de inovações, de modos diversos de se viver e situar no mundo. A ausência do espaço para a invenção é o que Nietzsche questiona.
Voltemos ao problema da cultura e façamos inicialmente uma breve digressão. Ocorreu no Brasil, no final de 2018, um ataque à cultura talvez irrecuperável e que, infelizmente, fica ocultado pelo pouco valor que a sociedade em geral e os governos atribuem à arte, à ciência e ao conhecimento. Além de uma quantidade enorme de escândalos de todo tipo que todos os dias surgem junto à barbárie cultural que foi o incêndio da mais remota instituição de ciência brasileira, o Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Acenamos para esta fatalidade, por causa de aludir ao sentimento de terror que assolou Nietzsche (carta 134), diante da notícia falsa de que monumentos de arte teriam sido destruídos pela “Comuna de Paris”. Conforme Romero Cuevas (nota 363): “Nos periódicos, apareceu a informação errônea de que, no sangrento esmagamento da insurreição da Comuna de Paris, na fase final em que os membros da Comuna incendiaram edifícios públicos como as Tuileries (24 de maio de 1871), eles também queimaram completamente o Louvre com as obras de arte alojadas nele.”4. Embora se trate de um episódio que não ocorreu, é válido destacar o abalo que a notícia causou no filósofo, o que ele denomina como “terremoto da cultura.” Na carta 140 a Carl Von Gersdorff em 21 de junho de 1871 afirma:
Quando soube do fogo parisiense, estive por vários dias completamente abatido e dissolvido em lágrimas e dúvidas: toda a existência científica e artístico filosófica me parecia absurda se um único dia pudesse aniquilar as mais esplêndidas obras de arte e os períodos completos de arte. Aferrei-me com a mais séria convicção ao valor metafísico da arte, que não pode estar presente apenas para os míseros homens, mas para cumprir missões mais elevadas [...].
A perenidade demonstrada pela ignorância em eliminar a arte, destruindo todo um patrimônio histórico construído durante anos virarem cinzas, levou o autor das Cartas a pensar no “valor metafísico da arte”. Ela deve estar acima da miséria humana para cumprir a sua missão. Qual seria esta missão? O contexto da obra de Nietzsche remete à constituição de indivíduos singulares, fortes, capazes de ultrapassar a destruição dos símbolos humanos mais significativos e reconstruir a existência. A obra de arte é uma manifestação da capacidade humana que pode ser reinventada, pois a capacidade criadora está no homem. O problema está naqueles e naquelas que ignoram aquilo que já está construído como um aspecto pedagógico urgente e necessário na formação de novos criadores. Eliminar a arte é eliminar, ou pelo menos tentar eliminar, a capacidade de busca de acesso ao que há de mais genuíno em nós.
A preocupação de Nietzsche neste momento era certamente que o seu país se tornasse uma miscelânea de traços culturais híbridos sem que conseguisse estabelecer um “estilo único”. Ele considerava necessário algo que caracterizasse o povo. Essa preocupação certamente emergia diante das diferenças que havia entre os vários principados da época desconexos politicamente e culturalmente. Também havia a preocupação com a formação de um único modelo de vida que aniquilasse os demais, como vimos na sua preocupação diante do estado teocêntrico que ameaçava se impor, na Alemanha dessa época. Neste contexto, o efeito da guerra, mesmo com a vitória alemã, poderia tornar ainda mais avassalador o problema, assentando as diferenças ou obrigando a nação a se submeter a um estilo predominante e uniformizador. Segundo Rüdiger Safranski (2001, p. 61): “Quando começa a entrever que a vitória na guerra não ajuda à cultura, mas ao Estado, ao lucro financeiro e à arrogância militar, Nietzsche distancia-se”. Vimos então, nos escritos do então jovem filósofo, uma empolgação de que a guerra pela unidade alemã seria positiva para a elevação da cultura daquele país; mas esta foi gradativamente perdendo força, diante da velha e nova atitude da política institucional, que quase sempre, quer sobrepor, ou mesmo, ser adversária da cultura. Desse modo, parece coerente considerarmos que a guerra pela cultura fora uma guerra pela educação, pela criação, pela arte, a difícil constituição de uma nação com o máximo de indivíduos singulares, criadores e autônomos, apesar de suas diferenças. Estes conseguiriam manifestar um estilo único, valorando a construção de um povo genuíno e forte5..